Meu primo Gilvan sempre foi considerado uma criança meio avoada, mas sem dar maiores preocupações à família que tinha outros dois rebentos bem mais ativos para cuidar. Foi só neste veraneio que vi minha tia Jurema torcer a boca, sinal pouco alvissareiro. Esta minha tia sempre torce a boca, formando uma espécie de triângulo com o lábio inferior, quando precisa dar uma notícia que está salivando para soltar, mas ao mesmo tempo precisa fingir um certo pesar. “O Gilvan está emaconhado.”
Tentei não ofender a solenidade dela. E com todo o tato garanti que maconha não é uma droga pesada, até mesmo Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da República, sociólogo e tudo o mais, anda defendendo a liberação. Não adiantou muito. Minha tia Agnes, que jogava buraco com tia Jurema, garantiu que a prima da manicure da dona da quitanda tinha um sobrinho que conhecia um cara que havia entrado no supermercado do jeito que veio ao mundo depois de ter injetado uma maconha braba. De nada adiantou, novamente, eu jurar pela vida do meu pai e da minha mãe e do meu louva-a-deus de estimação que maconha não se injetava. Elas apenas torceram mais a boca. Quando querem que eu escreva uma carta desancando a secretaria de obras por causa dos buracos da praia, eu sou a pessoa certa. Afinal, é para isso que serve jornalista formada. Mas sobre emaconhamento, me consideram destituída de credenciais. Nem sei se tu também não experimentaste o tóxico, me dizem, com suas caras de fuinha. E falam “tócchhco”.
Esqueci o assunto até ser convidada a almoçar na casa da tia Solange. Este é o problema de famílias que veraneiam unidas na mesma praia do litoral gaúcho varrida pelo mar aberto e pelo Nordestão. Um dia você é varrido junto quando chega uma intimação verbal que não aceita negativa para almoçar na casa do Cristo da vez. Sim, porque as praias têm Garota Verão, Miss Atlântico Sul, coisas do gênero. Mas famílias têm Cristo Verão 2011. E, claro, é preciso exibir a faixa em público até para alguém considerada meio da pá virada como eu, que já acumulou troféus em verões de antanho. E o Cristo deste verão é o pobre do meu primo Gilvan, o emaconhadinho.
Fazia tempos que eu não via esse primo, agora que moro para as bandas de sumpaulo, como eles dizem. E não é que Gilvan me surpreende muito positivamente? Deitado na rede, ele exibia um sorriso tímido e lia um exemplar de O Apanhador no Campo de Centeio tão surrado que com certeza não era a primeira vez que ele o usava como escudo contra as hostes familiares. Me comovi quase às lágrimas, eu que fiz meu PhD em defesa contra as artes das trevas familiares naquele mesmíssimo clã.
Me ensaiava para puxar um papo com ele sobre o livro quando tia Solange bateu o sino da macarronada. E se a gente não corresse e a macarronada passasse do ponto, aumentaríamos em anos nossa estadia no purgatório. Sim, porque tia Solange ainda nem se recuperou da abolição do limbo para crianças não batizadas. Papa frouxo, costuma dizer ainda hoje, de Bento XVI.
Portanto, corri. E praticamente aterrissei numa nádega só na cadeira. E lá estou, toda feliz, enrolando o espaguete no garfo, quando ouço o meu nome citado pela gárgula da minha tia. Gilvan, ela diz, sua prima jornalista de sumpaulo está aqui para te falar dos malefícios da maconha. Meu espaguete escorregou para o meu colo e depois para o chão onde eu me enfiei embaixo da mesa para procurá-lo, mas a maldita cadela achou antes de mim. Tentei ainda encontrar o buraco da Alice, mas só achei um pedaço semidecomposto de cenoura e nenhum coelho.
Tia Solange, eu não tenho a menor condição de falar sobre a maconha, emergi. Pelo amor de Deus, não me coloque nesta situação. Too late, o furdunço já estava armado. Eu não acredito que você trouxe a prima aqui para me constranger, gritava Gilvan. Eu juro que vou embora desta casa. Ué, está com vergonha de puxar fumo agora?, provocou o irmão mais velho, uma criatura que eu francamente detestei desde os primeiros passos, sempre catarrento e fazendo maldades com todos os cães sarnentos que mancavam pelas ruas. Ele acha que com um béqui consegue se enturmar com as periguetes da praia, alfinetou a irmã, cuja boca era a única espinha móvel do rosto. Olhei para o meu tio, que enrolava e desenrolava o espaguete no prato como se disso dependesse a solução para a camada de ozônio.