A besta

Tinha sonhado com aquela viagem. Planejado cada detalhe. Era do tipo que gostava de ler guias. Assinalava suas partes preferidas com marcadores coloridos. Fazia as reservas de hotel — e sabia em minúcias o que serviam no café da manhã. Resolvia tudo pela internet, mas fazia questão de ligar para conhecer a voz do recepcionista. Não é que não gostasse de imprevistos, mas achava que tudo precisava estar dentro de certo controle. Era bom ir para o mundo, mas nada impedia que essa entrega tivesse o sucesso assegurado por um nível estatístico de previsibilidade.

Na poltrona da classe econômica do avião, os talheres de plástico lhe davam uma sensação de ordem. Estava voando, mas em terra firme. Não tinha medo das turbulências. Elas pertenciam ao território das probabilidades controláveis. Assim como o sorriso quase displicente da aeromoça. E o inglês tatibitate do comandante. Os avisos que só ele obedecia de atar cintos. As instruções as quais prestava total atenção como uma daquelas crianças que pede aos pais para contar sempre a mesma história porque precisa da certeza de que o final ainda é o mesmo.

Ajeitou os fones de ouvido para não perder o começo do filme. Cheri, de Stephen Frears. Esquadrinhou o rosto de Michelle Pfeiffer. Amava Michelle. Seus traços tinham a harmonia da vida como ela deveria ser. Michelle deixava a juventude perder-se sem alarde. Sem desespero nem botox. Sua beleza estava além do tempo. Nunca a desejou carnalmente. Só queria olhar para ela. De longe. Mesmo que a encontrasse, entre o corpo dela e suas mãos haveria sempre uma tela.
Achou melhor que o filme acabasse assim. A melancolia era a segurança de Michelle, que não merecia despentear nem um fio de seu loiro cabelo por nada tão mundano quanto um amor. Cronometrado, sorriu satisfeito ao acompanhar os créditos finais. O piloto avisava que a aeronave estava em “processo de descida”. Sentiu o previsível friozinho no estômago. No caso dele apenas uma brisa, já que tinha se assegurado de não correr risco algum.

Trazia no bolso interno do casaco o valor exato da corrida de táxi e ainda uma gorjeta. Dentro das calças, numa pochete, carregava os cheques de viagem e os dólares. Apalpou seus dois cartões de crédito, cada um de uma bandeira, para que não se apertasse em caso de eventual pane no sistema. Junto com ele guardava o seguro-saúde. Tudo checado, estava perfeitamente pronto para desembarcar e se entregar às delícias de uma viagem de férias por mundos desconhecidos, mas nem tanto.

A esteira de malas sempre lhe dava certo grau de apreensão. Apesar da etiqueta com a identificação completa e o seguro em dia, em caso de extravio perderia um tempo precioso. Mas lá estava ela, com rodinhas de titânio e a bandeira do Brasil costurada na parte posterior. Arrastou-a pelo saguão até a fila do táxi. O carro era menos limpo do que gostaria, mas, voilá. Estava na América Latina. Preferia que o motorista fosse menos moreno, mas não podia esperar um tipo diferente numa população de maioria indígena. Certamente os descendentes de europeus não dirigiam táxis.

Estendeu o endereço do hotel num papel impecável, impresso com papel reciclado em sua copiadora a laser. Com a outra mão segurava o guia de espanhol para turistas. O motorista não sorriu de volta. O povo às vezes podia se revelar uma parte desagradável das viagens, suspirou. No meio do caminho o motorista finalmente falou. Grunhiu um preço duas vezes maior do que ele havia lido no guia. Folheou rapidamente seu espanhol para viagens. Perdoneme señor, pero pienso que este valor está un poquito alto. Mire, aquí em mi guía está escrito que… O mestiço interrompeu-o com um sorriso de dentes amarelos. A la mierda con su guía, brasileño. Si no quiere pagar, bájese de mi coche.

Pagou. A essa altura um pouco mareado. O guia havia garantido que era preciso ter um pouco de cuidado com larápios, mas que o povo era amistoso. Decididamente, o autor não conhecia aquele taxista. Cravou os olhos na janela suja. Não deixaria sua chegada ser contaminada pelo mau comportamento da ralé. Usted me he dado los billetes equivocados. Mire, son dos notas de diez. E tiene que darme dos de cien. Não era possível. Ele nunca se enganaria com algo assim. Empertigou-se e decidiu fazer valer seus direitos de cidadão do mundo. Dessa vez, o motorista gritou. Está dudando de mi, hijo de una perra? Piensa que sólo porque viene de Brasil puede hacer lo que le de la gana? Piensa usted que es el tío como Lula? Que le den por el culo! Págueme o bájese.

Pagou de novo. Agora todo o dinheiro havia se ido. Inclusive a reserva. Só lhe restava a gorjeta, que jamais daria para aquele índio ladrão. E o percurso entre o aeroporto e o centro da cidade ainda estava só no meio. Sentia-se definitivamente mareado. Faltava-lhe o ar. O colarinho da camisa coçava. Entre suas mãos, a capa do guia estava mole de suor. Tudo estragado. As semanas de planejamento. A antecipação. Suas férias. Tudo destruído por causa daquele homenzinho de quinta categoria. Aquela sub-raça que deveria ter sido varrida do mapa das Américas pelos espanhóis. Nunca mais viajaria a um país subdesenvolvido de novo.

Um sentimento novo foi crescendo dentro dele. Ele era um homem que trabalhava direito, que pagava seus impostos, que votava consciente, que separava o lixo, que todo ano apresentava níveis impecáveis de colesterol e triglicérides. Contribuía para a liga das crianças com câncer. Nem mesmo era racista. Sempre dava dinheiro para o guardador de carro pretinho. E um piparote na cabeça nem sempre limpa. Ele era um homem bom! E agora estava ali, no banco de trás daquele pulgueiro, roubado por aquele homúnculo. Não estava certo. O mundo precisava desvirar.

O motorista virava a esquina da rua do hotel. Um hotel-boutique, cada apartamento desenhado por um arquiteto diferente. Havia escolhido com todo o cuidado. Então parou. Bem longe da porta do hotel onde ele já avistava um porteiro uniformizado. Bájese acá, brasileño. E nem fez menção de ajudá-lo com a bagagem. Ao resgatá-la do porta-malas, as mãos trêmulas, viu a chave de roda. Não pensou. Sentia-se várias fronteiras além de qualquer planejamento. Enquanto com uma mão arrancava a chave da ignição, começou a bater no homenzinho. Nem se preocupava em decodificar seus gritos. Só batia e batia e batia.

Quando finalmente a polícia apareceu, o rosto do taxista era um continente de sangue. Seus braços eram as próprias veias abertas da América Latina, riu com gosto da piada interna. Queriam levá-lo preso. Apalpou o bolso da camisa ordinária do homem. Tirou de lá um maço de dinheiro e um dente. Comprou sua justiça. Era um homem civilizado, garantiu aos policiais antes de jogar a chave do carro longe para ter o prazer de ver o motorista engatinhar até ela.

No próprio bolso, conferiu, ainda tinha a gorjeta para dar ao porteiro reluzente do hotel. A viagem ainda poderia ser maravilhosamente previsível. E sem gentalha. Sem realidade. Sem uma vida que não fosse a sua.

Em seu hotel-boutique ele jamais precisaria lembrar que a besta dentro dele não constava de nenhum guia.

O perigo da história única

Contar uma única versão sobre nós mesmos pode significar abrir mão de viver

Desde muito cedo percebi que a trajetória de uma vida continha bem mais do que os conflitos visíveis. Em parte, me transformei numa contadora de histórias ao intuir que a forma como é contada uma vida pode significar a possibilidade desta vida. Assim como pode determinar sua morte. O mundo é um palco onde se digladiam as versões – e o poder é usado para impor a história única como se fosse toda a verdade. Não só entre os países, mas na vida social e também dentro de casa. Compreender o poder da narrativa é o primeiro passo para construir uma vida que vale a pena. É também a chave para alcançar a complexidade – ou as várias versões – da vida do outro.

Na semana passada, duas experiências me fizeram voltar a refletir sobre o poder das histórias, um tema recorrente nesta coluna e no meu trabalho. A primeira foi o filme Preciosa, já lindamente comentado neste site na coluna de Cristiane Segatto. A outra foi uma palestra de uma escritora nigeriana chamada Chimamanda Adichie.

Em Preciosa, filme de Lee Daniels em cartaz nos cinemas, concorrente ao Oscar, a personagem é uma negra gorda e enorme, abusada sexualmente pelo pai e de várias outras maneiras pela mãe, que frequenta há anos a escola sem que ninguém perceba que não sabe ler. Preciosa, este também é o nome enormemente simbólico da personagem, é um nada para muitos – e também para si mesma. Um nada difícil de olhar. Ela mesma, quando se olha no espelho, não se reconhece.

Desde que assisti ao filme, na sexta-feira de Carnaval, o recomendo com veemência aos meus amigos. Mas, assim como as pessoas ao redor de Preciosa, no filme, tinham dificuldade de olhar para ela, alguns amigos têm resistência em ir ao cinema “assistir àquela desgraceira”. Ou acompanhar uma personagem que contém em seu corpo todas as características relacionadas aos perdedores. Alguns amigos viram o trailer e decidiram fugir de Preciosa.

É uma pena. E é o que tenho tentado mostrar a eles – e agora a vocês. Não ver Preciosa é não permitir que ela seja vista de outra maneira. E perder uma oportunidade rara de descobrir que a vida – não apenas a dela, mas também a nossa – pode ser decodificada de uma forma mais generosa se nos reconhecermos em olhos dispostos a enxergar além dos estereótipos. Neste sentido, ao decidir assistir a este filme – tão diferente do que se costuma produzir em Hollywood – o espectador está se tornando parte da transformação de Preciosa. E isso é genial como proposta cinematográfica.

Na capa do livro de Sapphire, uma professora do Harlem em cuja obra se baseou o filme, há uma frase perfeita: “Você testemunha o nascimento de uma alma”. É exatamente isso. O filme é o caminho de Preciosa a partir do momento em que se vê refletida nos olhos da professora que a ensina a ler. Olhos dispostos a enxergar uma alma onde a maioria só via banha, violência e miséria.

Ao percorrermos com ela esse percurso, vivemos momentos muito duros. Mas é também imensamente redentor. No momento em que Preciosa descobre que há outras versões possíveis para a sua vida – e que ela mesma pode construir narrativas melhores – o mundo que é ela se amplia. E com essa experiência, também o mundo que somos nós é ampliado. Pelo menos foi o que eu senti. Saí do cinema mais larga. E amando a humanidade inteira. (Sem contar que a interpretação da atriz que faz o papel de sua mãe já faz parte da história do cinema. Se Mo’Nique não ganhar o Oscar de atriz coadjuvante vou jogar tomates na televisão lá de casa.)

Preciosa nos evoca o perigo da história única. Até não encontrar um olhar acolhedor onde se reconhecer, ela só se reconhecia no não-olhar de sua mãe. A escola que frequentara até então continuava olhando para ela sem ver, o que a manteve analfabeta por anos. Só quando encontrou uma narrativa alternativa para si mesma, Preciosa teve alguma chance de ter não só uma vida, mas também uma alma.

E este é o tema da palestra de Chimamanda Adichie, autora de Meio Sol Amarelo (Cia das Letras, 2008). Esta escritora de 32 anos pertencia a uma espécie de classe média da Nigéria, filha de um professor universitário e de uma secretária. Em sua palestra no TED (Ideas Worth Spreading), ela conta uma história feita de embates narrativos para mostrar como a história única aniquila a vida.

Linda e bem-humorada, Chimamanda mostra como a redução das histórias fez mal a sua maneira de olhar a vida de outros em seu próprio país. E fez mal à forma como outros olharam para a sua vida quando se mudou para os Estados Unidos – e sua colega de quarto só conseguia enxergá-la a partir dos estereótipos ligados a um “país” chamado África. Nesta narrativa, Chimamanda percorre as várias crenças sobre a África – e não deixa de mostrar como ela mesma embarcou na tentação das versões hegemônicas, como quando fez uma viagem ao México e incorporou o preconceito contra “os imigrantes”.

É pela intuição do enorme poder de transformação das histórias contadas que Chimamanda se transforma numa escritora. E também Preciosa. A professora faz mais do que ensiná-la a ler. Todos os dias, Preciosa precisa escrever um diário. Ao contar sua vida, literalmente nas páginas do caderno, ela descobre que é mais do que lhe haviam contado até então. Mais complexa e multidimensional.

Ao escrever sobre sua vida com papel e caneta, Preciosa descobre que pode reescrever sua vida na concretude das ruas. E é o que faz. Agora, ela pode se reconhecer nos olhos de outros. Ela gosta da imagem que vê. E nós, na poltrona do cinema, incomodados no início com toda a coleção de estereótipos que ela representa, também gostamos do que passamos a enxergar.

Numa reportagem que fiz em 2007, sobre a primeira geração de escritores das periferias do Brasil, especialmente de São Paulo, mostro os dados de uma pesquisa de Regina Dalcastagnè, professora da Universidade de Brasília (UnB). Ao analisar os romances brasileiros entre 1990 e 2004, ela revela que 94% dos autores e 84% dos protagonistas são brancos – e apenas 24% dos personagens são pobres. Ou seja, a história contada pela nossa literatura mostra um mundo de gente branca e de classe média.

É ruim? Não exatamente. É pobre. Não há nenhum problema em escrever e ler livros com protagonistas brancos e de classe média. Brancos de classe média fazem parte da sociedade brasileira. E era só o que nos faltava ter de fazer uma literatura politicamente correta. O problema não é o que existe, mas o que não existe, o que não está lá. O perigoso é não existir livros com outras cores e realidades, com diferentes autores e personagens.

A grande novidade também no Brasil, que é a razão da reportagem citada, é que hoje vem se ampliando também a pluralidade das vozes na literatura. Com a entrada de novos protagonistas no cenário das letras, nós, leitores, temos acesso a novas maneiras de ver o mundo e de estar no mundo. E a diversidade sempre faz bem para a vida, tanto a subjetiva quanto a concreta.

Chimamanda conta como fazia mal a ela não fazer parte da literatura, como personagem, já que os livros disponíveis na Nigéria de sua infância eram os escritos pelos colonizadores britânicos. Os personagens dos livros que lia gastavam boa parte dos dias falando sobre o tempo: “Será que vai fazer sol amanhã?”. Fazia todo o sentido para um britânico, mas era estranhíssimo para uma menina nigeriana, na medida em que não era apenas um dos mundos ao qual tinha acesso através dos livros, mas toda a literatura disponível.

Ao mesmo tempo, quando ela se torna escritora, é cobrada que seus romances não são suficientemente “africanos”. Como se ela só pudesse existir como narradora de uma determinada maneira, como se só pudesse contar uma única história. Como se um escritor do Capão Redondo, na periferia de São Paulo, por exemplo, só pudesse escrever sobre a violência e só pudesse escrever usando gírias. A arte é o território da liberdade. E da reinvenção. Nela, podemos qualquer coisa. Até sermos nós mesmos.

Quando Preciosa, no filme, escapa de sua vida impossível para divagações em que é glamourosa, desejada e talentosa, descobrimos porque ela ainda está viva. É pela fantasia que ela mantém a salvo a melhor parte de si mesma. A parte incorruptível de si mesma. Como faz a maioria de nós, mesmo sem ter uma realidade tão perversa como Preciosa.

Lembro que só suportei minha inadequação, na infância, porque ficava inventando enredos na minha cabeça em que era a protagonista. Quando era obrigada a interagir com as crianças da minha idade, só suportava ouvir aquelas conversas em que não encontrava pontos de conexão porque podia escapar pela fantasia. Me sentia um ET no mundo real, mas era uma heroína em meu próprio mundo. Ter a possibilidade de “me contar” em minha literatura íntima, assim como para Preciosa, em outras proporções, me assegurou a sanidade. Até hoje, quando a vida fica muito difícil e nem consigo entender o que falam ao meu redor, mergulho em narrativas inventadas – e nem por isso menos verdadeiras.

O perigo da história única, mais fácil de analisar na geopolítica do mundo, começa dentro de casa, na família. Como no caso de Preciosa. Quando nascemos, é o olhar da mãe o primeiro a nos constituir. Só nos reconhecemos como um ser para além da mãe a partir deste primeiro olhar fundador. Na infância, é no primeiro mundo privado que habitamos, o de dentro de casa, que iniciamos nosso embate com as histórias únicas. Quando os pais determinam que este filho é inteligente, aquele é preguiçoso e um terceiro é malvado, o mais provável é que aqueles filhos assim rotulados cumpram a profecia dos pais. Por isso, é comum ouvirmos: “fulano desde pequeno já era assim…”. Claro, como poderia ser diferente?

A versão dos pais sobre nós é a primeira versão narrativa da vida de cada um. E ela nos marca para sempre. Para o bem – e para o mal. Seja pela displicência, seja pela opressão. Quando é para o mal, se torna uma prisão. Não somos o que podemos vir a ser, mas um estereótipo fechado, vendido como a única verdade sobre nós mesmos. Este é o olhar que nos transforma em pedra. Afinal, as ovelhas negras de cada família são ou tornaram-se?

Se não encontramos alguém que rompa as grades deste olhar na escola, nosso primeiro mundo público, temos poucas chances na vida. Se, ao contrário de ampliar as versões narrativas, o professor cimentar ainda mais os rótulos familiares ou criar outros tão perniciosos quanto – com sentenças como “este é inteligente”, “aquele é burro”, “o outro violento”, “aquele não tem jeito”, “este é um caso perdido” – as chances minguam.

A história única na família e na escola é o ato mais covarde cometido por pais e professores que não sabem o que fazem – ou sabem, mas não conseguem ou não querem fazer diferente. Educar é ampliar as possibilidades narrativas da vida de cada um – e da vida dos outros.

De certo modo, crescer é tornar-se capaz de quebrar a sucessão de histórias únicas sobre a nossa existência. Foi o que aconteceu com Preciosa, a partir do olhar libertador da professora.

Se você estiver atolado na vida porque lhe fizeram acreditar em uma única versão, reaja. Não acredite. Exercite a dúvida sobre si mesmo – e sobre o outro. Será que é assim mesmo? Será que isso é tudo o que sou? Será que é só isso que posso ser? Tornar-se adulto é ter a coragem de se contar como alguém múltiplo e contraditório, um habitante do território das possibilidades.

No filme, Preciosa diz uma frase maravilhosa, num dia especialmente tenebroso. Algo assim: “Que bom que Deus ou não sei quem inventou os novos dias”. É isso. Há sempre um novo dia para todos nós. Um em que podemos nos reinventar.

P.S. – Você pode assistir à Preciosa no cinema ou, se sua cidade não tiver nenhuma sala, esperar o DVD. A palestra de Chimamanda Adichie é bem mais fácil e não custa nada. Basta acessar o seguinte endereço. Ela fala um inglês pausado e claríssimo, mas há também legendas em português. Imperdível. Aliás, vale a pena frequentar o www.ted.com, onde você pode assistir a palestras de algumas das pessoas mais interessantes do mundo. (Se não entender inglês, não se encolha. Depois de entrar no site, clique em “translations”. Centenas já têm legendas em português.) Se quiser saber mais sobre os novos atores da literatura brasileira, pode ler minha reportagem Os novos antropófagos.

(Publicado na Revista Época em 22/02/2010)

O homem-merda

Devia ser proibido obrigar um homem a entrar em contato com a própria merda. Foi o que pensou enquanto o médico preenchia impassível a requisição do exame de fezes. Sentiu inveja do doutor, que podia usar a palavra “fezes”. Discorria sobre as fezes alheias sem perder nem a pompa nem aquele bigode ridículo. Ele, por mais que tentasse, não conseguia. Na cabeça dele as fezes já vinham como merda. Ou irrompiam infantilizadas. Cocô. Mas ele era macho para caralho. E macho para caralho não fazia cocô. Fazia um merdão. Quando o exame ficar pronto, você volta, o médico interrompeu seu raciocínio merdolengo.

Enquanto dirigia até o laboratório, só pensava que teria de fazer cocô num potinho, colocá-lo num saco plástico e entregá-lo a outro homem. Esperava que fosse um homem. Não, não, não, uma mulher não!!! Suou frio e quase bateu no carro da frente. A loira lhe mostrou o dedo pelo retrovisor. Vadia, vem aqui chupar o meu pau! Vaca.

Pensou ter notado um sorrisinho malicioso no canto dos olhos do atendente que preenchia sua ficha no computador, bem ao lado de uma remela pernoitada. Ele sabe, claro. Está rindo por dentro. Me imaginando com um potinho debaixo do cu. Cravou os cotovelos na mesa e arregaçou a camisa, deixando exposta sua tatuagem do dragão de Komodo. Pode rir, imbecil.

Plim-plom. Sua senha brilhou no luminoso. Quase cagou nas calças de felicidade. Era um homem no balcão. Estudou-o. Parecia um cara normal, um que não ria da merda dos outros. Cumprimentou-o com indiferença profissional. Um cara decente. Ganhando a vida honestamente sem humilhar ninguém.

Agarrou rapidamente o kit de plástico. Já virava as contas quando o atendente o chamou. Olha aqui as colherinhas. Depois de fazer, você tem de pegar uma colher e botar em cada um dos potinhos. Repetiu o gesto duas vezes, o bostinha. Sentiu seu rosto pegando fogo. Desde a quinta série que não ficava vermelho. Grunhiu. Já virava as costas de novo quando ouviu a piadinha. Não vai fazer feio, hein. Me traz um potinho que valha a pena. Viado. Só podia ser viado.

Não conseguiu dormir naquela noite. Tentou explicar para a namorada. Eu queria levar para aquele filho da puta um capitão, entende. Se tenho de me expor, que seja com um bagulho bem formado, vistoso, com consistência. A namorada levantou os olhos da Quem Acontece com aquele olhar de não acredito que foi para isso que você interrompeu minha leitura da entrevista do George Clooney. Mulher não entendia dessas coisas. O George Clooney entenderia. Mas o George Clooney não tinha diarreia. Tinha certeza disso. O cara só cagava alta patente, coisa de tenente-coronel pra cima.

Liga para o Paulão, sugeriu ela, arrancando distraída um pedaço da cutícula do mindinho com os dentes. Imagina se ele ia ligar para o Paulão para contar que só cagava chá de boldo há três dias. O Paulão, que arrancava tampa de cerveja com o olho. E isso no tempo em que as tampas exigiam abridor. Arrotou em resposta. Mas achou que até o arroto estava meio metrossexual.

À noite, sonhou que nadava num mar de merda líquida. Cada vez que tentava se agarrar num cocozão para não se afogar, ele se desmanchava na sua mão. Acordou sentado na cama, berrando, no exato momento em que o atendente do laboratório passava num iate, espanejando merda para todo o lado. Merda, gritou. E a namorada, com a voz grogue de sono, recomendou que desta vez não se esquecesse de dar a descarga.

Quando a hora chegou, encaixou o potinho. E deixou a vida lhe levar. Botou uma colher de merda em cada potinho, a respiração trancada. Embrulhou na sacola plástica do laboratório e ainda usou mais duas, uma do supermercado, a outra da academia de jiu-jitsu. Acomodou o potinho ao seu lado, no banco. Dirigiu como uma velha. Depois de meia-hora, estava sentado na sala de espera, de olho no painel. O potinho embrulhado no colo.

Tinha certeza de que aquela velha gorda estava olhando para ele. A desgraçada sabia que era um portador de bosta líquida. Discretamente cheirou o ambiente. Lá no fundo sentiu um cheiro de merda. Será que os outros sentiam? Olhou para os lados, com ar reprovador. De onde vinha aquele fedor? Cravou olhos acusadores na gorda. Vingança. As gordas são os mordomos de hoje.

Se o cara do balcão fizesse algum comentário, enfiaria a sua merda no cu dele. Esperando alguém ou é para você mesmo?, o cara do lado perguntou. Não era possível que o único imbecil a puxar papo naquela sala asséptica tinha se sentado ao seu lado. Vim trazer um negócio aqui. E cravou os olhos no vaso laranja da mesa. Estudou-o como se fosse uma escultura de Rodin.

Peguei gonô de uma periguete numa balada na Lapa. Não gosto de camisinha, saca. E você? Morra, ele pensou. Plim-plom no painel. Não era a senha dele. Nem do babaca ao seu lado. Vim doar esperma para mulher sem homem ter filho, ele disse. Gosto porque a playboy da sua mãe só tem aqui.

Plim-plom. Sua senha brilhou em vermelho no monitor. Levantou-se, pisando duro. Se o cara mostrar os dentes, faço ele beber a merda toda. Largou o pacote no balcão com força temerária. Estou com diarreia, e daí? Vai encarar? Só então olhou para o sujeito.

De trás do balcão lhe sorria uma japonesinha de óculos. Ela conferiu o conteúdo com expressão indiferente. Avisou que o resultado poderia ser acessado pela internet em dois dias. Em seguida, desejou um bom dia. Ele esquadrinhou os olhinhos redondos em busca de um chumaço de sarcasmo. Nada. A japa já estava de volta às suas planilhas.

Pensou em lhe mandar flores. Mas a natureza interrompeu o curso de suas melhores proposições com um chamado urgente. Correu para o banheiro. E, sem potinho nem traumas, esvaziou o intestino. Saiu satisfeito do reservado. Quase sorrindo. E lá estava ele, o merdinha do balcão. De pau na mão. Mijando.

Reconheceram-se. Com o canto do olho, ele mediu a arma do adversário. Ha Ha Ha. Dez centímetros no máximo. Duro. Saiu do banheiro se sentindo macho para caralho. Naquela noite cagou um general de quatro estrelas.

O mito da fertilidade

Na reprodução, estamos mais próximos dos pandas que dos coelhos

Dias atrás, numa reunião de pauta da Época, minha colega Cristiane Segatto, em minha opinião a melhor jornalista de saúde do país, comentou: as chances de uma mulher jovem engravidar naturalmente, sem nenhum problema de fertilidade com ela e com o parceiro e transando no período fértil, é de apenas 25% a cada mês. Dito de outra maneira: se está tudo certo, certíssimo, e você acertou a data da ovulação, tem 75% de possibilidade de NÃO engravidar. E, claro, quanto mais idade, menor a probabilidade estatística. No meu caso, com 43 anos, descobri que, depois de um ano de tentativas, é quase mais fácil eu acertar na mega-sena, o que está nos meus planos (a mega-sena, não o bebê).

Pode ser ignorância minha, mas eu achava que era muito mais fácil. Acreditava que, se tudo estivesse certo com o casal, bastava acertar o período de ovulação e, pronto: baby a caminho. Pelo que tenho conversado por aí, a ignorância não é só minha. Entre minhas amigas, parte delas naquela fase em que enxergam bebês por todo canto, acordadas ou dormindo, o mito da fertilidade segue forte. E fazendo vítimas.

Tenho observado o comportamento feminino. Vejo mulheres bonitas, saudáveis, que têm o privilégio de trabalhar no que gostam, são donas do próprio dinheiro, do nariz e de todo o resto, discorrem sobre temas complexos com inteligência e até mesmo sensatez e…. na hora de engravidar, piram. Alucinam totalmente. Acham que precisam se tornar uma versão sarada da Vênus de Willendorf, aquela figura gordinha, toda protuberante, esculpida mais de 20 mil anos atrás. Quando não conseguem engravidar, se deixam reduzir a um “útero defeituoso”. Sim, já ouvi o termo várias vezes, boquiaberta. Não são mais mulheres, nas várias dimensões da vida, mas úteros. E úteros com problemas. Se pudessem, cobrariam da natureza ou de Deus um recall.

Percebo também que há uma divisão não declarada, mas vivida como verdade: existiriam as mais mulheres que as outras. As mais mulheres, as superfêmeas, são as que engravidam na primeira tentativa ou até sem tentar. Depois, têm parto natural. Sou uma crítica contumaz da indústria das cesarianas, responsável em parte pelo vergonhoso índice de mortalidade materna do Brasil. E uma defensora do parto natural sempre que é possível. Sou contra, porém, um comportamento que começa a se difundir entre as mulheres da classe média urbana e intelectualizada: quem não pôde ter parto natural e fez cesariana é vista como se fosse menos mãe e mulher que as outras. Como se não tivesse “conseguido”.

Devagar. Os extremos nunca fazem bem ao bom senso. Mas este é um tema para outra coluna. O que nos interessa aqui: é maior do que pensamos o número de mulheres esclarecidas que não admitem ter feito tratamento para engravidar porque se sentiriam menos femininas e, depois, menos mães que as outras. Sentem-se mulheres imperfeitas, com defeitos. E escondem esta “mácula” na sua biografia pública.

O que acontece? Acho que estamos muito confusas com a maternidade e todas as suas implicações. Apesar da overdose de informações médicas, ao alcance de todos no Google, há muito que não sabemos. E sobre muitos aspectos do feminino, do sexo e da maternidade, calamos. Como confessar que não somos atletas sexuais em busca de orgasmos múltiplos com as capas de revistas femininas nos transformando em Messalinas do século 21? Ou, o assunto desta coluna, como dizer que temos dificuldade de engravidar, que não somos uma vênus da fertilidade, e que toda essa pressão não nos deixa nem com vontade de transar, o que torna tudo ainda mais difícil? Afinal, boa parte da informação e da publicidade – sempre com amplo uso de termos médicos para dar ares científicos ao que é pura especulação – tenta nos convencer que, para sermos completas, precisamos nos tornar ao mesmo tempo tecnológicas como uma personagem de animação futurista e “naturais” como nossa ancestral Lucy, a australopithecus afarensis de mais de 3 milhões de anos.

Tenha a santa paciência. Dizem que as mulheres falam muito – até demais. Sobre isso, acho que as mulheres falam pouco – de menos. Para quebrar um pouco esse silêncio envergonhado, procurei uma das minhas amigas grávidas. Eu sabia que ela tentara engravidar por muito tempo, mais de um ano. Também sabia que sua vida havia se complicado muito naquilo que ela encarava como “fracasso”. Nesse período, ela se afastou. Quando nos encontrávamos, evitava falar sobre o assunto. E quando me contava sobre seus problemas, descubro agora, eu errava feio. Em vez de escutar de verdade, eu dava conselhos ao estilo de Zeca Pagodinho: “deixa a vida te levar”. Dizia mais. Que conhecia muitas mulheres que fizeram tratamento para engravidar e, depois desse primeiro filho tão difícil, relaxavam e engravidavam sem planejamento. Que ficar tão obcecada só atrapalhava. Que devia esquecer o assunto por uns tempos.

Claro, ela não falava mais. Quando a procurei, me perdoou pela minha estupidez. E me deu a entrevista a seguir, por acreditar que pode ajudar mulheres que sofrem tanto quanto ela. Ou, pelo menos, ajudar a sofrer um pouco menos. Esta é a experiência da minha amiga, com toda a história que é só dela. Com suas neuroses, seus traumas, seus medos, suas expectativas e suas atrapalhações. Há muitas outras. Esta coluna é só um jeito de começar a falar.

Espero que não seja lida só por mulheres. Imagino que não seja fácil para um homem viver todo esse processo ao lado da mulher com quem divide a vida – e o sonho de ter um filho. E um dia gostaria de ouvir um deles. A entrevista pode ajudar a entender um pouco melhor a tão complexa intimidade feminina. E se os dois tiverem a coragem de falar honestamente de seus medos e dificuldades, talvez esse momento possa ser mais leve. E até bem interessante.

Minha amiga está mais perto dos 40 anos que dos 30. E hoje está grávida, mas ainda não contou para a maioria das pessoas. Tentou vários métodos e conseguiu engravidar por fertilização in vitro. Mas decidiu não revelar para os amigos e conhecidos que precisou de tratamento. Ela sabe que é uma bobagem, mas continua se sentindo menos mulher por ter precisado da ajuda da tecnologia para engravidar. Não temos o direito de julgá-la. Só de ouvi-la. Para nos contar sua história, ela precisou de muita coragem para revirar segredos bem doloridos.

Eu: Por que você quer ser mãe?
Ela: Não sei direito. Um pouco porque parece ser uma consequência natural da vida, um pouco pela vaidade da continuidade de mim mesma, da sensação ilusória, mas inevitável, de ter algo verdadeiramente “meu”. Ou que dependa, ao menos por um tempo, exclusivamente de mim. Soa horrível, mas é o que sinto. Às vezes por fatalismo, às vezes por puro egoísmo, não sei. Não é uma escolha racional. É um desejo, quase um capricho.

Eu: Em que medida ser mãe é desejo seu e em que medida é pressão familiar e social?
Ela: Não sei avaliar. Com certeza há uma pressão familiar tácita e social também. Mas é algo meio de bicho ou de obrigação social muito arraigada, a ponto de eu não conseguir identificar. Eu não paro para pensar. Está lá, simplesmente. E há muito tempo.

Eu: Quando você começou a sentir que queria ser mãe? E como este sentimento influenciou sua vida?
Ela: Desde a adolescência a maternidade está presente na minha vida, mesmo que como negação. Sempre levei esse desejo muito a sério. Era como se fosse um desdobramento natural da vida tornar-se mãe, uma questão de tempo para toda mulher, e uma questão com um algo da ordem do sagrado, algo de muito importante. Mas eu queria experimentar isso de uma maneira supostamente responsável, sem grandes atropelos – ao menos assim eu idealizava. Então adiei por muitos anos o plano e sempre me precavi neuroticamente para evitar ficar grávida fora de hora, ou do que eu considerava fora de hora, como vi acontecer com outras amigas e me assustou muito. Mesmo assim, desde os 20 e bem poucos anos tenho os exames pré-natais em dia, porque, por mais que a gente se previna, não temos o controle de tudo. Então ao menos eu estaria pronta fisicamente.

Eu: Isso determinou a escolha dos homens com quem namorou, casou?
Ela: Casei com um homem que tinha alguns impedimentos para ter filhos. Ele topou ter um filho comigo, mas minha impressão era de que era mais por amor a mim do que por um desejo dele. Com o tempo, essa diferença de vontade me pegou. Logo que começamos a namorar, consultamos um especialista e soubemos que teríamos de fazer tratamento. Mesmo eu não querendo engravidar naquela hora, fui ao médico porque queria me sentir segura de que estava preparando o terreno para o futuro da melhor forma possível. Me separei dele dez anos depois por iniciativa minha e por motivos que até hoje não são claros para mim. Na época, ele cogitou que uma das razões fosse a pouca vontade dele de ter um filho ou a dificuldade que teríamos. Não sei. Mas, curiosamente, na sequência me apaixonei por um homem, meu atual marido, muito fértil, que já tinha filhos e é um excelente pai, dedicadíssimo. Desde as primeiras saídas deixei claro que eu queria ser mãe um dia. Se isto não estivesse nos planos dele, então o relacionamento não iria muito longe. Ele topou. Às vezes me pergunto se minhas escolhas não foram influenciadas inconscientemente pelo instinto de ser mãe – se é que ele existe mesmo.

Eu: Quando você decidiu que era hora de engravidar, o que fez? Essa ideia de engravidar não atrapalha na hora de transar? Dá para gozar querendo tanto que um filho seja concebido?
Ela: Quando decidimos que era hora, falei com minha médica, fiz novos exames e tomei novas vacinas. Parei com a pílula. Não mudou exatamente o jeito de transar, de viver, mas, para nós, criou-se uma ansiedade crescente, uma expectativa que virava uma tristeza a cada menstruação. Meu marido era excessivamente otimista e achava que eu ia engravidar no primeiro ciclo. Eu sabia que já era um pouco velha biologicamente, que tinha adiado demais os planos de maternidade e que talvez a coisa demorasse. Os exames estavam todos muito bons, mas a gravidez não acontecia e isso trazia tensão. Por que não acontecia? Eu ficava com raiva dele quando a gente brigava perto dos períodos férteis, porque seria uma oportunidade a menos. Meu foco na transa mudou um pouco, sim. Pareciam aquelas transas sagradas, meio ritualísticas das tradições antigas, com uma finalidade por trás…

Eu: Vocês conversavam sobre isso?
Ela: Nunca falei isso pra ele, até para não comprometer o sexo, que sempre foi uma coisa muito boa nossa. Sinto que ele também ficava ansioso para a gravidez rolar toda vez que transávamos. Acho que eu fiquei menos preocupada em gozar nessa época. O foco era outro. Mas não atrapalhava, não impedia. Ao contrário, parecia que enobrecia. Eu queria muito que meu filho fosse concebido numa transa muito boa, com um belo orgasmo. Mas infelizmente a ansiedade começou a perturbar. Em alguns momentos, ficou um pouco mecânico pra mim.

Eu: Em que momento começou a dar medo de não conseguir? E o que este medo fez com você? E com a sua vida?
Ela: Como eu sou muito ansiosa, o medo veio logo. Meu marido era otimista demais. Isso acabava sendo uma pressão indireta. Ele teve filhos muito facilmente. Por isso, eu comecei a me sentir “defeituosa”, inferior a outras mulheres. Em alguns momentos, tive raiva e inveja de mulheres que engravidavam, mesmo de amigas muito queridas. Ficava puta quando alguém que eu julgava irresponsável, não merecedora daquela “graça”, engravidava. Como se fosse uma questão de mérito, sabe? Por que eu, que tinha feito tudo “direito”, planejado, escolhido um momento de relacionamento tranquilo, de segurança financeira, porque eu, que era uma ótima tia e madrasta, não conseguia, e tanta mulher sacana conseguia? Tive sentimentos muito ruins. Eles me puxavam mais pra baixo ainda. Me sentia muito injustiçada pela natureza. E diminuída, que é o pior dos sentimentos. É como se não ser fértil, ao menos naquele momento, me diminuísse. Mudei de emprego. Não exatamente por causa da gravidez, mas isso pesou. Decidi trabalhar em algo mais tranquilo, com menos horas, pensando no projeto de ser mãe. Mas o trabalho não me satisfazia e, ao mesmo tempo, eu não engravidava. Fiquei meio amarga, meio ranheta, ranzinza, pouco generosa. Estou grávida, mas ainda me sinto um pouco assim. Não sei se os outros se dão conta disso, mas eu me sinto assim.

Eu: A partir de um determinado momento, você teve de enfrentar a questão de que não seria fácil gerar um filho. Tive a impressão de que você ficou meio obsessiva… Como lidou com isso na família, na vida social?
Ela: Eu não falava para as pessoas que estava tentando porque tinha um pouco de vergonha e incômodo de elas saberem que eu não estava conseguindo. Então desconversava sobre esse assunto, fingia desinteresse. Comecei a ler mil sites e porcarias sobre gravidez. Descobri sites horrorosos, com fóruns deprimentes de mulheres inférteis. O que eu chamava de “gineco” ou de “minha médica”, para elas era GO. Estas mulheres tinham abreviações e códigos próprios. Muitas iam a dois médicos ao mesmo tempo, de tão neuróticas. O contato com esse universo me deprimiu, porque pelo menos em um ponto eu me identificava com elas: não conseguia engravidar. Ficava lendo estatísticas para me sentir mais confortada. Descobri, para meu alívio, que mulheres na minha idade tinham 12% de chance de engravidar naturalmente depois de um ano. Parece idiotice, mas este tipo de informação me consolava. Comecei a fazer continhas horríveis de período fértil para transar. Na neura de engravidar, meu marido e eu compramos um produto que mede o dia da ovulação pela quantidade de sal na saliva. Usei três meses esse medidor e me senti meio ridícula e enganada, até que joguei num canto do armário. Não teria coragem de contar a ninguém que fiz isso. E fiquei aliviada quando um amigo do meu marido disse a ele que estava usando um também com a mulher. Não éramos os únicos ETs.

Eu: Você se sentia um ET por não engravidar?
Ela: Me incomodava que meu marido dissesse não conhecer ninguém com dificuldade de engravidar. Eu me sentia pior. Até que fui mostrando a ele casos próximos. Eu precisava provar a ele que não era a única mulher que não engravidava fácil. Amigos passaram a desabafar com ele, e ele percebeu que isso acontecia, mas as pessoas não contavam. As pessoas não gostam de falar de fracassos. Quando viajávamos, meu marido queria comprar coisas para o bebê que não existia. No começo, eu topava, meio a contragosto. Mas isso começou a me incomodar. Era como montar um enxoval para um fantasma. Da última vez que viajamos, eu me neguei, categoricamente. Fui dura. Não queria aquele sofrimento. Quando estivesse grávida mesmo, compraria. Não queria me sentir mais iludida nem patética.

Eu: Em que momento você decidiu que era hora de tentar inseminação artificial?
Ela: Depois de quase um ano tentando, minha médica achou que, pela minha idade, era melhor tentar alguma coisa mais radical. Ela propôs inseminação artificial. Era feita no consultório mesmo. Era importante para mim saber que tudo era simples, que eu não era um alien num laboratório. Meu marido foi bem parceiro nessa hora, com muito bom humor, e isso me ajudou muito. Mas eu me sentia constrangida de estar fazendo um tratamento desses. Eu concordei, mas dentro de mim eu resisti e fiquei triste, tensa. Meu marido me encorajou, a médica falou que era normal, que a Medicina está a nosso serviço. Mas eu torcia para que rolasse naturalmente, nos intervalos do tratamento. Não deu certo e foi uma bomba. No mês seguinte a médica quis esperar, mas não aguentamos. Tentamos algo chamado “coito programado”, em que você é estimulada com hormônios e transa num dia e horário específicos. Péssimo. Foram dias HORRÍVEIS. Deu muito errado, produzi mil cistos, meus ovários ficaram gigantes. Foi o pior momento de todos. Nessa época, eu tinha comprado na rua, por pena da vendedora, três assinaturas de revista. Só queria ajudar a moça e acabei escolhendo uma revista de bebês. Meu marido ficou super entusiasmado. Veio o primeiro número e eu não tinha engravidado. Odiei tanto aquele exemplar… Me senti tão humilhada, com tanta raiva, que liguei suspendendo a assinatura por seis meses. O curioso é que a revista voltou a chegar no primeiro mês da minha gravidez. Foi uma gentileza do destino.

Eu: Nessa época, como era para você se encontrar com bebês e mulheres grávidas? Você chorava?
Ela: Chorar, não. Fiquei mais amarga, tentando me manter “realista”, prática. Houve um tempo em que eu fiquei com um pouco de raiva de bebês. Não fazia questão de pegar nem de chegar perto deles. Nunca fiz muita questão, mesmo, sempre fui arredia, porque eles pareciam e me parecem até hoje assustadores. Mas, nesta fase, eu queria menos ainda. Tinha ainda mais raiva das mães deles. Ainda tenho um resquício disso: inveja de barriga. Espero que passe, porque ainda me culpo por sentir coisas ruins pelas pessoas.

Eu: Você disse que as pessoas silenciam sobre a dificuldade de engravidar. Por isso, quem não consegue se sente um ET. Por que você acha que é tão difícil admitir e lidar com tranquilidade com a dificuldade de engravidar? Por que para você é tão difícil falar sobre isso, mesmo agora, que já engravidou?
Ela: Acho que sou como as outras pessoas. Eu tenho certo constrangimento de dizer que fiz tratamento. Só contei para pessoas muito, muito chegadas, umas cinco. Eu e meu marido pensamos em não falar para ninguém e mentir para quem perguntar. Me sinto mal por mentir. Mas me sinto mal também de achar que podem me olhar diferente, como se meu filho fosse menos, e minha gravidez, artificial. É estranho. Não foi numa transa natural, com orgasmo, secreções e suor. Foi num laboratório. É como se eu fosse menos que as outras, que conseguiram tão naturalmente. Conheço pessoas que engravidaram numa única transa. Meu marido é uma delas – o que já fez e às vezes ainda faz com que eu me sinta uma droga de mulher. Como engravidar era algo muito desejado por mim, essas pessoas me pareciam “superiores”, férteis, mais capazes que eu. Admitir a dificuldade de engravidar é admitir que eu sou “menor”. Sei que soa neurótico, mas não tenho controle sobre isso. Ao longo desse tempo descobri amigas próximas que também tinham feito tratamento, mas nunca me contaram. Falam só em conversas íntimas. Talvez seja uma neura minha. Todo mundo fala que, para ter filhos, basta relaxar e transar. Então, se a regra é essa, quem não consegue tem um problema. É um extraterrestre. Parece que vão te olhar com cara de piedade: “coitada, ela não consegue engravidar”. Foi muito importante pra mim, quando eu estava me sentindo muito mal e insegura, ter encontrado minha dermatologista. Na primeira consulta, eu falei que estava tentando engravidar, pra ela saber que remédios podia me dar. Ela então falou, com cara de felicidade e como se fosse a coisa mais normal do mundo, que tinha feito tratamento. Me desconcertou. Era uma mulher linda, de 32 anos, alegre, poderosa, bem vestida, bem sucedida, num consultório chiquérrimo, falando com a convicção daqueles depoimentos de propaganda na TV.

Eu: Foi nesse momento que você teve coragem de tentar outro tratamento?
Ela: Sim, ela tratava de um jeito natural. Era como eu queria ser e me sentir. Ao longo das consultas, ela intercalava as intervenções com papos de muita leveza sobre a dificuldade dela, a tristeza, as crises de choro a cada mês, durante o que ela batizou de “enterro do modess”, quando a menstruação vinha. Falou das tentativas frustradas e de como ela não quis esperar, apesar de ser nova. Pensou que estava no melhor momento da carreira, da vida pessoal, e que não ia seguir os conselhos dos antigos de esperar que a gravidez viesse na hora que tivesse de vir. Ela me pareceu livre, sabe? Livre para achar que aquela era a hora e dane-se se não fosse a forma ideal. Dane-se o tempo da natureza. Não quero mais sofrer. Ela fez fertilização in vitro e engravidou de gêmeos na primeira. Um casal lindo que eu via nas fotos do consultório. Foi ela quem me indicou a especialista que fez meu tratamento. Primeiro, eu guardei o nome e o telefone da médica e não usei. Dois meses depois, quando a inseminação feita pela minha médica de sempre deu errado, marquei uma consulta. Mas cancelei. Mais dois meses e voltei à dermato. Ela, muito delicadamente, perguntou se eu não tinha ido à especialista. Aquilo me pegou. Foi um incentivo. Marquei nova consulta, mas, dessa vez, fui. A médica era sóbria e delicada, bonita, na dela. Eu tinha horror das clínicas de fertilização dos medalhões, com médicos soberbos falando de bebês como quem fala de reprodução de vacas, de manadas inteiras produzidas no laboratório, que se envaidecem dos muitos bebês que já fizeram na “fábrica” particular deles, de como tudo é muito fácil. Então fui nessa médica que nem eu tinha ouvido falar. Só peguei referências na internet. Deu tudo certo na primeira vez. Sou muito grata à dermatologista linda e assumida que me indicou essa clínica. Grata pelo alto astral e, principalmente, pela naturalidade com o tema que eu não consigo ter, mas que me conforta.

Eu: Como foi isso tudo para o seu marido?
Ela: Para ele, era uma incômoda novidade. Ele teve filhos muito facilmente com a primeira mulher, até quando não quis. Por isso tinha dificuldade de entender que podia demorar, que uma coisa era minha aparência jovem, outra a idade dos meus ovários. Parece que homens falam pouco sobre isso entre si, confundem fertilidade com potência, não têm paciência para assuntos biológicos. Então ele não tinha muito recurso pra lidar com isso. Dei a ele mil “palestras” de reprodução, falava da comprovada baixa competência da espécie humana para a procriação – estamos mais para os pandas do que para coelhos e insetos, na escala de eficiência reprodutiva… Mas ele só absorveu isso com o tempo e com as conversas com os médicos. O excesso de confiança e otimismo dele me incomodavam, mas eu não achava justo desanimá-lo. Alguém tinha de acreditar que daria certo e puxar a gente pra cima. Ele topava tudo, era participativo, ia onde precisasse ir, fazia piada dos detalhes insólitos do tratamento – como as diferentes comodidades de cada “sala de punheta” das diferentes clínicas, a necessidade de colocar um tubo de ensaio com esperma preso no sutiã para “que não esfriasse” (!!!) no caminho entre o laboratório e o médico que faria a inseminação… É todo um universo diferente, maluco. Felizmente, com atendentes e médicos bem-humorados para quebrar o gelo.

Eu: Você fez muitos testes de farmácia? Aquela sensação de querer muito estar grávida, mas no fundo saber que não está? De ficar com medo de ver?
Ela: Aconteceu muito isso e foi horrível. Eu fazia exercícios comigo mesma para não acreditar que eram sintomas de gravidez, para não sofrer. Me dizia: “Você não está grávida. Esta cólica parece de menstruação, este inchaço pode ser qualquer outra coisa”. Claro que não funciona tão bem. Fazer um teste de farmácia que dá errado é uma das coisas mais deprimentes e humilhantes que existem nessa fase.

Eu: Para mim, que acompanhava um pouco de longe, me parecia mesmo uma espécie de obsessão. É assim que você vê?
Ela: Não. Não chegou a parar minha vida no cotidiano. Mas ficava algo suspenso de fundo, uma vida expectante, sei lá. O dia a dia corre normal. Mas parece que o cenário está parado, esperando a grande cena. Meio confuso isso, mas é como eu sentia.

Eu: Você gastou muito dinheiro?
Ela: Sempre me preocupei em guardar grana pra isso, caso precisasse. Hoje, felizmente, há opções acessíveis de tratamento, até para quem não tem dinheiro. Quase fui fazer numa universidade que só cobra os remédios, para apoiar a iniciativa. Mas não tive paciência com os horários e restrições. Hoje há muitas clínicas boas e alternativas para quem não pode pagar. O difícil é a pessoa ter acesso à informação, não ao tratamento. Eu gastei uns 13 mil reais, fora as consultas. Esta área é muito profissionalizada. Se você acha uma clínica séria, como eu achei, eles otimizam seus gastos, ajudam você a planejar, a montar esquemas para gastar menos. É surpreendente como são organizados. Você é assessorado por uma enfermeira que ensina exatamente como aplicar os remédios, que fica disponível 24 horas. Tudo é superexplicado. Eles te dão a opção de comprar os remédios com eles ou indicam revendedores, porque tudo é importado. O tratamento mesmo custou 8 mil reais. O resto foi gasto em remédios e no congelamento dos embriões restantes, porque eu produzi muitos.

Eu: É uma enorme dose de hormônios e medicamentos, imagino… Não é meio assustador?
Ela: Você tem de tomar antibiótico antes de começar e pílula anticoncepcional por um mês. Quando você menstrua, injeção diária de hormônios nos horários exatos, que você aplica em casa. A partir do dia “x”, já é outra injeção. Você bota um adesivo de hormônios no quadril, também. Daí, no dia “y”, você toma uma terceira injeção. Nesse momento, vai lá aspirar os óvulos, sedada. Neste dia eu passei bem mal. Em seguida, você volta depois de três dias para injetar os embriões selecionados – durante três dias eles botam numa cultura para ver quantos e quais vingam, para escolher os melhores. Esta parte do processo foi boa porque eu estava bem orientada. Na inseminação e no tal coito, acho que faltou melhor acompanhamento. Na clínica boa que eu fui eles medem seu fluxo sanguíneo e calculam exatamente quanto de hormônio você vai precisar. Com isso, você sofre menos fisicamente. Eu não senti grandes coisas, só inchaço e cólica durante algumas semanas. Foi bem mais tranquilo do que eu pensava que fosse. Como me estimularam direito, eu produzi muitos óvulos bons. (E isso para mim é uma vitorinha, um alívio sentir que finalmente produzi muito e bem.) Como o sêmen do meu marido era excepcional, como tudo corria muito bem, esta fase foi mais animada. E deu certo. Da melhor maneira, que é um embrião só. Pensei que seria mais fácil não tocar no assunto do tratamento se fosse um só e não gêmeos, como é comum. Olha, quando me senti segura e bem orientada, numa clínica boa, fiquei mais tranquila, acolhida. Eles sorriem e te tratam bem. Foi bem mais fácil, leve e cômodo do que eu pensava. Depois, durante dois meses você tem de tomar progesterona e colocar o tal adesivo de estradiol para ajudar a prevenir abortos.

Eu: Fico observando as palavras que você usa e me vem um estranhamento. Esta história de “o esperma do meu marido era excepcional”, o embrião “ser dos bons”, não é esquisito tratar dessa maneira tão técnica? O que é um esperma “excepcional”? Não é por isso que, por conclusão lógica, você seria uma mãe “defeituosa”, como você diz? E não é meio maluco olhar por esse ângulo? Este não é um jeito de olhar tão mecânico e técnico, mas que, como vemos pelo seu relato, causa um sofrimento, digamos, tão carnal e intenso?
Ela: Eu uso estes termos porque são os que eu ouvi. Ou concluí depois de analisar resultados, comparando com as médias. Há parâmetros para ver a qualidade e é inevitável você xeretar essas coisas. Assim como é inevitável você ficar intrigado ou animado quando recebe seus exames. É como quem olha seu colesterol ou hemograma e fica feliz ou desanimado. Há espermogramas horríveis, existem óvulos ruins. E você vai descobrindo isso naturalmente ao longo do tratamento. Eu não vejo problema em encarar assim. Apesar do envolvimento emocional, sempre me detive nesses aspectos objetivos para pisar na realidade, saber exatamente o que tenho pela frente. Quando um familiar teve câncer, eu sabia tudo “tecnicamente”. Para quem perguntava especificamente, eu respondia assim também: o nome do tumor, o tamanho do risco, o número das vértebras atingidas etc. Para alguns parecia frio quando eu falava em prazos, perspectivas. E aquele era um caso bem pessimista. Minha família às vezes se chocava, mas era a minha maneira de lidar com a realidade, me preparar, saber que atitudes tomar, o que esperar, onde insistir, onde recuar. Eu falo assim das coisas de saúde, sempre. No meu caso, é a minha maneira de lidar com a realidade. Você tem de tomar decisões, avaliar se está tomando o caminho certo, então não adianta apenas ficar triste e emocional. É preciso saber exatamente quais são as suas chances, qual é o seu problema ou do seu parceiro. Se eu tivesse um prognóstico ruim, por exemplo, óvulos ruins, eu teria corrido para esse tratamento muito antes. Se o espermograma do meu marido tivesse acusado problemas, também teria corrido atrás antes, sem tentar outras coisas inócuas. Sinceramente, não faço tempestade com isso, não. Eu pergunto TUDO para saber onde estou pisando. Falar objetivamente não quer dizer que não há ansiedade ou tensão ou sentimento, mas que eu estou tentando me conscientizar dos meus limites e possibilidades, só isso. Eu falo das coisas boas, mas também falo das ruins. Para você pode soar como uma neura ir atrás das estatísticas – e talvez seja mesmo. Mas, para mim, é uma maneira de me situar para o próximo passo. É um pragmatismo necessário, para eu me organizar. Tipo… ponto ruim: sou velha; ponto ruim: não consigo engravidar facilmente; ponto bom: sou saudável; ponto bom: meu companheiro é saudável e fértil. Eu funciono assim com saúde e com grana. Você arranca os cabelos, mas depois senta e fala: “Bem, o que temos aqui? O que dá para fazer? O que é real e o que não vai acontecer mesmo?”. Pode parecer tecnicismo para quem está de fora. Para quem está dentro, é a medida da sua esperança.

Eu: Avaliando hoje, você acha que não conseguia engravidar porque tinha algum problema ou porque a tensão era tanta que se tornava impossível? Ou uma mistura dos dois?
Ela: Sinceramente, acho que não conseguia engravidar pela tensão e ansiedade de ter um filho logo. Se eu tivesse esperado o tal “tempo da natureza”, teria conseguido. Não me culpo por não ter esperado. É curioso que a especialista que me atendeu passou pela mesma coisa: engravidou com tratamento aos 36 anos. Menos de um ano depois, estava grávida naturalmente. Esperar dá medo. Prefiro me precipitar, mas agir.

Eu: Como foi saber que havia conseguido, que está grávida?
Ela: Foi estranho. Acho que eu estava tão prevenida e calejada, por esta frustração e outras tantas que se acumularam, por outras razões, que não fiquei feliz na hora. Não fiquei nada. Sentamos diante do computador, eu e o meu marido, e conferimos o resultado do exame de sangue. Olhamos várias vezes, para ter certeza. Meu marido ficou bem feliz. Eu fiquei estranha, quieta, desconfiada por vários dias, semanas. Sem acreditar que dava para ser feliz. Tinha medo de abortar, de ser um engano. Fiz o beta hcg (exame de sangue) duas vezes, para ter certeza. Só depois do terceiro ultrassom – quando “dois terços do risco do primeiro semestre” haviam passado, e não havia “sinais de descolamento”, e o batimento cardíaco do bebê era ótimo, e seu tamanho “de três dias além da idade gestacional, o que é um excelente sinal”… – consegui ficar feliz. Chorei no ultrassom. A médica disse: “este é dos bons”. Aí comecei a relaxar.

Eu: Como é estar grávida?
Ela: Começa a ser gostoso. Hoje me achei linda no espelho. Comecei a achar a barriga disforme, bonita. Mas a ficha ainda não caiu inteiramente. Ainda não “publiquei” para todo mundo. Estou sendo xiita e aguardando a 12ª semana, por precaução e pele calejada.

Eu: Você está com medo?
Ela: Sempre. Agora é medo do ultrassom morfológico. De meu filho ter síndrome de down, o maior de todos os medos. Também tenho medo de ele ser feio ou burro. Bem, no momento, acho que ele até pode ser horrível e fraco de ideias. Só penso em doenças que não quero que tenha. O conhecimento em excesso traz mais angústias.

Eu: O que você diria hoje para mulheres que querem engravidar e não conseguem?
Ela: Diria para procurarem uma boa clínica, discreta, não de medalhões. Estas pessoas estão acostumadas a lidar com isso e assim você se sente mais “normal”. Existem coisas muito simples que impedem as pessoas de engravidar, mas, em geral, só quando você busca um especialista é que descobre. Não foi meu caso, mas o de outras amigas. O meu era inexplicável. Ansiedade pura, talvez. O que eu NÃO diria é: “tenha paciência, sua hora vai chegar”, “confia na natureza ou em Deus”, “o que tem de ser, será”, “você precisa desencanar que vem”. É muito chato escutar isso quando a única coisa que você aceita esperar é um bebê.

(Publicado na Revista Época em 15/02/2010)

Alien

No dia seguinte acordou com um pouco de febre, uma melancolia de inverno. Estava lá. E ela sabia. De algum modo, sempre soube. Desde o primeiro segundo, soube. Mas preferia não saber. Enquanto pudesse, faria de conta que não. Esconderia dentro dela o apocalipse.

Em suas entranhas, algo estava em curso. Algo que não era ela. Um algo que havia sido colocado ali, à sua revelia, pela violência que durante muitos anos ela esqueceria.

Quando as luzes da casa se apagavam, e deitada na cama ela era obrigada a suportar o silêncio do mundo, ouvia o barulho áspero da pele a se espichar sobre os ossos, seu corpo tão magro ganhar contornos que não pediu. E o ruído da coisa dentro dela. Que a fazia tremer inteira. E a coisa que não era ela tremia com ela.

Só dormia quando estava exausta demais para existir acordada. E ainda que dormisse, sua alma mais profunda sabia que dentro dela havia olhos abertos.

Primeiro, foi um movimento sutil. Como algo que quase poderia não ter acontecido. Algo que foi aumentando até tornar impossível o faz de conta. A coisa se mexia dentro dela. Comia sua comida, bebia sua bebida, sugava seu sangue. A coisa alimentava-se dela. Misturada aos fluidos dela, confundia-se com ela. E a golpeava.

A coisa pedia passagem.

E agora as noites eram mais escuras e aterrorizantes. Quando apagava a luz sabia que não estava só. Sua barriga monstruosa, cada vez maior, se movia com a coisa. Que respirava dentro dela. Até um curto esquecimento.

Acordava sobressaltada, ouvindo um coração que não era o seu.

Por mais que vomitasse, a coisa não estava lá, no meio da gosma no vaso do banheiro. Pensou em enfiar uma faca na barriga. Que atravessasse sua carne e alcançasse os confins de si. Da coisa. Que arrancasse o bicho dentro. Para que ela pudesse morrer estraçalhada, mas una de novo. Íntegra. Para que pudesse morrer possuída apenas por si mesma.

Por muitas noites guardou o facão de churrasco debaixo do colchão. Mas não ousava além dos pequenos cortes. Quando a primeira gota de sangue, seu sangue, aflorava, sentia-se fraca. E deixava para a noite seguinte. E para a seguinte. A seguinte.

Até que a coisa a puniu com uma dor tão oceânica que pensou no morrer como uma bênção. Agora era o algo dentro dela que queria sair. Seu corpo deformado já era pouco para o bicho que a habitava. Voraz, ele queria mais. E mais.

A coisa era uma voragem.

E agora a arrebentava de dentro para fora, seguindo apenas os desígnios de uma natureza indiferente, desamarrada de toda a moral. Para a coisa não importava se deixaria para trás sua carne dilacerada. Só importava seguir.

Ela não gritou. Era inominável demais para ser pronunciado. Ainda que como grito. No silêncio absoluto de seu terror, o monstro a afogou em dor e sangue. E a deixou para trás.

Antes de morrer, viu o bebê arrastar-se sobre seus seios em busca de sua última gota.

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