A concha

Quando chegou do trabalho já era tarde para ser saudável. Depois de um dia sem tempo nem para um sanduíche, queria se acabar comendo diante da TV. Abriu o freezer em busca de possibilidades, sempre escassas naquele apartamento de mulher muderna com “u”. Já havia comido o carpaccio vencido, a lasanha de presunto, a de quatro queijos, a pizza margarita. Lá no fundo, atrás de uma pilha de bandejas de carne crua, estava o último tapawer contendo as sobras de uma paella encomendada para o aniversário do sogro. Paella às onze da noite. Hum. Tough girl. Programou o micro-ondas para dez minutos enquanto tomava um banho. Só conseguia se sentir em casa depois de tomar banho, vestir o pijama, encaixar os óculos e deitar no sofá azul com um prato de comida diante de algum filme, de preferência uma comédia romântica high school americana, do tipo garota inteligente e feia, mas que por trás dos óculos fundo de garrafa e das roupas largas é bonita, está apaixonada pelo garoto popular que é namorado da loira gostosa, burra e má…

Estava neste ponto, a boca cheia engolindo rápido, quando a viu. Ver mesmo já a tinha visto antes. Mas não tinha enxergado. A concha estava lá, no fundo do prato fundo. Com um pequeno marisco grudado nela. Atacou o cadáver cor de laranja com o garfo. A carne tão grudada que um pedaço continuou colado à parede de madrepérola. A textura era borrachenta, e o gosto de areia. Ficou furiosa com o marisco que ousava morrer sem lhe dar prazer.

A garota inteligente e feia estava sofrendo bullying agora, os livros inteligentes espalhados pelo chão, diante das pernas bronzeadas e expostas da garota popular, os óculos a um metro dela sem que conseguisse alcançá-los apesar de seu QI superior. Como um diretor que dizia gostar de cinema podia fazer o enésimo filme com o mesmo roteiro imbecil? E como ela podia assistir? E, pior, de algum modo gostar de assistir?

Mistério. Levou o prato até o lixo para limpá-lo antes de botar na pia que vivia entupindo. Ao posicionar o garfo para empurrar a concha rumo ao lixo orgânico, não pôde. Não conseguiu. Ficou ali, estática diante do cesto, olhando para a concha. Era bonita demais para misturar-se ao lixo do vizinho, ao lixo do caminhão de lixo, para queimar no aterro entre cascas de batata e bananas podres.

Sem perceber que perdia o primeiro beijo do garoto popular na garota agora menos impopular e quase bonita, levou a concha até a pia e lavou-a com cuidado, livrando-a dos restos alaranjados do cadáver sem gosto que começava a pesar na sua consciência. Molhada, a concha brilhava entre suas mãos.

O filme acabou, e o seriado com a polícia que ela gostaria de chamar de sua porque só sujava as mãos com neurônios começou, e ela continuava ali, de pé no meio da cozinha, olhando para a concha.

Até agora não sabe o que aconteceu. Revirou suas memórias filosóficas, suas pérolas de senso comum, os vãos empoeirados do seu cérebro. Nada. Não compreendeu. Sabe apenas que a concha era bonita demais para ser jogada fora.

Desde então está confusa. Não sabe mais decodificar o padrão do mundo. As referências se embaralharam. Perdeu as pistas para si mesma.

Leva a concha para aonde vai. E, quando tudo silencia ao seu redor, olha para ela. Sabe que a concha tem algo a lhe dizer. Mas não sabe o que é. Só sabe que ela é bonita demais para jogar fora. E que isto bota seu mundo inteiro de pernas para o ar.