Ateísmo

As noites na cidade pequena eram quentes. Desde que ganhou alguma consciência, com ela veio a sensação de que a cidade tinha paredes. Às vezes, como naquela noite, sentia que as paredes da cidade apertavam o cerco em torno de seu corpo de criança. E o calor aumentava, arrancando toda a água de sua pele. Tornava-se um planeta feito só de continentes.

Quando o sol baixava, derrubando toda a esperança, ela sentia o pânico apertar sua garganta. O pânico era um bicho que se enrolava em suas cordas vocais até que não havia como gritar. Sentia um medo de quase morte e se aconchegava no sofá da sala, com os olhos arregalados. À espreita. Tentando adivinhar quando o bicho das noites quentes a atacaria.

Devagar o ruído dos habitantes da casa ia se aquietando. E ela sabia que chegaria o tempo das horas eternas, quando estaria sozinha vigiando seu medo. A mãe a mandaria para o quarto. E ela agarraria mais uma vez o volume cinco das maravilhas do mundo e tentaria de novo e de novo apagar seu inferno interior com as neves do Himalaia.

Havia as noites piores. Nela, as baratas ignoravam as receitas de veneno caseiro sobre rodelas de pepino da mãe e penetravam em seu quarto pelas frestas. Apavorada, na cama, agarrada ao livro e estrangulada pelo bicho, ela ouvia o silêncio das baratas.

Se dormisse, elas entrariam pela sua boca e fariam um ninho em seu estômago. Um pouco a cada noite ela viraria, de dentro para fora, uma barata devotada a devorar os restos de seu antigo corpo. E ninguém perceberia porque ao amanhecer deixavam-se ofuscar pela luz do sol.

Ela podia sentir nos ossos as noites em que o buraco do mundo se aprofundava. E esta era uma delas. Se nada fizesse não ancoraria ela mesma na manhã seguinte.

Quando fechou a porta do quarto, ajoelhou-se no chão, cravando com força os joelhos no piso porque a avó garantia que deus ouvia quando havia dor. Apertou os olhos com força. Rezou com o fervor das beatas viúvas que via na igreja com véus negros sobre a cabeça.

Implorou a Deus que tirasse as baratas do quarto. Que a mantivesse a salvo. Só por aquela noite já bastava.

Ouviu o barulho das asas antes de abrir os olhos. Vrrrrrrrrrrrrrrr. Quis acreditar que Deus ouvira suas preces e lhe mandara um anjo exterminador. Não pôde mais. Abriu os olhos e a maior barata que já vira passou voando rente à sua cabeça. Sentiu o vento nos cabelos.

Daquele segundo em diante soube que estava só na máquina do mundo.