O gato

A filha queria muito um bichinho de estimação. A mãe achava que dava muito trabalho. Sujava aquela casa sem jardim, toda ela concreto. A mãe achava que concreto servia para gente, não para bicho. A filha achava que concreto não servia nem para bicho nem para gente. Por isso queria a carne quente do gato. Para se sentir menos alienígena naquela casa de concreto.

Tinha sido assim entre ela e a mãe, desde que se lembrava. A mãe era toda concreto, a filha era o vento que soprava entre paredes. Um vento que sangrava.

A vida naquela casa obedecia a um conceito de praticidade e sujeira mínima. De horas marcadas em muitos relógios para um tempo que não mudava. De pratos de plástico e flores de papel. De suco artificial e carne de lata. De palavras que não diziam. Emparedada na casa, a filha se debatia.

Achava que o útero da mãe devia ser também de concreto. E ela era a carne que, como um tumor, havia sido expulsa dali. E, desde então, escorria pela casa.

A mãe não perdoava a filha por ter deixado nela, misturada aos fluidos dela, células indesejadas. As células defeituosas da filha. Aquelas que faziam a mãe lascar nos dias escuros.

E foi num destes dias sem luz que a mãe aquiesceu, furiosa. Vou te dar o gato. Mas eu não quero saber de bicho. Você vai cuidar do gato. Você vai alimentar o gato. Limpar o gato. Enterrar o cocô do gato. Enterrar o gato inteiro.

A filha ganhou o gato. Mais um rebento de mais uma ninhada de mais uma gata vadia encontrada por uma amiga da vizinha num canto da garagem. No primeiro dia a filha ficou agarrada ao filhote. Sentindo o calor dele. O coração palpitante dele. A carne dele entre suas mãos, batendo.

O gato queria saltar, arranhar o sofá, se enrolar no novelo. Fugir. Mas ela o segurava com as duas mãos. E apertava.

No meio da tarde, a filha percebeu que havia se tornado o concreto do gato.

A compreensão não fez com que o libertasse. Ao contrário. Apertou-o mais.

Quando a filha não apareceu para o jantar, a mãe a descobriu no último quarto. O gato já não estava lá. Sua carne lambuzava a filha. As mãos vivas da filha enfiadas na barriga aberta do gato. Os olhos da filha muito abertos.

A mãe se aproximou lentamente. Com uma delicadeza nova, abriu a boca da filha. Que não resistiu. Entre os dentes, a mãe viu o coração do gato.

A mãe olhou os olhos da filha. E a filha olhou os olhos da mãe. Entenderam-se.

História de amor no Haiti

O que Jeanette disse a Roger, soterrada pelos escombros do terremoto

Seis dias depois do terremoto, Roger continuava diante das ruínas do prédio onde estava sua mulher, Jeanette, em Porto Príncipe. Não é possível alcançar, só podemos tentar vestir a pele do homem diante do monte de pedras. Debaixo delas, está a mulher que ama. Para todos, morta. Para ele, viva. Roger grita o nome de Jeanette. Diante de tantas dezenas de milhares de mortes, seu drama era apenas mais um. Mas não existe mais um. Existe o mundo inteiro em cada um. A vida só faz sentido se o homem com os olhos vermelhos fixos nas pedras for ele e todos nós.

De repente, alguém ouve um barulho. Uma voz entre os escombros. “Ela está viva!”, grita Roger. Agora, há um pequeno buraco. O repórter da TV americana enfia por ele um microfone para falar com Jeanette. Ela não come há seis dias, não bebe água há seis dias, não se move há seis dias. Enterrada viva, há seis dias Jeanette respira com dificuldade na escuridão. Tem os dedos da mão quebrados, sente dor. Jeanette tem algo a dizer. O que ela diz? Ela manda um recado para Roger: “Eu te amo muito. Nunca se esqueça disso!”.

Roger pega o que parece ser um pedaço de ferro da estrutura do prédio e começa a cavar.

Fiquei tentando abarcar o que é cavar pedras com um pedaço de ferro, com as mãos, para retirar dali um amor. Acho que não cheguei nem perto.

O que faz meu coração falhar uma batida, para além da tragédia, é o que Jeanette escolhe dizer a um minuto da morte. O que importa a ela registrar depois de seis dias soterrada, 144 horas, 8.640 minutos, cada um deles eterno. Tudo o que importa para Jeanette, que não sabe se vai sobreviver, é afirmar seu amor ao homem que ama. Diante da morte, esta era a frase de uma vida.

Este pequeno drama, um entre dezenas de milhares, explica por que, contra todas as catástrofes, a escravidão e os sucessivos abusos cometidos pelas potências de cada época, a exploração e a violência, as bolachas de lama, as tantas misérias, a falta de tudo, o Haiti vai sobreviver. Mesmo sem quase nada, Jeanette e seu povo ainda tem o que perder.

O que você diria se fosse Jeanette?

A história de Roger e Jeanette nos remete ao que dá sentido à vida. Ao que realmente importa para cada um de nós. Soterrada pelas ruínas do seu país, a haitiana Jeanette ensina o mundo inteiro. Não porque quer nos dar alguma lição, mas porque Jeanette é. Inteira, ainda que aos pedaços em meio aos cacos simbólicos e reais de um povo, de uma nação.

Como repórter, já escutei sobreviventes das mais diversas tragédias, ou apenas diante da catástrofe inescapável que é o fim da nossa história quando a vida chega ao fim. Ninguém sente saudades do momento em que teve seus 15 minutos de fama ou brilhou em algum palco ou ganhou um aumento de salário ou foi chefe de alguma coisa ou botou um peito turbinado ou emagreceu seis quilos ou comprou uma casa ou um carro zero ou uma TV de tela plana. Diante do momento-limite, somos levados não aos grandes bens ou aos grandes planos, mas aos detalhes cotidianos que em geral passam despercebidos, quase esquecidos em nossa pressa rumo às grandes aspirações. O que nos falta é aquilo que nos preenche a cada dia sem que nos demos conta. Aquilo para o qual, em geral, não temos tempo.

Será que é preciso quase morrer para lembrar de viver?

Nem sempre há uma segunda chance. Sem saber se teria uma, Jeanette nos lembra, com seu recado muito particular, daquilo que é universal. Seja você uma moradora do país mais pobre das Américas nos escombros de um terremoto, seja você um bombeiro de Los Angeles, como aqueles que tentavam resgatá-la, seja você uma brasileira que escreve sobre ela, como eu, ou um brasileiro que lê este texto, como você. Jeanette nos lembra que o que nos iguala em nossa condição humana é o que, de fato, faz diferença. Pelo buraco, ela nos lembra que a vida é sempre urgente. A vida é para hoje, a vida é para já.

Depois de três horas, Jeanette foi arrancada dos escombros. Viva. Saiu de lá cantando uma música cuja letra dizia: “não tenha medo da morte”. Assim que emerge das ruínas, logo depois de receber os primeiros-socorros, Jeanette entra no carro de Roger e parte. Bem empoeirada, sem nenhum drama. Como se tivesse resvalado na calçada e machucado a mão num dia qualquer. E o marido lhe desse uma carona para casa. Como boa sobrevivente, Jeanette reinventa a normalidade.

De novo, Jeanette tem algo a nos ensinar. Ela sacode a poeira e parte rumo ao cotidiano porque a vida tem de continuar, a vida deve se impor. É possível seguir quando, mesmo nos sentindo aos pedaços, sabemos o que é essencial, o que realmente importa, o que faz nosso coração bater mais rápido. No caso de Jeanette, o seu amor por Roger. E, mesmo se Roger faltasse, acredito que Jeanette ainda assim deixaria as pedras para trás e partiria rumo a muitos recomeços, porque só ama o outro com esta inteireza quem ama muito a vida que é.

Jeanette nos ensina que mais triste que a morte é uma vida desperdiçada com aquilo que não importa.*
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Este ano começou com muitas tragédias, aqui e no Haiti. Acho que precisamos prestar atenção e aprender com elas. Não basta se comover com o sofrimento do povo haitiano. Nossa solidariedade não se resume aos que podem pegar um avião e ajudar no que for possível. Nem a angariar dinheiro, alimentos e medicamentos. Como mostra João Pereira Coutinho em sua coluna na Folha de S.Paulo de 19/01, as catástrofes se equilibram equitativamente pelo planeta. O que não é equitativo no globo são a renda e a democracia. Em 1989, um terremoto de 7,1 na escala Richter causou 67 mortes nos Estados Unidos. No Haiti, um terremoto com a mesma intensidade matou – oficialmente – 150 mil pessoas.

Um estudo citado por Coutinho, The Death Roll from Natural Disasters: the Role of Income, Geography and Institutions (A lista da morte por desastres naturais: o papel da renda, da geografia e das instituições), publicado por Matthew Kahn na revista do MIT, em 2005, prova que são a pobreza e a tirania – e não a natureza – que matam. Naquilo que é invenção humana, estamos todos implicados. E, no caso do Haiti, especialmente nós, que comandamos a Minustah, a missão da ONU que supostamente está lá para estabilizar e reconstruir o país.

A série de tragédias deste início do ano não é um prenúncio do apocalipse bíblico ou de alguma outra espécie de fim de mundo mítico. Se o terremoto mata tantos no Haiti – e a chuva aqui – é por conta das escolhas políticas, econômicas e éticas que fizemos. E não porque a natureza ou um Deus cruel está nos matando como uma espécie de vingança pelo mal que causamos ao planeta e a todas as outras espécies. Nosso estilo de vida é que está nos matando, começando pelas vítimas de sempre, os mais pobres. O mal que nos aniquila se origina no nosso livre arbítrio – e só pode ser revertido pela transformação de nossas prioridades. Ser solidário hoje, diante da tragédia, é mais do que chorar diante da TV. É passar a fazer escolhas mais responsáveis, começando dentro da nossa casa.

Chove em São Paulo enquanto escrevo esta coluna. Eu sempre adorei chuva. O barulho das gotas batendo na janela, o vento que sempre a acompanha, o cheiro de terra molhada. Agora, me sinto culpada por gostar. Assim que sou tomada pelo reflexo imediato do prazer, na hora vem a culpa. Porque a chuva que faz bem ao meu bairro de classe média mata alguém na parte mais pobre da cidade. Passo então a imaginar o tamanho do desamparo de uma mãe com seus filhos num barraco a cada vez que começa a chover. De olho no céu, de olho no barranco, sem poder proteger aqueles que ama. Visto a pele dessa mulher que tem medo da chuva que vejo pela janela.

Apenas na madrugada de quinta-feira (21/1) morreram nove pessoas na Grande São Paulo, a região mais rica do país. Porque choveu. A maioria delas soterradas, embaixo de lama. Já são 62 mortos desde o início de dezembro no estado de São Paulo. E são governantes escolhidos por nós que culpam a natureza, “as chuvas em excesso”, pela morte de gente, em pleno século 21, por causa da água que cai do céu. Ou usam a tecnologia para tuitar, como fez José Serra (PSDB): 2010 é “um ano anômalo” no que se refere à quantidade de chuvas. Ainda bem que temos um governador para nos avisar.

O prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab (DEM), diz que devemos ficar “tranquilos”. Não, senhor prefeito, eu não fico tranquila. E acho que o senhor não deveria ficar também. Se eu fosse o senhor ou um dos prefeitos que o antecederam, eu não dormiria à noite porque me sentiria responsável. E mesmo não sendo o senhor nem um de seus antecessores, eu durmo mal porque me sinto responsável. Por que enquanto tento dormir, bem perto de mim e do senhor muitos estão com medo de morrer – e alguns morrem. Por chuva.

Cada um de nós tem sua parcela de responsabilidade, não apenas porque somos responsáveis por quem elegemos com nosso voto, mas pela vida que levamos. As tragédias pelas quais choramos hoje foram causadas não apenas pelas nossas más escolhas no sentido mais amplo, como humanidade num recorte histórico, mas por aquelas que fazemos todo dia, como indivíduos, do excesso de consumo de bens, água e energia à produção e destino do lixo. O papelzinho amassado, a bituca de cigarro ou a garrafa pet jogados no chão pela janela do carro vão entupir o bueiro ou o córrego lá adiante que, sem dar vazão, vai matar a criança na periferia quando a terra desliza e desaba o barranco sobre o barraco. Nossos erros – ou nossa ganância – estão sendo pagos pelos mais indefesos e frágeis entre nós. Aqui e no Haiti.

Quando Jeanette me faz pensar sobre o que realmente importa na minha vida, reafirmo a certeza de que não importa apenas a minha vida. Minha vida só faz sentido, só se realiza, se tornar possível também a vida do outro. Lá. Aqui. Em qualquer lugar.

* Se você ainda não assistiu, vale muito a pena testemunhar o resgate de Jeanette.

(Publicado na Revista Época em 25/01/2010)

Big Brother

Big Brother sentia-se sozinho. O silêncio de seu mundo o oprimia. Enjoara de sua voz. Conhecia suas idéias sobre tudo. Não tinha nenhum pensamento que pudesse ocultar de si mesmo. Decidiu espionar a vida dos outros.

Foi mal interpretado. Um tal de George escreveu um livro denunciando supostas intenções nefastas. Ele gostou do estilo, mas não se achou bem retratado. Big não queria controlar o pensamento humano, não o interessavam as tiranias. Para isto, amestrava anões em sua ilha.

Big desejava desvendar as profundezas da alma humana. Investigar, camada após camada, a psique que havia inspirado Shakespeare, Dostoiévski, Proust, o cinema de Bergman e Tarkovski. Big tinha uma biblioteca maior que a do Mindlin. E um home theater de última geração, onde colocava a rodar sua coleção de blu-rays. E enchia-se de lágrimas, palpitações e — por que não? — ternura por aquelas coisinhas tão humanas.

Big, como quase todos os solitários, só queria conhecer gente. Se enturmar, ainda que incógnito. E foi com estas boas intenções e um coração batendo a 190 por minuto que se emparedou na Casa. Por causa de Big, aquela era uma casa onde as paredes pareciam respirar sem que fosse uma metáfora. Cheio de amor, ele começou sua observação pelo quarto. Mimetizou-se ao edredom de bichinhos, aguentando o cheiro de pum com estoicismo.

“Eu sofro muito, sabe. As pessoas não me veem como eu sou de verdade”, dizia o moço de tórax bonito para a mulher jaca. E, descontrolado: “Eu não sou só um tórax bonito!”. Aos prantos: “Eu também tenho umas coxas lindas e uma panturrilha desenhada e uma barriga tanquinho!!!”.

Big migrou para a piscina. Virou água com cloro. E, ops, um pouco de xixi.

“Isto aqui é um jogo, entende”, dizia a mulher com cara de conteúdo para o menino com piercing. “E eu vim aqui para jogar. O que me irrita são essas pessoas que ficam se fazendo de boazinha, dizendo que tanto faz. Eu sou sincera. Verdadeira, mesmo. Eu vou lá e digo o que penso. E falo na frente. Estou falando aqui para você, mas eu falo na frente.”

O menino do piercing roeu uma unha. Big roeu duas. “O que você tá falando, meu, você tocou num ponto aí…” Mas ela o interrompe, ou ele mesmo interrompeu a si mesmo, interrompendo uma reflexão que prometia. “Eu quero te contar que tipo de pessoa eu sou. Porque eu sou uma pessoa…”

Big mudou-se para a cozinha. Três cochichavam. Big, agora uma panela de pressão, apurou os ouvidos. A moça de cabelo verde dizia para a moça de óculos poá e para o moço com a camiseta o cu é meu e dou pra quem eu quero. “Eu vi que ele tá fazendo intriga contra nós. Ele tava cochichando com a loira… sabem de quem eu tô falando, né? Pois é. Aí, quando eu cheguei perto, pararam. Eu saquei, saca…”

A moça de penteado marciano sentou-se sobre a bancada da cozinha e a escumadeira desapareceu dentro da sua bunda. Big ficou agoniado, mas a panela de pressão já estava soltando vapor e achou melhor não se mexer. Ninguém pareceu notar. Nem ela. O moço com a camiseta do cu com atitude dizia agora: “Meu amor, a vida é dura. Duríssima. A verdade é que nós três somos fortes”. Silêncio dramático. Ele sentencia: “As pessoas querem sempre eliminar os fortes”.

Neste momento, a panela de pressão explodiu.

Big nunca mais viu ou foi visto.

Vote em um final alternativo pelo 0800-1984-F451:

1)
De volta à ilha, com queimaduras de terceiro grau pelo corpo, Big chorou no ombro de seu anão preferido.
Nunca mais viu ou foi visto.

2)
Big nunca mais viu ou foi visto. Alguns dizem que se dedica ao cultivo de tulipas na Holanda. Outros que se embrenhou na selva amazônica numa expedição para rastrear índios isolados que nunca retornou. Há quem jure que ele fez haraquiri no cérebro.

Tropa de elite

Que tipo de povo queremos ser?

Em geral, não gosto de voltar ao tema da coluna anterior. Mas os comentários da última merecem uma reflexão. O fascinante da internet é que o texto continua a ser escrito pelos leitores. Quase sempre tenho a sorte de ter leitores de bom nível, que fazem suas críticas com educação, compartilham suas experiências, enriquecem o debate. Vez ou outra, porém, alguns manifestam sua falta de educação, protegidos pelo anonimato. É triste, porque é uma oportunidade perdida de dizer e ouvir algo que nos faça ir além. Mas, mesmo estes leitores pobres de ideias e de espírito nos dizem algo com sua agressividade. Embora possamos ignorá-los, talvez seja importante pensar não no que dizem, já que sua violência busca encobrir a falta de argumentos, mas no que seu comportamento revela sobre o país que construímos.

Para quem não leu a coluna anterior, em “Vizinhos de praia” eu contava minha má experiência com a vizinhança, ao visitar minha família no final do ano. Carros com porta-malas aberto e som ensurdecedor a qualquer hora do dia e da noite, cachorros (muitos) que não param de latir, barulho ininterrupto de cortador de grama. Decidi contar meus percalços praianos por apostar na hipótese de que o que aconteceu comigo também havia ocorrido com muitos leitores que, como eu, se sentem impotentes diante de uma convivência cada vez mais ditada pela violência. Os comentários, narrando experiências do gênero, algumas bem mais difíceis e perigosas que a minha, comprovaram que minha hipótese estava correta.

Antes de chegar aos – felizmente poucos – leitores agressivos, queria apontar outra reação que a coluna motivou. Fiquei surpresa ao perceber que alguns fizeram uma relação imediata entre a falta de educação/respeito e a ascensão social. Em nenhum momento, no texto, eu afirmo que o grupo que tocava funk e outros gêneros musicais num volume que impossibilitava a conversa dentro da minha casa eram pessoas economicamente pobres que haviam subido de escala social. Pelo contrário. Eu conto que eles tinham dois carros, uma moto e um buggy, bens materiais em geral incompatíveis com quem vive ou saiu recentemente das favelas, mesmo com a comprovada ascensão das classes C e D no governo Lula.

Eu já havia ficado curiosa com a relação entre falta de educação/respeito e ascensão social quando comentava nossas dificuldades com outro vizinho da praia. “Este comportamento é coisa de negrada. Eles saem das vilas e vêm pra cá fazer baderna”, ele disse. Fiquei chocada com o elevado índice de preconceito em apenas duas frases. Este vizinho fez tal afirmação olhando para os vizinhos violentos. O que havia diante dos olhos dele, quando fez o comentário, era o seguinte: proprietários da casa de praia, com seus familiares e amigos, todos brancos, alguns com olhos claros, descendentes de italianos e moradores da serra gaúcha, uma das regiões mais prósperas do Rio Grande do Sul. O preconceito era forte o suficiente para que ele precisasse transformar descendentes de europeus, visivelmente de classe média, em “negrada de vila”. Vila, para um morador do interior do Rio Grande do Sul, é o equivalente à favela.

Ao acompanhar os comentários da coluna, vi que esta inferência se repetiu. Acho importante tentar compreender por que pessoas inteligentes manifestaram preconceito, consciente ou inconscientemente. Eu não acho que todo pobre é bonzinho nem todo rico é malzinho. Sou amiga e acompanho o trabalho de pessoas pobres de grande valor e conheço outras que só prejudicam a comunidade em que vivem. Assim como conheço ricos que tentam repensar suas ações para construir um mundo melhor e outros que são sonegadores de impostos, patrões da pior espécie e péssimos cidadãos. Nem a pobreza nem a riqueza dão atestado de boa conduta para ninguém – nem justificativa para o inverso. Do mesmo modo que a cor também não dá, a priori, diploma de dignidade para alguém.

O fato de meus vizinhos tocarem funk de madrugada, com o porta-malas do carro com caixas de som no volume máximo, talvez possa ter contribuído para a ilação – jamais para o preconceito, que é sempre inadmissível. Afinal, o funk surgiu nas favelas do Rio. Mas, pensar que isso demonstra a classe social de quem ouve, é ignorar que o funk, assim como o rap, se difundiu entre a as classes A e B há muitos anos. Se eu não estivesse tão irritada na ocasião, seria instigante pensar por que jovens de classe média do interior gaúcho, cujos pais ainda falam dialeto vêneto, sentem-se poderosos ouvindo funk carioca. Fiquei imaginando o insólito encontro entre aquelas “cachorras” do interior gaúcho e os funkeiros das favelas do Rio. O que eles têm em comum? Nada, imagino. Mas, com certeza, esta apropriação deve nos contar alguma coisa. E pode ser interessante saber o que é para entender um pouco mais do mundo onde vivemos.

Agora, o que dizem os leitores que pretendiam me ofender? Em geral, eles me acusam de manifestar um comportamento elitista e me taxam de “burguesinha”. Um deles defende que, com o texto, eu revelo meu desprezo pelo povo e também pelos leitores. Em geral, eu não ligo para tentativas de agressões, porque acho que elas são auto-explicativas. O autor, na tentativa de me desqualificar, revela mais dele mesmo do que de mim. Mas achei que estes mereciam ser escutados naquilo que diziam sem querer dizer. Em alguns casos, infelizmente, tive de eliminar os comentários, porque agrediam outros leitores com palavrões, me chamavam de “piranha” e me mandavam tomar no mesmo lugar para o qual o funk dos vizinhos já tinha me enviado várias vezes.

Ora, o que é um comportamento “elitista”? Boa parte dos problemas crônicos do Brasil se deve ao fato de que, ao longo da História, o país teve uma elite de última categoria. No geral, o comportamento da elite brasileira, em diferentes momentos (e também quando incluiu novos atores), norteou-se por se apropriar e usar os recursos naturais do país de forma danosa, explorar os trabalhadores, valorizar o que vem de fora e desvalorizar o que é produzido aqui, especialmente a cultura, garantir a impunidade de seus atos, não se sentir implicada na construção do país nem no bem-estar do seu povo. Para esta elite, só o seu bem-estar importa. Ela só descola os olhos de seu umbigo quando percebe seus privilégios ameaçados. E, muito significativo, historicamente a elite brasileira usa o público como se fosse privado. Para ficar num exemplo recente, basta observar o modus vivendi da recente elite política do país, refestelada no Congresso Nacional.

Em resumo: o comportamento padrão da elite se expressa por fazer o que bem entende sem responder pelos seus atos ou se importar com o bem-estar do outro. Exatamente, portanto, como meus vizinhos de praia. Como os vizinhos dos leitores que contaram seus percalços. E como os leitores que entram neste espaço não para fazer críticas ponderadas, das quais todos possam se beneficiar, mas para agredir, ofender, desrespeitar.

Ainda levando em consideração a “acusação” de que eu estaria manifestando um comportamento elitista, vejamos. Se havia uma relação entre elite e povo em meus percalços litorâneos, como estes leitores acreditam que existia, eu e minha família estávamos no lugar do povo que devia continuar aguentando calado os desmandos e abusos daqueles que se achavam no direito de ser mais importantes que todos os outros. E usavam o espaço público como se fosse privado. Do mesmo modo, quando a polícia apareceu, meus vizinhos estavam tão certos da impunidade, que ridicularizaram a polícia e a nossa crença na lei.

Dito isso, por que vale a pena pensar sobre isso? Porque estes pequenos casos da vida cotidiana, minha e de tantos leitores, são reveladores. E, embora possa não parecer, têm grande repercussão na vida do país. Se há avanços sociais significativos e muitos de nós têm ampliado o acesso a bens de consumo, é relevante pensar sobre que tipo de povo queremos ser. Será que queremos repetir o comportamento histórico de parte da elite brasileira e fazer o que bem entendemos sem nos importar com o bem-estar do outro? Será que nós também vamos privatizar o espaço público? Será que nós também rasgaremos a lei para nos mantermos impunes?

Será muito triste se, depois de uma História tão sofrida, quando o Brasil parece viver um momento pródigo em oportunidades, quando temos a chance histórica de nos reinventar, decidirmos nos construir à imagem e semelhança da elite que nos espoliou por 500 anos.

São pequenos casos cotidianos como este que explicam por que escolhemos e legitimamos com nosso voto um Congresso como o que parasita Brasília nesse momento, salvo honrosas exceções. Nossos pequenos atos, a forma como vemos o público e o privado, a escolha que fazemos entre respeitar e não se importar têm grandes consequências para o bem-estar de todos. Nós não estamos apenas cuidando da nossa própria vida, mas construindo um país.

Em homenagem aos leitores que fazem este espaço valer a pena a cada semana, com contribuições que o tornam mais rico, encerro com o comentário de um deles. Ricardo de Faria Barros, de Brasília, coloca uma questão fundamental para um país em que parte do povo, na primeira oportunidade, tenta imitar a elite no que ela tem de mais nefasto: “Meus pais repetiam, como um mantra, ‘seus direitos acabam quando começam os dos outros’. Mas, para este mantra funcionar, temos que nos perceber como parte de um grupo social, no qual co-existam OUTROS. E não como os únicos. Se nos vemos e percebemos como os únicos, ‘os caras’, se só vemos a nós próprios, como reconhecer onde acaba nosso direito e começa o do outro?”.

(Publicado na Revista Época em 18/01/2010)

Cemitério de carros

Ela tinha oito anos e brincava de esconder com os primos quando o guincho da polícia descarregou o carro morto. Foi a primeira a ser descoberta. Toda atenção voltada à operação que lhe anunciava um mundo perigoso e proibido. Você não está levando a sério, gritou a prima, incomodada com a obviedade de seu esconderijo. Ela não queria mais se esconder. Atravessou a rua e ignorou o capim alto que lhe cortava as pernas. Alcançou o esqueleto do carro, os ossos de metal retorcidos. Se ele pudesse gritar, gritaria tanto que toda a pequena cidade pararia. Mas estava morto, o carro.

Aproximou-se. Devagar, com medo de tocá-lo. Depois, diante da imobilidade dele, mais afoita, menos respeitosa. Então viu a vida dentro do carro morto. A metade de um pacote de bolacha recheada no estofado preto do banco traseiro. Ela também gostava daquelas bolachas. Ficou imaginando a menina da sua idade, lambuzando os dedos de sabor morango. Um segundo e estava morta. Talvez nem mesmo tivesse entendido. Só isso. O gosto de morango e o gosto de sangue que nem identificou.

Entre os dois bancos da frente, entalado no freio de mão, um sapato de salto. Seria da mãe da menina? Da madrasta? De uma colega de trabalho do pai? Ela aproximou-se mais. Agachou-se. E agora o capim roçava sua calcinha, o meio das suas pernas. O salto estava gasto só num lado, como se a mulher pisasse primeiro com o lado direito do pé. A tinta vermelha do bico esfolada. Teria ela dançado ou tropeçado quando ainda acreditava que a vida era para sempre? Muitos anos depois seriam estes detalhes que ainda a comoveriam. Tão desimportantes e tão vivos, os detalhes essenciais.

Chegou ainda mais perto, quase sentia o cheiro azedo do estofado. Uma mistura de plástico, suor e roupa usada demais. Encontrou o que procurava. Seguiu a trilha de sangue como João e Maria seguiram os miolos de pão. Ela, porém, sabia que se perderia. E queria.

Viu primeiro um chumaço de cabelos ruivos, grudados numa meleca que ela acreditou ser um pedaço de cérebro. O que passou pela mente do motorista ao perceber que os miolos seriam arrancados de sua cabeça e grudariam no para-brisa? Sim, porque ele entre todos saberia. Tinha de saber.

Agora tinha perdido todo o pudor. Farejava o chão como um pastor alemão da Polícia Federal em busca de cocaína. À primeira vista, parecia um daqueles brinquedos que o pai lhe havia trazido dos Estados Unidos, comprados numa loja de Halloween. Era branco, muito branco. Exaurido de sangue. Sobre o tapete embaixo do banco do motorista, poderia ser uma caneta que havia caído sem que ninguém desse por falta.

Mas era um dedo. Indicador, talvez. Ou médio. Um dedo que havia tocado coisas, acariciado, sido lambido. Um dedo que havia estado em muitos lugares. Como alguém esquece um dedo no tapete do carro?

Estendeu a mão para pegá-lo, mas antes de tocar a pele sentiu nojo. Levantou-se, de repente com medo. Mas o dedo apontava para ela. Ouviu então a voz da mãe, gritando no outro lado da rua. Era hora do almoço. A cada domingo, um dos muitos filhos da mãe tinha direito a escolher o cardápio. Aquele era o domingo dela. E ela tinha pedido estrogonofe.

Levantou-se e, quando pretendia correr, não pôde. De algum modo, o dedo não permitia que fosse. Ele estava ali, excessivamente imóvel, um pedaço humano esquecido demais para ser abandonado. Como ela poderia deixar um dedo no tapete de um carro morto? Venha comer, guria! Onde você se meteu?, gritava a mãe.

Sem dar tempo para o asco, ela agarrou o dedo e botou no bolso do vestido. Era frio e mais duro do que imaginava. Onde você estava?, perguntou a mãe, desconfiada. Fui ver o carro que a polícia deixou. Eu já disse que este terreno baldio é perigoso, que não é para você andar por lá. Só fui dar uma olhada, ela respondeu. Pela primeira vez não reclamou quando a mãe mandou que lavasse as mãos antes da refeição.

Você pediu e agora não quer comer?, embrabeceu a mãe, enquanto ela virava o garfo no prato sem levar o estrogonofe à boca. Então levou. E mastigou. E teve um pouco de náusea. Mas o gosto era bom. Será que boi tem dedo?, pensou. Nunca tinha pensado na carne do boi assim, esquecida no tapete do carro. Comeu rápido e correu para o quarto. Garanto que foi ler. Esta menina vive lendo, resmungou a mãe. Mas ela não ouviu.

Sentada na cama, tirou o dedo de dentro do bolso. Ali, no seu quarto amarelo, ele parecia menos assustador, quase cômico. A unha era roída, ela notou. E meio suja. Aquela morte entre suas mãos provocava calor entre suas pernas. Escondida no quarto, e o dedo a revelava.

Quando a prima a chamou para voltar a brincar de esconder, ela percebeu que tinha feito xixi nas calças. Muitos anos depois, continuaria sem compreender que verdade o dedo apontava.

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