Estou ali, tomando meu chimarrão e admirando a vista de São Paulo pela janela. Três prédios cinzentos e um viaduto engarrafado. Lindo. Ouço os passos dele atrás de mim. Me viro com um bom-dia pendurado nas cordas vocais. E estanco. Ele tem cara de enterro. Será que fiz algo condenável durante a madrugada? A noite passa inteira em um segundo pela minha mente. Nada que eu lembre. Alguma má notícia pelo celular que eu não ouvi? Melhor perguntar. O que aconteceu? E ele diz, um travo de choro na voz. “O polvo morreu.”
Fiquei olhando para ele com um ponto de interrogação na testa enquanto tentava lembrar quem era o polvo. Não, não havia nenhum amigo com apelido “Polvo” no meu disco rígido. Quem era o polvo? Percebo agora a complexidade quase irrespondível da minha pergunta. “O polvo!”, ele diz, ofendido. Não bastava ter morrido, já era esquecido. Que polvo?, agora estou nervosa. “O povo Paul, ora!”. Caralho, quem é este tal de polvo Paul? Eu falo mais palavrões que um caminhoneiro. Então pesco uma fagulha de memória num canto do cérebro. O da Copa do Mundo? “Que outro seria?”, ele responde indignado.
Fico muda. Tínhamos acabado de voltar de viagem e ele pedira salada de polvo em todas as oportunidades. Se perguntarem para ele qual é o seu prato preferido, polvo assado, frito, refogado, empanado, no espeto, recheado… estará em seu top five. É exatamente o que lembro a ele. Ele faz cara de culpado. Mas recupera-se rapidamente. “Mas não é o Paul.” Sim, eu entendo. Paul, o polvo vidente, se particularizou, ganhou nome, personalidade, atributos humanos e até divinos. É como no caso dos mineiros do Chile. Milhares de mineiros no mundo inteiro padecem em condições indignas em minas insalubres e morrem mais cedo das doenças causadas por elas — e ninguém liga. Mas os do Chile levaram multidões às lágrimas. Viraram heróis enquanto os colegas continuam e continuarão morrendo no anonimato.
Eu começo a fazer este discurso, mas ele me interrompe. “Por favor, será que eu posso sofrer em paz pela morte do Polvo Paul?” Sim, agora é “Polvo Paul”, praticamente nome e sobrenome. Percebo então que ele realmente está sofrendo com a morte do Polvo Paul. Por amor, esqueço minhas convicções e arrisco um ele-morreu-de-que (?) bem compungido. “Tudo indica que de morte natural.” Ah… eu digo, por absoluta falta do que dizer. E ele volta para o quarto. Para chorar, provavelmente. Eu retorno ao chimarrão e à paisagem paradisíaca.
Para minha surpresa, começo a pensar no Polvo Paul. Sinto até um beliscão no peito pelo Polvo Paul. Tão jovem, penso eu. Será que era jovem? Ligo o computador e começo a gugar. Polvo Paul tinha dois anos e meio. Me parece pouco, mas entro num site sobre cefalópodes. Sim, dois anos e meio parece ser uma idade em que os polvos morrem de velhos. Que horror! Pobre Paul! Assim sendo, faço um cálculo rápido, ele gastou quase 5% da vida dele adivinhando o placar da Copa do Mundo. Pode parecer pouco, mas não é de jeito nenhum. Imagine alguém que viva até os 70 anos, um pouco menos que a expectativa de vida dos brasileiros. Cinco por cento são três anos e meio. Pense no que fazemos e no que acontece em três anos e meio! Sim, Polvo Paul teve a vida roubada. Ainda que pop star, uma vítima do capitalismo. E da cartolagem internacional. E num aquário! Tenha dó.
Tornei-me uma obcecada pelo Polvo Paul. Rastreio notícias sobre ele na internet noite e dia. Tenho certeza de que algumas são cifradas. Há muito mistério em torno da sua vida. A começar por uma disputa em torno do local de seu nascimento. A comunidade italiana Marina Di Campo, da Ilha de Elba, garante que ele foi pescado lá, em suas águas azuladas, quando ainda era um bebê. E já lavrou um registro de nascimento em bom italiano. (E tanta gente implorando por uma cidadania italiana!)
Polvo Paul será nome de rua, garantiu o prefeito. “Ainda não se sabe o que escrever na placa: ‘Rua polvo Paul, adivinhador’ ou ‘Travessa polvo Paul, infalível adivinho de eventos esportivos’”, relatou a administração em uma nota à imprensa. Já está decidido que a placa será bilíngue — inglês e italiano — e que será colocada na rua que liga a praia de Marina Di Campo com a de Porto Caccamo. Segundo algumas investigações iniciais, seria lá que Polvo Paul teria passado os primeiros dias de sua mais tenra infância. No caso dele, tão tenra que dá água na boca.
Entre seus despojos foram encontrados uma camisa da seleção espanhola e uma placa de “Amigo Predileto” da cidade espanhola de Carballino, na Galícia. O prócer municipal, Carlos Montes, acompanhado por autoridades locais da referida comunidade, havia entregado pessoalmente a homenagem ao Polvo Paul logo depois de a Espanha ter se tornado campeã com acertadíssima previsão do ilustre vidente. Agora, Montes reivindica os restos mortais do “Oráculo da Copa do Mundo” para construir o “Museu do Polvo”. Sim, o polvo também é espanhol. Na verdade, um cidadão europeu, quiçá do mundo. Uma mente oracular e cosmopolita, ninguém duvida. Muito menos eu.
Que homenagem edificante e merecida, penso eu, com lágrimas nos olhos. Então… bingo. Eu sabia! Começam agora as primeiras incertezas sobre a sua morte. A cineasta chinesa Jiang Xiao, que faz um filme sobre a vida do mais ilustre molusco da história, garante que ele morreu dois dias antes do final da Copa. “Eu investiguei muito e sei do que estou falando”, ela afirma. E continua, implacável como só as filhas da China conseguem ser: “Eu estou 60% a 70% convicta de que Paul morreu em 9 de julho e os alemães estão encobrindo isso desde então”. Sempre fico confusa com o raciocínio que levou a estes precisos “60% a 70%…”, mas relevo. Pelo Polvo Paul. Senhorita Xiao já tem título para o seu filme: “Quem matou o Polvo Paul?”.
Quem? Who? Wer?
Quem então adivinhou a vitória da Espanha sobre a Holanda? Mais um mistério. O que teria sido feito do dublê naquele aquário de Oberhausen, nas mãos daqueles assassinos de invertebrados? “Meu deus, será que eu comi?”, diz meu marido, quase vomitando o Toddy. Não, não, estávamos longe. Mas alguém comeu. Meu marido vomita o Toddy.
Viu como este mundo é, eu digo. O Polvo Paul vai ter até um filme porque virou celebridade instantânea e ninguém liga para o destino do coitado do dublê, para o mundo tanto faz se virou salada ou picadinho. Sou muito preocupada com os pobres e oprimidos de qualquer espécie, não faço distinção. Anuncio então para meu marido. Tinha passado parte da noite de insônia pensando nisso. Vamos batizar o corredor do nosso apartamento, que liga o quarto à sala, de “Corredor Polvo Paul”. E com um adendo: “Homenagem ao dublê desconhecido”. Pensei que ele ia adorar. Mas meu marido me olha de um jeito estranho.