Ela chegou à minha casa com uma saia comprida demais e duas mãos que se mexiam sem parar. Tinha nascido trabalhando a prima Loreci. Só se sentia segura no mundo se os dedos agarravam a panela para arear ou se fechavam sobre o cabo da vassoura ou o pescoço da galinha. Era com as unhas encardidas por uma limpeza impossível que ela se agarrava ao mundo, à vida e à morte. Ensinada que fora que a virtude está em manter as mãos sempre ocupadas para que não escorreguem para geografias proibidas. Chegara à minha casa da cidade para, como outros primos antes dela, aprender a ler e a escrever.
Prima Loreci olhava desconfiada para o lápis que minha mãe lhe estendia. Antes de agarrá-lo passou uma mão terna sobre ele, surpresa com a textura nova. Depois o apertou suavemente entre o polegar e o indicador. E arriscou um risco assustado sobre o caderno apenas porque sabia que esperávamos dela uma ação. Cabia a mim ajudá-la com os estudos, eu que a admirava pelos tantos mistérios que possuía. E que sempre a tinha ao mesmo tempo temido e invejado pela precisão fatal com que torcia o pescoço estreito das carijós. Prima Loreci sabia que a morte está servida na mesa quando agradecemos a Deus pela comida, mas não sabia escrever o próprio nome.
Digo que segure o lápis sem medo. Ela me olha desconfiada. Não está convencida de que o cilindro negro a obedecerá. Na experiência da prima Loreci tudo morde ou reage de alguma maneira potencialmente perigosa. Ela não conseguia entender a reação de causa e efeito da coisa com o papel. Explico a ela que com o lápis pode criar um mundo inteiramente novo. Ela não entende, mas nada diz. Colocando minha mão sobre a dela desenhamos juntas um L na folha em branco. É a primeira letra do seu nome, explico. Ela não se reconhece.
A cada dia avançamos uma letra a mais que a faço desenhar cem vezes no caderno. A cada dia há uma parte de você aqui, eu explico. Ela me olha agora visivelmente assustada. E implora a minha mãe que a deixe esfregar as panelas. Quando nos distraímos lá está ela sobre o tanque batendo a roupa que poderia estar na máquina de lavar. Eu preciso fazer alguma coisa ela diz à minha mãe agoniada com o que os parentes vão pensar se descobrirem que a sobrinha faz o serviço pesado na casa dos tios da cidade. Prima Loreci arregala seus grandes olhos de corça e se atira sobre o esfregão.
No sexto dia eu a ensino a desenhar o “i” final do seu nome. E digo a ela que está ali, naquela folha de papel. Que acaba de renascer. Ela me olha em pânico. Sim, é você aqui. Leia juntando as sílabas como eu te ensinei. E ela soletra primeiro em silêncio depois com uma voz que vem da garganta. Lo-re-ci. Sou eu? Ela me pergunta. Eu aquiesço. Sou eu aqui? Eu confirmo. E você pode escrever quantas vezes quiser. E naquele dia ela não pede para lavar a louça e percebo que minha mãe fica um pouco decepcionada.
No dia seguinte meu irmão diz que sua letra é muito feia e começa apagar seu nome do caderno. Prima Loreci lhe dá um safanão tão violento que ele bate a cabeça na parede. Ela não quer ser apagada. Alisa a folha de caderno e acaricia seu nome enquanto crava no meu irmão seus olhos de matar galinha. Não quer mais escrever a lápis agora. Me promete primazia na árvore das laranjas do céu quando a estação chegar se eu lhe arrumar uma caneta. Eu surrupio duas da metódica arrumação do escritório do meu pai, uma azul e outra vermelha. Prima Loreci agora escreve seu nome sem parar e ao se preparar para dormir carrega-se toda para a cama.
Quando ela dá as costas para o caderno para obedecer a uma ordem que agora minha mãe lhe dá, meu irmão rasga o tanto de páginas que consegue agarrar. Dezenas, talvez centenas de Lorecis jazem despedaçadas no chão. Minha prima dá um grito e agarra o estômago com suas unhas negras como se para segurar as tripas. O que vi nos olhos dela me deixou paralisada de terror e de pena. Não consegui me mover da esquina entre a cozinha e a sala. Apenas a vi saltar sobre meu irmão com a faca com que descascava batatas para o almoço como num filme que ninguém filmou. Ela o furou muitas vezes. Não para matá-lo, apenas o suficiente para que o sangue dele se misturasse aos pedaços dela no chão.
Meus pais não deram queixa. Meu irmão foi atendido em casa pelo médico de sempre como convinha às famílias de bem que protegiam suas vísceras com a vida se preciso fosse. Prima Loreci foi despachada com seus trapos de volta para a roça onde levaria uma surra que lhe aleijaria o braço direito. Não o suficiente para que não pudesse mais pegar na enxada porém. Antes que partisse eu enfiei na garra da sua mão a caneta vermelha. Escreva, sussurrei. É só escrever tudo de novo. Para renascer. Ela me olhou com seus grandes olhos de corça. Apertou meus dedos com suas unhas gastas de mortes.
Duas semanas depois ouvi meus pais cochichando no quarto. Prima Loreci havia fugido de casa e desaparecido no mundo. Não levou nem as roupas, disse minha mãe numa voz aguda. Eu sabia que ela tinha levado tudo o que tinha. E que era suficiente. Desde então, vejo seu nome em todos os muros, nas portas dos banheiros, nas paredes das cavernas com pinturas rupestres, na pedra do coliseu romano, na superfície da torre Eiffel, na bolsa de úbere de cabra do beduíno do Sahara, na cabeça branca de Nelson Mandela.