Comer, rezar, amar

Alugara o apartamento pela internet. O site fora indicação de um amigo diplomata que servira em Roma. Patrício escrevia razoavelmente bem em português. E esta familiaridade da mesma língua dera a ela uma confiança. Era o sonho dela. Escrever um romance num pequeno apartamento de Roma, com o sol entrando pela janela junto com as eternidades da cidade dos Césares. Ignoraria o Papa. Nunca entendeu aquela frase: “Ir a Roma e não ver o Papa”. Para ela seria estranho ir a Roma e perder tempo com o Papa. Preferia ruínas vivas.

Levou uma semana para se decidir entre os apartamentos que ele lhe enviara por e-mail. Entrou nos links e reviu os vídeos de cada um dezenas de vezes. Se fosse você, qual escolheria?, ela perguntava a Patrício, como se ele fosse um velho amigo. Pega sol? A cama é boa? Veja bem, trata-se de um sonho. Ela achava que as pessoas ligavam para sonhos.

Escolheu um pequeno loft numa rua com nome de mulher, perto da Piazza Navona. Uma escolha racional. Gostou da vielinha deserta com um café no térreo que viu no vídeo da imobiliária. Imaginava-se tomando o café com os donos, a mulher lhe serviria um pedaço de bolo que acabara de fazer, uma receita de sua velha nona. Depois os deixaria acenando na porta para comprar 100 gramas de presunto Parma e uma garrafa de Chianti na mercearia da esquina.

Chegou assim na estação Termini. Um táxi a deixou no café simpático enquanto esperava o moço da imobiliária. Patrício havia dito que um funcionário chamado Pablo a esperaria à uma da tarde. Os donos do café simpático não entendiam o seu italiano. Nem eram simpáticos. Atrapalhada, ela acabou pedindo uma cerveja em vez de um capuccino. Pablo apareceu dez minutos depois da hora marcada. Com uma cara fechada. Disse que era argentino de Buenos Aires, vivia em Roma há um ano. Se tivesse algum problema, era para falar com ele. Não com Patrício. Só com ele. Disse que não precisava explicar nada do apartamento porque tudo era “muy sencillo”. Só depois ela percebeu ter assinado um papel sem ler, atarantada com a dureza da recepção. De repente, a diferença do fuso horário pesava como algemas.

Quando Pablo a deixou sem se despedir, descobriu que estava no que deveria ter sido o porão de um prédio medieval. Uma masmorra, talvez. Lá no alto havia uma janela gradeada, mas não conseguia alcançá-la. Abriu um pouco dela para arejar por meio de um pedaço de pau comprido. A luz do sol mal esbarrava nas grades. Sentiu a claustrofobia de criança cravando unhas mofadas no seu coração. Agora que se sentia desprotegida no velho mundo.

O pior eram as chaves da porta. Havia duas, mas ela só recebera uma. A mais simples. Sempre tivera problemas com chaves. As portas de todos os seus apartamentos tinham muitas fechaduras. Só se sentia segura depois de checar três vezes se todas tinham sido trancadas e estavam na sua mão. Só então conseguia dormir. Com uma luz acesa na cabeceira. E agora se encontrava ali, com uma chave só. E a outra, onde andaria?

Xingou a si mesma. Elizabeth Gilbert, a autora de Comer, rezar, amar, com certeza não se intimidaria. E por isso havia ficado rica, famosa e ainda tinha encontrado um grande amor. Ela era adulta. Ou não era? Não fazia sentido tudo isso. Tinha alugado um apartamento em Roma e estava assustada como uma menina de cinco anos. Era uma mulher agora. Uma escritora. Tinha um sonho. E o faria acontecer.

Pegou a mochila e partiu em busca de uma mercearia nas redondezas. Encontrou um pequeno supermercado. Tentou puxar assunto com o moço que lhe cortava cem gramas de mortadela. Ele não sorriu. Escolheu alguns pacotes de sopas de microondas. Sim, lembrava que tinha visto um num canto do apartamento. Um suco com aquela laranja vermelha de que gostava. Uma barra de chocolate branco. Pretendia rever Cinema Paradiso no computador antes de dormir. Combinava com uma barra de chocolate branco. A caixa do supermercado não respondeu ao seu bongiorno. Jogava suas compras no balcão como se fossem ratazanas. Disse que não tinha troco para sua nota de 100 euros. Ela sentiu vontade de chorar, mas era adulta. Fechou a cara e não falou grazie. A italiana não dormiria naquela noite.

Decidiu encher a pequena banheira e relaxar lendo um livro. Descobriu que só saía água fria das torneiras. Desta vez, chorou. Prendeu a respiração e molhou o corpo inteiro. Depois se ensaboou. Enxaguou o corpo pensando que precisava emagrecer. Era curioso como a verdade se revelava quando se mudava de cenário. De repente estava ali, uma mulher de meia-idade, acima do peso. Com um sonho.

Emagreceria na volta. Enquanto se enxugava com uma toalha gasta, concluiu que, afinal, banho frio fazia bem para a saúde. Tinha um amigo que só tomava banho frio, mesmo no inverno. Ela poderia adotar isso. Sentia-se revigorada quando deitou na cama com seu computador e a música de Ennio Morricone encheu o apartamento lambendo a sua alma. Agora sim estava parecido com um sonho.

O padre tocava o sino violentamente enquanto o casal se beijava na tela. O sinal para Alfredo cortar o fotograma na fita. Totó espiava pela cortina. Ela ouviu alguma coisa. Não queria ouvir nada. Totó pedia a Alfredo que lhe ensinasse a mágica dos filmes. Ela ouviu de novo. Agora não poderia ignorar. Apertou a tecla pause. Caminhou descalça, com um pouco de nojo. Ela era assim, a casa que não era dela a contaminava. Não ouviu mais nada. Nem viu nada estranho. Voltou para a cama.

Totó agora levava uma surra da mãe porque os restos de película que escondera numa lata debaixo da cama tinham pegado fogo e quase mataram sua irmã caçula. O fogo da tela iluminou o medo dentro dela. A porta. Nem apertou a tecla pause. Correu até a porta sem se preocupar com a pedra suja sob os seus pés. Tentou puxar o trinco. Nada.

Estou nervosa. Devo ter eu mesma me trancado. Ofegante, chaveou de novo. E deschaveou. Um arrepio embaralhou suas tripas. Sentiu aquele gelo no cérebro de quando o medo não é mais além da imaginação. Alguém a tinha trancado por fora. Caminhou de volta para a cama. E de volta para a porta. Ficou alguns minutos assim, sem saber o que fazer. Ainda com vergonha de gritar. Será que ela, sempre tão contida, sabia gritar? Lembrou que quando o homem no cinema tinha agarrado o peito que não tinha aos 11 anos ela não tinha conseguido gritar. E não gritou até o suspiro final dele. É curioso como algumas coisas assomam na cabeça… Ela estava trancada num porão reformado num prédio medieval da cidade eterna. Só podia ser pegadinha. Claro. Riu um riso nervoso. Era a rata da ratoeira que veio atrás do parmigiano-reggiano e virou linguiça.

Olhou para a janela gradeada lá no alto. Descobriu que podia gritar. Começou a berrar e a esmurrar a porta. Sabia que havia apartamentos em cima do seu. Não tinha visto ninguém entrar no prédio além dela, mas sabia que existiam, vislumbrara luz numa janela. Quebrou uma cadeira na porta. Agora estava furiosa. Quebrou um objeto atrás do outro. O ponteiro do relógio já tinha virado meia-noite e nenhum barulho externo entrava pela janelinha do alto. Lá longe, bem longe, uma sirene. E mais nada.

Na tela do computador, o Cinema Paradiso pegava fogo quando ela sentiu o cheiro de queimado.