O dilema da “batatinha”

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Da plateia, alguém me faz uma pergunta. Não sei se ela ou ele, porque vem num pedaço de papel não assinado. Quer saber como eu lido com as histórias reais que conto, muitas delas brutais, na minha vida pessoal. Explico que ser repórter é se confrontar dia após dia com a impotência. Contar uma história real é algo grande, enorme até, mas, ao mesmo tempo, sempre aquém. E, como sou uma contadora de histórias, exemplifico com o testemunho recente da fome de uma menina e sua família em uma das regiões mais pobres da já bem pobre Bolívia. Aquela fome que não mata, mas tortura, dia após dia. Aquela fome em que sua vítima nunca teve a sensação, tão comum para a maioria de nós, de estar saciada. Aquela fome que não é nem mais uma fome, mas uma vida.

Aquela fome que eu testemunhei era assim: as pessoas só comiam batatas cozidas na água, às vezes sem sal, dia após dia. E havia os dias piores, que eram os dias sem batata.

A história é densa — e não cabe aqui. O fato é que eu contei esta e outras histórias da vida de repórter e depois fui para a sessão de autógrafos dos meus livros. Lá da mesa, reparei naquela mulher pequena, levemente roliça, com uns olhos que tentavam fazer contatos de terceiro grau com os meus. Percebi que ela deixava as outras pessoas passarem na sua frente. E, quando a fila ficou menor, pude ouvi-la:

— Pode passar. Eu preciso falar com a autora em particular.

Gelei. Eu já estava um pano de chão depois de falar durante horas. Mas leitor é leitor. Se ela precisava ter um particular comigo, deveria ser coisa muito séria. Talvez alguma história escabrosa que ela queria me pedir para investigar. Alguma seita nazista nos fundos do Rio Grande ou uma célula da Al-Qaeda em Carazinho. Ou algo mais íntimo, mas não menos apavorante, como o abuso sexual de meninas no colégio de freiras em que dá aulas. Não sei por que, mas tinha certeza de que ela era professora.

Não conseguia mais me concentrar no texto dos autógrafos — justo eu, que faço questão de caprichar. Mas já estava reduzida a algo como “um abraço da….”, porque estava paralisada pelo olhar angustiado da mulher que ia ficando para trás. Olhando mais de perto, eu já sentia que ela esperava que o particular comigo pudesse salvar a vida dela. E talvez a minha. E se eu não pudesse corresponder a tanta expectativa? Uma expectativa tão oceânica não poderia jamais ser satisfeita, eu já me deprimia, impotente como um espermatozóide manco. E o pior: ela não tinha nenhum livro na mão.

Pensei em escalar a parede de compensado e sair correndo pelos fundos, mas leitor é leitor. Eu não poderia decepcioná-la. Passaria o resto da minha vida com aqueles olhos suspirosos me assombrando à noite. E eu já tenho insônia o suficiente. Mas, pior, muito pior, nunca saberia, afinal, do que se tratava aquele particular. Nem vocês.

Então, finalmente, a fila acabou. E lá estava ela me pegando pelo braço e me levando para um canto. Eu cada vez mais tensa já sentia o suor porejando entre as sobrancelhas. E precisava desesperadamente fazer xixi. Cinco horas tomando água e café e nenhum xixizinho. Ninguém pensa nessas coisas, mas não poder fazer xixi em qualquer canto é uma tortura que nós mulheres vivemos no cotidiano. Pensei no deserto do Saara e resisti. Abri então um sorriso pampeano e tasquei:

— Pode perguntar.

E ela, toda segredosa:

— Eu queria saber por que você ficou tão chocada com a batatinha.

Não entendi a princípio. Claro que eu não entendi.

— Que batatinha?

Vasculhei o cérebro em busca de alguma referência. Mas ela era uma mulher objetiva:

— A batatinha que a menina comia todos os dias. Não é da cultura deles comer batatinha? Não entendo por que você ficou tão chocada. Os nordestinos não comem farinha? Pois ela comia batatinha.

Preciso admitir. Não sou nenhuma santa. Me esmero para ser uma pessoa melhor, mas tenho uma coleção de defeitos. Se o céu existe, porém — e tenho escassas esperanças nesse sentido —, eu começava a somar alguns pontos.
Depois de horas de exposição, eu, que sou praticamente um tatu-bola, precisava muito entrar para os meus interiores e ficar enrolada num cantinho. E a bexiga ali, fazendo ola. Mas senti que, para ela, a “batatinha” era mesmo uma questão. E ela queria com sinceridade compreender meu dilema.

Expliquei então que, sim, batata era ótimo, eu mesma adorava. Batata frita, suíça, na manteiga, sauté, com maionese, purê e, principalmente, ensopada. Infelizmente, porém, batata não é o suficiente para manter uma vida sem fome. (E secretamente desejei a ela uma vida de batatas na água e com dias sem batata. E perdi meus pontos para o céu).

— Hum —, ela fez.

E eu já ia pegando a minha bolsinha…

— É que eu não entendo, sabe. Com tanta fome no Brasil, por que se preocupar com a fome da Bolívia? Ou daquele país da África em que as crianças estão morrendo, como é mesmo o nome… Somália!

Escalei o compensado. Decidi entrar no céu na marra. Nem que fosse para fazer xixi.