Todos os nomes, personagens, eventos e circunstâncias desta crônica são fictícios. Qualquer semelhança é vil coincidência.
Há poucas coisas que jornalistas reclamam mais do que cobertura de Carnaval. Eu, ao contrário, cobri o carnaval riograndenortino por mais de uma década e até gostava. Talvez porque tenha tido uma estreia um tanto heterodoxa. Graças a um folião que muito, muito mais tarde, se imortalizou como Osvaldinho Tripé.
Havia na capital do Rio Grande do Norte, que aqui nesta crônica não chamaremos de Natal, um baile famoso pela putaria. Chamava-se, singelamente, de Baile do Taiti. Uma espécie de evento pré-carnavalesco. Antes de chegarmos aos acontecimentos propriamente ditos, é preciso compreender o modus operandi da tradicional sociedade riograndenortina. Depois das festas natalinas ou assim que os pimpolhos se livrassem das recuperações escolares, as famílias de classe média rumavam para praias de mar aberto para descansar passeando nos shoppings e supermercados onde com sorte sempre poderia aparecer uma marca nova de sabão em pó.
Os maridos, coitados, permaneciam labutando num calor que por esta época às vezes acontecia de superar os 40 graus. Tratava-se de casamentos bem tradicionais, cada um entenda o termo como quiser, e era com estoicismo que os abnegados senhores resistiam em ficar longe de suas esposas e crianças sempre tão encantadoras. Mal viam a hora de segui-los para se empapuçar de cerveja e jogar as latinhas na areia enquanto falavam que a praia decaíra muito, com hordas de farofeiros desembarcando dos ônibus a cada final de semana. E isso tudo aconteceu muito antes da ascensão da Classe C.
Digo isso para que os leitores possam compreender que ninguém poderia culpar esses pobres viventes de, no deserto escaldante e solitário, se refrescarem um pouco no Baile do Taiti. “Vou ter de ficar na cidade mais um pouco, Mãezinha”, era a frase padrão. “Mais uma ou duas reuniões e eu fecho o negócio. Logo logo estou aí com vocês. Não vejo a hora!” Ou, em versão truculenta: “Porra, criatura, tu não vês que estou trabalhando enquanto tu estás com a bunda de fora aí na praia?” As variações são infinitas. O fato é que na época do Baile do Taiti a população masculina da cidade que não é Natal superava em muito a feminina, pelo menos a feminina composta por esposas com registro em cartório.
Coube a mim a missão de cobrir o evento que abriria de vez, escancararia até, a folia de Momo na capital do Rio Grande do Norte que não é Natal. O editor acreditava que eu possuía nos meus olhos míopes certo viés antropológico. E lá fui eu, bastante empenhada em enxergar a notícia, mas logo deparei com o primeiro de muitos obstáculos. Era difícil enxergar a notícia na escuridão.
O baile se espraiava por grutas e cavernas, tais quais existem no Taiti real, como jurava o organizador do evento, e eu por mais que apertasse os olhos e desembaçasse os óculos só conseguia avistar um movimento frenético. Ao me aproximar, porém, nem sempre conseguia saber onde se encontrava a cabeça do entrevistado, o que me rendeu alguns constrangimentos para sempre lembrados por colegas sem compaixão por pobres focas em ambiente hostil. Esta parte eu considero uma injustiça, porque não era falta de experiência, como me acusaram depois. Como eu poderia saber que uma bunda poderia chegar àquela altura, afinal? E que aquela outra coisa, deus me livre, não era o microfone do colega da Globo? Como prezo pela honestidade, especialmente naquilo que é escrito, preciso admitir que só notei o engano ao não receber resposta alguma depois de repetir por três vezes a pergunta. E eu só tentava saber se estavam se divertindo no baile! Custava?
Em seguida percebi que sendo uma repórter de 22 anos tentando estabelecer contato, o melhor teria sido ir fantasiada de Robocop, apesar da pouca afinidade com o tema central. Em pouco tempo eu já tinha descoberto uma vocação insuspeitada de contorcionista. Mas, repórter intrépida que sempre fui, fiz lá o meu trabalho da melhor forma possível. E o fotógrafo, muito, mas infinitamente mais feliz do que eu, fez o dele.
E aí é que chegamos ao ponto depois de algumas digressões necessárias. Estampado na capa do jornal, lá estava o sujeito, sem camisa e com um belo colar taitiano no pescoço, com duas taitianas típicas no colo, que brincavam de deixar manchas de batom. O passatempo, garantiu-me o organizador do evento, é muito difundido naquela paradisíaca ilha da Polinésia francesa e brinca-se totalmente sem malícia. A favor do editor, eu posso afirmar em juízo que era uma das poucas fotos publicáveis num jornal de família como era o Meia-Noite.
Ao comprar o periódico na banca do supermercado da pujante praia de Canoa Furada, porém, a esposa do sujeito teve outra interpretação. “Não é o Osvaldo, não, imagina. Este aqui é muito mais gordo”, apressou-se a dizer uma amiga. “É óbvio que não é ele, olha bem para este nariz de batata”. E foram saindo para a esquerda, como o leão da montanha, com pressa de ligar para seus próprios maridos.
A pobre esposa do Osvaldo, sim, porque não havia dúvidas de que dele se tratava, como mãe extremada que era, tratou de comprar o maior número de exemplares possíveis e explicar às crianças que o papai ainda estava na capital riograndenortina porque enfrentava problemas com um sósia que andava se passando por ele e causando constrangimentos. Que mulheres de Atenas, que nada, as da cidade que não era Natal tinham elevado o patamar da categoria.
Osvaldo, obviamente, como todo canalha que se preze, jurou pela própria mãe que não era ele. A certa altura acho mesmo que deve ter acreditado que não era ele. E, depois de passar o verão de castigo no clube da cidade que não era Natal, arrasado por não poder se empapuçar de cerveja na areia nem balançar a pança em partidas de futebol para depois se empapuçar de cerveja de novo, acabou perdoado. Em algum momento, com a ajuda das amigas, que por acaso tinham maridos que também haviam ficado na cidade na boa companhia do Osvaldo e não pretendiam investigar coisa alguma, a esposa acabou acreditando que não era mesmo o “seu” Osvaldo. “Imagina se o Osvaldo botaria gel no cabelo, justo o Osvaldo que é tão certinho!”
Foi assim que minha estreia rigorosamente jornalística no baile do Taiti não acabou com casamento algum nem com máculas – graves – na minha carreira. Muitos anos se passaram, para o meu alívio surgiram coberturas mais instigantes e acabei me tornando uma repórter com boa reputação e tudo o mais. E lá estou eu em mais um plantão carnavalesco – na minha vida foram 11 no total –, quando sou abordada pelo homem esbaforido, suando em cascata com um jornal na mão, parar bem na minha frente.
— Porra! Vocês querem me foder? Querem acabar com o meu casamento? É este o objetivo de vocês? Se for, diga logo porque eu vou começar a arrebentar esse pasquim agora!
E já ia virando uma cadeira no chão, quando eu o agarrei pelo braço e disparei meu olhar mais ameaçador dizendo: “Não me obrigue a chamar a polícia”. Naquela época, trabalhar em jornal era uma diversão. Não havia a segurança de hoje, e o povo ia mesmo até onde os jornalistas estavam. E vice-versa. Não passava dia sem que houvesse uma invasão das ruas, em geral hilária. Toda Páscoa, por exemplo, aparecia por lá o homem do Santo Sudário. E toda Páscoa nós examinávamos a relíquia legítima e dávamos nossos palpites e às vezes até aparecia um especialista. Agora, não. Trabalhar em redação virou um tédio, com a rua barrada na porta.
Mas esta é apenas uma digressão. Mais uma. Acho que estou ficando velha e nostálgica. O fato é que, sozinha ali no meu plantão, eu pedi calma ao homem fora de si. Tenha calma, por favor, que eu nem sei quem é o senhor. Eu sou este infeliz aqui. E atirou o jornal na minha mesa com estardalhaço. Olhei bem a capa. E não é que era ele mesmo?
Lá estava Osvaldo, bem mais jovem que o da minha frente, lambuzando-se no Baile do Taiti. Hum…. eu fiz. É o senhor, então. Olhei a data na foto. Conferia. Dez anos depois, Osvaldo estava de volta à capa do jornal ilustrando uma reportagem que anunciava o Baile do Taiti marcado para aquela noite.
Ofereci uma cadeira ao Osvaldo. Busquei um café. Perguntei se queria com açúcar ou adoçante. Tentei em vão explicar a ele como os arquivos dos jornais funcionavam. Uma vez no arquivo, havia sempre a possibilidade de a foto ser usada novamente, com a data devidamente registrada, como ele poderia conferir ali naquele cantinho, em letras bem miúdas. E a mesma data também poderia ser conferida por sua esposa amantíssima. Como ele seguia furioso, engrossei: “Eu estava lá e sou testemunha de que o senhor fez questão de posar para esta foto. Lembro que pediu para botar as mãos bem aqui, ó!”.
Osvaldo começou a chorar como um bebê na minha frente. E agora ele era um homem quase velho, cabelos ralos e barriga cultivada em muitos verões em Canoa Furada. “Foi uma bobagem! Será que eu vou ter de pagar por uma bobagem de juventude pela minha vida inteira?” Fiquei com pena. Eu sempre fui assim, toda penalizada. Afinal, se a mulher tinha querido acreditar nele e seguir com aquele casamento do jeito que dava, eu não achava justo ele estar lá estampado dez anos depois.
Pedi uma licencinha e desci ao arquivo. Roubei os negativos (eram negativos) e entreguei a ele. Como era bom o mundo quando bastava roubar os negativos para a memória desaparecer! Algumas memórias, pelo menos. Pronto. Agora todas as provas do seu crime estão na sua mão. E não resisti. Agora é só você e a sua consciência. Osvaldo saiu cabisbaixo e eu me senti magnânima. Ele era um bom sujeito, afinal. Ninguém pode ser condenado a vida inteira por uma noite de mau gosto estético. E usar foto de arquivo, nestas circunstâncias, vamos combinar que é meio despropositado.
Me senti assim, superior e quase sem remorsos jornalísticos, até examinar o material trazido pelos fotógrafos no dia seguinte. E, adivinhem, lá estava Osvaldo, com sua barriga, sua careca, suas duas (ou seriam três?) mãos e agora quatro taitianas, o que só comprovava que os anos que não o favoreceram haviam sido generosos com sua conta bancária. “É esta a foto de capa!”, anunciei ao diagramador. “Abra em cinco colunas e avise a circulação para reforçar o repasse de Canoa Furada”.
Osvaldinho Tripé nunca mais deu as caras nem outras partes na redação do Meia-Noite. É tudo ficção, claro. Mas que a realidade é imbatível, ah, isso é.