Cemitério de carros

Ela tinha oito anos e brincava de esconder com os primos quando o guincho da polícia descarregou o carro morto. Foi a primeira a ser descoberta. Toda atenção voltada à operação que lhe anunciava um mundo perigoso e proibido. Você não está levando a sério, gritou a prima, incomodada com a obviedade de seu esconderijo. Ela não queria mais se esconder. Atravessou a rua e ignorou o capim alto que lhe cortava as pernas. Alcançou o esqueleto do carro, os ossos de metal retorcidos. Se ele pudesse gritar, gritaria tanto que toda a pequena cidade pararia. Mas estava morto, o carro.

Aproximou-se. Devagar, com medo de tocá-lo. Depois, diante da imobilidade dele, mais afoita, menos respeitosa. Então viu a vida dentro do carro morto. A metade de um pacote de bolacha recheada no estofado preto do banco traseiro. Ela também gostava daquelas bolachas. Ficou imaginando a menina da sua idade, lambuzando os dedos de sabor morango. Um segundo e estava morta. Talvez nem mesmo tivesse entendido. Só isso. O gosto de morango e o gosto de sangue que nem identificou.

Entre os dois bancos da frente, entalado no freio de mão, um sapato de salto. Seria da mãe da menina? Da madrasta? De uma colega de trabalho do pai? Ela aproximou-se mais. Agachou-se. E agora o capim roçava sua calcinha, o meio das suas pernas. O salto estava gasto só num lado, como se a mulher pisasse primeiro com o lado direito do pé. A tinta vermelha do bico esfolada. Teria ela dançado ou tropeçado quando ainda acreditava que a vida era para sempre? Muitos anos depois seriam estes detalhes que ainda a comoveriam. Tão desimportantes e tão vivos, os detalhes essenciais.

Chegou ainda mais perto, quase sentia o cheiro azedo do estofado. Uma mistura de plástico, suor e roupa usada demais. Encontrou o que procurava. Seguiu a trilha de sangue como João e Maria seguiram os miolos de pão. Ela, porém, sabia que se perderia. E queria.

Viu primeiro um chumaço de cabelos ruivos, grudados numa meleca que ela acreditou ser um pedaço de cérebro. O que passou pela mente do motorista ao perceber que os miolos seriam arrancados de sua cabeça e grudariam no para-brisa? Sim, porque ele entre todos saberia. Tinha de saber.

Agora tinha perdido todo o pudor. Farejava o chão como um pastor alemão da Polícia Federal em busca de cocaína. À primeira vista, parecia um daqueles brinquedos que o pai lhe havia trazido dos Estados Unidos, comprados numa loja de Halloween. Era branco, muito branco. Exaurido de sangue. Sobre o tapete embaixo do banco do motorista, poderia ser uma caneta que havia caído sem que ninguém desse por falta.

Mas era um dedo. Indicador, talvez. Ou médio. Um dedo que havia tocado coisas, acariciado, sido lambido. Um dedo que havia estado em muitos lugares. Como alguém esquece um dedo no tapete do carro?

Estendeu a mão para pegá-lo, mas antes de tocar a pele sentiu nojo. Levantou-se, de repente com medo. Mas o dedo apontava para ela. Ouviu então a voz da mãe, gritando no outro lado da rua. Era hora do almoço. A cada domingo, um dos muitos filhos da mãe tinha direito a escolher o cardápio. Aquele era o domingo dela. E ela tinha pedido estrogonofe.

Levantou-se e, quando pretendia correr, não pôde. De algum modo, o dedo não permitia que fosse. Ele estava ali, excessivamente imóvel, um pedaço humano esquecido demais para ser abandonado. Como ela poderia deixar um dedo no tapete de um carro morto? Venha comer, guria! Onde você se meteu?, gritava a mãe.

Sem dar tempo para o asco, ela agarrou o dedo e botou no bolso do vestido. Era frio e mais duro do que imaginava. Onde você estava?, perguntou a mãe, desconfiada. Fui ver o carro que a polícia deixou. Eu já disse que este terreno baldio é perigoso, que não é para você andar por lá. Só fui dar uma olhada, ela respondeu. Pela primeira vez não reclamou quando a mãe mandou que lavasse as mãos antes da refeição.

Você pediu e agora não quer comer?, embrabeceu a mãe, enquanto ela virava o garfo no prato sem levar o estrogonofe à boca. Então levou. E mastigou. E teve um pouco de náusea. Mas o gosto era bom. Será que boi tem dedo?, pensou. Nunca tinha pensado na carne do boi assim, esquecida no tapete do carro. Comeu rápido e correu para o quarto. Garanto que foi ler. Esta menina vive lendo, resmungou a mãe. Mas ela não ouviu.

Sentada na cama, tirou o dedo de dentro do bolso. Ali, no seu quarto amarelo, ele parecia menos assustador, quase cômico. A unha era roída, ela notou. E meio suja. Aquela morte entre suas mãos provocava calor entre suas pernas. Escondida no quarto, e o dedo a revelava.

Quando a prima a chamou para voltar a brincar de esconder, ela percebeu que tinha feito xixi nas calças. Muitos anos depois, continuaria sem compreender que verdade o dedo apontava.