Tinha sonhado com aquela viagem. Planejado cada detalhe. Era do tipo que gostava de ler guias. Assinalava suas partes preferidas com marcadores coloridos. Fazia as reservas de hotel — e sabia em minúcias o que serviam no café da manhã. Resolvia tudo pela internet, mas fazia questão de ligar para conhecer a voz do recepcionista. Não é que não gostasse de imprevistos, mas achava que tudo precisava estar dentro de certo controle. Era bom ir para o mundo, mas nada impedia que essa entrega tivesse o sucesso assegurado por um nível estatístico de previsibilidade.
Na poltrona da classe econômica do avião, os talheres de plástico lhe davam uma sensação de ordem. Estava voando, mas em terra firme. Não tinha medo das turbulências. Elas pertenciam ao território das probabilidades controláveis. Assim como o sorriso quase displicente da aeromoça. E o inglês tatibitate do comandante. Os avisos que só ele obedecia de atar cintos. As instruções as quais prestava total atenção como uma daquelas crianças que pede aos pais para contar sempre a mesma história porque precisa da certeza de que o final ainda é o mesmo.
Ajeitou os fones de ouvido para não perder o começo do filme. Cheri, de Stephen Frears. Esquadrinhou o rosto de Michelle Pfeiffer. Amava Michelle. Seus traços tinham a harmonia da vida como ela deveria ser. Michelle deixava a juventude perder-se sem alarde. Sem desespero nem botox. Sua beleza estava além do tempo. Nunca a desejou carnalmente. Só queria olhar para ela. De longe. Mesmo que a encontrasse, entre o corpo dela e suas mãos haveria sempre uma tela.
Achou melhor que o filme acabasse assim. A melancolia era a segurança de Michelle, que não merecia despentear nem um fio de seu loiro cabelo por nada tão mundano quanto um amor. Cronometrado, sorriu satisfeito ao acompanhar os créditos finais. O piloto avisava que a aeronave estava em “processo de descida”. Sentiu o previsível friozinho no estômago. No caso dele apenas uma brisa, já que tinha se assegurado de não correr risco algum.
Trazia no bolso interno do casaco o valor exato da corrida de táxi e ainda uma gorjeta. Dentro das calças, numa pochete, carregava os cheques de viagem e os dólares. Apalpou seus dois cartões de crédito, cada um de uma bandeira, para que não se apertasse em caso de eventual pane no sistema. Junto com ele guardava o seguro-saúde. Tudo checado, estava perfeitamente pronto para desembarcar e se entregar às delícias de uma viagem de férias por mundos desconhecidos, mas nem tanto.
A esteira de malas sempre lhe dava certo grau de apreensão. Apesar da etiqueta com a identificação completa e o seguro em dia, em caso de extravio perderia um tempo precioso. Mas lá estava ela, com rodinhas de titânio e a bandeira do Brasil costurada na parte posterior. Arrastou-a pelo saguão até a fila do táxi. O carro era menos limpo do que gostaria, mas, voilá. Estava na América Latina. Preferia que o motorista fosse menos moreno, mas não podia esperar um tipo diferente numa população de maioria indígena. Certamente os descendentes de europeus não dirigiam táxis.
Estendeu o endereço do hotel num papel impecável, impresso com papel reciclado em sua copiadora a laser. Com a outra mão segurava o guia de espanhol para turistas. O motorista não sorriu de volta. O povo às vezes podia se revelar uma parte desagradável das viagens, suspirou. No meio do caminho o motorista finalmente falou. Grunhiu um preço duas vezes maior do que ele havia lido no guia. Folheou rapidamente seu espanhol para viagens. Perdoneme señor, pero pienso que este valor está un poquito alto. Mire, aquí em mi guía está escrito que… O mestiço interrompeu-o com um sorriso de dentes amarelos. A la mierda con su guía, brasileño. Si no quiere pagar, bájese de mi coche.
Pagou. A essa altura um pouco mareado. O guia havia garantido que era preciso ter um pouco de cuidado com larápios, mas que o povo era amistoso. Decididamente, o autor não conhecia aquele taxista. Cravou os olhos na janela suja. Não deixaria sua chegada ser contaminada pelo mau comportamento da ralé. Usted me he dado los billetes equivocados. Mire, son dos notas de diez. E tiene que darme dos de cien. Não era possível. Ele nunca se enganaria com algo assim. Empertigou-se e decidiu fazer valer seus direitos de cidadão do mundo. Dessa vez, o motorista gritou. Está dudando de mi, hijo de una perra? Piensa que sólo porque viene de Brasil puede hacer lo que le de la gana? Piensa usted que es el tío como Lula? Que le den por el culo! Págueme o bájese.
Pagou de novo. Agora todo o dinheiro havia se ido. Inclusive a reserva. Só lhe restava a gorjeta, que jamais daria para aquele índio ladrão. E o percurso entre o aeroporto e o centro da cidade ainda estava só no meio. Sentia-se definitivamente mareado. Faltava-lhe o ar. O colarinho da camisa coçava. Entre suas mãos, a capa do guia estava mole de suor. Tudo estragado. As semanas de planejamento. A antecipação. Suas férias. Tudo destruído por causa daquele homenzinho de quinta categoria. Aquela sub-raça que deveria ter sido varrida do mapa das Américas pelos espanhóis. Nunca mais viajaria a um país subdesenvolvido de novo.
Um sentimento novo foi crescendo dentro dele. Ele era um homem que trabalhava direito, que pagava seus impostos, que votava consciente, que separava o lixo, que todo ano apresentava níveis impecáveis de colesterol e triglicérides. Contribuía para a liga das crianças com câncer. Nem mesmo era racista. Sempre dava dinheiro para o guardador de carro pretinho. E um piparote na cabeça nem sempre limpa. Ele era um homem bom! E agora estava ali, no banco de trás daquele pulgueiro, roubado por aquele homúnculo. Não estava certo. O mundo precisava desvirar.
O motorista virava a esquina da rua do hotel. Um hotel-boutique, cada apartamento desenhado por um arquiteto diferente. Havia escolhido com todo o cuidado. Então parou. Bem longe da porta do hotel onde ele já avistava um porteiro uniformizado. Bájese acá, brasileño. E nem fez menção de ajudá-lo com a bagagem. Ao resgatá-la do porta-malas, as mãos trêmulas, viu a chave de roda. Não pensou. Sentia-se várias fronteiras além de qualquer planejamento. Enquanto com uma mão arrancava a chave da ignição, começou a bater no homenzinho. Nem se preocupava em decodificar seus gritos. Só batia e batia e batia.
Quando finalmente a polícia apareceu, o rosto do taxista era um continente de sangue. Seus braços eram as próprias veias abertas da América Latina, riu com gosto da piada interna. Queriam levá-lo preso. Apalpou o bolso da camisa ordinária do homem. Tirou de lá um maço de dinheiro e um dente. Comprou sua justiça. Era um homem civilizado, garantiu aos policiais antes de jogar a chave do carro longe para ter o prazer de ver o motorista engatinhar até ela.
No próprio bolso, conferiu, ainda tinha a gorjeta para dar ao porteiro reluzente do hotel. A viagem ainda poderia ser maravilhosamente previsível. E sem gentalha. Sem realidade. Sem uma vida que não fosse a sua.
Em seu hotel-boutique ele jamais precisaria lembrar que a besta dentro dele não constava de nenhum guia.