Ana Cecília era linda, ele percebeu à primeira vista no primeiro dia de aula. Ana Cecília era linda e não era para ele, ele percebeu à segunda vista no primeiro dia de aula. Como um homem pode ter esta exata noção aos cinco anos de idade? Pedro Luiz tinha. Ana Cecília passaria o ano inteiro, a vida inteira, sem saber que ele, Pedro Luiz, existia. Ela na sua loirice de europeia lá do topo do mapa. Ele em sua morenice de índia com português metidos em suores tropicais — e algum parente do Kadafi pendurado num galho atravessado da árvore genealógica. Apaixonou-se possivelmente porque era impossível. Não há estatísticas confiáveis, mas todo primeiro amor é impossível. Para ser amor e ser primeiro precisa ser impossível. O dele era impossibilíssimo.
Ela dava estrelinhas como uma cheerleader americana no recreio. Ele ficava lá, desenhando dinossauros na areia. Ela desfilava abrigos Adidas e tênis All Star multicoloridos. Ele tinha ganhado um Adidas que fora um sacrifício familiar e envolveu até o cofrinho de porquinho da avó, mas sentira-se tão responsável por aquela Ferrari das roupas esportivas que cresceu antes que se autorizasse a usar. Ela beijava fotos dos Menudos, ele imitava Sidney Magal.
Mas Pedro Luiz amava Ana Cecília a ponto de fantasiar morrer por ela na hipótese de uma hecatombe nuclear. E um dia, ele nunca pôde ou quis esquecer, numa manhã ensolarada da primavera paulistana, Ana Cecília parou diante dele e estendeu a bola para que jogasse Queimada no time dela. Ele olhou para ela e a achou tão linda, mas tão linda, que ficou cego naquele instante. E mudo. Ana Cecília, com o narizinho petulante começando a tremular de irritação, ordenou que ele pegasse a bola. Mas ele só pensava: ela está falando comigo, ela está falando comigo, ela está meeeesmo falando comigo.
Pedro Luiz paralisou. Por amor. Por primeiro amor. E antes que conseguisse falar ou mover as pernas, ouviu Ana Cecília entregar a bola a um rival: “Pega você que este menino não entende nada, não sabe nem jogar Queimada. Ou é chato ou é retardado!”.
Depois de a vida toda passar pela sua cabeça como num filme ruim, bem ruim, e com a ajuda de um amigo fiel, Pedro Luiz conseguiu fazer suas pernas andarem até um canto do pátio da escola. E lá ficou todo para dentro como um tatu-bola. Pensando que sua vida nem tinha começado e já acabara. Mas, como todos os meninos, Pedro Luiz deu um jeito de seguir espichando e fazendo concurso de arroto e colecionando figurinhas e rolando com a cachorra no quintal. Um dia, quando se deu conta, tinha até um arremedo de bigode.
Esquecer, porém, Pedro Luiz nunca conseguiu. Ana Cecília determinara toda a sua vida amorosa dos cinco anos em diante. E Pedro Luiz continuou sem saber o que fazer a cada vez que se apaixonava. E seguiu sem conseguir se mexer. E se achando feio e desengonçado e moreno demais. E só achando a moça linda, tão linda. E demais.
Então, numa noite na esquina da Ipiranga com a Avenida São João, numa festa no Bar Brahma, Pedro Luiz viu uma mulher de minissaia, coturnos e cabelos curtos e pretos, dançando como se fosse uma autista. E amou. “Chega lá e fala com ela sobre a cena londrina”, intimou um amigo. “Ela com certeza conhece a cena londrina.” Mas Pedro Luiz só sabia ser ele mesmo. E não sabia onde ficava a cena londrina. Mas foi possuído por uma coragem tomada emprestada em quatro doses de uísque e foi dançando no seu estilo de lado, sapateando sem mexer os quadris nem morto, rumo à mulher dos seus sonhos. E quando estava chegando perto, quase lá, se atrapalhou com a beleza dela e virou o copo de uísque arruinando horas de produção da cena londrina. Ficou ali, de cabeça baixa, balbuciando um pedido de desculpas impossível de ouvir. E esperando a frase que todos ouviriam, acima dos decibéis do bate-estaca: “Este menino não entende nada, não sabe nem jogar Queimada. Ou é chato ou é retardado!”.
Em vez disso a mulher de minissaia e coturnos e cabelos curtos e pretos que na verdade eram pintados sorriu. E Pedro Luiz compreendeu que não entendia nada de primeiro amor, mas entendia de último.