O bebê alien

A maternidade não é algo simples como o senso comum insiste em afirmar que é

Uma mulher, qualquer mulher, passa boa parte da vida ouvindo – e muitas delas repetindo – que uma mulher só se torna completa depois de ser mãe. A maternidade é linda e, até quando padecem, as mães estão no paraíso. Aquelas que não quiseram ou não puderam ser mães são olhadas com condescendência pelas mães do ano. Sempre com aquele olhar pleno – e superior – de mulher completa. Bem, sou mãe. E concordo que a maternidade seja uma experiência extraordinária. Nunca soube que era possível amar tanto alguém quanto amo minha filha. Mas não acho que todas as mulheres devam ter filhos nem acho que são menos mulheres aquelas que escolhem não tê-los. Todas as experiências são insubstituíveis e únicas. E a maternidade é tão insubstituível como qualquer outra experiência intensa de vida. Passamos do tempo da imposição reprodutiva. Ser mãe é uma escolha.

Dito isso, queria abordar aqui algo sobre o qual pouca gente fala, já que a maternidade ainda é um dos últimos conceitos a resistir na esfera do sagrado. Se você for uma boa mulher, só pode ter belos sentimentos pelo bebê na sua barriga. E vai achar até as dores do parto algo do âmbito do sublime. Mas a realidade não é bem assim. Mesmo que muitas mulheres não ousem confessar por medo de serem apedrejadas.

Posso afirmar que achei a gravidez uma experiência assustadora. Por muitos anos, pensei que se devia ao fato de ter sido uma mãe adolescente: engravidei aos 15 anos. Nos últimos tempos, porém, muitas amigas na faixa dos 30 e poucos anos começaram a engravidar. E, nestas conversas muito além da escolha dos nomes e da lista do chá de bebê, descobri que a gravidez era difícil para algumas delas. Mesmo desejando muito aquele filho ou filha, a gestação mexia com medos profundos.

As experiências humanas são todas contraditórias. Nunca sentimos uma coisa só. Amamos profundamente o homem ou a mulher ao nosso lado, mas desejamos o George Clooney ou o cara sensível que conhecemos na fila de autógrafos de um autor bacana. Adoramos nosso chefe quando ele se mostra acolhedor e sensível, mas gostaríamos de vê-lo ardendo no mármore do inferno quando ele é ríspido ou mesquinho. E assim por diante. Por que só a maternidade seria um caminho linear e sem conflitos rumo ao paraíso da realização plena?

É claro que cada história é uma história, cada mulher é uma mulher e cada gravidez é uma gravidez. Também imagino que devem existir mulheres que (quase) só têm alegrias na gestação. Mas acho que a maioria sente um pouco de tudo. E é importante ter espaço para falar desses sentimentos aparentemente contraditórios sem se sentir anormal ou má.

Em nome da profana missão de arrancar a maternidade do panteão dos deuses e devolvê-la ao rés do chão da humanidade, vou dar a minha cara para bater ao falar de minha experiência pessoal. Ou, visto de outra forma, vou deslocar um pouco a maternidade da santidade da Virgem Maria – uma mãe tão vocacionada que conseguiu engravidar sem conhecer um homem – e transferi-la para o panteão das deusas da mitologia greco-romana – algumas delas capazes de devorar os próprios filhos se eles enchessem o saco.

Eu, por exemplo, até o fim da gravidez não sabia se dentro de mim havia um bebê ou um alien. Era uma adolescente daquelas bem magras. E o bebê foi crescendo dentro da minha barriga. Eu sabia que era um bebê, óbvio, toda a cidade sabia. E o fato de saber não eliminava o estranhamento de ter algo vivo crescendo no meu útero. Afinal, até ontem não havia nada ali. E, agora, minha pele espichava, estrias apareciam. Tudo no mais absoluto silêncio.

Um belo dia, eu fui ao consultório e o médico colocou um aparelho na minha barriga. Todo animado, amplificou o som do coração do bebê. Achei emocionante. Mas fiquei pensando: como assim? Tem outro coração batendo dentro de mim além do meu? É lindo, claro. Mas, com um pouco de boa vontade, dá para compreender que também é assustador.

Mais um tempo e o bebê começou a se mexer dentro de mim. No início, era algo imperceptível. Eu achava que estava apenas passando mal do estômago. O bebê começou a chutar com mais força. Chamei toda a família porque sabia que era um grande momento. A partir desse dia, minha barriga virou uma parada de mão pública. Ela não era mais minha. Era dele, do ser dentro de mim, e de todas as pessoas que achavam aqueles chutes a coisa mais fofa do mundo. Virei uma mesa onde todos descansavam a mão e diziam: “ohhhhh”.

À noite, ficava pensando que aquele pequeno alien dentro de mim estava se alimentando de mim. Era impressionante. E também um terror. E ele continuava crescendo. E espichando a minha barriga até proporções inimagináveis. Onde estava escondida toda aquela pele?

Numa dessas noites, tive um insight. Aquele ser não mais tão pequeno teria de sair de mim. De uma maneira ou outra. Tirei meus neurônios de todos os projetos paralelos e, histérica, concentrei-os na tarefa principal: descobrir um jeito de o pequeno pimpolho sair de onde estava sem que fosse pelo parto ou por uma cirurgia. Nada.

A partir daquele momento, eu não queria mais que o bebê saísse de dentro de mim. Que ficasse ali pelo resto da vida. Eu já tinha me acostumado com aquelas calças largas. Poderia viver com elas por mais cem anos. E já tinha esquecido como era bom dormir de bruços. Mas o ultra-som não mentia. A coisinha agora era uma coisona. E crescendo. Dava até para saber se era menino ou menina. Mas eu não queria saber. Que fosse uma surpresa. Internamente, ainda não tinha sido abandonada pela ideia de que, no final das contas, era um alien que morava ali.

E então, lá estava eu, ao final de uma manhã de domingo, estudando para uma prova de química inorgânica do segundo ano do ensino médio, quando senti uma dor esquisita. Até hoje cumprimento a Maíra pelo oportuno da hora. Nunca mais precisei fazer aquela prova. As dores foram aumentando e não pararam mais. Até hoje não entendo aquela história dos intervalos que iam encurtando progressivamente. Para mim, foi uma contração atrás da outra, até às 11h43min do dia seguinte. Minha sensação era de que alguém enfiava a mão dentro de mim e abria meus ossos. E eu era obtusa demais para aprender a fazer respiração de cachorro. Não esbocei um gemido. Tinha decidido há muito tempo não dar o gosto de me ver sofrendo para ninguém. Só fechava os olhos quando a dor se tornava impossível.

Quando chegou a hora, o médico, que também era professor da faculdade de enfermagem, trouxe uns dez de seus alunos para assistir ao espetáculo do parto natural. Sem me perguntar, óbvio. Para quê? Eu era só uma paciente. Foi bastante tranquilizador estar com as pernas abertas, na missão – que ainda naquela hora me parecia impossível – de ajudar uma criança a sair de dentro das minhas entranhas, diante de uma plateia de estudantes universitários com alguns poucos anos mais do que eu. Em seguida, o pediatra, que depois virou deputado, tropeçou no soro e quase levou meu braço junto.

Mesmo que o mundo exterior fosse inóspito, o pequeno alien nasceu. Era uma menina. Com uma cabeça em formato de ovo, toda vermelha, e ainda assim linda. Neste momento, me senti uma deusa.

Depois, de novo bem humana, nós duas fomos para casa. Eu olhava para ela. Ela olhava para mim. E nós duas chorávamos. Era um bebê lindo, que eu começava a amar. Ao mesmo tempo, ainda era uma espécie de alien. Dentro do meu cérebro – e do meu coração – eu me perguntava: “Quem é esta?”. E depois: “O que eu faço agora?”.

Algo profundo de mim não entendia quem era aquele ser que até ontem estava dentro e de repente estava fora, cheio de exigências. Então, fomos nos conhecendo, nos amando, e aí começou uma outra história.

Parir outro ser é um ato de vida. Sempre ouvimos e acreditamos nisso. E é verdade. Mas também é um ato de morte. Quando damos à luz um filho, nunca mais seremos as mesmas. Ter espaço para pensar, falar e lidar com esta morte simbólica é importante para seguir a vida. E fazer dela algo que valha a pena.

(Na próxima segunda-feira, 15/2, continuarei a escrever sobre o tema da maternidade.)

(Publicado na Revista Época em 08/02/2010)

A concha

Quando chegou do trabalho já era tarde para ser saudável. Depois de um dia sem tempo nem para um sanduíche, queria se acabar comendo diante da TV. Abriu o freezer em busca de possibilidades, sempre escassas naquele apartamento de mulher muderna com “u”. Já havia comido o carpaccio vencido, a lasanha de presunto, a de quatro queijos, a pizza margarita. Lá no fundo, atrás de uma pilha de bandejas de carne crua, estava o último tapawer contendo as sobras de uma paella encomendada para o aniversário do sogro. Paella às onze da noite. Hum. Tough girl. Programou o micro-ondas para dez minutos enquanto tomava um banho. Só conseguia se sentir em casa depois de tomar banho, vestir o pijama, encaixar os óculos e deitar no sofá azul com um prato de comida diante de algum filme, de preferência uma comédia romântica high school americana, do tipo garota inteligente e feia, mas que por trás dos óculos fundo de garrafa e das roupas largas é bonita, está apaixonada pelo garoto popular que é namorado da loira gostosa, burra e má…

Estava neste ponto, a boca cheia engolindo rápido, quando a viu. Ver mesmo já a tinha visto antes. Mas não tinha enxergado. A concha estava lá, no fundo do prato fundo. Com um pequeno marisco grudado nela. Atacou o cadáver cor de laranja com o garfo. A carne tão grudada que um pedaço continuou colado à parede de madrepérola. A textura era borrachenta, e o gosto de areia. Ficou furiosa com o marisco que ousava morrer sem lhe dar prazer.

A garota inteligente e feia estava sofrendo bullying agora, os livros inteligentes espalhados pelo chão, diante das pernas bronzeadas e expostas da garota popular, os óculos a um metro dela sem que conseguisse alcançá-los apesar de seu QI superior. Como um diretor que dizia gostar de cinema podia fazer o enésimo filme com o mesmo roteiro imbecil? E como ela podia assistir? E, pior, de algum modo gostar de assistir?

Mistério. Levou o prato até o lixo para limpá-lo antes de botar na pia que vivia entupindo. Ao posicionar o garfo para empurrar a concha rumo ao lixo orgânico, não pôde. Não conseguiu. Ficou ali, estática diante do cesto, olhando para a concha. Era bonita demais para misturar-se ao lixo do vizinho, ao lixo do caminhão de lixo, para queimar no aterro entre cascas de batata e bananas podres.

Sem perceber que perdia o primeiro beijo do garoto popular na garota agora menos impopular e quase bonita, levou a concha até a pia e lavou-a com cuidado, livrando-a dos restos alaranjados do cadáver sem gosto que começava a pesar na sua consciência. Molhada, a concha brilhava entre suas mãos.

O filme acabou, e o seriado com a polícia que ela gostaria de chamar de sua porque só sujava as mãos com neurônios começou, e ela continuava ali, de pé no meio da cozinha, olhando para a concha.

Até agora não sabe o que aconteceu. Revirou suas memórias filosóficas, suas pérolas de senso comum, os vãos empoeirados do seu cérebro. Nada. Não compreendeu. Sabe apenas que a concha era bonita demais para ser jogada fora.

Desde então está confusa. Não sabe mais decodificar o padrão do mundo. As referências se embaralharam. Perdeu as pistas para si mesma.

Leva a concha para aonde vai. E, quando tudo silencia ao seu redor, olha para ela. Sabe que a concha tem algo a lhe dizer. Mas não sabe o que é. Só sabe que ela é bonita demais para jogar fora. E que isto bota seu mundo inteiro de pernas para o ar.

A burca, a França e todos nós

O debate francês nos leva a questões cruciais de nossa época

A França está muito perto de proibir o uso da burca (vestimenta em que os olhos são visíveis apenas através de uma tela) e do niqab (véu integral que cobre tudo, menos os olhos das mulheres) nos espaços públicos. O tema é fascinante porque não há respostas fáceis. Em busca delas, temos de enfrentar algumas das principais questões contemporâneas. Quais são os limites do Estado? Onde acaba a liberdade de expressão religiosa? Em que momento o relativismo cultural flerta com o totalitarismo? Proibir a burca vai ajudar as mulheres muçulmanas em sua suposta libertação ou vai marginalizá-las ainda mais? Será um golpe no fundamentalismo islâmico ou estimulará ainda mais o radicalismo? Questões sobre as quais vale a pena pensar porque permeiam a nossa vida cotidiana, para além das burcas reais (poucas, por aqui) e simbólicas (muitas) de nosso mundo.

Para quem não acompanhou, o parlamento francês discute a criação de uma lei banindo as burcas e niqabs de espaços como hospitais, escolas, repartições e transporte públicos. Os argumentos: o Estado francês é laico; a burca e o niqab não seriam expressões religiosas, mas uma violação dos direitos humanos da mulher; é preciso defender os valores basilares da França, aqueles que fazem os franceses serem aquilo que são.

Em meus primeiros contatos com o tema, me parecia razoavelmente claro que: 1) o Estado não tem de se meter com a vestimenta ou a expressão religiosa de ninguém; 2) proibir a burca e o niqab colocaria material inflamável nas mãos dos fundamentalistas islâmicos em sua crescente busca por adeptos, o que só agravaria uma situação que já é tensa e não precisa de mais munição para piorar; 3) a lei marginalizaria ainda mais a já sofrida população de imigrantes muçulmanos, a maior parte deles injustamente identificados com o fundamentalismo; 4) a liberdade só é possível na convivência com as diferenças.

Aqui no Brasil, por exemplo, acho absurda a existência de crucifixos nos espaços públicos. Eles deveriam ter desaparecido das paredes oficiais quando a Constituição de 1891 determinou a separação Estado-Igreja. Sempre que vejo o crucifixo acima da cabeça do presidente do Supremo Tribunal Federal no plenário, sinto engulhos. Parece-me claro – e até hoje nenhum argumento contrário me fez mudar de ideia, mas estou sempre disposta a ouvi-los – que um estado laico não pode estar identificado com nenhum símbolo religioso, seja ele um crucifixo, uma imagem de Oxum ou de Buda ou um retrato de Alan Kardec. Sou de família católica do tipo praticante, mas não sigo a religião, e me sinto violada em meus direitos de cidadã ao ver um crucifixo na parede do Supremo e em outros órgãos públicos.

Por outro lado, não vejo nenhum problema se um cidadão assistir a uma sessão do Supremo com um crucifixo no pescoço. Ou com adereços do candomblé. Ou vestido como um monge budista. Desde que não seja um funcionário público, claro, que naquele momento está representando não a si mesmo, mas a todos os cidadãos em seu pluralismo religioso garantido pela Constituição.

Digo isto porque me parecia que o tema das burcas era semelhante. Eu jamais usaria uma burca e veria o mundo por meio de furinhos de uma tela, mas não me cabe dizer o que faz sentido para outra mulher usar nem que ela deveria ver o mundo sem barreiras sintéticas. Se não admito que tentem me dizer como me vestir ou me obrigar a professar esta ou aquela religião, tampouco me sinto no direito de impor minhas verdades a ninguém. Cada um na sua, convivendo em respeito e harmonia com as diferenças. E, no caso da burca, eu não pisaria em um país que me obrigasse a contrariar minhas convicções me obrigando a vestir uma. Por que, então, seria legítimo o estado francês obrigar as muçulmanas a tirar a sua?

Estas foram minhas primeiras reflexões a respeito da França e da burca. Comecei então a ler mais, a pensar mais, e as questões se multiplicaram. Aqui, um parênteses: gosto bastante das dúvidas. São elas – e não as certezas – que fazem bem à construção do pensamento. Sempre fico embasbacada com aquelas pessoas que já saem brandindo suas verdades absolutas sobre tudo, sempre com uma ótima opinião sobre suas conclusões e nenhum respeito pelas dos outros. O instigante é justamente pensar, debater e aprender – o que pressupõe estar disposto a ouvir o argumento do outro e não enfiar o seu goela abaixo.

Neste caminho, primeiro é preciso entender que este debate é travado na França não por acaso. Não sei bem o que significa ser francês hoje em dia, nem acho que a resposta seja tão fácil como muitos franceses acham que é, mas é preciso reconhecer que a França tem uma história profunda de laicidade que fez muito bem ao mundo. Em 1880, mais de um século atrás, o Estado retirou os crucifixos e símbolos religiosos dos tribunais, escolas e repartições públicas. Nesta época, o ensino religioso foi eliminado do currículo escolar, e magistrados e militares foram proibidos de participar de festas católicas em caráter oficial. Em 1905, a lei da laicidade rompeu unilateralmente a concordata entre a França e o Vaticano, confiscando os bens da Igreja e suprimindo todas as subvenções. Desde então, a França se manteve fiel à separação Estado-Igreja.

No ano passado, o presidente Nicolas Sarkozy fez um discurso contundente, com grande repercussão no mundo muçulmano, classificando a burca como “um sinal de servidão da mulher”. Sarkozy disse: “A burca não é um símbolo religioso, mas de subjugação das mulheres. E não será bem-vindo no território da República francesa”. Jean-Marie Fardeau, diretor do escritório de Paris da Human Rights Watch, uma das mais respeitadas organizações internacionais de direitos humanos, rebateu dizendo que a eventual proibição era uma violação de direitos. Fardeau afirmou: “Proibir a burca não fará mais do que estigmatizar e marginalizar as mulheres que a utilizarem. A liberdade de expressar a religião e a liberdade de consciência são direitos fundamentais”. E acrescentou: “uma proibição que restrinja unicamente a expressão da religião muçulmana enviará um novo sinal a muitos muçulmanos franceses, o de que não são bem-vindos em seu próprio país”.

Quem está certo? Ou qual posição está mais próxima da verdade? Ou da Justiça? Os argumentos de ambos os lados são bons, por isso o debate é interessante.

A França é o país europeu com o maior número de imigrantes muçulmanos, em torno de 5 milhões. Mas apenas 2 mil mulheres usam a burca ou o niqab. Ou seja, esta polêmica toda seria, num olhar simplista, por causa de uma minoria mesmo entre as mulheres islâmicas.

O que está em jogo, porém, é bem mais do que isso. Parece claro que o parlamento francês está dando um recado: se os imigrantes muçulmanos querem desfrutar das benesses do estado francês, precisam assumir os valores da república francesa, entre eles os princípios da laicidade do Estado e da igualdade de direitos entre os gêneros. Não basta estar na França, é preciso “ser” francês – ou pelo menos desejar ser –, no que isto significa de mais profundo.

Mas o que é ser francês hoje em dia? Não acho que exista uma resposta simples para esta pergunta. Nem me parece que, no século 21, exista uma França que não seja multicultural. De qualquer modo, estaria essa suposta “identidade francesa” tão ameaçada que seja preciso brandi-la numa guerra contra as burcas?

De certa forma, fica claro que no “território da república francesa” existem os franceses mais franceses que os outros. Há os franceses mais livres, iguais e fraternos que os outros. E, pelo visto, os imigrantes e seus descendentes, mesmo nascidos na França, não se incluiriam nesta categoria dos bons franceses. Os fundamentalistas, especialmente, seriam hóspedes não “bem-vindos”, que desrespeitariam a casa que os recebe, pátria de algumas intelectuais feministas das mais brilhantes, ao cobrirem o rosto de suas mulheres.

Quando Sarkozy diz que a burca é um “sinal de servidão das mulheres”, à primeira vista parece óbvio que tem razão. Afinal, que mulher emancipada aceitaria ver o mundo exterior por uma tela a vida toda? Mas, e se fosse uma escolha, o modo como determinada mulher escolheu viver sua fé, teria o Estado direito de proibi-la por considerar sua escolha indigna?

Parte-se sempre da certeza de que as mulheres islâmicas usam o véu integral porque não têm escolha. Mas tenho certeza que esta não é toda a verdade. Embora acredite que boa parte não tenha mesmo, existem aquelas que acham que esta é uma boa maneira de viver a sua religião. Já conheci algumas delas. Como o estado francês vai saber quais são obrigadas a usar o véu e quais escolheram usar o véu? Não saberão, a não ser que coloquem câmeras dentro dos lares das famílias que professam a religião islâmica. Nem mesmo em defesa dos “valores da república francesa” seria possível ir tão longe.

Por outro lado, se olharmos para o senso comum das mulheres ocidentais, para o que é aceito como “normal”, poderemos encontrar alguns paralelos interessantes. Como classificar as modelos esquálidas, adolescentes abaixo de qualquer peso considerado remotamente saudável, como vimos mais uma vez na última São Paulo Fashion Week? Desta vez não para obedecer aos princípios de uma religião tradicional, mas para obedecer a outro tipo de religião, possivelmente bastante fundamentalista: os rígidos padrões do mercado da moda. Muitas vezes também elas pressionadas a subir nas passarelas por pais que as veem como um atalho para a ascensão econômica. Não seria esta também uma violação dos direitos humanos das mulheres?

Ou como encarar a morte de mulheres em procedimentos cirúrgicos estéticos, como foi o caso da jornalista da TV Justiça Lanusse Martins, de 27 anos, morta quando se submetia a uma lipoaspiração na semana passada? Ou as cirurgias em que parte do estômago é retirada não por exigência da saúde, mas por vaidade, porque é mais fácil arrancar um pedaço do estômago que emagrecer? Mulheres bem longe da obesidade que arriscam a vida para eliminar quilos, celulites e se adequar aos padrões de beleza. Isto é menos opressor? É melhor porque são valores do nosso mundo – e não do mundo do outro? Pode se argumentar que, pelo menos, é por escolha própria. Será? Para mim, se arriscar aos riscos de um procedimento cirúrgico apenas por questões estéticas é tão absurdo como ver o mundo através de uma burca. Nem por isso acho que o Estado deve criar uma lei proibindo a cirurgia plástica por razões estéticas.

Um amigo parisiense, diante das minhas dúvidas, diz o seguinte: “eu não quero andar na rua do meu país e ver uma mulher de burca”. E se os cidadãos começarem a ficar ofendidos com piercings, tatuagens tribais, cabelos de várias cores, bombachas de gaúchos ou minissaias como a de Geysa Arruda, a garota que quase foi linchada pelos alunos da Uniban e hoje virou subcelebridade? Ou vestimentas de freiras, túnicas de hare krishnas ou quipás de judeus? O Estado deve banir tudo e determinar um uniforme que esteja adequado aos valores da república?

Proibir expressões individuais, seja pelo motivo que for, é comportamento de países fundamentalistas e/ou totalitários. Defender que determinada expressão individual, seja ela religiosa ou não, contraria os princípios do Estado e, portanto, deve ser banida, pode se tornar um escorregão para coisas muito perigosas. Valores são terrenos pantanosos. Se decidir proibir as burcas e os niqabs, a França pode estar se aproximando daquilo que tenta se afastar.

Por outro lado, quais são os limites dos direitos individuais e da expressão religiosa? Haveria, por exemplo, o direito de ser oprimido? Ao defendermos a necessidade de respeitar as diferentes culturas e a complexidade do outro, estaríamos incorrendo num relativismo cultural que só serve ao opressor? A mutilação genital, com a extirpação do clitóris, deve ser permitida porque é parte de uma determinada cultura? Ou o apedrejamento das adúlteras? Quais são os limites? E quem decide?

Neste caso, poderia se argumentar que a burca não fere a integridade física de ninguém. Mas e a integridade psicológica, a saúde de uma mulher obrigada a ver o mundo por uma tela, teria menos valor? Não interferir não seria omissão em vez de respeito? E, como toda omissão, uma forma de apoio àquilo que degrada a dignidade humana?

É complexo. Chego até aqui ainda com muitas perguntas. Tenho, porém, umas poucas convicções. Acredito que, se for aprovada, uma lei banindo burcas e niqabs vai servir para marginalizar ainda mais as mulheres islâmicas que usam os véus integrais, seja por imposição dos pais e maridos, seja por vontade própria. Acredito que vá acirrar ainda mais o sentimento de rejeição vivido por parte dos imigrantes muçulmanos. E não tenho dúvida de que será amplamente propagandeado pelos recrutadores do fundamentalismo, ao dizerem com a boca cheia: viram como eles não respeitam os sagrados ensinamentos do profeta, como riem de nossas crenças, como nos odeiam?

É possível até que mulheres que rejeitavam secreta e silenciosamente seus véus passem a defendê-los, como forma de assegurar a única identidade que conhecem. Nada pior do que uma causa comum para aumentar o radicalismo e o número de adeptos. Nada pior para a construção de uma sociedade tolerante com as diferenças que tratar o outro como bizarro – e seu estar no mundo como bizarrice.

Acredito que o melhor caminho para manter vivos os ideais da liberdade, igualdade e fraternidade é sempre incluir – e não excluir. Não acho que a primeira estratégia do Estado deve ser criar mais uma lei. Nem me parece o modo mais inteligente de enfrentar a questão. Se o parlamento francês gastasse esse tempo e essa energia para assegurar educação e oportunidade para estas mulheres, para ampliar seu acesso à democracia, elas se sentiriam parte. E talvez, um dia, aquelas que não vestem as burcas e niqabs por vontade própria, conseguissem se sentir seguras e amparadas para tirar os véus por si mesmas.

(Publicado na Revista Época em 01/02/2010)

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