Barbie

No passado ela havia sido morena de olhos castanhos, rechonchuda e sem peitos. Ainda antes do passado, sua primeira lembrança era um não-ser. Nem mesmo parecia que tinha um corpo. Acreditava-se feita apenas do material etéreo das almas.

Olhava-se no espelho e o que via lá lhe era estranho. Quando comia, não era seu nem o estômago nem as papilas gustativas que habitavam uma língua estrangeira. Absorvia-se na contemplação do xixi como se fosse o terceiro segredo de Fátima. E o prazer era como um filme que se passava numa tela que não era ela.

Acabara de completar sete anos quando a professora da primeira série, uma freira de ímpetos progressistas, reuniu os alunos ao final da aula para a brincadeira da fita. Eles eram amarrados pelos pulsos uns nos outros, num laço intrincado, e precisavam encontrar um meio de se desamarrar.

Ela não queria se desatar. Ficou lá, assistindo a outra criança debater-se na ânsia de libertar-se de um pulso que diziam ser o dela. Perderam o jogo, e o sino do colégio tocou anunciando a hora de partir.

A freira pegou uma tesoura e a aproximou para libertar as alunas que transformara em gêmeas siamesas. Ela viu as lâminas apertarem um pedaço gordo da carne do seu pulso e nada disse ou fez, hipnotizada pelo que ia acontecer. Assistiu-as cortarem a carne, e o sangue jorrar, e as crianças gritarem, e a freira berrar.

E ela apenas ali, observando, até que uma dor aguda lentamente alcançou seu cérebro. Ela havia sido cortada. O cordão havia sido cortado. Ela existia.

A partir daquele dia, toda noite, depois que os pais e os irmãos se recolhiam, fazia pequenos furos na carne. Começava pelo pescoço e ia descendo até a cavidade entre os dedos dos pés. Pressionava até a gota de sangue emergir. Cortada, sentia-se íntegra pela primeira vez. Finalmente, ela tinha um corpo. A imagem do espelho reunia-se a ela.

Encarnara-se.

Quando chamaram a mãe à escola, foi para elogiar que da noite para o dia suas notas melhoraram. Tornara-se uma aluna participativa. Tinha até se oferecido para ser a árvore da Amazônia de uma peça ecológica. Papel triste, que ninguém queria, porque ao final a árvore era abatida por um machado.
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Por algum tempo ela pacificou-se naquele ritual secreto que a tornava dela mesma. Até que em uma noite particularmente quente, o irmão invadiu o banheiro com a playboy na mão e a viu se furando diante do espelho. As lâmpadas se acenderam no quarto dos pais, a cena que até então pertencia apenas a ela foi iluminada com luzes que a ofuscavam. No dia seguinte foi submetida a uma longa série de médicos, especialistas. Seu ritual agora tinha o nome de uma psicopatologia e páginas e mais páginas de interpretações elaboradas.

As tesouras, facas e objetos cortantes foram banidos da casa, para desespero da empregada, que era obrigada a picar maminha com uma adaga de plástico. À noite agora ela tomava meia dúzia de remédios de cores diversas, antes de cair num sono em que não tinha nem corpo nem alma. Voltou a desencarnar-se, fechada no silêncio ao qual são condenadas as testemunhas de um corpo alheio. Ninguém estranhava porque já estava tudo explicado pela medicina.

Quando se tornou adulta, descobriu que poderia pagar uma cirurgia plástica em parcelas de até dez vezes sem juros. Sua estréia foi uma rinoplastia, seguida logo depois por uma blefaroplastia, intercalada por uma abdominoplastia. Seguiu pagando uma mentoplastia com cartão de crédito, até que na 13ª intervenção se casou com o cirurgião plástico.

Desde então, ele determina as mudanças que deseja no corpo dela como um deus, cortando-a à imagem e semelhança de seus desejos. Como uma Eva de bisturi, ela está para sempre aquém e além do paraíso. Não só não foi feita de uma costela do homem, mas até mesmo duas de suas próprias costelas foram arrancadas para definir melhor o abdômen. Contemplada em seu mais poderoso desejo pelo homem que escolheu, ela é feliz.

Ainda que se encontrem mais na mesa cirúrgica que na cama, o deles é um casamento bem-sucedido como poucos. Quem os conhece sabe que vivem em serena rotina. Se existem almas gêmeas, eles as têm. Ao completar bodas de prata, o marido a presenteou com a quinquagésima operação. Desde então, os olhos com que se reconhece no espelho são orientais.

Ao que tudo indica, ela para sempre deixou de ser pária. Está perfeitamente integrada não só ao corpo mutante, mas ao seu tempo. Os pais e irmãos mal podem acreditar que aquela menina demente, que se autoflagelava no banheiro, transformou-se na mulher bem casada e eternamente jovem que os recebe com uma boca sorridente e cada vez mais carnuda em jantares sofisticados.

Mesmo quando a encontram estampada nas páginas de Caras, cada vez mais semelhante a uma das Demoiselles D’Avignon de Pablo Picasso, não passaria pela cabeça de ninguém considerá-la estranha. Não é a única a ter um olho escorrendo pela bochecha e o outro beirando a testa.

Até hoje, ninguém compreendeu que Barbie não dá a mínima para a estética. O que deseja são as cicatrizes.