Burca

Acordei em carne viva. Toquei minha pele, mas ela não estava lá. Me olhei no espelho e só vi as órbitas dos olhos e o buraco da minha boca por onde apontavam os dentes. Tudo em mim queimava. Não pelo contato do ar sobre a pele que não existia. Era um latejar de dentro para fora, em ondas que atingiam a superfície de mim. A dor alcançava a margem de mim e borbulhava como sangue invisível. Esbarrei na porta do armário que ele esqueceu aberta e não me feri. Eu estava sem pele, mas só sangrava por dentro. Precisava sair de casa para trabalhar e não queria. Tinha medo de que os de fora chegassem até dentro e me tocassem lá onde o coração desmancha. E se eu ficasse, se eu apenas desistisse. O mundo não seria afetado pela minha desistência. Eu apenas ficaria ali, no meio do caminho da minha vida, mas fora do caminho de todos. Apenas mais uma entre tantos que tombam espontaneamente todo dia porque a pele se desfez ao longo dos anos. Ou se esfarinhou em uma noite só, células epiteliais apodrecendo entre lençóis.

Mas havia ele e todos os outros que ainda se importavam comigo a me impedir de me enrolar na carne minha e finalmente dormir um sono sem sobressaltos. Abri as gavetas da cômoda e vasculhei até achá-la. Vesti a burca e desci pelo elevador com a moça do cachorro. Ela me olhou e baixou os olhos diante do meu não olhar. O cachorro latiu sem convicção para o nada de mim. Caminhei até o ponto de ônibus onde o meu eu escondido afastava a todos. Olha a mulher-bomba, disse um. A única bomba que há em mim explode há tanto tempo que nem sei dizer se havia um eu antes dela. A multidão não suporta não me ver. O policial vem e me pergunta da minha religião. Moço, eu não tenho religião alguma, mas queria ter. O senhor me empresta seu deus?  Ele não entende e então fica furioso pelo que eu não disse. Eu lhe estendo a carteira de identidade que exigiu e ele olha para a mulher que não existe mais em mim. Tire a burca, ele diz, para eu saber que você é você. Moço, eu estou vestindo uma burca justamente porque eu sou tão eu que ninguém vai acreditar em mim. Ele fica mais furioso e me avisa que vai tirar a burca à força. Agora já há uma multidão em torno de nós. A primeira pedra é atirada. Você vai ser linchada se não arrancar a burca, alerta o policial, agora bem nervoso. Não há pedra que me alcance, moço. Já tenho todas que cabem em mim.