Retardados

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Em 14 horas de voo não ouvi a voz do marido.

Já ela, falou a noite inteira no banco atrás de mim. Chamava a todos de “retardado”. Era a palavra preferida dela. Retardado, retardado, retardado. A companhia aérea era retardada, a aeromoça era retardada, o piloto era retardado, nós todos éramos retardados.

— Eu não acredito que aquela mulher retardada vai ficar falando alto a noite inteira com aqueles dois retardados do lado dela. Como é que eu vou dormir? Eu nunca mais viajo nesta companhia de retardados. Nunca mais, ouviu bem?

— (….), respondeu o marido?

— Olha que mala, a retardada nunca mais vai parar de falar.

— (…), respondeu o marido?

— Aquela retardada atrás de mim roubou o meu travesseiro. Se eu não estivesse com as pernas presas ia me botar de joelhos no banco e ia armar o maior barraco.

(….), respondeu o marido?

— É claro que foi a retardada aqui atrás de mim. Ou desde quando travesseiro tem pernas?

(….), respondeu o marido?

— Olha aquele retardado lá reclamando que o sanduíche dele veio com presunto. Quer ser bem tratado ele que pague primeira classe. Classe econômica é para pobre. Poooobreee.

— (….), respondeu o marido?

— Pobre, sim. E pobre é tudo retardado. Agora acham que são classe C, os retardados!

— (….), respondeu o marido?

— É. Ainda bem que eu moro fora. Se tivesse continuado no Brasil, ia ficar assim, retardada.

— (…), respondeu o marido?

— Mas tenho de vir no Natal, ai que saco. Aquela família de retardados. Só venho porque minha mãe está velhinha. Depois que ela morrer, nunca mais boto o pé neste país retardado.

— (…), respondeu o marido?

De repente, a voz dela se suavizou.

— Olha a filhinha da mamãe, você não acha que ela está abatida?

— (…..), respondeu o marido?

— Será que ela está respirando?

— (…..), respondeu o marido?

— Fala com a mamãe, meu amor. Será que demos uma dose muito alta de sonífero?

Meu Deus, eles doparam o bebê. E agora, o que eu faço?

— Me ajuda aqui a arrumar cabecinha dela. Vem, segura por baixo.

— (…..), respondeu o marido?

Mataram o bebê?

— Olha o peito dela, ressonando. Quem é o bebê da mamãe?

Ufa. Acho que não morreu. Não ainda.

— Siiiissssi, dá um sorrisinho para a mamãe. Sissiiiiiiinha.

— (…..), respondeu o marido?

— A retardada aqui de trás vai querer roubar o meu cobertor também. Estou te dizendo, vou botar a Sissinha no teu colo e vou quebrar o pau. Eu sou fina, mas também sei rodar a baiana. No Brasil a gente tem de ser meio casca grossa, senão os retardados tomam conta da gente.

— (….), respondeu o marido?

Dormi.

No café da manhã, ela deu queijo para o bebê.

— Filhinha, come aqui o queijo do sanduíche da mamãe.

— (….), respondeu o marido?

— Olha que bonitinha. Comeu todo o queijo.

— (…), respondeu o marido?

— Pega o guardanapo que ela sujou o focinho.

Meu Deus, o bebê tem focinho!

Ah! Não é um bebê. Meu Deus! Tem um cachorro atrás de mim!

— Não tem problema eu dar meu sanduíche a ela. Este avião é um chiqueiro! Você não entendeu ainda que são todos retardados?

— (….), respondeu o marido?

Aterrissamos, todos os retardados, ela, o marido e a Sissi. Nem bateu na pista.

— Até que o piloto não é tão retardado.

— (…), respondeu o marido?

A família pulou rápido para o corredor. Finalmente eu os via. Ela, (….) e uma cadelinha branca, peluda, com um laço cor-de-rosa no cabelo. Ops, pelo. Praticamente a Rommy Schneider. Mas dava para perceber que Sissinha estava vivendo uma viagem digna da Janis, Janis Joplin. O que tinham dado para ela que não deram para nós? As portas não tinham ainda sido abertas e ela já gritava enquanto ninava a filha no colo.

— Andem, seus retardados, que eu não aguento mais ficar neste avião.

— (…), respondeu o marido?

E para a senhora que se despedia dos companheiros de viagem.

— Se despede lá fora que eu quero sair deste avião. Passaram uma noite juntos e já viraram melhores amigos? Brasileiro é tudo retardado!

— (….), respondeu o marido?

Sissi totalmente indiferente. Devia estar vendo ossos azuis e voadores. Hum, acho que estes cachorros de avião não gostam de ossos. Mentalizei. Colei meus olhos nos da Sissi. Você pode. Você pode. Você pode. Yes, you can, baby.

Sissi podia. Cravou os dentes.

— Fiiiiilha, por que você fez isso com a mamãe? Mas Sissi já corria pelo meio das nossas pernas com um dedo de unha vermelha na boca. E nós, os retardados, aplaudíamos.

É tudo verdade. Menos este final feliz. Quando olhei bem dentro dos olhos da Sissi, percebi que ela também me achava uma retardada.