Sob o domínio dos vermes

Por que a violência da eleição de 2022 é maior do que em 2018

Jair Bolsonaro, presidente de Brasil, durante una conferencia de prensa en Brasilia (Brasil), en 2020. ANDRESSA ANHOLETE (GETTY IMAGES / Reprodução do El País Espanha)

Jair Bolsonaro, presidente de Brasil, durante una conferencia de prensa en Brasilia (Brasil), en 2020.
ANDRESSA ANHOLETE (GETTY IMAGES / Reprodução do El País Espanha)

Na campanha eleitoral de 2018, no Brasil, os ressentidos deixaram seus casulos para uma metamorfose às avessas. Orgulhosos de sua essência, batiam em pessoas LGBTQIA+ nas ruas que vissem andando de mãos dadas, gritavam para os pretos “voltarem para as senzalas”, juravam varrer os indígenas da Amazônia, destruíam casas de religião afro-brasileiras. Era a vingança dos ressentidos que acumularam seu rancor por décadas diante dos avanços dos direitos e daquilo que chamam de “prisão do politicamente correto”. Sua ação foi decisiva para eleger seu porta-voz, o então candidato Jair Bolsonaro, que comemorou a vitória prometendo despachar os opositores para a “Ponta da Praia”, local de desova de corpos torturados e mortos pela ditadura militar (1964-1985). A campanha eleitoral de 2022, em que Bolsonaro busca a reeleição, é muito pior.

Depois de quase quatro anos no poder, usando a máquina do Estado para solapar a democracia, o bolsonarismo infiltrou muito mais fundo suas raízes podres nas instituições brasileiras e em organizações da sociedade civil. Se em 2018, os piores ataques racistas, homofóbicos, xenófobos e misóginos eram desferidos por indivíduos ou grupos, em 2022 eles vêm de parlamentos e associações. Embora ambos os cenários sejam pavorosos, a diferença é substancial. E ela mostra que a corrosão da sociedade brasileira será ainda mais difícil de reverter do que acreditam os mais pessimistas. Como o personagem Smith da icônica série Matrix, Bolsonaro se replica aos milhões. Mesmo que ele não seja reeleito nem seja capaz de consumar o golpe que prepara para o caso de derrota, milhares de Bolsonaros se reelegerão no parlamento e seguirão ocupando cargos de poder nas entidades de classe.

Entre as mais recentes agressões por instituições públicas, está o requerimento de uma apoiadora de Bolsonaro em Santa Catarina, um dos estados do racista sul do Brasil, para fazer uma Comissão Parlamentar de Inquérito. Ana Campagnolo quer investigar uma criança que engravidou de um estupro aos 10 anos e que conseguiu fazer um aborto legal depois de muita luta, já que a juíza e a promotora tentaram impedi-la. Para abrir uma CPI nesse parlamento são necessários 14 votos. Ela conseguiu 21, provando que representa a maioria. Mais da metade dos deputados da Assembleia Legislativa está disposta a usar seus mandatos para criminalizar uma criança que, agora com 11 anos, já foi vítima de uma violação sexual, de uma gravidez obviamente indesejada e de um aborto.

Já entre os mais recentes ataques de organizações da sociedade civil, está a carta encaminhada à presidência da República clamando ao governo brasileiro que abandone a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que estabelece a necessidade de consulta “livre, prévia e informada” às comunidades indígenas e tradicionais que podem ser atingidas por projetos econômicos. Em 2021, a Amazônia perdeu 18 árvores por segundo, mas as principais associações e federações da indústria do Pará, estado campeão de desmatamento, sentem-se autorizadas a exigir o silenciamento formal dos guardiões da floresta em documento oficial.

Há uma semana, um homem invadiu a festa de outro, tesoureiro do PT na cidade de Foz do Iguaçu, que comemorava o aniversário com uma decoração pró-Lula. Matou-o a tiros, diante de todos os convidados, aos gritos de “Aqui é Bolsonaro”. A Polícia Civil afirmou que não era crime político. E a imprensa responsabilizou não a incitação à destruição dos adversários promovida por Bolsonaro, mas à “polarização”, como se ambos os lados fossem igualmente violentos. É assim que apodrece um país.

Bolsonaro pode perder a eleição, mas a bestialidade do que representa não apenas circula pelas ruas à luz do dia, como em 2018, mas também lidera, em 2022, grande parte do aparato institucional em todas as áreas. Bolsonaro já venceu, mesmo perdendo. E derrotá-lo será uma luta para muito mais do que uma geração.

Leia no El País (somente em espanhol)

A ultradireita global e o controle dos corpos

Protestas en Indiana contra la decisión del Tribunal Supremo de Estados Unidos de revocar el derecho al aborto. AJ MAST (AP) / Reprodução do El País Espanha

Protestas en Indiana contra la decisión del Tribunal Supremo de Estados Unidos de revocar el derecho al aborto. AJ MAST (AP) / Reprodução do El País Espanha

A derrubada do direito ao aborto e a redução do poder da Agência de Proteção Ambiental pela Suprema Corte dos Estados Unidos apontam para o mesmo objetivo: o controle dos corpos. Não quaisquer corpos, porém. No caso do aborto, o das mulheres. No caso do clima, os mais pobres, em todo o planeta os pretos e os indígenas, os mais afetados pelo aquecimento global – e, principalmente, o corpo-planeta. A ofensiva dos republicanos que hoje dominam o tribunal é pelo controle dos corpos insurgentes: tanto dos corpos das protagonistas do movimento feminista Me Too quanto daqueles que derrubaram estátuas de heróis americanos brancos, escravocratas e colonialistas – e da natureza que se insurge em transfiguração climática após o ataque sistemático da modernidade movida a combustíveis fósseis.

As decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos, maior emissor de carbono junto com a China, sinalizam que a troca de presidente está longe de garantir a recuperação de direitos e o avanço em temas cruciais como o aquecimento global. A tentativa de golpe de Donald Trump, com a invasão do Capitólio, deu um exemplo para a extrema direita do que fazer quando perdem as eleições. O primeiro ano e meio do governo do democrata (bem moderado) Joe Biden apontam que não basta ganhar as eleições e fazer o resultado das urnas valer. O que levou a extrema-direita ao poder continua ativo mesmo com um presidente democrata, e corroendo a democracia tanto por dentro das instituições quanto ao insuflar o desamparo das camadas populares com a acelerada deterioração de uma vida já sem promessas de futuro.

Países com instituições mais frágeis, como o Brasil, terão muito mais dificuldades para enfrentar os tempos pós-Bolsonaro, caso consigam evitar a reeleição e o golpe em curso. Ninguém deixou mais explícita a relação entre o corpo das mulheres e o corpo da floresta que Jair Bolsonaro, ao dizer em seu primeiro ano de governo que a Amazônia era “a virgem que todo tarado de fora quer”. Tanto o corpo feminino quanto a natureza são corpos a serem objetificados, espoliados e esvaziados. É esta a lógica colonial e patriarcal que a extrema-direita luta para manter e que levou o planeta à catástrofe climática.

Nas últimas semanas, uma juíza impediu uma menina de 11 anos de fazer um aborto por gravidez resultante de estupro, contrariando a lei, e um jornalista expôs publicamente uma atriz que deu o bebê resultante de violação para adoção. Esta é a pré-campanha das bases – e com esta o país terá que lidar para muito além das eleições.

Não por acaso há um terceiro retrocesso protagonizado pela Suprema Corte dos Estados Unidos no mesmo período, ao autorizar civis a portar arma de fogo em público. Não por acaso o Brasil teve um aumento no porte de armas de 473% durante o governo Bolsonaro. Se os retrocessos legais não são suficientes para controlar os corpos insurgentes, as armas servem para destruí-los. É isso que a execução de defensores da natureza tem mostrado na Amazônia dia após dia.

Leia na minha coluna no El País- Espanha (somente em espanhol)

Dom Phillips y Bruno Pereira son víctimas de guerra

O único jeito de manter os defensores da natureza vivos é se tornarem tão numerosos que, para silenciá-los, será preciso matar cada um de nós.

Familiares y allegados de Dom Philips y de Bruno Araújo participan de un acto de protesta por sus desapariciones, en Río de Janeiro (Brasil). ANTONIO LACERDA (EFE/Reprodução do El País)

Familiares y allegados de Dom Philips y de Bruno Pereira participan de un acto de protesta por sus desapariciones, en Río de Janeiro (Brasil). ANTONIO LACERDA (EFE/Reprodução do El País)

Leia na minha coluna no El País-Espanha (em espanhol)

O Assunto #709: Altamira – crimes e ruínas da floresta

O município mais extenso do país, no sudoeste do Pará, teve 12 assassinatos nas últimas duas semanas, todos com características de execução. Eles ocorrem num contexto de degradação social e ambiental diretamente associado às obras da hidrelétrica de Belo Monte, ao longo da década passada. Nesse período, a taxa local de homicídios se multiplicou por dez, entre outros indicadores deteriorados. Em conversa com Renata Lo Prete, a premiada jornalista Eliane Brum avalia que Altamira representa a vanguarda da destruição da Amazônia. “O que acontece aqui é uma espécie de crise climática localizada”, diz ela, hoje moradora da cidade. Também documentarista e escritora, seu livro mais recente é “Banzeiro Okotó: Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo”, que investiga desastres socioambientais, principalmente na área do rio Xingu, que banha a cidade. Eliane descreve como vivem, nas periferias, “pobres urbanos” que foram expulsos de suas terras pela construção da usina. “Entender uma cidade amazônica é entender o que são as ruínas da floresta”, diz.

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Mario, o que você chama de “palhaçada” nós chamamos de sangue

Mario Vargas Llosa, en la 46ª Feria Internacional del Libro de Buenos Aires, el 6 de mayo (LUIS ROBAYO/AFP, Reprodução do El País)

Mario Vargas Llosa, en la 46ª Feria Internacional del Libro de Buenos Aires, el 6 de mayo (LUIS ROBAYO/AFP, Reprodução do El País)

Minha resposta a Mario Vargas Llosa em minha coluna do El País

Durante palestra em Montevideo, o prêmio nobel de Literatura Mario Vargas Llosa posicionou-se diante da eleição brasileira do próximo outubro. Disse o escritor peruano: “As palhaçadas de Bolsonaro são muito difíceis de admitir para um liberal. Agora, entre Bolsonaro e Lula, eu prefiro Bolsonaro”. Não é a primeira vez que o consagrado escritor faz declarações políticas controversas, usando aqui um eufemismo. Mas defender Jair Messias Bolsonaro contra Luiz Inácio Lula da Silva são vários tons acima até mesmo para os padrões de Vargas Llosa. Nunca foi tão importante diferenciar um liberal de um extremista de direita. Declarações como estas, porém, borram as fronteiras e contribuem para a corrosão da democracia.

Vejamos o que o suposto liberal Mario Vargas Llosa, personagem que frequentou círculos intelectuais refinados da Europa ao longo de décadas, considera “palhaçadas de Bolsonaro”: o ataque persistente às urnas eletrônicas e ao processo eleitoral, para justificar um golpe de Estado em caso de não se reeleger; a agressão recorrente às instituições que não conseguiu controlar, como o Tribunal Superior Eleitoral e o Supremo Tribunal Federal; os quase 700 mil mortos por covid-19, resultado de comprovada execução de um plano de disseminação do vírus para obter “imunidade de rebanho”, com ataque sistemático contra o uso de máscaras e contra as vacinas; o apoio a mineradores ilegais, madeireiros e grileiros (ladrões de terras públicas) responsáveis pela contaminação dos rios por mercúrio, desmatamento recorde e uso de violência contra defensores da floresta, além de estupro de mulheres indígenas, no caso da mineração; o desmonte da legislação ambiental construída durante décadas, o esvaziamento dos órgãos de proteção e o afrouxamento da punição a destruidores da natureza; os constantes ataques às mulheres, aos povos originários e aos negros; as cada vez mais evidentes relações com as milícias que controlam o crime organizado e a defesa do armamento da população civil. A lista de “palhaçadas” não cabe no espaço desta coluna, seria necessária uma edição inteira do El País de domingo, com todos os cadernos incluídos.

Mas o suposto liberal Mario Vargas Llosa prefere Bolsonaro a Lula porque o ex-presidente, favorito nas pesquisas, “esteve preso” e os juízes o condenaram “como ladrão”. Vargas Llosa não deve estar informado que Lula passou, sim, 580 dias na prisão, mas posteriormente o Supremo Tribunal Federal anulou condenações e determinou que as ações recomeçassem do início por erros processuais, o que o torna inocente até prova em contrário. Se as condenações tivessem sido mantidas, Lula não poderia ser candidato.

O que está em jogo nas eleições brasileiras de outubro é a própria democracia. Por maiores críticas que se possa fazer a Lula e aos seus governos – e há muitas –, ele é um democrata. Bolsonaro, contra quem há várias comunicações por genocídio no Tribunal Penal Internacional, é um defensor da ditadura militar, que tem o principal torturador do regime como herói declarado, e fez do Brasil um país em estado de golpe.

Para um liberal genuíno, os atos de Bolsonaro não deveriam ser “difíceis de admitir” – e sim impossíveis de aceitar. Admiti-los como um mal menor é desrespeitar a vida dos mais frágeis e a própria democracia. Que entre a civilização e a barbárie, uma pessoa com a ressonância pública de Vargas Llosa se manifeste publicamente pela barbárie, reduzindo a “palhaçada” atos que tiraram a vida de tantos e levam ao ponto de não retorno a maior floresta tropical do mundo, explica muito por que as democracias estão em crise e dá pistas sobre os instintos autoritários e racistas de parte significativa das elites intelectuais da América Latina. A Vargas Llosa devemos dizer: o que você chama de “palhaçada” nós, que sofremos o cotidiano de violência imposto por Bolsonaro, chamamos sangue.

Leia no El País (em espanhol)

 

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