Menos leviandade, por favor

O falso debate do aborto só favorece a política suja

Parecia que tudo ia bem. Na nossa jovem democracia, de apenas 25 anos, tínhamos no primeiro turno três candidatos a presidente com votação significativa por quem podíamos sentir respeito. Lamentávamos os debates de mentirinha, as imagens esculpidas com botox e cirurgias plásticas (para quê?), as promessas de ocasião. Tínhamos preferência por um, divergências com outro, natural e desejável numa sociedade plural. Mas não tínhamos vergonha. Não havia, nesta disputa presidencial, nenhum Fernando Collor de Mello ou Paulo Maluf, cujas biografias dispensam comentários. O segundo turno veio e pensamos: quem sabe agora haverá um debate de verdade e poderemos comparar propostas e idéias? E então começamos a sentir vergonha. Profunda vergonha.

É difícil acreditar que depois de tudo o que vivemos para resgatar democracia e respeito próprio, venham com esta baixaria. A de um falso debate sobre o aborto. Porque uma discussão de verdade sabemos que nenhum dos dois candidatos quer fazer. No finalzinho do primeiro turno, uma campanha anônima na internet transformou Dilma Rousseff em “abortista” e “assassina de fetos”. Como parece que a estratégia das catacumbas colou, com a candidata do PT perdendo votos entre evangélicos e um e outro bispo católico exortando seus fiéis aqui e ali, a inquisição continua e com fogueiras cada vez maiores. De repente, querem nos fazer acreditar que a grande questão nacional é saber se Dilma Rousseff é a favor ou contra o aborto. Que questão é esta?

Existe, sim, uma questão de saúde pública que não deveria ser ignorada por nenhum candidato sério. Segundo reportagem do jornal O Globo deste domingo, o aborto ilegal mata uma brasileira a cada dois dias. Segundo a Pesquisa Nacional do Aborto, realizada pela UnB e Anis, aos 40 anos uma em cada cinco mulheres já fez aborto, o que equivale a mais de 5 milhões de brasileiras. Segundo a mesma pesquisa, 15% das mulheres que abortam são católicas, 13% protestantes ou evangélicas, 16% de outras religiões e 18% não responderam ou não têm religião. Segundo o Ministério da Saúde, o aborto é a quarta causa de mortalidade materna no país. Em algumas regiões do Nordeste, segundo a Rede Feminista de Saúde, chega a ser a principal causa de morte.

Você pode e tem o direito assegurado pela Constituição de acreditar no que quiser, professar a fé que bem entender ou não ter fé nenhuma. O que ninguém deveria poder – seja candidato a presidente ou cidadão – é ignorar a morte de seres humanos. Todos nós, que não somos hipócritas, sabemos que as mulheres mais ricas procuram boas clínicas e abortam em segurança. E todos nós, que não somos hipócritas, sabemos que são as mulheres mais pobres que morrem em procedimentos clandestinos, porque não têm dinheiro para pagar as boas clínicas. Quando estas jovens mulheres morrem, deixam filhos que não podem cuidar e famílias que se desfazem pela sua ausência, provocando problemas sociais em cadeia. Esta é uma tragédia que começa com a morte de uma pessoa e vai causando muita dor pelo caminho dos que ficam. Transformar a vida destas mulheres em moeda de barganha política, como temos assistido no início deste segundo turno, é uma indignidade.

Acho curioso que algumas pessoas que se dizem religiosas acreditam ter o monopólio do discurso da vida. E que estes que acreditam terem privatizado a verdade, ao falar em nome da vida não se preocupem com a morte destas mulheres. Não se coloquem por um minuto sequer no lugar destas mulheres para tentar alcançar seu desespero e sua dor. E então, por empatia e humanidade, perceberem que ninguém deveria morrer por falta de assistência. Assusta-me a rapidez com que estes supostos religiosos julgam e condenam outros seres humanos. Acho a compaixão um sentimento profundo, redentor. E não consigo compreender a compaixão seletiva que move estes dedos em riste.

A morte de mulheres em abortos clandestinos é, sim, uma questão de saúde pública. Que deveria ser discutida seriamente, com informação e profundidade. Mas não é esta a questão que foi lançada na lama desta campanha eleitoral. Aqui, trata-se apenas de demonizar uma candidata em busca dos votos de um certo tipo de devoto. Enquanto alguns grupos de fiéis se lançam cheios de sanha, deitando saliva pelo chão, algumas cúpulas religiosas aproveitam para ganhar alguns pontos de vantagem no embate em torno da questão do aborto, cuja descriminalização vem avançando na América Latina. Por acreditar que os fins justificam os meios, iludem-se que suas mãos seguem limpas.

Eu esperava mais de José Serra. Não há provas de que a lama tenha vindo dos setores mais abjetos da sua campanha. Mas é visível que ele tem empenhado corpo e alma para arrancar toda a vantagem possível da baixaria. Preocupante para alguém que quer ser presidente do país. Eu esperava mais de Dilma Rousseff. Que se comportasse como uma candidata a presidente e colocasse a questão com serenidade, como teve a integridade de fazer no passado recente. Em vez de tergiversar e se encolher diante da baixaria. A nós, eleitores, cabe a pergunta: quem ganha com isso? Me parece que até quem pensa que ganha, perde.

Tenho assistido perplexa ao show de fervor religioso de ambos os candidatos. E eu que não sabia que Serra e Dilma eram devotos dedicados? Não sei em que país eu andava até agora que nunca tinha notado este ardor místico. Na minha ingenuidade, eu esperava ter a chance de assistir a um programa eleitoral que não fosse apenas espetáculo. E lá está Dilma “agradecendo a Deus pela dupla graça” e fazendo “uma campanha, antes de tudo, em defesa da vida”. Alguém está fazendo uma campanha em defesa da morte? Descobrimos então que Serra fará um governo com “Deus no peito”. Mulheres grávidas desfilam pela tela porque o candidato promete cuidar dos bebês mesmo antes de nascerem (!). Se há algo que os crentes de verdade – e não os que usam a religião para fazer comércio eleitoral – deveriam se preocupar é com gente capaz de reduzir Deus a cabo eleitoral.

Admiro Marina Silva, pela sua trajetória de vida e pela sua integridade em momentos cruciais. Assim como compartilho da sua visão sobre o meio ambiente e o desenvolvimento sustentável. O que nunca me impediu de sentir arrepios ao ouvi-la colocar a teoria científica da evolução, de Charles Darwin, no mesmo patamar da mitologia do criacionismo. Ou quando sugere transformar o aborto em plebiscito. Ou ao declarar-se contra o casamento gay.

Embora suas posições divirjam das minhas nestas áreas, isto nunca me impediu de ter respeito por tudo o que ela é – e o que representa. Pelo menos até agora. É natural e desejável numa sociedade plural ter convergências e divergências. O que é inaceitável é o desrespeito. O que é intolerável é a demonização de pessoas. O que é inadmissível é transformar um problema de saúde pública, que causa morte de gente, em moeda de barganha eleitoral.

Não me interessa saber se Dilma Rousseff e José Serra são contra ou a favor da descriminalização do aborto. O que me interessa é saber o que vão fazer para impedir que estas mulheres continuem morrendo, independentemente de suas crenças. E, neste momento, talvez me interesse ainda mais como vão se comportar daqui para frente diante da baixaria que se transformou este segundo turno eleitoral. Se vão rolar na lama com o que tem de pior neste país. Ou em algum momento vão levantar a cabeça e se lembrar de quem são – e do que querem ser.

A nós, que temos de escolher entre um dos dois para ser presidente do país, cabe renegar a hipocrisia. Mostrar que não caímos neste velho jogo sujo. Deixar claro que esperamos mais, que desejamos mais, que exigimos mais de quem vai nos governar. É duro sentir vergonha do nível da campanha eleitoral ao cargo mais importante do país, mas pior é ter vergonha do nosso voto. Quando candidatos perdem a compostura, cabe a nós, eleitores, manter a nossa. E mostrar a eles que o Brasil mudou.

Ou não mudou?

(Publicado na Revista Época em 11/10/2010)

Droga não é demônio

Então por que é tratada pela sociedade como se fosse?

É possível que nunca tenha se falado tanto em drogas como hoje, pelo menos como caso de polícia ou de saúde pública. Nos anos 60, quando as drogas faziam parte do movimento de contracultura, o olhar sobre elas e a função que desempenhavam era outro. E os “malucos beleza” eram vistos de forma muito diversa dos consumidores de crack de agora. A própria diferença de linguagem é reveladora, já que antes se “experimentava” drogas, com a ideia de ampliação de consciência – e hoje se “consome”, como tudo. Um verbo expressa uma vivência – outro o uso. O que mudou, para que o crack tenha se tornado tema de campanha eleitoral, assunto para candidatos à presidência do país?

Ao acompanhar o debate travado em várias instâncias, me parece empobrecedor que um tema tão amplo e cheio de nuances seja reduzido a apenas dois discursos, duas maneiras de olhar: ou é caso de polícia/segurança ou é caso de saúde pública – ou de ambos. Será que estas duas abordagens – repressão e cura – dão conta da complexidade da questão? Desconfio que não.

Por outro lado, me parece bastante curioso que o debate sobre as drogas ilegais atinja esse nível de decibéis justamente numa época em que há um consumo massivo de drogas lícitas, na forma de antidepressivos, ansiolíticos e hipnóticos, receitadas por médicos das mais variadas especialidades. Drogas para ser feliz, para ficar calmo, para dormir. Sem contar as drogas para perder o apetite e aumentar o desejo sexual.

Por que algumas se tornam um problema e outras são vendidas como solução? Quem determina o que o indivíduo pode consumir? E com quais argumentos? E por que aquela que possivelmente seja a droga que causa mais estrago na nossa sociedade – o álcool – é abordada com muito menos estridência?

Ao acompanhar o debate, me chama a atenção o fato de a droga ser encarada como uma espécie de alienígena, desenraizada da sociedade em que é usada e produz sentidos. É como se ela fosse um demônio ou um vírus que entra no corpo à revelia de todo o contexto – desligada de tudo e de todos. E que bastaria ou exorcizá-la, do ponto de vista religioso, ou extirpá-la, no campo da medicina, para que o problema acabasse. Ou ainda reprimir, na visão policial.

Parece que não é tão simples assim – ou o problema já seria menor. Se os mais diversos tipos de drogas sempre foram usados por todas as sociedades, em diferentes momentos históricos, por que a nossa não consegue lidar com elas? Será que não valeria a pena, além de reprimir e tentar “curar”, pensar um pouco mais nos porquês?

É exatamente por ser uma questão que produz muito sofrimento é que acho importante refletirmos sobre ela com mais amplidão – e alargar nosso campo de visão. Em busca de respostas – não definitivas, mas possibilidades de respostas –, procurei o psicanalista Eduardo Mendes Ribeiro. Ele é membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa), mestre em Filosofia pela PUC/RS, doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e consultor do Ministério da Saúde na Política de Humanização do SUS. Estuda o tema das drogas desde os anos 90 e tem vários artigos publicados sobre o assunto.

Nesta conversa, ele nos ajuda a pensar sobre uma questão tão crucial – para além dos estereótipos.

ÉPOCA – Hoje, as drogas ou são caso de polícia ou de cura. É como se toda a complexidade da questão coubesse nesses dois modos de ver e não existisse outra possibilidade de abordagem. Por quê?
Eduardo Mendes Ribeiro – Por ao menos duas razões: a primeira é a tendência à simplificação do problema, o que, em tese, ajudaria a entendê-lo e enfrentá-lo. Por essa via, elege-se a droga como a causa do mal e os traficantes como os agentes promotores deste mal. Ora, sendo assim, é fácil concluir que o que devemos fazer é, por um lado, tentar evitar que o mal nos atinja: repressão. E, por outro, se fracassarmos no primeiro intento, temos de extrair o mal de nossos corpos: desintoxicação e abstinência. Essa visão também nos poupa dos complexos e incômodos questionamentos acerca das razões pelas quais tantas pessoas decidem se drogar.

ÉPOCA – E quais seriam esses questionamentos tão incômodos? Afinal, por que tantos se drogam, legal e ilegalmente?
Ribeiro – São questionamentos relacionados aos conflitos psíquicos que cada um de nós vivencia: inibições, frustrações, angústias, etc. É muito mais incômodo enfrentar estes fantasmas do que usar uma droga que pode fazer nosso humor melhorar quase imediatamente. O problema é que os fantasmas continuam lá – e nem sempre em silêncio.

ÉPOCA – Em sua opinião, quem é mais drogado? O consumidor de crack do centro de São Paulo ou uma faixa significativa da população mais idosa – assim como muitos jovens – que consome tranquilizantes todo dia?
Ribeiro – Atualmente, há uma tendência de se avaliar o grau de gravidade de uma dependência não mais através de escalas quantitativas de intensidade e frequência, mas a partir dos efeitos que essa prática produz na vida de cada sujeito. Nesse sentido, é provável que aquelas pessoas que passam o dia fumando pedra vivenciem um empobrecimento maior de suas interações sociais, além de se manterem em situações de maior vulnerabilidade. Mas, por outro lado, não há razão para acreditarmos que aqueles que vivem uma vida entorpecida estejam em uma situação muito melhor.

ÉPOCA – Mas por que o crack incomoda e a população que vive uma vida entorpecida não?
Ribeiro – O usuário de crack, ao menos o usuário estereotipado, com maior visibilidade, é alguém que expõe tudo o que nossa sociedade quer evitar: descontrole, desamparo, vulnerabilidade, improdutividade, laços sociais frágeis, ausência de projeto de futuro, etc. O sujeito entorpecido é muito mais identificado com as crenças e valores que nos orientam: ele é visto como um doente em tratamento, ou seja, ele tem um problema que nossa sociedade, através de seus saberes e especialistas, está tratando. Está tudo em seu lugar…

ÉPOCA – Por que o crack virou, hoje, um tema da política, como podemos ver nesse início de campanha eleitoral entre os candidatos a presidente?
Ribeiro – Talvez porque o crescimento rápido do número de dependentes e sua visibilidade pública façam com que se concentrem nesse fenômeno os temores relativos à fragilização de nosso laço social. Os crackeiros espelham, paradoxal e simultaneamente, nossos maiores sonhos e pesadelos: ansiamos por prazer e descompromisso, mas sabemos que precisamos de um conjunto de relações sociais que nos sustentem enquanto sujeitos. Infelizmente, a maior parte dos discursos político-eleitorais é dirigida à promessa de medidas voltadas ao fortalecimento do aparato repressivo e à criação de mais vagas para internação/desintoxicação de dependentes, que é o que responde aos anseios imediatos dos eleitores.

ÉPOCA – E como ampliar a abordagem dessa questão, para além da repressão e da cura?
Ribeiro – Nenhum país do mundo resolveu o problema da dependência de drogas por uma razão muito simples: não se trata de um problema de drogas, mas, sim, dos efeitos do tipo de laço social que construímos. Acho que o que podemos fazer é aumentar o repertório de alternativas através das quais as pessoas possam produzir para si um lugar social. Isto pode se dar de várias formas: através da educação, do esporte, da arte ou mesmo da religião. Mas, é claro que precisamos também de políticas de saúde para acolher e tratar aqueles que não conseguem mais controlar seu uso de drogas. Nessa direção, é preciso avançar na implementação do que já está previsto na Reforma Psiquiátrica e na atual Política de Saúde Mental do Ministério da Saúde. Quando recebo um usuário de drogas em busca de tratamento, costumo propor que falemos de qualquer coisa, menos de drogas. Acho que é disso que eles precisam: encontrar outras coisas capazes de lhes interessar. De drogas eles já falam bastante.

ÉPOCA – Praticamente todas as sociedades usaram drogas, mas parece que só na nossa elas se tornaram um problema. Pelo menos um problema nessas proporções. Por que nossa sociedade, diferentemente de outras, não sabe como lidar com as drogas?
Ribeiro – Na maior parte das sociedades conhecidas, as drogas eram consumidas com alguma forma de controle social. Isto não significa que havia mecanismos repressivos para coibir abusos. Ao contrário, significa que havia um conjunto de entendimentos compartilhados que orientava o uso, em determinadas situações e com determinadas finalidades. Isso poderia se dar em rituais de cura, de mediação com o sagrado ou mesmo com finalidades orgiásticas, para aliviar tensões e produzir prazer. O conhecimento que temos acerca do uso de drogas em outras sociedades nos mostra que, se ele ocorresse com alguma forma de controle social, não trazia problemas pessoais ou para a comunidade. Provocar alterações dos estados de consciência representava algo de extraordinário que acontecia em situações muito específicas. Em nossa sociedade, este tipo de uso ocorre, por exemplo, no Carnaval, quando muitas pessoas se autorizam a fazer coisas que não fazem em seu cotidiano, o que inclui um consumo maior de drogas. E depois voltam à rotina.

ÉPOCA – E o que aconteceu na sociedade ocidental moderna para que a droga passasse a se integrar ao cotidiano e ser usada para o gozo individual?
Ribeiro – O desenvolvimento do liberalismo político e econômico trouxe consigo a constituição de um ethos fortemente individualista. A modernidade rompeu com o passado, afirmando o poder de autodeterminação dos indivíduos. No início, ainda se manteve orientada por um ideal coletivo, representado pelo progresso da ciência. Acreditava-se então que a ciência seria capaz de nos revelar, cada vez mais, o que era real e verdadeiro. Entretanto, no decorrer dos últimos séculos, esse ideal não cumpriu com suas promessas, como tampouco o fizeram outros ideais sociais, como o socialista e aqueles propostos pelos movimentos contraculturais. É nesse contexto que os laços sociais construídos a partir da tradição – passado – ou de projetos coletivos – futuro – se encontram desgastados, produzindo um achatamento do tempo e a percepção de que o que há para ser vivido tem que ocorrer agora. Os interesses pessoais e a pressa são elementos presentes em nosso cotidiano. E é nessa realidade que proliferam diferentes modalidades de uso de drogas: ora para aliviar tensões, ora para potencializar desempenhos.

ÉPOCA – Hoje há uma satanização das drogas, como se elas possuíssem a pessoa à revelia. Como se o processo de se drogar fosse externo ao indivíduo – e não algo movido por questões e necessidades internas, que começou pela escolha daquela pessoa de usar determinada droga, ainda que depois possa ter perdido o controle. Por quê?
Ribeiro – Diante de certos efeitos indesejáveis da ordem social moderna, tendemos a produzir práticas e representações originadas nos tempos pré-modernos. Explicando melhor: mesmo considerando que nossa sociedade se constituiu em torno de uma ética da responsabilidade – temos autonomia para pensar e agir, mas precisamos responder por nossos atos –, a consagração da visão simplista que sataniza as drogas representa um retorno às velhas crenças animistas que atribuem poderes e intenções a substâncias inanimadas. Algumas interpretações antropológicas evolucionistas defendiam que, no campo religioso, haveria um processo de “evolução” das sociedades. Ou seja: em seu início atribuíam poderes sobrenaturais a seres ou forças da natureza, depois teriam vindo as sociedades politeístas e, finalmente, as monoteístas. Estas teses evolucionistas encontram-se desacreditadas no campo antropológico, mas é fato que muitas sociedades “simples” acreditavam no poder sobrenatural de certas substâncias naturais. É um pouco como alguns setores da sociedade enxergam as drogas hoje.

ÉPOCA – Em um de seus artigos, você diz que, no início, as igrejas viam as drogas, todas elas, como coisa do demônio. Já a ciência se contrapunha a esta visão, apostando na autonomia das consciências. Hoje, ambas parecem demonizar as drogas. O que isso significa?
Ribeiro – Na Idade Média, a Igreja condenava o uso de drogas por razões teológicas: “só Deus tem o poder de curar”. Mas também por disputas de mercado envolvendo fé e poder, pois não lhe interessava permitir o crescimento da influência de feiticeiras e curandeiros. Hoje, esse discurso mudou e a condenação que grande parte das igrejas faz ao uso de drogas é fundamentada em sua suposta associação a práticas libertinas, hedonistas e promíscuas. Assim como também é uma eficaz estratégia de marketing para algumas denominações. Basta observar que muitos dos pastores se apresentam como ex-usuários de drogas que, com a ajuda de Deus – e da igreja, através dos dízimos –, conseguiram se libertar. Esse trânsito, das drogas para a religião, é muito frequente.

ÉPOCA – E a ciência?
Ribeiro – O deslocamento operado no campo científico é mais sutil. Partiu da afirmação do direito de qualquer um poder usar a droga que quiser e de uma posição liberal, em que o direito de experimentação fazia parte do processo em que se dava o progresso da ciência. Vale a pena lembrar que até o início do século passado todas as drogas conhecidas eram vendidas livremente em farmácias. Partiu-se disso para uma pretensão de controle e prescrição de uso. Ou seja, as drogas são instrumentos importantes no combate a doenças e na produção de bem-estar, mas seu uso deve ser orientado pelo saber científico, o quer exclui, evidentemente, as modalidades de uso espontâneas.

ÉPOCA – A abordagem atual das drogas parece intimamente ligada à questão do poder e do controle. Como você vê essa relação?
Ribeiro – Atualmente, a forma hegemônica de abordar a questão é resultante de um conjunto de fatores que pouco ou nada tem a ver com os que determinam o consumo. As estratégias de controle e repressão social defendidas por grupos orientados por ideais religiosos e/ou totalitários é um deles. Mesmo considerando que vivemos em uma sociedade fundada a partir de uma ética da responsabilidade – somos responsáveis pelos nossos atos e respondemos por eles – ou justamente por isso, convivemos com grupos que temem os efeitos dessa liberdade. Em vez de uma multiplicidade de formas de pensar e agir, eles prefeririam que todos agissem conforme seus princípios e crenças. Essa posição não se manifesta apenas no campo estritamente religioso, podendo estar presente em diferentes segmentos sociais. Nesse sentido, combate-se o uso de drogas porque ele seria potencialmente subversivo, pouco controlável. Outro fator são os interesses políticos e econômicos de laboratórios e setores da corporação médica, que reivindicam a exclusividade do direito de manipular corpos e mentes. Com o passar do tempo, no contexto da modernidade, o uso de drogas passou a ser cada vez menos controlado socialmente, seja por rituais tradicionais e/ou religiosos, seja por saberes autorizados, como médicos, curandeiros, etc. Este uso “individual” e espontâneo foge ao controle, não podendo ser utilizado como instrumento de poder político ou econômico. Daí a insistência em manter a produção e autorização de consumo de drogas sob o controle de laboratórios e médicos, respectivamente.

ÉPOCA – Você não acredita que a repressão possa causar a redução do consumo?
Ribeiro –
Os conflitos oriundos da marginalização do comércio e consumo de algumas drogas acabam por produzir um senso comum que evita a complexidade da questão e produz a estigmatização dos usuários e a defesa de medidas paliativas – ainda que necessárias –, como a repressão do tráfico e o tratamento de dependentes. Basta lembrar o episódio da Lei Seca, nos Estados Unidos, para concluir que as estratégias repressivas pouco ou nada contribuíram para a diminuição do consumo. Pelo contrário, seu efeito foi de outra ordem: expansão da corrupção policial, aumento do número de problemas de saúde em função do consumo de drogas de má qualidade, criação de um mercado marginal e violento, etc. Essa avaliação foi feita pelo próprio governo dos Estados Unidos, por ocasião da promulgação do ato que aboliu a Lei Seca. Hoje, há um entendimento largamente difundido de que as drogas são a encarnação do mal em nossa sociedade. Trata-se de uma poderosa aliança entre os discursos religioso, científico e o da segurança pública. O mais produtivo seria abordar frontalmente o problema e reconhecer que o uso de drogas em nossa sociedade faz parte de nossa cultura, como fez de tantas outras. E que, em vez de lançar cruzadas antidrogas, hipócritas e inúteis, deveríamos discutir as diferentes modalidades de usos, lícitas e ilícitas, e encontrar formas de minimizar seus efeitos danosos, individuais e sociais. Acredito que essa realidade se constitui no campo das disputas simbólicas, onde se definem valores e sentidos.

ÉPOCA – Como assim?
Ribeiro – O que faz com que o uso de drogas assuma determinado valor e determinada função para algumas pessoas? Como intervir nessa realidade? É evidente que não bastam campanhas publicitárias afirmando que “fumar é brega” ou que o “crack mata”. Não são mais os saberes tradicionais, passados de pai para filho, que orientam nossa compreensão do mundo. Vivemos em uma sociedade fragmentada e individualista, mas que se articula através de uma complexa rede de relacionamentos, presenciais e virtuais. É nesse universo que os sentidos vão se definindo e se modificando. Sendo assim, é possível afirmar que, quanto maior for a troca de idéias e experiências, menor será a possibilidade de um ou mais discursos assumirem uma posição de domínio. Acredito que ganharíamos muito se “gastássemos” essa discussão sobre as drogas, diminuindo sua importância, fazendo com que elas deixem de ser vistas como solução de todos os problemas ou como causadora de todos os males.

ÉPOCA – Vivemos numa sociedade onde se consome muitas drogas legais, parte delas receitada por médicos das mais variadas especialidades. A mesma sociedade que parece ficar um pouco histérica com o crack, por exemplo, não parece ver nenhum problema na massificação do uso de antidepressivos e ansiolíticos. Por que algumas drogas podem ser usadas e outras não? Umas são desejáveis e “terapêuticas” e outras são demonizadas? Qual é a diferença, afinal? Se tomamos drogas para dormir, para ficar feliz, para ficar calmo, para não sentir fome, para ter tesão, por que é ruim cheirar coca, fumar maconha e usar crack? Não estou dizendo que é bom, apenas questionando a lógica de que uma pode e a outra não, uma está incluída e a outra é marginal…
Ribeiro – Do ponto de vista do funcionamento subjetivo, não há nenhuma diferença entre cheirar cocaína, fumar maconha, usar crack ou beber cachaça, consumir antidepressivos, anfetaminas, ansiolíticos. É a mesma lógica: se faz uso de uma substância para produzir uma desejada alteração do estado de consciência e humor. É importante que se diga que as razões pelas quais algumas drogas são proibidas e outras não são proibidas não tem qualquer fundamento epidemiológico, médico, psicológico ou antropológico. Certas drogas são proibidas não por serem mais “fortes” ou “pesadas”, nem por terem maior potencial de criar dependência, ou por causarem mais problemas orgânicos. As origens da proibição podem ser buscadas em um conjunto de preconceitos morais e sectários do início do século XX. Nos Estados Unidos, por exemplo, a proibição de algumas drogas esteve ligada à desconfiança que os puritanos manifestavam com relação à massa de imigrantes que chegava às grandes cidades americanas no início do século. Assim, diferentes drogas foram associadas a diferentes etnias: a condenação do uso de ópio resultou das acusações de corrupção infantil feitas aos chineses; a cocaína era associada à permissividade sexual atribuída aos negros; a maconha à “invasão” dos mexicanos; e o álcool às “imoralidades” de judeus e irlandeses. É evidente que, posteriormente, os interesses econômicos – indústria de bebidas alcoólicas, de cigarros e laboratórios – passaram a atuar fortemente com vistas à manutenção de sua reserva de mercado. É sabido que hoje o maior número de dependentes de drogas é alcoolista. E o álcool é uma droga legal.

ÉPOCA – Por que está tudo certo se as drogas são receitadas por médicos, mas tudo errado se não? O problema estaria no controle, as que são consideradas ilegais seriam aquelas que não podem ser controladas por ninguém?
Ribeiro – Os remédios vendidos apenas sob prescrição médica não são as únicas drogas legais, nem as mais usadas. As bebidas alcoólicas não estão sob controle e podem produzir efeitos da mesma intensidade que os provocados por outras drogas lícitas e ilícitas. Portanto, o “controle” se refere muito mais a questões relativas à produção, circulação e, evidentemente, acumulação de lucros. Neste sentido, as drogas ilegais estão “fora do controle”.

ÉPOCA – Qual é a aposta que se faz na droga? Como a droga se aproxima da sociedade de consumo na medida em que promete – e por um tempo realiza – a possibilidade de ser feliz ou do gozo pleno, tão caro à nossa época?
Ribeiro – Se considerarmos que o capitalismo produziu algo que seria da ordem de uma perversão no campo das relações sociais, na medida em que promoveu o que Marx chamou de “fetichismo das mercadorias”, poderíamos pensar que o aumento significativo de casos de dependência de drogas seria efeito de uma nova perversão, que se constitui como desdobramento da primeira. Ou seja: a lógica da sociedade de consumo se encontra orientada para um progressivo aumento na produção e consumo de bens, que, neste contexto, operam como mediadores das relações sociais, índices de prestígio e elementos produtores de identidades sociais. Entretanto, quando certas modalidades de uso de drogas fazem com que elas se tornem o objeto único de desejo, subverte-se a lógica capitalista. Paradoxalmente, a crença no poder dos objetos pode se constituir numa ameaça a um sistema alicerçado em torno do consumo. Na lógica capitalista, o prazer ou a felicidade que supostamente poderia ser alcançado através da posse de um objeto deve ser sempre parcial e efêmero, fazendo com que o desejo deslize para outros objetos, retroalimentando o sistema, que se constitui numa forma de laço social. O prazer derivado do uso de drogas, mesmo podendo ser intenso, também é parcial e efêmero. Mas, exatamente por sua intensidade e exclusividade, tende a deslocar o sujeito do contexto socialmente regulado de produção e consumo. Quando o sujeito passa a desejar um único objeto, ele deixa de consumir todos os demais. Além disso, dependentes de drogas também não costumam se manter atuantes em atividades laborais, o que faz com que ganhem pouco e consumam menos.

ÉPOCA – Nesse sentido, a droga é antissocial, como nós mesmos o somos, preocupados apenas com a satisfação dos nossos desejos, independentemente do desejo do outro – e não de um projeto coletivo, mais amplo, que inclui o outro? A droga, portanto, se encaixa perfeitamente no modelo individualista, que não está nem aí para o que não é a sua vida ou a vida de uns poucos ao seu redor?
Ribeiro – Exatamente. Mas é importante que fique claro que não se trata de um entendimento fundado em algum tipo de imperativo moral de fraternidade. O risco do uso de drogas em uma sociedade individualista se dá em função de um equívoco, socialmente produzido, de pensar que somos – ou deveríamos ser – radicalmente livres. Segundo esse ideal, não deveríamos depender de ninguém. Por exemplo: deveríamos desfazer qualquer casamento, aliança ou sociedade no momento em que não mais nos conviesse. O problema é que só nos constituímos e nos sustentamos enquanto sujeitos a partir das relações que mantemos com outros sujeitos. Quanto mais frágeis forem estas relações, mais instáveis nos tornamos. E seremos mais dependentes de outras estratégias para nos prover de alguma consistência identitária. Nesse sentido, é possível afirmar que o uso de drogas pode passar a ser um problema para aqueles sujeitos que não assumem ou constroem relações sociais de dependência.

ÉPOCA – Para estes, a droga toma o lugar do que?
Ribeiro – Eles dependem da droga para não depender das relações com outras pessoas. É uma tentativa extrema e paradoxal de manter sua independência.

ÉPOCA – As drogas legais, que mantêm o indivíduo produzindo e consumindo, não parecem ser vistas como um problema. Já as ilegais tornam-se um problema de polícia e/ou de saúde pública. Como você vê essa dicotomia de abordagem?
Ribeiro – Creio ser disseminado um equívoco intencional na abordagem dessa comparação entre os efeitos produzidos pelas drogas lícitas e ilícitas. Não há na literatura especializada nem nos estudos epidemiológicos qualquer evidência que fundamente o entendimento de que as drogas legais mantenham os sujeitos engajados socialmente, enquanto as ilegais produzam improdutividade. As estatísticas demonstram que a droga que mais incapacita seus usuários é o álcool, cujo consumo é legal. Além disso, faltam estudos que investiguem o quanto a prescrição excessiva de psicofármacos, por parte de médicos de diferentes especialidades, condena um grande número de sujeitos a uma vida anestesiada, desvitalizada. Se o médico está apenas preocupado em eliminar o sintoma de seu paciente, este é um processo que pode ir muito longe, porque dificilmente o sujeito apresenta uma única queixa. E, muitas vezes, novas queixas surgem como efeito das primeiras medicações. Assim, passado algum tempo, não há mais como saber o que está se passando com essa pessoa: o que é produto de sua história, de seus conflitos, e o que é efeito desta profusão de remédios. Na maior parte das vezes, o objetivo dessa orientação terapêutica é que o sujeito não sinta nada considerado indesejável. E esse objetivo é alcançado: o paciente não sente mais nada. Por outro lado, basta analisar as pesquisas epidemiológicas e as estatísticas policiais para comprovar que apenas uma ínfima parcela dos consumidores de drogas ilícitas se torna um dependente, incapaz de manter seus laços sociais, incluindo aí os laborais.

ÉPOCA – Não é curioso que o mesmo médico que receita drogas legais para anestesiar o sofrimento, já que sofrer parece ter virado uma anomalia, pretende “curar” os viciados em drogas ilegais?
Ribeiro – Temos aqui duas perspectivas diferentes: a do sujeito que busca uma ajuda para enfrentar seus sofrimentos, que podem ter múltiplos determinantes; e a destes médicos, que tendem a ver apenas o sintoma. Se o sujeito está deprimido, prescrevem-lhe um antidepressivo, se está ansioso, um ansiolítico. E assim por diante. Isso ocorre nos mais diversos contextos clínicos, não apenas no tratamento de dependentes de drogas. Por outro lado, a estratégia de prescrição de drogas de substituição, para combater a dependência a uma determinada droga, é muito antiga e largamente utilizada, principalmente nos Estados Unidos. Ela costuma funcionar quando a dependência é produzida por circunstâncias específicas e episódicas, como a utilização de morfina em feridos de guerra. Nos demais casos sua eficácia é muito duvidosa, pois parte da suposição de que foi a droga que viciou o sujeito.

ÉPOCA – E não foi a droga que o viciou?
Ribeiro – Esta é a principal questão: nenhuma droga vicia. São as pessoas que, eventualmente, se viciam com alguma droga. Isso lembra aquelas advertências de nossas avós, para que não aceitássemos balas de estranhos na saída do colégio, porque elas poderiam conter maconha e nós ficaríamos viciados. Ao contrário do que é veiculado pela maioria das campanhas, qualquer um de nós poderia experimentar até mesmo o crack algumas vezes, sem se viciar. É sempre um sujeito que decide usar uma droga e pode, ou não, optar por levar essa relação mais longe. É claro que existem sujeitos cujas circunstâncias fazem com que eles corram um maior risco na relação com a droga, mas as drogas não fazem nada, são substâncias inertes.

ÉPOCA – As substâncias podem não ter poderes sobrenaturais, como acreditavam e acreditam algumas culturas, mas está provado que algumas substâncias causam dependência, em menor ou maior grau. O que você quer dizer, exatamente, quando afirma que a drogas não viciam?
Ribeiro – Ninguém questiona a existência da dependência de drogas, mas faz muita diferença quem é o sujeito da frase. Dizer que as drogas viciam é diferente de dizer que pessoas se viciam com drogas. O que afirmo é que, para se estabelecer uma dependência, alguém decidiu usar drogas. E é esta motivação, e a história da relação do sujeito com a droga, no contexto mais amplo de suas circunstâncias, que vai definir se ele se tornará um dependente – ou não. Também é importante observar que, no contexto do tratamento de uma dependência de drogas, a primeira etapa, a desintoxicação, é a mais rápida e fácil. Em duas ou três semanas já não há mais nenhuma substância com princípio psicoativo atuando no corpo do sujeito. E todos sabem que ele não está curado de sua dependência. Permanece uma espécie de “memória”, que não é exclusivamente orgânica, nem exclusivamente psíquica, e que se encontra associada a certas situações e sensações que fazem parte da vida do sujeito. Assim, diante de determinado conflito familiar, ou determinada frustração, ele pode voltar a sentir uma “necessidade” de usar a droga a que costumava recorrer.

ÉPOCA – Hoje há uma droga legal, adquirida com receita médica, para cada sentimento humano de desconforto ou conflito. Em que medida o fato de nossa sociedade considerar qualquer sofrimento um sintoma que precisa ser abafado e anestesiado com drogas influencia no uso das drogas ilegais?
Ribeiro – É verdade que os sintomas podem produzir sofrimento, mas, ao contrário do que acontece com as dores orgânicas, em que na maioria das vezes não há razão para não tentarmos eliminá-las, as dores psíquicas cumprem uma função importante de sinalizar a existência de um conflito que está exigindo uma resposta. Eliminar esse sinal apenas nos condena à impotência frente à causa de nosso sofrimento. E ao inevitável deslizamento, com a formação de outro sintoma, com o agravante de termos ainda que suportar os efeitos colaterais da medicação. Um conflito psíquico pode produzir sintomas, inibições, angústias e outros desconfortos. Geralmente isso perturba nossa vida, fazendo com que soframos com coisas que, para os outros, parecem banais. Esses conflitos podem ser tratados, mesmo que nunca completamente eliminados. Isso faz parte da vida de todos nós, mesmo fora do contexto de um tratamento psicológico: a gente tenta superar certas dificuldades, consegue alguns sucessos, volta a deparar com limites e carências, e a vida vai andando. Dá certo trabalho e não nos poupa de vários momentos de mal-estar, mas é a forma como assumimos a direção de nossas vidas – e pode também produzir muita satisfação. Algo diferente ocorre quando se busca evitar esse trabalho psíquico e o mal-estar que o acompanha: sofremos menos em um primeiro momento, mas perdemos a possibilidade de superar aquilo que está nos aprisionando: contornamos nossos conflitos sem nunca conseguir fazê-los mudar de lugar.

ÉPOCA – Mas o quanto a visão contemporânea de que o sofrimento é sinônimo de fracasso e deve ser suprimido da vida tem a ver com o uso de drogas ilegais?
Ribeiro – Acredito que isso tem a ver com o uso de drogas em geral, e não apenas das drogas ilícitas. As estatísticas médicas e farmacêuticas indicam que vivemos em tempos de depressão. Nada de novo nessa constatação. Entretanto, chama a atenção o fato de outras avaliações de nossa sociedade apontarem para a direção oposta: cada vez mais percebemos a existência de uma cultura dinâmica, voltada para a busca de prazeres imediatos, que reconhece e valoriza quase todas as formas de gozo. Tornamo-nos maníacos e depressivos, mas não necessariamente ciclotímicos. Talvez seja mais preciso afirmar que uma sociedade maníaca tende a produzir subjetividades depressivas, pois se o ideal social que nos serve de referência preconiza que todo sofrimento deve ser superado, encontra-se desvalorizado todo aquele que não consegue se ajustar aos modelos de felicidade propostos. Não é difícil entender o quanto o uso de drogas se “encaixa” bem nesse contexto: ele pode tanto nos aliviar de nossas frustrações quanto nos ajudar a melhorar nossos desempenhos. Basta escolher a droga certa para o momento certo.

ÉPOCA – Você faz, em seus artigos, uma afirmação muito interessante – e bastante polêmica – sobre como o saber médico e o toxicômano veem a droga da mesma maneira. Você afirma que a teoria médica coincide com a do toxicômano, na medida em que procura isolar o aparelho psíquico para gozar dele como um órgão. Ou seja, com o auxílio de determinadas drogas pretende-se tanto curar um corpo doente como uma vida doente, sem problematizar as modalidades de relação com o outro. Como é isso?
Ribeiro – Tomemos o exemplo fictício, mas não incomum, de um adolescente que cotidianamente observa seu pai chegar em casa meio estressado e tomar umas doses de cachaça ou uísque; sua mãe consumir religiosamente seu ansiolítico; o médico da família, frente ao primeiro sinal de tristeza e abatimento, receitar um antidepressivo. Esse adolescente, diante das angústias próprias de sua idade, teria alguma razão para se recusar a fazer uso de um cigarro de maconha de vez em quando? Qual seria a diferença? Nesse exemplo, estamos longe de uma toxicomania, mas percebemos uma mesma lógica, que pode vir a ser acionada em situações extraordinárias, como a de uma dependência de drogas. Isso nos lembra do Millôr, que afirmava ter nascido com duas doses de uísque a menos, pois, quando as tomava, se sentia muito melhor. É a mesma coisa: se a psique é vista como um órgão, e se o remédio faz com que este órgão funcione melhor, deduz-se que era ele o que estava faltando. Ou seja, depois de procurar curar o corpo, o órgão doente, hoje se pretende curar a vida doente.

ÉPOCA – O crack é a droga do momento, a grande epidemia. Você acha que o crack é diferente das outras drogas e deve ter uma abordagem diferente?
Ribeiro – Mesmo que se faça uma crítica a muitas abordagens acerca do uso de drogas e às propostas hegemônicas para enfrentar o problema – e é importante que a crítica seja feita –, não há como deixar de reconhecer que se trata de um problema social que exige respostas urgentes. Entretanto, independentemente do tipo de droga utilizada, e mesmo que se reconheça a enorme diferença que existe entre os efeitos do consumo de maconha e de crack, por exemplo, não acredito que devamos nos dedicar à proposição de “estratégias para combate do uso de drogas” ou de uma “clínica da dependência de drogas”. Da mesma forma que não acredito em uma “clínica da depressão” ou uma clínica da “síndrome do pânico”. Em vez de reduzirmos o sujeito ao seu sintoma, ganharíamos mais diversificando nossas estratégias para operar uma “clínica do sujeito”, levando em consideração os contextos sociais em que essas subjetividades são produzidas.

ÉPOCA – E como seria uma “clínica do sujeito”?
Ribeiro – Parto do entendimento de que cada sujeito é absolutamente singular, o que faz com que o trabalho terapêutico também tenha que ser construído caso a caso. É nesse sentido que recuso a idéia de uma “clínica da toxicomania”, como se esses sujeitos compusessem um conjunto, com problemas e saídas semelhantes. Mas é possível propor algumas estratégias e linhas de ação. Nos casos menos graves, atendidos em consultórios e ambulatórios, entendo que o uso de drogas deva ser abordado no contexto da história e do conjunto de relações mantidas por cada pessoa. Não é o uso de drogas que define sua posição subjetiva e o seu sofrimento, mas o contrário: a relação que ele estabelece com as drogas é resultante da forma como ele vivencia seus conflitos e relações. Já nos casos mais graves, em que há uma perda de autonomia do sujeito, se torna necessária uma vinculação institucional, de preferência sem internação, através da qual ele possa contar com o apoio de uma equipe multiprofissional que lhe auxilie em seu processo de reinserção social.

ÉPOCA – Como você vê os tratamentos oferecidos para “curar” a drogadição, que em geral partem de uma oferta da medicina ou da religião ou de uma aliança entre ambas?
Ribeiro – A maioria dos dependentes de drogas que procuram – ou são levados a – tratamento se encontra em uma situação de fragilidade de suas inserções sociais. Normalmente não estão trabalhando ou estudando e vivenciam conflitos no âmbito familiar. Experimentam um sentimento de anomia, em uma errância que tem como únicos pontos de referência os caminhos que levam à droga. Ora, essa situação produz muita angústia, e não raro desespero. Diante dessa realidade, não é de surpreender que as ofertas de certas comunidades religiosas exerçam forte sedução, afinal elas prometem uma pertença comunitária, uma visão de mundo estruturada e uma função revestida de importância e dignidade – “a construção da Obra do Senhor”. Mas essa “solução” cobra seu preço, e não é barato: espera-se do sujeito que ele seja capaz de abrir mão de seus conflitos, ou seja, de sua história, e se engaje incondicionalmente em um projeto coletivo, que ele já recebe pronto. As correntes mais biológicas da psiquiatria, muitas vezes aliadas a determinadas versões da psicologia cognitivo-comportamental, apresentam outro entendimento do problema, de onde deriva outra proposta terapêutica. Esta é direcionada a uma reprogramação da mente e do comportamento, visando sua “normalização”. O que há de comum entre essas ofertas são as certezas de que partem. Não há lugar para dúvidas acerca do que é certo e do que é errado. Para quem está totalmente perdido, isso não é pouca coisa.

ÉPOCA – Mas, a longo prazo, funciona? A pessoa consegue manter esse engajamento no projeto, que, por sua vez, a mantém longe das drogas?
Ribeiro – Dificilmente. Essa reprogramação exige que o sujeito assuma uma nova vida, e sabemos que nossa liberdade de escolha é limitada: não podemos escolher quem queremos ser. Somos o produto de uma história, que não se deixa ignorar. Mas, embora hegemônicos, esses campos, felizmente, não detêm a exclusividade no tratamento da dependência química. “Felizmente” não porque eles sejam sempre ineficazes ou mal-intencionados, longe disso, mas porque muitos dependentes não se adaptam a suas propostas. Há muitas clínicas, ambulatórios e CAPS-ad (Centros de Atenção Psicossocial a usuários de substâncias psicoativas) que assumem um maior respeito à liberdade de escolha dos sujeitos, tomam como referência a estratégia de redução de danos e trabalham a partir de uma escuta das singularidades de cada caso.

ÉPOCA – Como você vê o jogo de culpa que se faz na abordagem das drogas: é culpa da família, é culpa do traficante, é culpa do Estado, é culpa dos amigos viciados, é culpa de um mundo sem valores ou há tantos culpados que ninguém mais tem culpa? A culpa cumpre algum papel nesse jogo?
Ribeiro – A culpa é um dos sentimentos – ou acusações – mais inúteis e produtores de sofrimento com que temos de conviver. Ela nada produz além de recriminações e ressentimentos. Além disso, a atribuição de culpa costuma ser utilizada por discursos autorizados – o científico, o policial ou o religioso – como estratégia de imposição autoritária de seus pontos de vista. Mais interessantes são as tentativas de produção de consensos mínimos sobre os problemas que envolvem o consumo de drogas e a pactuação de responsabilidades no que se refere à forma como o problema deverá ser enfrentado. Isso vale tanto para um contexto familiar, quanto para a elaboração e implementação de políticas públicas.

ÉPOCA – Qual é a sua opinião sobre a descriminalização das drogas, no geral, e a descriminalização só da maconha, como propõem alguns, inclusive o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso?
Ribeiro – Não vejo razões pelas quais consumir drogas deva ser considerado um crime, o que não é o mesmo que defender sua liberação irrestrita. É interessante notar que as origens da proibição ao uso de determinadas drogas não estão relacionadas a qualquer avaliação de ordem médica, psicológica, epidemiológica ou antropológica. Estão associadas de forma muito mais direta às pressões exercidas por certos segmentos sociais, a partir de preconceitos morais e estigmatizações sectárias. Deveríamos ser capazes de aprender com nossos erros e, no momento em que se evidenciam as contradições de nossa política proibicionista, investir em estudos multidisciplinares e promover um amplo debate, depurado de moralismos e respostas fáceis.

ÉPOCA – E quais seriam as questões centrais deste debate?
Ribeiro – Questões que discutam poder e responsabilidade. O que legitima que alguém legisle ou defina o que posso ou não consumir? Se é uma questão que extrapola o âmbito das liberdades individuais, envolvendo problemas de saúde pública, quais são os critérios para definir quem pode e quem não pode consumir tais e tais drogas? Repressão e marginalização são boas estratégias para a produção de saúde?

ÉPOCA – Qual é a sua opinião sobre a campanha nacional contra o crack lançada pelo Ministério da Saúde (e recentemente ampliada pelo presidente Lula)?
Ribeiro – A campanha promovida pelo Ministério da Saúde promove grandes avanços, entre eles o de respeitar os direitos dos usuários, o de operar a partir da lógica de redução de danos, o de priorizar a abordagem do problema no território em que vive o usuário e o de evitar internações prolongadas. Entretanto, é sabido que esse tipo de abordagem enfrenta fortes resistências de parte daqueles que se opõem a Reforma Psiquiátrica e se mostram saudosos dos antigos manicômios. Para estes, o melhor seria ampliar o número de leitos de internação, segregar e “tratar” o maior número possível de usuários, para depois “devolvê-los” – se possível – para o convívio social. Infelizmente, através dessa estratégia, muitos psiquiatras evitam a abordagem da intensidade dos dramas humanos – preferindo a calmaria dos sedativos.

(Publicado na Revista Época em 14/06/2010)

Câmara dos Deputados contra Tropa de Elite

Um filme da vida real que ninguém merece assistir. Ou merece?

Gostaria que o episódio “Câmara dos Deputados contra Tropa de Elite” fosse ficção. Se fosse, seria muito engraçado. Uma coisa meio bufa. Tão absurda que corria o risco de parecer inverossímil, um defeito que a realidade é pródiga, mas a ficção não perdoa.

Vamos aos fatos, para quem perdeu o show. O cineasta José Padilha pediu autorização para gravar cenas do filme Tropa de Elite 2 na Câmara de Deputados. As cenas da ficção seriam ambientadas no conselho de ética e teriam um personagem de nome Fraga. No filme, Padilha faz relações entre segurança pública e financiamento de campanha.

Michel Temer (PMDB-SP), o presidente da Câmara de Deputados, negou autorização para as filmagens. Ele justificou: “De fato, não foi possível, sem nenhum antagonismo democrático, ceder o plenário, as dependências da Casa, para essa filmagem. Fizéssemos a autorização para essa matéria, haveríamos de fazer para toda e qualquer outra tentativa de filmar no plenário da Câmara. Este é o plenário do povo brasileiro. Não havia como autorizar essa filmagem”.

A negativa de Temer é questionável. Na condição de integrante do povo brasileiro, eu gostaria de compreender em que uma filmagem comprometeria “o plenário do povo brasileiro”. Justamente por ser “o plenário do povo brasileiro” seria legítimo poder usá-lo também como cenário de filme ou qualquer outra apropriação legal. Mas, vá lá. Padilha então filmou a cena em um conselho de ética improvisado na Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro.

O que se seguiu a isso é que virou comédia. E, como não é um filme de ficção, para nós é uma tragédia. O deputado Alberto Fraga (DEM-DF) tomou a atenção do plenário na terça-feira, 11 de maio, para reclamar do roteiro do filme. Eu poderia enumerar dezenas de motivos vitais para o país que deveriam ser capazes de motivar a indignação do deputado Fraga. Mas não, sua preocupação era com o roteiro do filme. Ele queria que Temer enviasse o roteiro do filme para análise da procuradoria da Câmara. (!!!!!!!!!!)

Acompanhem o raciocínio do Fraga real: “Sou o artista desse filme, mas, o pior, o cidadão coloca que o deputado Fraga será o antagonista, ou seja, o bandido do filme, que vai lutar contra o Capitão Nascimento, contra as milícias assassinas”. E, mais adiante: “Ele poderia escolher qualquer nome: João, José, mas deputado Fraga nesta Casa só tem eu. E eu, numa campanha majoritária, no Distrito Federal, já imaginou o que vai acontecer comigo, o bandido na história do filme?”.

Recebeu de imediato o apoio do colega José Genoino (PT-SP). “Estão tentando colocar o parlamento como piada. A defesa do parlamento está em jogo, não podemos achar que isso é normal. Se a moda pega, a Câmara será colocada como uma instituição que não tem poder nenhum”, disse Genoino.

E, acreditem, Michel Temer afirmou que enviaria o caso para a procuradoria da Câmara.

Dá para acreditar?

A rigor, não dá para acreditar. Mas é preciso. Na “Casa” que vive uma crise moral de autoridade foi preciso apelar para o autoritarismo.

A Câmara que, junto com o Senado, vem protagonizando uma série interminável de escândalos de corrupção e impunidade acusa o cineasta José Padilha de tentar transformá-la em “piada”. Faça um rápido teste. Quantos escândalos você lembra nestes últimos quatro anos? E quantos projetos importantes para o destino do país debatidos e votados pela Câmara você recorda de imediato?

Eu sei. É triste.

A resposta do cineasta José Padilha, publicada na Folha de S. Paulo, lança alguns litros de lucidez no deserto de inteligência do episódio: “O filme Tropa de Elite 2 não tem nenhum deputado corrupto chamado Fraga. Existe, sim, um personagem com esse nome, mas ele não é um deputado corrupto. O deputado corrupto de ‘Tropa de Elite 2‘, totalmente fictício, diga-se de passagem, chama-se Guaracy. (Espero que não exista algum deputado corrupto com esse nome. Se existe, vou logo avisando que é coincidência!) Confesso que, até ler a matéria da Folha, eu nunca havia ouvido falar na existência de um deputado com o nome Fraga. Hoje, depois de uma rápida pesquisa na internet, aprendi que ele existe. É um deputado do DEM, considerado por parte da imprensa como membro da base parlamentar do ex-governador Arruda. Longe de mim querer denegrir a sua imagem. Deputado Fraga, pode ter certeza: você não tem nada a ver com o Fraga do meu filme! Também não posso deixar de comentar a declaração do deputado José Genoino, que, apesar de nunca ter visto o filme ‘Tropa de Elite 2‘, afirmou que o filme está ‘tentando colocar o Parlamento como piada (…)’. Ao nobre deputado quero dizer que, em uma democracia, tem que haver liberdade de expressão. Em uma democracia, se um artista quiser fazer piada com o Parlamento, ele deve ter liberdade para tal. De minha parte, não fiz piada alguma com a Câmara em ‘Tropa de Elite 2‘. Para mim, o Parlamento brasileiro e os inúmeros casos de corrupção que a imprensa associa a ele são um assunto sério demais para piadas. Finalmente, a ameaça que o presidente Michel Temer fez à liberdade de expressão, ao afirmar que ‘vai encaminhar para análise da procuradoria o fato de o filme ‘Tropa de Elite 2‘ ter cenas inspiradas na rotina da Casa e nos próprios deputados’, me fez pensar na época da ditadura. Será que a procuradoria da Câmara vai virar um órgão de censura cuja função é tentar proibir que artistas se inspirem na Câmara e em seus membros para fazer filmes? Espero que não!”.

Quando soube da polêmica, fiquei buscando mentalmente informações sobre o Fraga do espetáculo da vida real, não o do filme do Padilha: “Fraga, Fraga, Fraga….”. Me veio à cabeça uma vaga notícia de um deputado, coronel da Polícia Militar, membro da chamada “bancada da bala”, que atuou contra a aprovação do Estatuto do Desarmamento e, em 2006, teve parte da campanha financiada por fabricantes de armas. Também tinha lembrança de uma denúncia relacionada a uma empregada doméstica paga com dinheiro público. Fui checar. Sim, era este o Fraga. Que também foi secretário de Transportes do Distrito Federal na gestão do governador José Roberto Arruda, aquele que foi preso e cassado por acusações de corrupção. Durante o período em que foi secretário, o Correio Braziliense denunciou que Fraga empregou no governo a mulher, um filho, dois sobrinhos, um cunhado, uma cunhada e o namorado da filha.

Sim, sim, este é o mesmo Fraga da vida real que acredita que o filme pode manchar sua imagem e prejudicá-lo nas próximas eleições. O mesmo que disse em uma entrevista, para explicar sua preocupação com o xará de Tropa de Elite 2: “O que mais prezo em minha vida pública é meu nome”.

A vida real, no que já virou um clichê, é mesmo insuperável. Nem inventando muito um ficcionista consegue alcançar esse nível de licença poética.

Não, deputado José Genoino, cujas credenciais vêm rapidamente à memória, não é o cineasta que quer transformar a Câmara em piada.

Não vou nem falar da percepção do “povo brasileiro” sobre o Congresso. Mas dos próprios congressistas, deputados e senadores, numa pesquisa feita em 2009 pelo Instituto FSB, a pedido de ÉPOCA. Nela, quase 70% dos 247 entrevistados afirmam que a corrupção tem presença marcante no Congresso. Apenas 35% estão convencidos de que o Legislativo faz leis claras, concisas e inteligentes. E, claro, metade reclama que o salário é baixo.

O próprio Congresso, portanto, reprova a si mesmo. Este mesmo Congresso gasta, segundo pesquisa da organização Transparência Brasil realizada em 2007, R$ 11.545,04 por minuto. Comparado ao parlamento de 11 países (Alemanha, Argentina, Canadá, Chile, Espanha, Estados Unidos, França, Grã-Bretanha, Itália, México e Portugal), só perde para os Estados Unidos. O mandato de cada um dos 513 deputados federais custa R$ 6,6 milhões por ano. E o de cada um dos 81 senadores, R$ 33,1 milhões por ano. Nesse cálculo estão computados apenas os custos dentro da lei, não os gerados pela corrupção promovida por alguns membros do Congresso.

Os integrantes deste mesmo Congresso que reprova a si mesmo e é um dos mais caros entre as democracias do mundo apresentam um patrimônio com enorme disparidade na comparação com o do cidadão comum, segundo outra pesquisa da Transparência Brasil. Os números mostram a grande concentração de renda na classe política, mostrando o quão distante da realidade dos eleitores vivem seus representantes. No Ceará, uma pessoa comum precisaria trabalhar durante 1770 anos, sem gastar um centavo, para gerar o equivalente ao patrimônio de seus senadores. Em Alagoas, esse período seria um pouco menor: 1603 anos. No Maranhão, 751 anos. Cada paranaense teria de trabalhar durante 669 anos para gerar riqueza equivalente à média do patrimônio de seus deputados federais. Apenas em 11 Estados é preciso trabalhar menos de cem anos, sem nenhum gasto, para atingir patrimônio semelhante ao de seus representantes na Câmara dos Deputados. No Rio de Janeiro, Estado que apresenta a menor disparidade, são 31 anos.

Se o Congresso reprova a si mesmo, a nós cabe reprovar deputados e senadores que desrespeitaram nosso voto – ou aprová-los reelegendo-os no próximo pleito, daqui a alguns meses. E este é o ponto mais importante.

É muito fácil xingar deputados e senadores, falar mal de todos os políticos, afirmar que são todos da mesma laia. Primeiro, não são. Toda generalização é burra, como sabemos. E, sim, há políticos honestos e que pensam no bem público. Cabe a nós descobrir quem são e dar a eles o nosso voto. Cabe a nós dar mais valor ao nosso voto, não o dando a qualquer um. E valorizar um Congresso que não é deles – mas nosso.

Este Congresso que aí está não apareceu do nada. É o que é porque nós escolhemos esses indivíduos – e não outros. Fomos nós que colocamos essas pessoas em Brasília para nos representar. Pode xingar à vontade, mas esse Congresso é nosso espelho. Quando olhamos para ele, olhamos para nós. Gostando ou não, o Congresso é a nossa cara.

É duro se olhar no espelho sem autoindulgência. Você pode dizer: “ah, mas eu não votei nesses sujeitos. Os que eu votei…” Com toda honestidade, quantos de nós sabem o que o senador, o deputado federal e o deputado estadual que elegeu estão fazendo, se é que estão fazendo alguma coisa? Quantos de nós acompanham e fiscalizam aqueles que legitimaram com seu voto? Se não começarmos a fazer isso não amanhã, mas já, continuaremos cúmplices desses parlamentares que transformam a Câmara e o Senado em piada.

E a democracia não é piada. Um Congresso atuante é vital para o país. Quem torce para que vire piada, para alegar que a democracia não vale a pena, é irresponsável ou mal-intencionado. O que nós precisamos é aprender a votar, um direito fundamental que nos foi sequestrado durante anos pela ditadura militar. E que enxovalhamos sempre que votamos mal. Teremos uma chance daqui a pouco de eleger um Congresso do qual possamos nos orgulhar. E mandar todos aqueles que o transformam em piada e em caso de polícia para casa.

É fácil repetir que são os mais pobres e com menos acesso à educação dos rincões esquecidos que votam mal. Se perguntar a um cidadão urbano e com curso superior – ou a si próprio – o que seu deputado ou senador anda fazendo, que projetos propôs, como votou nas questões importantes, que empresas financiaram a sua campanha, será que a resposta é de um eleitor esclarecido? Você tem estas respostas?

Acho que somos muito complacentes com nós mesmos. Achamos que não precisamos acompanhar e participar da educação escolar dos filhos (até a educação dentro de casa muitos delegam com as mais variadas justificativas), que não temos de nos organizar para reclamar por melhorias no nosso bairro, que não cabe a nós reivindicar um transporte decente ou um sistema de saúde que não deixe pessoas com câncer esperando um exame por meses. Há quem discurse sobre o aquecimento global, mas acha que pode continuar com a torneira aberta, deixar a TV ligada enquanto vai fazer outra coisa e não reciclar lixo por preguiça. E, óbvio, se votou acredita que já fez toda a obrigação: não vai perder tempo fiscalizando seu candidato e cobrando o que ele deixou de fazer ou fez errado.

Boa parte das informações que precisamos para votar com consciência está nos sites oficiais, como os do TSE, Câmara e Senado. Outra fonte é o site da Transparência Brasil, que concentra vários indicadores em um banco de dados. Com alguns cliques, agora mesmo você descobre o que andaram fazendo aqueles que se elegeram com a ajuda do seu voto. Basta entrar em www.transparencia.org.br e clicar no ícone “Excelências: como se comportam os nossos parlamentares”. Você digita o nome do seu deputado ou senador e pronto, fica sabendo como ele vem se comportando, o que fez, como votou, se foi processado na Justiça, o que a imprensa publicou sobre ele, quem financiou sua campanha, qual é seu patrimônio declarado, se é assíduo ou um campeão de faltas. Alguns minutos do seu tempo e você pode avaliar se votou bem e se preparar para votar melhor nas próximas eleições.

A desfaçatez de parte dos parlamentares atingiu índices tão absurdos que já passou da hora de darmos uma resposta que seja mais do que falar mal dos políticos na mesa do boteco. Se parte dos parlamentares não se dá o respeito, nós que os elegemos precisamos ter vergonha na cara. Quero muito ver o filme do José Padilha. Mas não quero mais ter de assistir a cenas patéticas do Congresso real. Passou da hora de votar direito. E fiscalizarmos o que foi – e será – feito do nosso voto.

(Publicado na Revista Época em 17/05/2010)

O insustentável peso do ser

Quando emagrecer é perder mais do que quilos

Volto ao tema do que é ser gordo neste mundo porque tenho cada vez mais convicção de que compreendê-lo é chave para acessar nossa época. Somos aturdidos, invadidos e bombardeados por reportagens sobre dietas, conversas sobre dietas, receitas de dietas, livros de dietas, profissionais especializados em dietas e, agora, reality shows com gente tentando emagrecer e eventualmente fracassando. Quando olhamos para alguém, comece a reparar, nosso primeiro ou no máximo segundo olhar avalia se a pessoa é gorda ou magra. Quando descrevemos alguém – e também quando criticamos ou xingamos –, a gordura é um dos primeiros tópicos. Se tivéssemos acesso às promessas feitas hoje a santos ou outras entidades místicas, eu apostaria que a maioria está com a agenda lotada de pedidos de devotos implorando pelos milagres dos quilos a menos.

Pense por um segundo: o quanto estar ou não acima do peso ocupa suas conversas com amigos e familiares, as preocupações do seu cotidiano, o tempo da sua vida?

Queremos acreditar que é uma obviedade desejar ser magro. Que não há outro jeito de ser na vida. E que é “natural” nossa preocupação com o peso e com as dietas. Será? Desde que nos tornamos uma espécie inscrita na cultura, não há nada de natural em nós, exceto o funcionamento biológico do nosso corpo – pelo menos até onde a ciência ainda não conseguiu interferir. Se assim é, o que o valor da magreza, que vai muito além de um padrão de beleza, diz sobre nós? Ou, visto pelo avesso, o que a rejeição à gordura significa?

É muito menos óbvio do que parece. O argumento da saúde é sempre o primeiro a surgir, por ser supostamente indiscutível e vir embalado nas melhores intenções. Mas, acredite, nem todos os gordos são doentes. Ou obesos. Alguns exibem ótimos exames de colesterol e triglicérides, tem pressão normal e bom funcionamento do coração. Nem toda gordura é doença. E, mesmo quando se torna doença, a saúde não é a única medida para avaliar a qualidade de uma vida humana.

Para ampliar nossa compreensão sobre algo que perpassa nossa vida, entrevistei uma mulher vista como “gorda”. Há algumas semanas, ela iniciou uma dieta. Neste momento, emagrecer é um projeto em curso em sua vida. Ela tem 37 anos, 1m69 de altura e pesava 84,5 quilos quando iniciou o regime. É bem sucedida no que faz e tem amplo reconhecimento profissional. Exames médicos mostraram que não tem nenhum problema de saúde ligado ao peso. Quis entrevistá-la porque ela ousa ir além do lugar comum e faz uma reflexão profunda sobre as implicações de sua decisão de emagrecer.

Para esta mulher, fazer dieta é uma forma de violência. Mesmo assim, procurou uma nutricionista e seguiu em frente. Com generosidade, ela nos explica suas razões. E o que nos diz fala não só dela, mas de todos. Fala não apenas de gordura e de dieta, mas de aceitação. Do lugar do outro na nossa vida – e da complexidade do olhar que nos reflete, mesmo quando não nos enxerga ou só enxerga uma parte de nós.

Esta é uma conversa sobre escolhas. E um convite para aumentar o número de pontos de interrogação no nosso jeito de ver o mundo.

Eu: Quando começamos a conversar, você falou que acha assustador ser tratada como obesa mórbida – e isso usando uma calça 44. Como é isso?
Ela: O nível de magreza esperado hoje é tão elevado que, por vezes, sou cobrada como se meu peso ultrapassasse os 100 quilos e eu sequer conseguisse comprar roupas em lojas não especializadas, o que está bem longe de ser verdade. Outro dia estava no telefone com uma prima que comemorava a minha iniciativa de fazer dieta e exercícios físicos. De repente, no meio da conversa, ela diz: “Ainda bem que agora você resolveu emagrecer num projeto de longo prazo. Porque, se você chegasse aos 40 anos desse jeito, estaria fodida! Fo-di-da, entendeu?”.Fiquei pensando que estaria fodida se não soubesse quem eu sou e qual o meu eixo nessa existência. Estaria fodida se não tivesse uma profissão que adoro, que ajuda a mudar o mundo – para melhor – e que me permite sustento próprio e alheio desde os 21 anos. Estaria fodida se não tivesse pais amorosos e amigos tão queridos para partilhar a vida. Estaria fodida se vivesse na miséria, em condições indignas, sem acesso à educação e à saúde, como boa parte da população brasileira. Estaria fodida se não tivesse experimentado um casamento bacana ou se, depois de divorciada, tivesse me metido em relações de afeto abusivas, como não é raro acontecer com mulheres carentes. Estaria fodida se não tivesse equilíbrio emocional ou se passasse fome ou se tivesse sido vítima de violência física ou se fosse alguém sem um pingo de caráter. Por qualquer dessas coisas eu realmente estaria fodida. Agora, fo-di-da por pesar 80 quilos? Como assim, gente?

Eu: Você se descobriu gorda na universidade. Como foi lidar com o sofrimento das primeiras rejeições?
Ela: Foi ruim, como não é difícil imaginar. Quando você ainda é insegura sobre “o que é” ou sobre “quem está se tornando”, e alguém a rejeita pelo fato de ser gorda, a sensação é de que você toda não tem valor algum. É quase impossível entender o quanto de dificuldade do outro tem ali, o quanto não é possível dar ao outro o poder de definir quem você é e outras coisas que na vida adulta tornam-se claras. Quando se é jovem, um minuto de rejeição reduz você a um monte de massa gordurosa amorfa… A grande dificuldade é construir uma identidade sobre a tal massa. O sofrimento pode até não ser enorme, nem destruidor para algumas pessoas – meu caso. Mas um tanto dele é inevitável.

Eu: Qual foi a primeira humilhação por causa do peso?
Ela: Lembro especificamente de uma. Considero que, na época, não estava realmente obesa. Devia pesar uns 70 quilos. Viajei para a praia, com duas amigas. Um dia, saímos de carro para dar uma volta, era eu quem dirigia. Chegaram dois rapazes próximos da janela, e começamos a conversar. De repente, um deles olha pra mim, aponta e diz: “E essa barriguinha sobrando aí?”. Os dois deram uma bela gargalhada, com um prazer irônico e meio sádico. Não deixei ninguém perceber, mas me senti um lixo.

Eu: Como é ser olhada como se tudo o que há em você fosse excesso de peso, como se gorda fosse tudo o que você é?
Ela: A minha sensação é de estranheza total, de não entendimento real desse modus vivendi. Não há empatia que eu tente que me faça absorver o peso como critério de exclusão de pessoas. É tão absurdo quanto a discriminação por raça, dinheiro ou religião. Não consigo aceitar. No caso do peso, posso até me render aos efeitos da discriminação e emagrecer, mas dentro de mim não consigo aceitar esse critério de exclusão. Lembro de uma história que foi muito marcante. Um tempo depois de me divorciar, cheguei ao trabalho e ouvi dois colegas conversando sobre mim, sem que se dessem conta da minha presença. Um deles disse: “Se ela emagrecesse uns dez quilos, não ficaria nem um segundo solteira no mercado…” Fiquei arrasada. Saí de fininho, com um nó na garganta e pensando: “Que desgraça de mundo é esse em que vivo?”

Eu: E como é não ser olhada com desejo por um homem?
Ela: Recentemente um cara, inteligente e muito divertido, depois de algumas cervejas soltou esta: “De onde saiu uma mulher como você, criatura? Meu Deus…” (com ar de interesse e até meio embasbacado). E, em seguida: “Agora, me diz por que a gente não consegue tudo em uma mulher só? No fundo, eu sonho com uma mistura de Catherine Deneuve e Simone de Beauvoir…” Bem. Não preciso dizer que eu era a Simone de Beauvoir da história, certo?

Eu: Aconteceu de você desejar muito um homem e claramente ele não conseguir ficar com você porque você é gorda?
Ela: Já aconteceu de reencontrar uma antiga paixão, com quem havia retomado contato por MSN, telefone e email. Ficou claro que queríamos nos encontrar pessoalmente, com os típicos e deliciosos jogos de sedução em andamento. Ele resolveu ir até a minha cidade, com a desculpa de visitar um amigo. Menos de três horas depois que havia chegado, já estávamos almoçando juntos. E esta foi a última vez em que nos encontramos durante os dias em que permaneceu aqui. Ele é um cara muito bonito. A última vez que havia me visto eu estava com uns 10 quilos a menos e, não tenho a menor dúvida, me dispensou por estar acima do peso. Estar gorda destruiu as chances de reaproximação, não importa o quanto tenha sido boa, sedutora e divertida a conversa pessoal. O sentimento é de raiva. E de indignação. Que culminam numa grande “menos valia”. Uma mulher pode até ser forte. Mas não é deus.

Eu: Você fala neste primeiro olhar, que acontece numa festa, na boate, em algum lugar público. O olhar do desejo, antes de saber se a pessoa é legal ou não, inteligente ou não. Como é para você? Você tem desejo por um homem acima do peso estabelecido como normal? Ou, parodiando seu exemplo, você também quer uma mistura de Jean-Paul Sartre com Alain Delon? Você se sentiria atraída por Sartre antes da primeira palavra trocada?
Ela: Meu último namorado era mais gordo do que eu e tinha uma respeitável barriguinha. Meu ex-marido era magro. Já fiquei com gordos, obesos, magros, magérrimos. Não tenho preconceito quanto a isso. Tenho cá meu fraco por sedutores (e não é exatamente o peso que importa nesse caso), o que venho mantendo sob estrito controle racional. Numa boate, o tipo que primeiro chama minha atenção, antes de conversar, é, em geral, um homem moreno ou negro, com traços fortes e não perfeitos. O que é capaz de definir campeonato é o fato de ele ser espirituoso e com alguma “pegada”. Não é um Sartre que procuro. Ele não foi nada bacana com a Simone… Quanto a Alain Delon, confesso meus pré(e pós)-conceitos: homem muito bonito, em regra, tem de se esforçar pouco e, com isso, não desenvolve ao longo da vida habilidades importantes. As eventuais exceções só justificam a regra.

Eu: Como é estar comendo um doce e sentir o olhar repressor do outro?
Ela: Já experimentei de tudo, desde o olhar materno até o do vizinho de mesa no shopping… Os olhares desconhecidos não têm importância. Mas a reprovação de alguém querido é sofrida.

Eu: Por que você acha que a sociedade tem tanta dificuldade com as pessoas acima do peso estabelecido como normal?
Ela: Acho que todas as sociedades sempre tiveram um padrão de beleza estabelecido e sempre foram cruéis com quem não atende a este padrão. A exclusão com o diferente-marginal não é algo privativo do mundo contemporâneo. A questão é que, hoje, na classe média e alta da maioria dos países ocidentais, o belo equivale essencialmente à magreza. Ser gordo significa se tornar alvo da exclusão do diferente, que é própria das organizações sociais. Algo cultural e praticamente inevitável. Em regra, o ser humano, quando se depara com a diferença, se sente ameaçado. “Se ele está certo e é diferente de mim, isso significa que estou errado?”. Esta é a pergunta que o consciente ou o inconsciente das pessoas faz. E é isso que as impulsiona a tentar mudar ou até destruir o diferente. É muito difícil que lidem bem com a possibilidade de vários certos, a partir de várias escolhas, próprias de diversas realidades. São estas dificuldades individuais com a diferença que, reunidas, formam um coletivo de exclusão, em determinados extratos sociais. Neste espaço, o coletivo excludente recai, também, sobre os obesos.

Eu: Você já se sentiu menor por ser grande?
Ela: Já me senti uma mulher invisível. Grande, gorda e invisível…

Eu: Como é isso? Me fala um pouco mais como é ser grande, gorda e invisível…
Ela: Você está com mais três amigas em uma boate. Duas delas são magras. Você e a outra amiga não são obesas, mas estão claramente acima do peso. Os homens passam e só olham, conversam ou coisa que o valha, espontaneamente, com as mulheres magras. Para você e a outra amiga conseguirem contato é preciso que uma conversa entre todos se dê ou alguma coisa semelhante. Aí pode vir à tona algum tipo de qualidade sua que chame a atenção. Bom humor, inteligência, simpatia… Caso contrário, é como se nós, as mulheres gordas, não existíssemos. Os homens não olham, nem falam, nem se interessam por sua existência terrena. Eles, nos próximos dias, podem até passar horas falando para os próprios amigos ou familiares que não se importam se uma mulher é gorda ou não, que querem uma mulher “real” e gente boa, que paqueram todo tipo feminino em bares e boates, mas a verdade é que, se você é gorda, o universo masculino de classe média/alta não percebe sua existência. Como eu disse: grande, gorda e invisível.

Eu: Como você sente o olhar do outro sobre você, no cotidiano?
Ela: Especificamente sobre o olhar masculino, é ruim não senti-lo sobre o meu corpo com desejo.

Eu: Como é não sentir este olhar de desejo? Tente me contar, descrever isso…
Ela: A sensação é de não existir. Não é que você não seja aceita, nem amada o suficiente. Você não é sequer vista como mulher. Não há um olhar masculino que a espelhe. Sem alteridade, como é possível ter o mínimo de certeza de que uma parte do feminino realmente permanece ali, onde você sente estar?

Eu: Qual é a sua relação com o espelho?
Ela: Gosto de me olhar no espelho. Porque, sem meias palavras ou falsa modéstia, me considero realmente uma mulher bonita. Não maravilhosa ou estonteante. Mas bonita. Não é isso o principal que me define enquanto mulher. Mas faz parte do meu feminino ser bela. E gosto dessa parte. Gosto até quando estou com um vestido velhinho, meio mal arrumada… Mesmo quando estou assim, meio enfraquecida, ainda vejo algo bacana espelhado. O que me assombra é a incapacidade de as pessoas verem. Mesmo porque eu consigo ver isso nos outros, nas circunstâncias as mais variadas possíveis.

Eu: Você acha que é mais difícil para você tirar a roupa quando transa com alguém? O que passa na sua cabeça nesses momentos?
Ela: Curiosamente, não tenho a menor dificuldade com esse momento. O que é ruim é quando o homem desaparece depois. Tenho a impressão que foi insatisfação com o meu corpo. Aí é duro de aguentar. A reação imediata é subir os muros de proteção. Haja apoio de amigos e terapia para lembrar que sair do mundo não é a melhor solução.

Eu: Se você fosse definir como, em geral, as pessoas a enxergam, que olhar seria este?
Ela: Como pessoa, o mundo me enxerga com admiração e carinho. Mas, insisto em dizer que os homens, em regra, não me enxergam como mulher desejável. Sempre que emagreço isso muda. Por mais que me esforce, não consigo realmente entender o porquê.

Eu: Como você reage ao sentir este não-olhar de desejo masculino?
Ela: Eu passei a fazer dieta e atividade física regular para sentir o olhar de desejo.

Eu: Você já consegue sentir a mudança de olhar e de postura com relação a você desde que começou a emagrecer?
Ela: Bem aos poucos. Emagreci apenas quatro quilos e meio, estando acima do peso ainda. De todo modo, olhares começaram a mudar. O interessante é que a minha postura não mudou em nada. Está aqui a mesma mulher que tenta equilibrar delicadeza e força, que aprendeu a seduzir com inteligência, que é bem humorada e, para os próprios padrões de julgamento, bonita. A diferença é que, agora, até na balada tem gente cogitando dar uma chance a ela. Há tempos eu sabia que seria assim. Sempre soube que era balela aquela história que “a obesidade está na sua cabeça e quando você emagrece fica mais autoconfiante e é por isso que os homens te olham mais”. Balela. A autoconfiança sempre esteve no mesmo lugar: no próprio eixo, nos valores, na certeza interna de que 15 quilos a mais não mudam quem você é ou o quanto você se sente feminina. Muda, sim, o olhar do mundo. Só quem se sabia antes mulher e ainda se sabe depois é que pode afirmar isso. São tão poucas assim, que a teoria do “tudo está na sua cabeça” acaba prevalecendo. Mas eu sabia que não era coisa da minha cabeça, mas do espaço em que vivo. Exatamente por ter certeza disso e pelas facilidades que me render a isso traz, estou indo em frente.

Eu: A saúde é uma preocupação sua, com relação à gordura, ou não?
Ela: Ainda não tive problemas de saúde em razão da gordura. Devo me preocupar, por fazer parte de uma família de cardiopatas, com pressão alta. A questão é que, apesar da gordura, decorrente mais da quantidade do que como e menos da qualidade dos alimentos escolhidos, estou com a saúde, do ponto de vista médico, em dia. Então, não posso fingir que estou emagrecendo por “uma questão de saúde” ou que seja realmente “por mim”. Seria mais fácil e legítimo. Mas não é verdade. (A verdade) é muito menos nobre. Eu emagreço para atender a uma exigência externa, social, de um padrão de magreza. Consciente que não é um desejo próprio genuíno, nem uma prioridade interna, nem qualquer demanda de saúde. Foi uma vontade que surgiu para atender a algo que me é totalmente externo e um tanto frívolo. Repetir isso não é fácil. Mas é honesto.

Eu: Na sua decisão de emagrecer é possível saber o quanto é desejo seu e o quanto é necessidade de ser aceita?
Ela: Estou realmente cansada da rejeição, principalmente a masculina, por não ter o peso que se considera adequado. Correndo o risco da generalização, acho que, se um homem estiver diante de uma mulher bacana e gorda e de uma mulher com mais dificuldades emocionais e magra, ele escolherá a segunda. Também estou cansada da reprovação familiar e social por estar gorda. Eu quase posso ler nos olhares amigos: “Mas como alguém como você, disciplinada e dedicada, não emagrece logo e se mantém magra?”. Gordura tornou-se sinônimo de indolência, preguiça, pouca confiabilidade e quase falta de caráter, em determinadas esferas sociais. Neste contexto, minha escolha é 100% decorrente da necessidade de ser aceita. Na verdade, eu escolho dar este poder ao mundo em que vivo e atendê-lo. Não é um desejo meu, desejo aqui entendido como algo que vem dos próprios valores, do inconsciente, do centro. É uma escolha para facilitar a aceitação externa.

Eu: O que você perde por ser gorda?
Ela: Perco, principalmente, o olhar de desejo masculino. E “ganho” o olhar de reprovação familiar, dos amigos, conhecidos…

Eu: E o que você perde, ao tentar emagrecer, além de quilos?
Ela: Poderia dizer que perco algumas coisas como: 1) a maior disponibilidade de tempo que tinha para minha família (agora que priorizei fazer atividade física frequente, os horários ficaram mais apertados); 2) os convites para tomar cerveja (não consigo tomar refrigerante zero, então prefiro não aceitá-los para evitar a tentação “que desce redondo”); 3) os jantares mensais realizados em casa para os amigos, verdadeiros encontros gastronômicos; 4) a leveza com que sentava a qualquer mesa para comer (agora passo os dias contando calorias e concentrada em evitar excessos). Mas não é isso o principal. Eu perco principalmente a sensação de que guio a minha vida pelos meus valores. Perco uma das coisas que me é mais cara: a fidelidade àquilo em que acredito. E eu acredito que magreza é uma das características mais irrelevantes de uma pessoa. Acredito que usar meu precioso tempo para investir em algo tão irrelevante é um verdadeiro absurdo, com tantas outras prioridades e demandas mais importantes na vida. Acredito que a sociedade atual perdeu a noção do que é básico indispensável e do que é absolutamente supérfluo nos seres humanos. Apesar de pensar todas essas coisas, eu traio aquilo em que acredito. Torno-me parte de um conjunto burguês, oco, superficial, vazio e – por que não dizer? – até medíocre. E finjo que estou extremamente feliz, e só feliz, por emagrecer. Afinal de contas, quem é que vai acreditar na maluquice de uma mulher se sentir mal pelo simples fato de se render à pressão externa, se ela está mais magra e, teoricamente, “mais bonita”, com todos os ganhos que isso implica? Ninguém acreditaria que, no lugar de uma felicidade plena pela “beleza-magra adquirida”, eu esteja sentindo que perder a mim mesma não é nada fácil.

Eu: Se há tantas perdas, por que emagrecer? Você me escreveu que algo de você “já começou a morrer”. O que? Que luto é este?
Ela: É o luto de quem entrou para a manada. De quem perdeu a própria individualidade, que não está na gordura, mas na capacidade de ser fiel aos próprios valores e prioridades. O luto de quem desistiu de defender a multiplicidade pós-moderna – onde haveria espaço inclusive para os obesos, ou seja, para existências e escolhas as mais diferentes possíveis – e se rendeu à verdade única moderna: a magreza. É o luto de me ver misturada a valores que sempre considerei de segunda linha, como a valorização excessiva da imagem – o que parecemos – em vez daquilo que de fato somos. Há algo da minha alegria genuína que vai se perdendo nesse processo. É como se eu pensasse: “Tudo bem, pessoal, vamos lá. Serei uma de vocês. Dá mesmo muito trabalho sustentar ser eu mesma nesse mundo”. Há algo de muito triste nessa experiência que, aliás, tem muito de desistência. E não adianta dividir essa tristeza, porque todos julgam esse sentimento como uma “defesa inconsciente típica do gordo” que, com base nela, vai acabar achando um jeito de “boicotar o emagrecimento e voltar ao lugar triste da obesidade”. Na verdade, não vou boicotar, não. Dá vontade de dizer: “Respirem aliviados e não gastem saliva. Serei magra e farei tudo para me manter assim. Estará tudo bem em algum tempo. Estaremos do mesmo lado”. Já entendi que, no meio social em que vivo, é o único jeito de não sofrer significativas sanções de exclusão.

Eu: Mas, vou insistir. Se é um processo tão violento para você, por que emagrecer?
Ela: É verdade que dieta é uma violência com relação a tudo o que eu acredito. Talvez soe até bobo e infantil reclamar da escolha de emagrecer. É provável até que não faça sentido e que o sentido aparente termine sendo o amoroso-sexual. Sem dúvida, este ganho está presente. Mas há outros. E não é que eu não consiga viver sem estes outros ganhos. Consigo, tanto que vivi, e bem, até aqui. A questão é que estou exausta do esforço que é preciso para isso. Eu não quero ouvir dicas sobre a importância de emagrecer, correr, fazer dieta, a cada telefonema, a cada encontro, a cada email. Diante do meu pedido expresso para que isso não ocorra, não quero ver o melhor amigo passar os meses se segurando, com grande esforço, para não terminar cutucando o assunto de forma impiedosa. Não quero ouvir alguém que pesa mais de 120 quilos gritar que “não há ninguém no mundo que seja feliz sendo gordo!”, me acusando de mentir para mim mesma, quando afirmo que magreza não é exatamente um valor próprio. Não quero ser ignorada na boate porque estou gorda, nem ouvir que estou solteira porque estou gorda, nem perceber os colegas fiscalizando o tamanho do meu prato, nem ver condenação estampada nos olhares que me rodeiam. Este massacre pelo emagrecimento me encheu tanto que prefiro virar uma “paty-tamanho-40”, com um sorriso no rosto sujo por uma folha de rúcula e por um tanto de covardia. Eu realmente estou cansada de, tendo de lidar com tantas coisas difíceis no cotidiano, ainda aguentar os olhares que me dizem o quão imperdoável é estar acima do peso. Veja bem: Não é que seria impossível aguentá-los. Mas é preciso esforço demais… E a vida já anda com desafios significativos. Declino da batalha e entrego os pontos.

Eu: Você me disse que emagrecer é uma espécie de “se perder e se prostituir”. Por quê?
Ela: Como eu disse, emagrecer foi uma escolha para atender algo que não é fruto do meu próprio desejo. Eu, que me considero tão centrada, tornei-me refém de valores que jamais serão meus, não importa o quanto os siga, por fraqueza ou por covardia. Especificamente sobre a sensação de estar me “prostituindo”, é como se o pagamento pelo esforço em emagrecer se desse em olhares de admiração e de tesão. Às vezes parece um preço alto e absurdo demais para este estranho sexo social. Quando penso que estou usando uma parcela da minha vida para lidar com isso e, no mesmo instante, no mesmo país, há alguém faminto, me sinto uma verdadeira aberração. Tenho receio de terminar esse caminho meio perdida, sem saber direito aquilo em que acredito, nem muito bem o que desejo. Tenho receio de uma nostalgia saudosa do gozo assumido e inteiro, muito mais suave, a que estava acostumada. Porque podia até não ser perfeito, mas eram escolhas inteiras. Sempre achei que estar íntegro no erro é melhor do que alienada em eventuais acertos exógenos. Por outro lado, atendendo a essa exigência social, a vida no meio em que me relaciono pode se tornar mais fácil. Estar acima do peso dificulta bastante os dias numa terra de mulheres deslumbrantes, bem cuidadas e magras. E há um momento da vida em que você descobre que, se já superou tempos difíceis, tem direito à sua cota mínima de covardia e futilidade nessa existência. Estou exercendo minha cota. Covarde demais para me manter quem eu era, me rendi ao mundo e estou fazendo sacrifícios para emagrecer. Não falo isso como uma grande vítima. Mas como uma mulher adulta, como um sujeito de escolhas conscientes e incoerentes.

Eu: É uma escolha sua ou do mundo?
Ela: A escolha, eu acho, é minha. Porque é lógico que eu poderia continuar gorda. Dentre as mulheres gordas que conheço, talvez eu fosse daquelas que realmente sustentaria, razoavelmente feliz, ser quem é. Quer saber a razão de eu não fazer isso? É lógico que quero, e muito, como todo ser humano, ser aceita e amada. Mas, mais do que isso e principalmente: eu quero uma vida mais fácil. Simples e fútil assim. Estou cansada de batalhar por valores que as pessoas, inclusive as muito queridas, sequer entendem. Juntar-me ao todo dá uma sensação de alívio coletivo e este alívio faz com que me deixem em paz, que é exatamente o que eu desejo e preciso agora. Então eu tomo só um chope pequeno, num dia de calor insuportável, em que não haveria nada demais tomar os três habituais. E volto caminhando para casa para queimar as calorias. No dia seguinte, não como duas fatias de pão integral light, mas só uma. Por fim, confesso o pecado para a nutricionista, que me absolve, com um ato de contrição que exclui queijo amarelo por dois meses. Saí mais cedo do bar e perdi as últimas gargalhadas para não correr o risco de tomar mais um chope. Fiquei com fome durante toda a manhã e sonho, há dias, com requeijão derretido no micro-ondas. Mas tudo bem.

(Publicado na Revista Época em 26/04/2010)

“Porca gorda”

Por que as pessoas acima do peso nos incomodam tanto?

Assisti à “Gorda”, peça teatral em cartaz no Teatro Procópio Ferreira, em São Paulo. Ri muito. Em certo momento, meu riso ficou triste. Eu estava triste. Não pela gorda da peça, mas por me reconhecer no preconceito contra ela. No final, chorei.

Este é o enredo. Helena e Tony se conhecem num restaurante. Ela é gorda. Não gordinha. Gorda mesmo. Helena é vivida com muita competência pela atriz Fabiana Karla, de Zorra Total (TV Globo). Segundo a sinopse oficial, a personagem está 30 quilos acima do peso. Se compararmos com uma das modelos da moda, deve estar uns 50. Tony (o ótimo Michel Bercovitch) gosta dela. Ela é inteligente, divertida, sensual. Bonita. Helena gosta dele. Os dois se apaixonam. Mas, como um cara jovem, bem sucedido, MAGRO e disputado pelas mulheres MAGRAS pode escolher uma gorda, amar uma gorda, ser feliz com uma gorda?

A reação social diante da versão de amor impossível da nossa época é protagonizada por Caco (Mouhamed Harfouch), amigo e colega de trabalho de Tony, e por Joana (Flávia Rubim), sua ex gostosa, cujo maior temor da vida é engordar. São eles que representam, no enredo e no palco, pessoas como nós – sempre menos magras do que gostariam, magras o suficiente para não serem chamadas de gordas na rua.

O texto do americano Neil Labute é inteligente, rápido, fatal. Rimos muito. Primeiro, com ela. Helena é uma mulher bem-humorada. Como muitos gordos, defende-se fazendo piadas sobre seu tamanho. A velha regra: adiante-se, ria de si mesmo, antes que os outros o façam com a crueldade habitual. Se perder o timing, não acuse o golpe – ou nunca mais o deixarão em paz.

Aos poucos, começamos a rir muito dela (e não mais “com” ela), pelas piadas de Caco, ao descobrir que o amigo está namorando uma “porca gorda”. Fat Pig é o nome original da peça. Mas gostamos de Helena, testemunhamos o apaixonamento dos dois, sabemos que eles são felizes juntos. E passamos a nos sentir mal de rir, ainda que continuemos rindo. Não queremos ser como Caco – muito menos como Joana. Mas somos tão parecidos!

Nós – o senso-comum sentado na plateia – somos o mais próximo de um vilão que esta peça produz. O texto e os atores são competentes o suficiente para fazer com que a gente prefira não vencer. Torcemos para que Helena e Tony consigam ficar juntos, apesar de nós. Torcemos para que eles consigam vencer nosso preconceito e nos tornar melhores do que somos. Não sei se torceríamos assim num episódio da vida real. E esta é a questão que a peça também nos deixa.

O final é brilhante.

Acho que vale a pena pensar sobre as questões que esta peça provoca. Começando por: qual é o nosso problema com os gordos?

Sobre a transformação do padrão de beleza, das rechonchudas musas da Renascença às modelos esquálidas e/ou musculosas de hoje, já se escreveu bastante. A pergunta que me desperta maior interesse não se refere – apenas – ao fato de acharmos as gordas feias, de relacionarmos gordura com feiúra. A questão que mais me intriga é: por que muitos acham as gordas (e os gordos) repugnantes? Se você não disse ou pensou, já ouviu alguém dizer: “olha que gorda nojenta!”.

Horrível. Mas tão comum que nos obriga a ir em frente.

Com todas as diferenças que, para nossa sorte, garantem a diversidade do mundo, somos impelidos a ser politicamente corretos. Fazer piadas com aquelas que foram as vítimas de sempre até não muito tempo atrás, como negros, gays, deficientes etc, pega mal hoje em dia. Temos de ser politicamente corretos ou corremos o risco de ser processados – ou mesmo de acabar na cadeia. Por que o privilégio de não ser ridicularizado não foi estendido aos gordos? Sobre os gordos podem ser ditas as coisas mais cruéis. E ainda se manter do lado certo da força.

O que diz o senso comum sobre os gordos? Primeiro, que são feios. Em geral, o máximo de elogio que um gordo consegue arrancar é: “Que pena, tem um rosto tão bonito…”. Dizem que são preguiçosos. Se fizessem exercícios – e como ousar não se exercitar neste mundo? – perderiam aquela pança. Afirma-se também que são sem-vergonhas. Se tivessem vergonha na cara, respeito próprio, fechariam a boca e seriam magros. E, então, poderiam pertencer ao clube dos magros felizes (????!!!!).

Portanto, segundo o senso comum, além de feios e preguiçosos, gordos também teriam falhas de caráter. E, como tudo, para as mulheres acima do peso é ainda pior. Neste mundo em que se compram peitos, bocas e bundas no crediário, soa imperdoável não arrancar a gordura à faca. Já ouvi muitas vezes frases como estas, referindo-se a alguém com mais quilos do que o “permitido”: por que não faz logo uma cirurgia de redução de estômago? Seguida por uma cirurgia reparadora e uma lipoescultura? Simples assim.

Sobre o estado psíquico dos gordos, a percepção é confusa. Por um lado, persiste a ideia de que todo gordo é engraçado. É um pândego. Como bobo da corte ou comediante, ele pode ser aceito. Nós mesmos, só conhecíamos Fabiana Karla como atriz do Zorra Total. Ninguém imaginou que, ainda que fazendo o papel de “gorda”, ela pudesse ter outros recursos que não a graça. Que os gordos mostrem nuances que não virem piada nos surpreende. Que eles possam nos fazer pensar sobre outras dimensões da vida é inesperado. Que tenham questões existenciais que não girem em torno de uma balança é estarrecedor.

Por outro lado, o senso comum também diz que, se é gordo, só pode ser infeliz. A maioria de nós acredita e repete isso. Fulano come demais, é infeliz. Fulano não consegue fechar a boca, é infeliz. Fulano compensa a infelicidade comendo. Ora, desde quando magreza se tornou sinônimo de felicidade? Você, magro ou magra, é loucamente feliz? Está rolando de rir vida afora? Ops, magros não rolam.

O mais disfarçado dos preconceitos vem embalado pelo discurso da saúde. É verdade que a obesidade está crescendo no Brasil. E é verdade que isso é sério. E é legítimo e relevante pensar e discutir o fenômeno com responsabilidade.

Mas será que não há um exagero nisso? Ou pelo menos do uso preconceituoso que se faz de uma questão tão séria? Hoje, quando olham para um gordo, além de feio, preguiçoso e sem-vergonha, muitos enxergam também um doente. Gordura virou sinônimo de doença. E nossa sociedade, que morre de medo de morrer, foge da doença. E das pessoas doentes. Os gordos parecem ser os leprosos de nosso tempo. E esta seria minha primeira hipótese para a repugnância que as pessoas gordas parecem evocar.

Não se trata de afirmar que a gordura não está relacionada a doenças – ou que a obesidade não seja uma doença. A Organização Mundial da Saúde afirma que é, quem sou eu para discordar. Só tento mostrar que é preciso tomar cuidado para não cometermos as mesmas crueldades que nossos antepassados consumaram ao exorcizar epiléticos, isolar leprosos. Todas essas práticas sempre foram realizadas em nome do “bem”. Guardadas as proporções e o momento histórico, nossa sociedade pode estar transformando os gordos, com os instrumentos desta época, nos culpados pela nossa impotência diante da doença e da morte.

Hoje a vida tornou-se uma patologia. Difunde-se que muito do que sentimos não deveríamos sentir. O ideal seria só sentir alegria num corpo magro, musculoso e eterno. Para cada sentimento e estado que extrapole estes limites impossíveis há uma patologia e uma penca de remédios e procedimentos cirúrgicos para “curá-la”. Acredito que vale a pena ter um pouco de cautela, enfiar alguns pontos de interrogação na cabeça, antes de sairmos rotulando todos os gordos como doentes. E, pior, com uma doença que dependeria só de boa vontade individual para ser curada.

Eu sou mais ou menos magra. Longe, bem longe do peso de uma modelo, mas ninguém me chamaria de gorda na rua. A maior parte da minha família é magra. E todos nós temos doenças. Eu tenho quatro hérnias de disco. Meu pai, mesmo com um metabolismo fenomenal e índices de colesterol e triglicérides perfeitos, tem problemas cardíacos desde jovem. Meu irmão do meio não tem um grama de gordura a mais no corpo, come alimentos saudáveis e se exercita com método: a cada semana corre quatro dias, faz musculação e natação em outros dois. Ainda assim, é um pré-diabético.

Parece-me lógico que o envelhecimento traga doenças. A vida nos gasta. Nosso corpo também tem prazo de validade. Pela biologia, estamos prontos para morrer assim que alcançamos a idade reprodutiva, transmitimos nossos genes e criamos nossa prole. Conseguimos, à custa da Ciência (e ainda bem que conseguimos!) espichar nosso tempo de vida e até com qualidade crescente. Mas, infelizmente, não vamos nos livrar das doenças. Nem de morrer. É duro olhar para os limites. Mas não fazê-lo pode ser pior.

Os gordos podem ser vítimas de nosso medo de morrer. Pagam um preço alto pela nossa dificuldade de lidar com a desordem inerente à existência humana. Tornamos suas vidas insuportáveis – inclusive as lojas bacanas, que se recusam a oferecer números maiores que 42 – porque eles apontam em seus excessos aquilo que nos falta a todos: controle sobre a vida. Esta é uma hipótese, apenas. Acredito que existam muitas outras.
Acho importante tentar compreender porque insistimos em jogar os gordos na fogueira contemporânea. Por todas as razões que dizem respeito à vida de todos – e principalmente para não infligirmos sofrimento ao outro que nos ameaça com sua diferença. Só sei o óbvio: tanto medo, capaz de causar repugnância, revela mais sobre os magros do que sobre os gordos.

Talvez, num dia próximo, não seja preciso escrever em termos de “nós” – e “eles”. A vida é diversa. Sempre houve os magros, os gordos, os altos, os baixos, os de olhos azuis, os de pele escura. Esta riqueza é um patrimônio humano que fez muito bem à espécie. Ser capaz de reter gordura, aliás, garantiu nossa sobrevivência por milênios. Quando os gordos lutam para ser magros, estão brigando contra a biologia. Algo nada fácil de fazer. Muito menos de vencer.

Se engordamos – por herança genética ou outras razões –, não há um só caminho a seguir, uma única estrada para a luz. Pelo menos acredito que não. Emagrecer não é a única alternativa – seja para atender ao padrão de beleza vigente ou para responder ao modelo de saúde atual. A vida é um pouco mais complexa que isso. E há muitas maneiras de medir sua qualidade – assim como o significado de uma existência plena varia de uma pessoa para outra tanto quanto sua disposição genética para esta ou aquela doença.

Se um dia eu engordar muito e tiver problemas de saúde por causa do peso, possivelmente vou optar por continuar comendo minha feijoada semanal. Porque comer o que gosto é uma dimensão essencial da vida para mim – importante o suficiente para não abrir mão dela. Para outra pessoa, privar-se de seus pratos preferidos pode valer a pena em nome de uma vida mais longa ou de vestir um tamanho 38. Cada um tem suas prioridades. É bom lembrarmos que o pensamento dominante atual sobre a saúde não é apenas um produto do avanço da medicina, mas um produto da cultura. E do mercado.

A “gorda” da peça teatral não quer ser magra. Depois de um percurso sofrido na adolescência, ela gosta do que é. E nós, na plateia, também gostamos. Em determinado momento, percebemos que, se ela reduzir o estômago e fizer uma super dieta, algo essencial dela se perderá. Não é apenas uma questão de arrancar gordura do corpo. O que está em jogo é bem mais do que isso.

“Gorda” nos dá a oportunidade de enxergar mais que um acúmulo de células adiposas em outro ser humano. Ao olhar para Helena, a personagem da Fabiana Karla, nos deparamos também com o tamanho extra-large de nosso preconceito. Mesmo quando embalado em nossas melhores intenções.

(Publicado na Revista Época em 22/03/2010)

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