O mal-estar

Acordou atrasada, como acontecia quase todo dia. A sensação incômoda de que o tempo lhe escapava, agarrada às pernas das horas que dobravam a esquina. As roupas se acumularam na cama, uma em cima da outra, como mortos. A imagem no espelho não combinava com seu corpo. Bateu a porta com o desconforto de ser um tamanho menor do que deveria ser embora tudo nela apertasse. Chegou ofegante ao trabalho e sentou-se diante do computador para checar e-mails que nem eram para ela. O escritório já estava cheio, o barulho familiar que produziam juntos a cada manhã. Neste momento, sentiu que algo um pouco diferente, um pouco pior, estava acontecendo com ela. A colega virou-se para conversar e ela sentiu medo. Sabia que a colega era inofensiva. Ou tão inofensiva quanto alguém podia ser. Mas sentiu pavor não da colega, mas de estar ali, no meio de tantos, os rostos lhe assustando porque os conhecia. Não queria mais que olhassem para ela, que falassem com ela, que tentassem tocá-la. Ela nem mesmo conseguia estar dentro do seu corpo. Que agora parecia feito de papel. A qualquer momento alguém a rasgaria com uma unha, a amassaria e a jogaria no lixo.

Juntou suas coisas do jeito que pôde, jogou tudo dentro da bolsa, desligou o computador e pegou um táxi. Não tinha dinheiro para isso, mas não seria capaz de se enfiar num ônibus. Tinha medo do ônibus, do motorista, do cobrador, das pessoas, das ruas antes do ônibus. Agora, até o ar que respirava parecia penetrá-la, envenená-la, enchê-la de externos. O motorista tentou uma conversa sobre o tempo, mas ela não enxergava o sol. Estrangulada por neblinas, não era capaz de conversar. Tinha medo das palavras, até das suas.

Quando o táxi parou diante do prédio deu uma nota de cinquenta reais sem esperar o troco e subiu os cinco andares pelas escadas porque teve medo de encontrar alguém no elevador. Arrancou toda a roupa e a deixou amontoada num canto do banheiro. Queria lavar alguma coisa que estava ali. Mas o banho a deixou tão suja como antes. Não queria mais vestir aquela carne que doía. Queria poder se exilar do corpo e não habitar lugar algum. Deveriam existir pílulas de não existir, pensou. Apenas por um tempo.

Agarrou a cartela de comprimidos para dormir que a médica havia receitado e contou. Quatro comprimidos. Era o suficiente. Não para se matar, ela não queria se matar. Ela só queria não doer. Botou seu pijama da Hello Kitty com mãos de parkinson, um suor frio cobrindo o rosto como um creme antirrugas. Se enfiou embaixo do edredom e tentou engolir os quatro de uma vez só. O último lhe arranhou a garganta e depois desceu. Ela ainda doeu por um tempo. E então nada.

Acordou no outro dia, com as horas só um pouco na sua frente. Tinha os olhos nublados e um estômago de alto-mar. Em vez de tentar vomitar, tomou um iogurte com uma colher de sopa de farinha de linhaça dourada. Descartou o vestido e se enfiou na calça com camisa. Pegou o ônibus e chegou ao escritório no tempo de todos. Assim que conectou o computador, enviou um e-mail para o chefe: “Desculpe, uma tia muito querida morreu de repente, ontem, e tive de atender a minha mãe, que não passava bem. Tentei avisar, mas meu celular ficou sem bateria e só consegui carregar depois do enterro. Espero que compreenda. Abs.”.

Passou o dia recebendo condolências.