O homem não chegava a ser bonito. Mas tinha uns olhos impressionantes. De um azul absoluto. Quando se conheceram no balcão do bar descolado de São Paulo, ela só conseguiu ver os olhos dele. Muito tempo depois, quando aquela noite era apenas uma lembrança incômoda que emergia em sua memória em madrugadas de silêncio, ela ainda não sabia dizer como eram os traços dele. Dentro do seu cérebro havia apenas aqueles olhos que se abriam tomando conta de tudo. E quando as amigas perguntaram no dia seguinte como era ele, achando que podia ter inventado aquela noite, ela só era capaz de dizer: tinha olhos azuis.
Ele havia ligado um dia antes, um estrangeiro na cidade, a quem uma amiga comum havia dado seu telefone. Ela também era estrangeira na cidade que não era dela, ela mesma apenas um clichê da moça para quem a cidade pequena havia ficado pequena. Foi ao encontro dele sem muita expectativa, quase com preguiça. Ela ainda era jovem e os homens gostavam dela, o que não a incluía na lista de mulheres que fazem qualquer coisa, inclusive sair com um estranho, para se sentirem desejadas. Ela aceitara o encontro em consideração à amiga que havia passado seu telefone. Sexo seria um efeito colateral que podia ou não acontecer.
E, ao vê-lo, ela achou que não deveria acontecer. Não porque ele não fosse interessante, mas por causa dos olhos. Quando disfarçadamente ela tentou olhar para a pele dele, só conseguiu perceber que era branca. Vislumbrou que ele era magro, mas musculoso. Aquele tipo de força perigosa, que à primeira vista não se sabe que está lá. Parecia ter mais de 40 anos, talvez já tivesse passados dos 50. Mas todas essas informações eram difusas, quase uma sensação. Estava presa ao azul poderoso dos olhos dele.
Ele era estrangeiro, mas falava um português bastante bom. Apenas o sotaque era indefinível. Decidiram dividir um vinho que ela escolheu. Pediu o de sempre, um carpaccio tradicional com uma porção de maionese de manjericão. Ele disse que estava sem fome. Ela se preparava para perguntar o que ele estava achando da cidade ou o que o trazia ao Brasil. Mas os olhos dele a interromperam. Ele falou. Eu já matei. Não uma, mas muitas pessoas.
Ela riu um riso inseguro. Por que você está brincando com isso? Eu não estou brincando, eu queria falar isso para você, para você saber quem eu sou. Os olhos azuis lhe disseram que ele falava a verdade. Ela não ficou com medo. Apenas com raiva da amiga irresponsável que deu seu telefone a um maluco.
Você matou por quê? Porque era o que eu tinha de fazer nos países onde vivi. Eu menti, também, ele disse. Por que você mentiu? Porque era mais fácil mentir. Você está sentado me contando isso por que, por que você acha que eu gostaria de saber algo de você? Porque você veio. E porque eu acho que você não é tão boa como você diz que é. E seus amigos falam que você é. Você também deve ter feito coisas ruins, hoje mesmo você deve ter feito alguma coisa ruim. Mas prefere não contar para si mesma. Então eu conto para você.
Ela continuava sem medo. Mas agora com muita raiva. Por que você acha que eu vou continuar aqui ouvindo você falar besteira? Porque você está aqui. E se você é tão boa, eu também quero ter a chance de ser bom. Ela pegou a bolsa embaixo da cadeira para sair. Ele disse espera, você vai gostar de ouvir o que vou lhe dizer. Ela ficou porque os olhos azuis pediram.
Tenho uma proposta para fazer a você. Amanhã, ele disse. Eu faço tudo certo amanhã. Em cada ato meu eu vou ser bom. Eu vou abrir a porta, vou dar bom dia, vou sorrir, vou dizer coisas gentis, vou ser honesto, vou salvar alguém. Em cada ato meu eu vou parar e pensar qual é a melhor resposta de bondade que eu posso dar. E darei.
Ela esperou. Pela primeira vez deixava um carpaccio pela metade. E isso era contra seus princípios. Ele voltou a falar. Na verdade, nem mesmo tinha parado. Você vai ser má. Em cada ato seu você vai pensar o que de pior pode fazer. E fará. Vai dizer coisas ruins, vai machucar quem puder, vai trapacear, mentir, enganar. Vai fazer o contrário do bem. Por um dia só.
Por que você está me fazendo esta proposta de filme B, seu Mephisto de quinta? Porque eu quero que você apalpe por um dia o tamanho da sua liberdade. Eu lhe dou um motivo para ser livre. Você só saberá o que é o bem de verdade se experimentar o mal. Por um dia minha proposta vai autorizar você a ser má. Ou ser eu, se você preferir, já que parte do princípio de que você é boa e eu sou mau.
Ela olhou seus olhos azuis. Eu jamais conseguiria ser má. Por que você não experimenta?, ele disse. Talvez você se surpreenda. E você ainda estará fazendo o bem, porque me dará uma desculpa para se bom. Perceba. Mesmo sendo má, você ainda será boa. Por um momento ela pensou em como poderia ser bom ser má por um dia. Deliberadamente má.
Se recompôs. Eu não sou como você. Vá à merda você e a sua proposta. Deu mais dinheiro do que certamente valia a conta ao garçom e desejou o que esperava fosse um boa sorte sarcástico aos olhos azuis. Não se preocupe comigo, ele disse, com um sorriso quase triste.
Quando ela já estava dentro do táxi viu-o desaparecendo na escuridão da esquina e quase achou que ele era frágil. Ao ligar para a amiga, naquela mesma noite, ela garantiu que ele era adorável e, com certeza, tinha doces olhos de mel.
Às vezes, como hoje, ela pensa em como seria ter aceitado o pacto. Nestas noites, os olhos azuis se abrem dentro dela. Seria fácil acreditar que são os olhos dele. Mas ela é boa demais para trapacear consigo mesma.