Não fale com as plantas! (ela gostaria de ter escrito, em sua lápide)

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Tudo ia muito bem, tudo ia muito bom. Eu acordava pela manhã, espichava meus braços sedosos ao sol em movimentos lentos. Devotava meus dias a essa carícia repetitiva e sem pressa. E, menina de apartamento, sem saber de florestas, eu não me incomodava em vez por outra bater o rosto na janela. A água chegava em dias certos, duas vezes por semana, suficiente porque eu nunca fui desperdicenta. Limitava-me a sugar o suco da terra com deleite e me distraía com uma ou outra abelha se estatelando no vidro sem poder entrar na minha concha de donzela. Ignorante dos prazeres do sexo, eu apenas me divertia com a ansiedade rústica de meus pretendentes. Uma vez por ano, ou até duas, dependendo do meu humor, eu fazia uma flor rosada que enlouquecia a vizinhança por algumas semanas. E, depois, voltava à nudez habitual em meu reino pequeno e circular, mas todo meu.

Assim foram passando os dias, ao que parecia para sempre, quando dei um salto. Em pensamento, porque meus movimentos são tão lentos que alguns acreditam que nem me movo. Estava eu fazendo uma fotossíntese relaxante quando ouvi um som que congelou minha seiva. “Queriiiiiiiiiida, como está você neste dia ensolarado?”

Olhei para um lado, olhei para o outro. Meus vizinhos se faziam de mortos. Uma violeta, que parecia uma viúva de velório, e uma comigo-ninguém-pode com complexo de capitão Nascimento. De novo olhei para um lado, olhei para o outro. Era comigo.

E a voz de serra elétrica continuava. Foquei meus olhos estrábicos num ângulo totalmente novo, já que eu sempre olhava para fora, jamais para dentro. E lá estava um ser estranhíssimo, com um chumaço de um vermelho berrante no topo, parecendo uma flor de cardo, e dois galhos compridos que se mexiam sem parar e terminavam em pontas de um cor-de-rosa que eu nunca havia visto nas redondezas. Mas o mais assustador era um buraco cheio de espinhos brancos pelo qual saía uma voz que agora me dizia: “Óin óin óin como a minha queridinha está linda toda florida”.

Oi?

E foi assim, senhoras e senhores, que minha vida começou a murchar. A tudo a gente se acostuma quando não dispõe de muita mobilidade. Mas vocês não queiram saber o que é uma voz falando e falando e falando sem que você possa empreender uma retirada leão da montanha. Ou simplesmente sair sapateando para a esquerda até estar a uns 100 quilômetros de distância. Mentalmente eu imaginava torturas terríveis para calar aquela voz. Desejava enfiar um saco de minhocas frescas naquela boca até que ela se engasgasse e morresse. Mas, impotente, eu nada podia fazer.

“É a nossa dona”, sussurrou a comigo-ninguém-pode uma manhã, em que eu estava particularmente desesperada. Que dona, meu amigo? Pirou? Eu só sou uma flor num vaso. Quem tem dono é cachorro!

O ser aparentemente concordava comigo, já que dizia: “Dá um sorriso pra mamãe, sua fofolete!”. Mas eu não poderia compreender o conceito de mãe. Mesmo assim, descobri depois, era bastante precoce neste aspecto, porque imediatamente eu quis matá-la. Mas, pobre de mim, com que braços? Eu havia sido feita para beber água, fazer a minha fotossíntese, abrir uma flor de tempos em tempos. Tinha vindo ao mundo que nem o poeta, distraída.

Logo, ela não apenas falava comigo, como começou a me contar a sua vida. Lembro bem. Era um dia chuvoso, e eu não gosto muito de dias chuvosos, porque quando você mora dentro de um apartamento, é possível sentir o sol, mas não a chuva. Então, dias chuvosos podem ser tediosos. Aquele não foi, e eu desejei que tivesse sido. A vida é assim, a gente nunca sabe que era feliz até ela piorar. Ops, tô repetindo uma das frases dela. Ahhhhhhhhh!

O fato é que lá estava eu, curtindo uma melancolia básica, quando, não mais que de repente, estremeci:

— Meu amor, eu vou te contar que tipo de pessoa eu sou…

De novo, olho para um lado, olho para o outro, a violeta de defunto até tinha virado de costas. Era comigo. Por que eu, meu deus do céu? Eu por acaso tinha sido um gafanhoto em outra vida pra merecer esse carma? A voz continuava…. estridente.

— Eu sou uma pessoa…

E assim foi, dia após dia. O ser me contava seus almoços na firma, como a vagabunda que trabalhava ao lado dela mostrava os peitos pro chefe pra sair mais cedo, o que o fulano-disse-e-ela-que-não-levava-desaforo-pra-casa-retrucou, e até, não sou capaz de reproduzir aqui, a não vida sexual dela. Nunca mais pude olhar para aquela abelha operária que batia no vidro do mesmo jeito. Então é isso que você quer de mim, sua pervertida?

O fato é que meu mundo caiu, mas eu não conseguia me derrubar da janela por mais esforço que fizesse. Bem que tentei me jogar lá do oitavo andar, me deslocando toda para fora de modo a desequilibrar o vaso, que agora tinha se transformado em prisão. Mas acabei descobrindo que levaria um milhão de anos. Então, tentei o sentido contrário. Passei a fugir do sol, na esperança de não conseguir mais fazer a fotossíntese.

O imprestável do meu organismo, porém, foi treinado ao longo de milhões de anos de evolução para funcionar contra a minha vontade. Bastava eu dormitar um pouco e quando despertava, de susto, lá estava eu sugando a terra e o sol à revelia de mim. Um paradoxo filosófico, você poderia pensar, mas de nada vale a filosofia quando você não tem nenhuma dúvida, nada, apenas a certeza de que a única saída é o suicídio. Mas como?

E assim foi se arrastando o tempo, com a coisa me torturando dia após dia.

— Olha, só, pitoquinha, troquei o esmalte! Esse aqui se chama Paixão Selvagem.

Grata pela informação.

Me enche de bala, seu capitão Nascimento de araque, eu gritava para a comigo-ninguém-pode. Em vão. Xingava a coisa, mas ela não me enxergava. Vá comprar o dicionário do Werneck, sua clichê ambulante!, eu gritava. Mas tudo o que interessava a ela era a minha imobilidade.

Uma tarde a ouvi dizer para uma outra coisa, fora do meu campo de visão.

— Não vê como ela está bonita? Eu comecei a conversar com ela, e ela desabrochou. Essa aqui, se você quer saber, é a minha melhor amiga. Não tem inveja, não trai, não cheira mal, não exige nada a não ser esse carinho que eu dou pra ela. Comece a falar com as suas plantas, você vai ver… é uma terapia.

Não!!!!! Eu gritei de novo, mas ninguém me ouviu. Ninguém nunca me ouviu. Eu estou péssima, dona coisa, mal paro em pé. Sou só caule e olheiras. Perdi todas as folhas e faz meses que não abro uma flor, você não vê? Tudo o que eu espero é que um fungo acabe de vez com minha existência miserável.

Mas a morte pode levar tempo demais se você continua sendo alimentada — e suas raízes o traem. Então, um dia, quando ela abriu a boca para me contar sobre o joanete da vizinha, aconteceu. Alho, ela comeu uma pizza de alho.

Foi meu último pensamento neste mundo.