A bunda

Tinha uns 11 anos quando descobriu que a bunda era algo além do lugar por onde saía o cocô ou um mero aparador de palmadas. O homem velho, devia ter uns bons 30 anos, a espalmou inteira quando espiava uma vitrine no caminho da escola. Até doeu. Gostoooosa, ele disse. E ela sentiu uma mistura de repulsa e desejo. E saiu correndo de ambos os sentimentos. Com os meses, até os tios olhavam disfarçadamente para a sua bunda. E os primos e os colegas de escola e talvez o pai, mas ela não queria pensar nisso. Se trancava no quarto e se olhava no espelho. Tentava alcançar a bunda que os outros apalpavam com olhos úmidos.

Aos 12 anos foi feliz com a bunda. Em sua ingenuidade de menina achava que fazia parte dela e eram para ela os assobios nas ruas, a sedução dos homens e a inveja das mulheres. Aos 13 a mãe ficava brava porque as calças não duravam muito. Num mês serviam, no seguinte eram rasgadas pela bunda que crescia em círculos. Aos 15 só usava saias porque duravam mais. Aos 17 os meninos todos queriam namorar com ela, mas só prestavam atenção na bunda. Só apalpavam a bunda, só queriam a bunda, só se dedicavam à bunda. Nenhum pensamento para ela nem para os pensamentos dela. Ela era a mulher acoplada à bunda, descobriu. Aos 18 começou a odiar a bunda e cometeu o primeiro atentado contra ela que não era mais ela. Enfiou uma faca de churrasco na nádega direita. A bunda sangrou um pouco, mas logo cicatrizou e mais bunda veio e apagou a marca. A bunda era invencível.

Aos 20 anos já precisava de duas cadeiras para a bunda. E amigos e familiares se referiam à bunda e a ela como seres diferentes. Nesta época acreditava que a bunda queria se livrar dela e quase não dormia à noite, temerosa de que a bunda a expulsasse de si. Quando finalmente dormia, imediatamente o medo a acordava. Se no passado tivera dúvidas se a bunda era ela, agora não tinha mais. O olhar externo a esquartejara da bunda e o que antes havia sido sua carne agora crescia como um bicho à espreita. Emagrecia pelo terror que a condenava à vigília e à falta de apetite. Diante de sua pequenez, a bunda se tornava maior, mais forte e mais irredutível.

Aos 22 anos ela se casou com um homem que jurava amá-la para além da bunda. Aceitara seu assédio porque ele havia sido o primeiro a descobrir que ela tinha olhos cor de mel. E uma covinha na bochecha direita quando sorria. E uma pinta logo abaixo da axila esquerda. Descobriu no altar que era tudo fingimento quando ele enfiou a aliança e o dedo no lugar errado e ela precisou sofrer uma cirurgia de emergência, arruinando a lua de mel. Quando deixou o hospital não se olhava mais no espelho porque também ela agora só enxergava a bunda.

Aos 25 anos sentou-se em três cadeiras de uma clínica de cirurgia plástica e implorou ao cirurgião que arrancasse 90% daquela coisa. Ou a coisa inteira, ela até preferia. Nessa época ela ouvia vozes que diziam que a bunda a engoliria viva. Ou morta. Tinha deixado de tomar banho e vagava pela casa enrolada num lençol encardido. O cirurgião cobrou uma fortuna, mas na hora da cirurgia não conseguiu. Aos prantos a pediu em casamento. Ela saiu batendo a porta, meio grogue da anestesia, e deu queixa dele no PROCON.

Aos 29 anos quase não conseguia andar porque parte das pernas tinha virado bunda. A família já perdia objetos dentro das crateras de celulite e toda vez que algo sumia ela era vasculhada sem cerimônia. Sua vida agora era espacialmente limitada e a única proposta de trabalho que recebera tinha sido para se tornar atração de um cirquinho mixuruca. Ainda era desejada pelos homens, mas já deixava que apalpassem a bunda e se enfiassem nela como se não lhe dissesse respeito. Tinha se desconectado. Não sabia mais da bunda nem dela, abdicara do corpo e do medo. Sem limites definidos, esbarrava nos móveis e causava enormes prejuízos materiais à família.

Aos 32 anos tomou 32 comprimidos para dormir, um para cada desgraçado ano. Sentiu uma comichão na bunda 20 minutos depois. Num lampejo de assustada lucidez percebeu que a vida toda havia sido um monumental engano. Era tarde para tudo, menos para morrer inteira.

“Nada é só bom”

A felicidade pode ser uma mercadoria ordinária, vendida e não entregue

Ao assistir ao novo filme de Arnaldo Jabor, “A Suprema Felicidade”, fiquei desesperada porque não tinha uma caneta e um bloquinho. Eu nunca ando sem uma caneta e um bloquinho. Mas assisti ao filme na abertura do Festival de Cinema do Rio, na quinta-feira (23/9), vestida para festa e com uma daquelas bolsas ridículas onde mal cabem o batom e o dinheiro do táxi. Um problema quando ouvimos uma frase realmente ótima e tudo o que encontramos para retê-la é um bastão com algum nome bizarro como “beijo fatal”. Tive de apelar para a minha péssima memória porque há no filme algumas frases imperdíveis. Daquele tipo essencial, tão boas que parecem simples e até óbvias e você quer morrer por nunca tê-las escrito. Estas frases unem as memórias do cineasta, que vão emergindo no filme do mesmo modo que as lembramos na vida – sem linearidade e só aparentemente descosturadas. Fiquei repetindo-as durante toda a sessão para mim mesma. Consegui que sobrevivessem razoavelmente ilesas. E a primeira delas é a do título desta coluna: “Nada é só bom”.

Virou meu mantra desde então. Vejo tanta gente sofrendo por aí, achando que sua vida está aquém do que deveria ser, porque tudo deveria ser só bom. Não sei quando nos enfiaram garganta abaixo esta ideia absurda de um estado de felicidade absoluta. Uma espécie de nirvana a ser alcançado em que nada mais nos perturbaria e que seríamos felizes para sempre. Na verdade, só há um jeito de isso acontecer: podemos ser felizes e mortos. Porque este estado imperturbável, imune à vida, só se alcança na morte.

Acho que a grande causa atual de infelicidade é a exigência da felicidade. É o deslocamento do lugar da felicidade para o centro da vida, como um fim a ser alcançado e a medida de uma existência que valha a pena. Se nos lembrarmos bem dos contos de fadas, o “e foram felizes para sempre” era exatamente o fim da história. Era quando o conto morria num ponto final porque não havia mais nada relevante para ser contado. Tudo o que interessava, o que nos hipnotizava e nos mantinha pedindo a nossos pais ou à professora ou a nós mesmos “de novo, conta de novo”, era o que vinha antes. O desejo, as turbulências, os avanços e recuos, os tropeços e os arrependimentos, os erros, o frio na barriga, a busca. Tudo aquilo que é a matéria da vida de todos. O que realmente importa.

Acho impressionante a quantidade de adultos pedindo um final feliz para as suas vidas, para suas histórias de amor, para o sucesso profissional. Não há nenhum mistério no final. Independentemente do que cada um acredita, o fato é que no final a vida como cada um a conhece acaba. Para viver, o que nos interessa não são os pontos finais, mas as vírgulas. Os acontecimentos do meio, o enredo entre o primeiro parágrafo e o último.

Escrevo pequenas histórias de ficção em um site de crônicas e alguns leitores se manifestam, por comentários ou por email, reclamando do desfecho. Eles me ensinam sobre esta exigência da felicidade por toda parte. Pedem, com todas as letras, “um final feliz”. Sentem-se traídos porque não dou isso a eles. Mas voltam na semana seguinte para se perturbarem com o desfecho do novo conto e reclamar mais uma vez. São adultos pedindo histórias da carochinha. E consumidores bem treinados para achar que tudo é produto de consumo.

Acham que ofereço a eles cachorro-quente. Por favor, um pouco mais de mostarda, duas salsichas, menos pimenta no molho. É muito interessante. Mas, de algum modo, algo nos meus “finais infelizes” os engata. Porque, em vez de me deixar para lá e ler algo mais “feliz”, voltam por alguma razão. Talvez descobrir se me rendi a tal da felicidade.

A ideia de felicidade como um fim em si mesmo encobre e desbota tanto a delicadeza quanto a grandeza do que vivemos hoje, faz com que olhemos para nossas pequenas conquistas, nossos amores nem sempre tão grandiloquentes, nosso trabalho às vezes chato, como se fosse pouco. Apenas porque nem a conquista nem o amor nem o trabalho é só bom. E há uma crença coletiva e alimentada pelo mundo do consumo afirmando que tudo deveria ser só bom. E se não é só bom é porque fracassamos.

Deixamos então de enxergar a beleza de nosso amor imperfeito, de nossa família imperfeita, de nosso trabalho imperfeito, de nosso corpo imperfeito, de nossos dentes imperfeitos e até de nossas taxas de colesterol imperfeitas. De nossos dias imperfeitos. Escolher como olhamos para nossa vida é um ato profundo de liberdade que temos descartado em troca de propaganda enganosa.

Tanta gente se esquece de viver o que está aí em troca desta mercadoria ordinária chamada de felicidade. Que, como toda mercadoria, tem essência de fumaça. Se tivesse de escolher entre esta felicidade de plástico que vendem por aí e a infelicidade, preferiria ser infeliz. Pelo menos, a infelicidade me faz buscar. E a felicidade absoluta é mortífera, ela mata o tempo presente.

Não tenho nenhum interesse por esta pergunta corriqueira: “Você é feliz?”. Acho uma questão irrelevante. O que me interessa perguntar a mim mesma – e pergunto a todos a quem entrevisto é: “Você deseja?”

Desejar é o contato permanente com o buraco, com a falta, com a impossibilidade de ser completo. Desejar é o que une o homem à sua vida. Une pela falta. Tem mais a ver com um estado permanente de insatisfação. Não a insatisfação que paralisa, aquela causada pela impossibilidade da felicidade absoluta; mas a insatisfação que nos coloca em movimento, carregando tudo o que somos numa busca permanente de sentido. Desejar é estar sempre no caminho, conscientes de que o fim não importa. O fim já está dado, o resto tudo é possibilidade.

No filme de Arnaldo Jabor, as melhores frases são de Noel, avô do personagem principal, vivido pelo enorme Marco Nanini. Numa ocasião ele diz ao neto: “Ninguém é feliz. Com sorte, a gente é alegre”. E completa: “A vida gosta de quem gosta dela”. Achei de uma simplicidade brilhante. É isso, afinal. É claro que há uns poucos momentos de felicidade, mas, como diz Noel em seguida, eles duram no máximo uns 10 minutos e se vão para sempre.

Em vez de ficar perdendo tempo com finais felizes ou se perguntando sobre a felicidade ou invejando a suposta felicidade do vizinho ou se sentindo mal porque não é um personagem de comercial de margarina, vale mais a pena tratar de viver. Tratar de gostar da vida para que ela goste de você.

Aliás, nada me dá mais medo do que gente que vive como se estivesse num comercial de margarina. Se aceitarem um conselho: corram dessas vidas de photoshop. Elas não existem. Gente de verdade vive do jeito possível – e tenta lembrar que o possível não é pouco. Isso não significa se acomodar, pelo contrário. Mas abrir os olhos para a novidade do mundo na soma subtraída de nossos dias, desejar a vida que nos deseja.

É como em outra frase, esta dita por um comprador ambulante de coisas antigas num momento crucial do filme. Um delirante Noel, assustado com a proximidade da morte e disposto a retomar a alegria, sacode na rua o personagem de Emiliano Queiroz, gritando: “Hoje é sábado, hoje é sábado”. E o comprador de coisas que já perderam o sentido diz a frase antológica, digna de um frasista como Nelson Rodrigues: “O sábado é uma ilusão”.

Sim, o sábado é uma ilusão. Então, lembre de viver também de segunda a sexta.

(Publicado na Revista Época em 27/09/2010)

Final feliz

Uma homenagem aos leitores que reivindicam um happy end nas minhas crônicas.

Nada me deixava mais feliz na infância do que visitar minha tia-avó Docelina. Ela me recebia com um par de olhos azulados, encurralados por rugas enfileiradas como legiões romanas, e com eles fazia uma silenciosa tomografia no meu corpo magro de ruim. Gostava dela porque não me apalpava nem me sacudia nem me beliscava nem me sufocava como as outras tias. Só aquele olhar. Depois desta inspeção meticulosa, grunhia algo e também com o olhar me autorizava a entrar em sua casa sempre arejada, com um cheiro de terra molhada em lonjuras. Isso era outra coisa de que eu gostava. Sua casa não cheirava a perfume doce nem a roupa que secava abafada nem a banha rançosa. O vento fazia voltas pelas janelas abertas, trazendo odores de coisas vivas.

Eu ficava lá na sua sala de costura, enquanto ela alinhavava uma colcha de retalhos coloridos. Eu, ela e seu gato sem idade. Um tipo meio antipático, rajado de cinza e com uns olhos amarelos. Nunca o vi ronronando pelas pernas da minha tia nem a vi afagando a sua cabeça. Mas eram ligadíssimos, dividindo o mesmo oxigênio, mas sem descuidar-se de uma distância regulamentar. Eu me jogava numa de suas almofadas de retalhos e ficava lá divagando, enquanto seus dedos dançavam um balé de linhas e agulhas e o gato cochilava de olhos abertos. Raramente trocávamos uma ou outra palavra, só mesmo se fosse imprescindível. Palavras nos constrangiam.

Tia Docelina e eu (e poderia jurar que também o gato) nos entendíamos por olhares e uma meia dúzia de sons que saíam de sua garganta e que me soavam perfeitamente inteligíveis. Ao contrário de todas as pessoas do meu mundo, ela não se importava se eu passava o dia inteiro imóvel no tapete da sala olhando para o nada. Na sua casa eu estava encaixada como o dedal no seu dedo médio.

Quando a manhã já ia pelo meio, ela levantava os olhos de seus retalhos, largava a colcha sobre o sofá e erguia-se como se tivesse pernas de 20 anos. O gato emitia uma aprovação rouca e ela dirigia-se à cozinha. Eu interrompia uma das histórias que se desenrolavam na minha cabeça com mais realismo que a vida e, enquanto nos confins do meu cérebro um cavaleiro medieval suspendia seu ataque a uma princesa alienígena com uma armadura de oito seios, meus músculos todos se tensionavam pela expectativa. Era minha parte favorita do dia.

Tia Docelina abria o armário de palhinha para pegar uma lata enfeitada com uma paisagem de montanha nevada que recebera de uma parenta da Suíça. Destampava-a com requintes de cuidado e tirava lá de dentro pedaços de pão dormido. Esparramava-os com precisão igualitária pelo parapeito da janela emoldurada por cortinas de retalhos. Não levava mais do que alguns segundos. Eles vinham de todos os cantos, como se vivessem para este momento. Coloridos, em preto e branco, pardos, miúdos, gordos, havia ali uma variedade suficiente para alegrar um daqueles gringos de pele avermelhada, observadores de pássaros que costumam perambular pelo que restou das matas do Brasil. Tia Docelina os perscrutava com genuína satisfação apertando seus olhinhos azuis. De dentro da lata ia sacando bocados de pão e repondo o banquete.

Não podia existir imagem mais bucólica. Tia Docelina em seu vestido de retalhos coloridos na janela emoldurada por cortinas coloridas dando bocados de pão a dezenas de passarinhos coloridos.
Eu e o gato, daltônicos naquele quadro, espiávamos a cena hipnotizados de gozo.

Quando a maioria já havia se refestelado de pão, Tia Docelina rosqueava sem pressa a tampa na lata, devolvia-a ao armário com seu espírito virginiano e em seguida sacava a espingarda espalha- chumbo do gancho atrás da porta. Com uma mira de Clint Eastwood, acertava um punhado, enquanto os outros revoavam em magoada traição, só para retornar no dia seguinte. Pelo menos uma meia dúzia tombava num momento de máxima felicidade, ao final de lauto repasto, sem tempo para adivinhar a morte. Tão inocentes que a carne nem endurecia pela descarga de adrenalina que estraga o sabor de tantos bois. Tia Docelina os recolhia com sereno respeito, depenava-os e limpava-os com maestria de chef francês. Quarenta minutos depois, estávamos eu, ela e o gato comendo polenta com passarinhada.

Era um final feliz para ela, para o gato e para mim. Talvez não fosse para os passarinhos, mas não dá para ter tudo na vida.

Para que tantos relógios se o tempo nos escapa?

Uma breve reflexão sobre a correria sem destino

Na casa da infância do meu pai havia um relógio de parede. Era precioso e ainda hoje persiste, enquanto a casa vai virando natureza no meio do mato. Meu pai e sua família viviam na zona rural de Ijuí, no interior do Rio Grande do Sul, num povoado de colonização italiana chamado Picada Conceição. Lá meu avô plantava e socava erva-mate, numa lida cotidiana que envolvia os filhos homens. Minha avó e as filhas ocupavam-se com a polenta, as cucas e a sopa, as galinhas, as roupas, a casa. O relógio de parede marcava o tempo da vida, solene sobre a mesa das refeições de domingo. Cabia aos mais velhos dar corda no relógio. Mas às vezes alguém esquecia e o tempo escapava. Descobriam então a vida parada sobre suas cabeças.

E agora? Como saberiam as horas? Redescobriam o que fingiam não saber. O relógio era só o reconhecimento de algo que já estava lá de tantas maneiras. Era a máquina do tempo numa vida em que tudo que era vivo ao redor seguia seus próprios desígnios. Acordavam com o galo, seu relógio com coração, e seguiam o dia orientados pelo sol. Esqueciam-se de dar corda porque raramente o relógio era consultado. Gostavam de ouvi-lo tiquetaquear, apenas. Orgulhavam-se da engenhosidade de sua máquina. Eles que descendiam de mortos de fome do outro lado do mundo.

Depois de algumas semanas, o silêncio do relógio tornava-se incômodo. Sentiam uma vaga inquietação imiscuindo-se pelas paredes da casa, a desconfiança de que as máquinas não deveriam parar. Tampouco se arriscavam a deixá-lo assinalar horas erradas, desarranjando o funcionamento do mundo. Meu avô então designava um dos filhos mais velhos para buscar o tempo na cidade. E, claro, fazer algumas compras. A 13 quilômetros, a cidade ficava longe para quem só contava com suas duas pernas ou as quatro do cavalo, sempre requisitado para tarefas mais sérias. E nunca se ajeitava o cavalo ou se aprumava a aranha para uma missão solitária. Só iam até lá, onde se sentiam deslocados com suas roupas de roça, para se abastecer do pouco que não trocavam por ali mesmo ou não encontravam no bem abastecido bolicho do Tio Chico. E para se apossar do tempo.

Meu avô entregava a um dos filhos seu próprio relógio de bolso, sempre parado porque só era usado em casamentos e outras ocasiões solenes da vida pública dos homens. Preso a uma corrente encimada por uma moeda de prata com a efígie de Dom Pedro II, era das poucas riquezas materiais do meu avô, herdada dos que vieram antes. O encarregado guardava o relógio no próprio bolso, esforçando-se para não machucá-lo com os calos de uma mão feita na enxada, encilhava o cavalo e galopava até Ijuí. Lá, no centro da praça principal, dava as costas para a igreja católica e postava-se diante da evangélica – ambas de frente uma para a outra e em lados opostos. Era uma traição à sua fé, mas justificava-se. Era na torre dos evangélicos que se exibia um relógio onipresente. Seus ponteiros regiam as horas da cidade. É preciso compreender que naquele tempo relógios eram bens valiosos. E possuir o tempo era para poucos.

Com máxima dedicação, um dos meus tios dava corda no relógio de bolso e acertava os ponteiros. Conferia. Enfiava o tempo no bolso. E galopava de volta. Na infância do meu pai, o tempo chegava a cavalo. Meu avô acertava os ponteiros do relógio da parede e a máquina voltava a tiquetaquear sobre a família. A ordem se restabelecia.

Meu pai herdou este grande respeito pelo tempo. Cada um de seus três filhos ganhou um relógio ao completar 10 anos. Por alguma razão ele e minha mãe chegaram à conclusão de que esta era uma idade em que podíamos começar a nos responsabilizar pelo tempo, a carregá-lo no pulso. Era um presente muito esperado e a compra do relógio envolvia uma série de debates e incursões à relojoaria de confiança. Não só porque exigia um grande investimento financeiro para o padrão de nossas posses, mas porque embora os de pulso fabricados em escala tivessem mudado os hábitos, naquela época ainda nenhum relógio era qualquer. Lembro de ter ficado algumas noites sem dormir pensando qual era o melhor modelo porque, ainda que não compreendesse a dimensão filosófica da escolha, intuía a sua importância. Este relógio marcaria o tempo da minha vida inteira.

Percorro agora a linha do tempo da minha trajetória errática cercada por relógios. A começar pelo do computador onde escrevo. Tudo ao meu redor marca a passagem do tempo, do celular ao forno de micro-ondas. As horas estão por toda parte, mesmo que eu não as queira. O tempo e as máquinas do tempo converteram-se em mercadoria ordinária.

Nem lembro em que momento perdi meu primeiro relógio, o da vida inteira, nem sei quantos outros tive até decidir que não precisava carregar nenhum no pulso porque o tempo havia se banalizado ao meu redor. Desconfio que esta perda da solenidade dos relógios tenha relação com a perda da consciência do tempo na vida de todos nós. Tantas marcações por todos os lados e o tempo se esvai como se fosse barato como um relógio de camelô. Vendemos o tecido de nossas vidas por muito pouco porque confundimos tudo.

Meu avô sabia que tempo não era dinheiro. Nunca se iludiu a esse respeito. Ele, que acompanhava o ciclo da vida das plantas e dos bichos, que dependia da terra, das chuvas e das estações, sabia que o tempo é tudo o que há entre a vida e a morte. É a riqueza imaterial da vida de um homem, de uma mulher. Não tinha estudo para conhecer as moiras da mitologia, mas pressentia que a elas pertenciam os fios do seu destino.

É muito mais verdadeira do que alcançamos a frase que todos repetimos pelos nossos dias: “Não tenho tempo”. Mas não é corriqueira e muito menos é natural. É, na verdade, uma tragédia sem herói. Desconfie sempre do que parece um dado da natureza, algo da ordem imutável do mundo, do qual você não tem como escapar. Isto sim é ilusão criada e reproduzida. Só não conseguimos escapar da morte, mas podemos morrer em vida se entregamos nosso tempo. Talvez não exista nada mais importante do que pensar sobre o que você quer fazer com o tempo que é seu. Porque se não tem tempo para o que é importante para você, para as pessoas importantes para você, por alguma razão, em algum momento, você decidiu se desapossar de você. É preciso empreender este caminho sempre árduo de resistência e voltar a encarnar o próprio corpo.

Semanas atrás um jornalista gaúcho me perguntou se eu tinha me tornado “meio baiana”, agora que, na opinião dele, eu podia dispor do meu tempo. O preconceito era claro. E a provocação também. Respondi que a questão era de outra ordem. Gosto muito da Bahia e nunca vi ninguém trabalhar tanto quanto os nordestinos em São Paulo, se era a isso que ele se referia. Perguntei a ele, então, que se gabava de correr o dia inteiro (como alguém se orgulha disso?), o que tinha feito naquele dia. Do que ele se lembrava quando parava de correr, o que tinha sido importante naquelas 12 horas entre a manhã e a noite. Ele emudeceu, mudou de expressão várias vezes. Não sabia o que dizer. Tinha feito tanto e nada.

Acho que este é um bom exercício. Pelo menos para mim. Quero chegar ao final do dia e lembrar o que fiz sem esforço. E achar que vivi bem aquele dia. Que amei bem. Que trabalhei bem. Que estava lá.

Meu avô sabia que o tempo não pertencia ao relógio. O tempo não está fora, como somos levados a acreditar. Está dentro. Só nós podemos marcá-lo. É o que fazemos com nosso tempo que dá a medida da nossa vida.

(Publicado na Revista Época em 20/09/2010)

Cólica

Senti a primeira contração no avião. Ao lado, um executivo lia o jornal e enfiava um dedo disfarçado no nariz. Um dedo bem rápido, como se estivesse apenas coçando. Atrás de mim uma criança chutava o banco. A mãe não vai fazer nada? Não, ela parecia aliviada pelo seu pequeno psicopata estar se ocupando de outra vítima. A dor funda. Não é possível. Cólica a esta altura do mês? Pelos meus cálculos, faltavam cinco dias para a menstruação. O que era aquilo? A dor me repuxava o ventre, depois as costas. Será que foi o sanduíche do avião? Não, lembrei. Aquele voo não tinha sanduíche. Eu tinha comido bolachinhas de água e sal com margarina. Cavouquei a bolsa em busca de um remédio. Qualquer um. Doía tanto que eu tomaria um comprimido para mal de Parkinson se achasse algum. Achei um bem colorido. Colei o dedo na campainha da aeromoça que demorou a vir. E nem tentou sorrir quando chegou. Eu preciso de um copo d’água para tomar um remédio. Só um momento, senhora. E partiu. Meu vizinho de banco esquecera o lado de dentro do nariz e olhava para mim. Está passando bem? Enxaqueca, menti. A aeromala veio com um copo de plástico. Sem gelo. Engoli três comprimidos de uma vez e fechei os olhos. Senti algo líquido escorrer pelas minhas pernas. Agora eu pingava vermelho no chão. Não muito, só um pouco. Apertei o botão de novo e desta vez não larguei até que ela chegasse. Daria para alcançar meu casaco que está junto com minha bagagem de mão? Desta vez, eu ouvi. Ela grunhiu. E me atirou o casaco com um olhar mortífero. Não liguei. Com aquela dor eu não me abalaria com Hitler se ele estivesse ali. Me enrolei no casaco, na esperança de que o que quer que fosse que escorria de mim não me denunciasse. Senhores passageiros, estamos em procedimento de descida. Mantenham os cintos afivelados e as poltronas na vertical. Eu já estava colada no teto. Me dobrei de dor enquanto o avião dava um bico rumo ao chão. Quando finalmente as portas se abriram eu senti meu rosto queimar. Sempre fui assim. Me cubro de manchas vermelhas e queimo quando sinto dor. Esperei todos os passageiros saírem e me levantei vacilante. Aparentemente meu sangue se confundia com o carpete escuro. Caminhei do jeito que pude arrastando a mala de rodinhas. Pelo menos eu estava no chão. Eu não queria morrer no ar, com um cara de terno tirando meleca do nariz e uma criança me chutando. Me atirei pela porta do banheiro feminino do saguão e perdi toda a vergonha. Sempre achei curioso como a dor nos faz perder todos os pruridos num segundo. Por favor, estou com intoxicação alimentar e se não entrar vou fazer tudo aqui mesmo. As mulheres da fila cobriram a camada de base com uma camada de cara feia, mas abriram espaço. Me tranquei no cubículo, a bunda batendo na tampa do vaso. Quase arranquei o zíper da saia. Esbocei um sorriso cansado ao lembrar que a manicure tinha insistido para que eu deixasse as unhas compridas da última vez. Bendita Rose. Enfiei meus dedos de unhas compridas dentro de mim. Arranquei meus ovários com dois puxões. Pensei em jogar na privada, mas seria sacanagem entupir o vaso. Embrulhei-os em algumas voltas de papel higiênico e os atirei no lixo que transbordava. Puxei a saia, fechei o zíper, ajeitei minha camisa branca e saí aliviada. Olhei no relógio. Ufa. Ainda daria tempo de chegar à reunião com o cliente.

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