Meu deus!, viu-se dizendo em voz alta. Ela não era religiosa, mas a frase alojara-se na sua boca desde que as tias solteiras a repetiam pela casa da sua infância, diante de cada pequena catástrofe doméstica. Da polenta queimada a um fio puxado na meia de náilon.
Desta vez, a catástrofe era dela. Lembrou-se de súbito que deixara o filho pequeno dormindo, trancado no apartamento, para fazer uma compra rápida no supermercado. E o esquecera por completo. Pensando bem, ela nem fora ao supermercado.
Onde estou agora?, olhou para os lados. Estava num café de shopping, daqueles de rede americana, tomando um cappuccino e comendo um croissant borrachento. Como eu vim parar aqui? Duas vistosas sacolas de loja estavam acomodadas na cadeira vaga da sua mesa. De quem é isso? Olhou para os lados, de novo. Só um casal e uma moça abduzida diante do computador. Nenhum deles parecia notar a sua confusão. Espiou dentro das sacolas, constrangida, como se elas não lhe pertencessem. Mas pertencem? Dentro, um vestido, um jeans e um sapato de salto. Quem comprou tem bom gosto, pensou. E eram do seu número, constatou.
Estou ficando louca, e um soluço estrangulado saiu dela. Meu deus, eu preciso correr. Meu deus, eu saí de manhã de casa. O Pedro acordou, deve ter chorado até se afogar. Morreu de asfixia. O Pedro acordou, está morrendo de fome e de sede no berço. Será que os vizinhos ouviram os gritos e chamaram os bombeiros? Meu deus, eu sou uma péssima mãe, uma mãe doida, do tipo que vira manchete de jornal. Vão me apedrejar como fizeram com os Nardoni. Como eu pude?
A enormidade do seu ato, do seu esquecimento, do seu desvario desabaram sobre ela. Seu bebê agora poderia estar morto. Ela já queria se matar também. Mas antes precisava ter certeza. Se ele ainda estivesse vivo, ela seria a melhor mãe do mundo, ela acreditaria no deus que invocava, ela seria outra.
Saiu da paralisia e correu a pegar um táxi na frente do shopping. Com as bolsas das lojas. Por que eu estou carregando essas bolsas? Obrigou o motorista a correr, a ultrapassar, a ignorar sinais vermelhos. Meu filho está morrendo, ela dizia, os olhos vermelhos, o rosto vermelho, o suor porejando desespero.
Atirou uma nota de 50 reais, a primeira que achou, e entrou correndo no prédio. Não se ouvia nada, só um funk. Quem é esse doido que escuta som nesse volume? Se eu não tiver matado o meu bebê, eu vou reclamar pro síndico. Socou o botão do elevador. Fora o funk, tudo parecia normal no prédio. Nenhum sinal de polícia ou bombeiros. Nenhum som de bebê, também. Mas como ouviria, com este funk?
Entrou no elevador e descobriu que não tinha luz lá dentro. Se não tiver matado o seu filho, ela reclamaria do zelador relapso. Por sorte, ela lembrava de sempre carregar uma lanterna na bolsa. Derrubou tudo no chão para achar, tateando, mas não fazia mal. Ela precisava subir sete andares. Sete? Percebeu que tinha esquecido o número do seu apartamento. Onde é que eu deixei meu bebê, onde é que eu vivo? Agora o elevador subia para o sete, mas não era no sete. Ela tinha quase certeza de que não era. No quinto, o elevador parou, abrupto. Entrou um morador que ela não conhecia. Poderia também ser uma visita, como saber? Não era uma visita. A senhora está bem? Acho que não, eu esqueci onde eu moro, confessou, encolhida de vexame. A senhora mora no 402. Quer que eu ligue para alguém? A senhora não parece mesmo bem, talvez esteja tendo um AVC. Não, não, eu estou bem. Estou meio atrapalhada, por causa dessa escuridão. Queimou a lâmpada de novo, e o zelador não trocou. Escuro?, o homem perguntou, parecendo perplexo. É, o senhor está enxergando por causa da minha lanterna. Ele abriu a boca para falar, mas fechou. Tem certeza de que a senhora não precisa de ajuda? Estou bem, é só uma enxaqueca. Só preciso chegar em casa e tomar um comprimido. Ela não queria contar que tinha esquecido seu bebê. Antes de ser presa, ela se mataria, abraçada ao corpo do seu bebê. O vizinho desconhecido apertou o quarto andar, e ela desembarcou do elevador tentando aparentar normalidade. Já me sinto melhor, obrigada. Ela não queria que descobrissem logo que era uma assassina. De repente, já começava a pensar que poderia talvez fugir. E imediatamente sentiu a culpa escalar o esôfago com a bílis. Não, ela não viveria com a morte do seu filho. Mesmo querendo, mesmo querendo. Que horror, ela queria. Era uma mãe horrível, mesmo, além de uma assassina.
Vasculhou a bolsa, mas não encontrava as chaves. Deixei no elevador, no chão. Não vi no escuro. Estava parada na frente da porta e só então percebeu que o funk vinha de lá. Da sua casa. Mas como? Suas mãos tocaram o molho de chaves, afinal. Mas qual chave seria? Havia umas dez ali. Ela foi tentando uma por uma, e nenhuma parecia servir. Então, a porta se escancarou. E ela estava diante de um adolescente de cabelos compridos, calça larga, caída até abaixo do ossinho do quadril, tatuagens por todo o corpo e um piercing na sobrancelha direita. Quem é você? O que você fez com o meu bebê?, gritou.
Ele olhou para ela, por um segundo, antes de agarrá-la pelos ombros:
— Mãe, a senhora está bem?