A menina má

Acordei com a personagem gritando na minha cabeça. Deixa eu sair, ela esmurrava minha alma com os punhos. Em mim, a alma fica no cérebro e me parece que poderia viver se um dia tiver o destino de Maria Antonieta. A história está errada! Você não entendeu nada, ela gritava. Me aconcheguei ao travesseiro na tentativa de capturar o sono que escapava pela fronha. Mas ela continuava a berrar. Desisti de segurar o sono que agora saltava pela janela. Gritei de volta. Quem manda na história sou eu! E agora você vai ficar calada até o ponto final do último capítulo, entendeu? Senti a mordida e um gosto de sangue na boca.

Maldita. Por que resolvi escrever ficção? O sono já atravessava o portão e desaparecia na estrada. Me arrastei até o banheiro e lavei o rosto com água fria. Escovei os dentes com a pasta branqueadora. Agora minha boca tinha gosto de menta. Me olhei no espelho e vi a espinha bem no nariz. TPM. Estou com TPM. Me preparei para apertar a bola de pus. Acabaria com a espinha pela raiz.

Vi uma coisa que não era eu nem a espinha. O que era aquilo? Um pêlo encravado? Busquei os óculos de vista cansada. Meu Deus! Era uma perna. A personagem me chutava no nariz. E era forte apesar do pouco tamanho. Peguei as pernas compridas com a pinça e as enfiei para dentro com violência. Inspirei ruidosamente e pude ouvir um grito longínquo. Pronto.

Tentei me concentrar para escrever, mas ela continuava gritando parágrafos que eu me recusava a materializar na tela do computador. No final da manhã a enxaqueca me fazia enxergar as letras dobradas. E ela continuava falando e falando e falando. O Deus deste mundo sou eu!!!, comecei a berrar, e a faxineira correu para ver o que estava acontecendo. Desculpa, essa enxaqueca está me matando. A faxineira fez o sinal da cruz. Eu também fiz o sinal da cruz.

No meio da tarde senti a pontada no rim. Desgraçada. Ela não vai me deixar em paz nunca. E eu nem a tinha criado. Não sei de onde saiu aquela criatura dos infernos. Mas eu não me renderia, ah, não. Psst, ressoou na minha cabeça. Ahn? Psst, aqui. Estou escondida para que ela não me veja. Reconheci a garota magricela, com sardas e dentes tortos. Desta personagem eu gostava. Ela cochichou no meu ouvido. Sim, sim, era uma boa idéia. Menina esperta, esta era cria minha.

Peguei uma cerveja da geladeira e a tomei inteira sem parar. Cinco minutos depois estava doida para ir ao banheiro. Segurei até a bexiga latejar. E então urinei com gosto. Ouvi com prazer o grito de terror. Lá no fundo do vaso, entre urina e água sanitária, estava ela com suas pernas compridas e suas varizes. Pronto. Você não vai falar mais em lugar nenhum, sua megera. Quem manda aqui sou eu! Puxei a descarga sem dó.

Quando de novo aconcheguei minha cabeça no travesseiro aspirando a paz do silêncio, o garfo atravessou meu olho. De onde veio o golpe? Ela pulou no meu peito. A menina esperta que eu gostava. Sua estúpida! Agora eu vou reinar sozinha neste mundo. E cravou o garfo no meu outro olho, agora de fora para dentro. Era isso então que a outra tentara me avisar. E eu tinha confundido tudo.

Desde então, a cada dia a garota de sardas mastiga uma parte de mim com seus dentes tortos. Já não tenho olhos para enxergar nem pernas para fugir. Mas ainda tenho ouvidos para escutar o barulho que ela faz ao escrever meu romance no computador.

Espelho, espelho não meu

Nas viagens, a paisagem que mais nos espanta é a nossa

Descobri que viajar é trocar de espelho. Em casa, o espelho que nos reflete não mostra nossa mudança. Como todos os objetos da nossa rotina, como nossa rotina mesmo, o espelho da casa é um espelho domesticado. Sabemos o que vamos enxergar. Às vezes até achamos que controlamos este espelho como dominamos as mesas e as cadeiras, a posição do sofá, o canal do controle remoto, o dia de lavar os lençóis da cama. Mesmo quando notamos um quilo a mais ou um par de olhos mais fundos, aquele espelho é nosso e por ser nosso nos ameaça menos. Damos uma passadinha diante dele, às vezes involuntária, e ele nos conforta ao garantir que, sim, estamos lá. Sou eu que olho para mim. E aquela superfície lisa me garante que existo.

Quando deixamos nosso mundo e partimos em direção a outros destinos, a primeira paisagem que nos espanta é nossa própria geografia. Ao bater a porta de casa em direção ao novo, a primeira imagem familiar que abandonamos é a de nós mesmos. Nos deslocamos primeiro em nós. E o primeiro estrangeiro que nos espanta é o que nos encara do espelho da estação rodoviária ou do aeroporto, do banheiro do posto de gasolina. Quem é esta pessoa que me olha? Com frequência, somos tentados a fazer a pergunta da poeta Cecília Meireles: “Em que espelho ficou perdida a minha face?”.

Toda viagem contém nossa esperança de sermos mais livres, mais felizes, mais aventureiros, mais relaxados, melhores. Em geral, deixamos um cotidiano que nos confina a uma vida que para muitos é menor e mais apertada do que nos sonhos. Ao botar o pé na estrada, temos a expectativa de embarcar numa outra forma de ser e de viver, em um outro eu que nos parece mais verdadeiro que aquele que acorda todo dia de manhã para seguir um roteiro previsível. Como se longe de casa tivéssemos uma espécie de autorização para finalmente sermos um tal de eu mesmo.

Então, a primeira surpresa. Aquele rosto que nos estranha no espelho do caminho é nosso. Nos perturba mais porque sabemos que é nosso, ainda que diferente pelo ângulo, pelo tamanho e pela luz desconhecidas do objeto que nos reflete com outras verdades. E já ali, neste primeiro confronto, vemos algo que não sabíamos sobre nossa face, algo que o espelho domesticado não havia nos mostrado. Começamos a compreender ali o pior e o melhor das viagens: o risco. Talvez o que as pessoas que detestam sair de casa ou alterar a rotina mais temam é justamente o que podem ver de si mesmas num espelho que não é o seu.

É só ao sair que descobrimos que não podemos sair. Podemos embarcar apenas em nosso próprio corpo. Às vezes aquelas malas todas, aqueles tantos sapatos e roupas, são apenas uma tentativa inconsciente e desesperada de evitar a descoberta de que somos nossa própria bagagem e viajamos apenas com tudo o que somos. Nem mais nem menos, nosso excesso de peso é nossa nudez. É preciso abrir a porta da rua para compreender que ela só abre para dentro e só leva para dentro.

É o que diz o poema de Fernando Pessoa, estampado no último andar do Aeroporto de Congonhas, em São Paulo. “Para viajar basta existir. Vou de dia para dia, como de estação para estação, no comboio do meu corpo ou do meu destino, debruçado sobre as ruas e as praças, sobre os gestos e os rostos, sempre iguais e sempre diferentes, como, afinal, as paisagens são. (…) A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos não é o que vemos, senão o que somos”.

Viajar é uma escolha profunda, que não depende da distância nem do destino. Nela, estamos sempre sozinhos, ainda que no meio de hordas de turistas. As paisagens externas iluminam nossa paisagem interior, para o bem e para o mal. Não visitamos Roma, Nova York ou Paris, as pirâmides do Egito, o deserto do Saara, as savanas africanas, o Rio de Janeiro, a Amazônia ou o outro lado da rua. O que fazemos é revisitar a nós mesmos no contato com diferentes culturas e percepções de mundo. A mudança de paisagem ilumina os cantos escuros dos precipícios e as profundezas dos lagos que nos habitam. Sempre esperamos que exista em nós um belvedere, é esta a nossa expectativa ao viajar. E nem sempre é um belvedere o que encontramos. Por isso toda viagem é subjetiva e, possivelmente, quando detestamos um lugar ou um povo é porque não gostamos do que vimos em nós.

Sempre que viajo cruzo com pessoas, cada vez mais pessoas, que se interessam apenas pelo que podem comprar nas lojas de cada destino. Que em geral são sempre as mesmas em toda parte. Transformam a experiência de viajar numa experiência de consumo. O planeta passa a ser um grande shopping com diferentes arquiteturas. E lá gastam tudo o que podem para manter a ilusão de que viajam em perfeita segurança porque este mundo – o do consumo – conhecem bem. Acreditam secretamente que assim não se arriscam. O que não sabem, mas em algum momento vão acabar descobrindo diante do espelho do banheiro, é que a única viagem impossível é a fuga de si mesmo.

Existem ainda os que fotografam ou filmam tudo, o tempo todo, na tentativa de controlar sua imagem no espelho. Veem o mundo protegidos pela lente da câmera. Não experimentam, não se expõem, não vivenciam – apenas registram. Não o registro da vida vivida, mas o registro de que estiveram lá sem estar. Viajam para colecionar imagens, não para viver experiências e serem transformados por elas. Para estes, a imagem vale mais que a vida, quase a substitui. A vida é risco – a fotografia pode ser manipulada e melhorada com photoshop. Vão descobrir onde estiveram ao se assistirem sorridentes em diferentes cenários onde posaram como personagens de si mesmos.

Assim como há aqueles que esperam que uma viagem vá mudar radicalmente o curso de sua existência. É possível que mude. Mas talvez não do jeito que esperam se o que esperam é se transformar num outro.

Toda viagem é sem volta e leva sempre ao mesmo lugar: a nós mesmos. Ao final de cada uma, o melhor que podemos esperar é termos nos tornado mais o que somos. Ter alcançado porções mais longínquas de nossa própria geografia, mesmo que esta seja uma floresta densa e sombria. Ter sido ampliado pela experiência de se arriscar a olhar para dentro, escalando nossas próprias montanhas, mais altas que o Everest, e atravessando nossos rios internos a nado, ainda que eles estejam infestados de piranhas e jacarés famintos.

Na paisagem interna de todos nós há partes selvagens que nos provocam medo. Há monumentos dos que vieram antes que podem nos pesar ou atrapalhar, ainda que nos deslumbrem com sua grandeza. Há ruínas que lamentamos, há abismos que nos parecem intransponíveis e há também largas porções de sol e de praias de águas transparentes se procurarmos com afinco. Somos variados como o mundo que nos encanta e assusta ao mesmo tempo. Só precisamos olhar com coragem para o espelho que nos reflete e descobrir aonde ele vai nos levar. Não há setas indicando o caminho. Como dizem aqueles que moram na beira das estradas com precisão mal compreendida, aos viajantes que perguntam por direção: siga em frente, toda vida.

(Publicado na Revista Época em 25/10/2010)

A pedra

Andava rápido pelas ruas de Roma. Queria comprar óculos de sol. No Brasil, os mesmos óculos custam três vezes mais, às vezes até quatro. Prada, Giorgio Armani, Dolce & Gabbana. Desta vez, só desta vez, se renderia às grandes grifes. Era o que falava para si mesma enquanto os olhos perscrutavam vitrines com a ajuda de lentes de grau. Afinal, convencia-se, óculos precisam ser bons para não prejudicar os olhos. Não estava sucumbindo aos apelos eloquentes do consumo, apenas fazendo uma compra consciente, quase uma questão de saúde ocular. Pisando distraída no universo das marcas, esqueceu-se de olhar para o chão. E o chão veio até ela, quadriculado no mosaico antigo.

A dor no pé alcançava o fígado, mas ela já tinha vergonha suficiente, não precisava aumentá-la berrando no meio da Via dei Condotti. Deu um sorriso desajeitado e falso para quem lhe perguntava se estava tudo bem. Tutto bene, molto bene, respondia. Putaquiopariu! Quando voltou a enxergar com nitidez, procurou a origem de sua desventura. E lá estava ela. Uma pedra maior que as outras, desencaixada.

Uma pedra basilar. Antiga, muito antiga. Talvez estivesse ali desde o tempo do Império Romano, possivelmente até antes, muito antes do próprio Cristo, na época em que os cristãos viravam comida de tigres e de leões no coliseu. Ou, não era impossível, ainda antes de Rômulo e Remo. A pedra, de qualquer modo, ali ou em outro lugar, existia desde antes das lendas e de toda a mitologia. Antes dos homens.

Era uma parte nova da alma que lhe doía agora, ao descobrir que a pedra estaria ali quando o último osso do seu corpo fosse devorado pelos vermes. Estaria neste mundo quando o fêmur do corpo do seu neto e do seu bisneto e do seu tataraneto e daqueles para os quais não faz sentido inventar palavras para nomear porque são distantes demais fossem devorados por uma geração de vermes bilhões de vezes à frente daquela que a tinha deglutido. A pedra, por ser pedra, estaria ali ou em qualquer outra coisa na qual o planeta se transformasse. E ela, por ser carne, passaria fugaz como um cometa para o tempo das pedras.

Uma lágrima sua pingou na pedra. E em seguida foi pisoteada por um pé. Ela entrou na ótica e usou seu cartão de crédito dourado para se endividar com os óculos mais caros que encontrou. Tão escuros que, ao sair, não enxergou mais a pedra, que tinha ficado para trás.

Mais tarde, tomando um capuccino, pensou que la vita è bella. E as pedras não podem saber disso.

As mães não deveriam morrer

Resta-nos o movimento que transforma dor em saudade

Uma amiga perdeu a mãe, de repente. A notícia me alcançou por e-mail, agora que a internet deixou o mundo pequeno. Estou longe, mas também aqui, neste lugar sem distância que é o mundo virtual. Mas com tempo veloz, em que uma hora pode ser um pretérito definitivo na disputa pela supremacia dos segundos. Como era antes, quando as notícias levavam meses para chegar e o mundo sobre o qual falavam já tinha inteiro se transmutado, quando as cartas eram sempre um retrato do passado? Agora tudo é agora. E os tempos se confundem de outro modo. Mas se confundem.

Senti tanto o desamparo da minha amiga, porque sei que as mães não deveriam morrer. Na mesma noite sonhei com meus mortos. Meu avô sentava-se com minha avó ao redor da mesa da cozinha como antes e como nunca, porque meu avô sabia que minha avó tinha morrido e eu sabia que meu avô tinha morrido uns 20 anos depois dela. E uma quarta pessoa, desconhecida de todos nós reunidos naquela cozinha, sabia que eu também já tinha morrido, numa outra época que ainda não chegou para mim. Mas comíamos bolinhos de chuva naquela mesa porque compreendíamos que, no curto espaço de existência, neste soluço entre o nascimento e a morte que pertence a cada um de nós, nem os sonhos devem ser desperdiçados. E ali, enquanto eu dormia num quarto de hotel, éramos uma impossibilidade lógica que conversava e que ria.

Quando perdemos alguém que amamos, a dor é tão extravagante que nos come vivos, como se fosse uma daquelas formigas africanas que vemos nos documentários da National Geographic. A dor está lá quando acordamos. Continua lá quando respiramos. Nos espreita do espelho diante do qual escovamos os dentes pela manhã com um braço que pesa uma tonelada. E, quando por um instante nos distraímos, crava seus dentes bem no coração. Neste longo momento depois da perda, sabemos mais dos buracos negros do que os astrônomos porque carregamos um dentro de nós. E arrancamos cada dia nosso do interior de sua boca ávida, com uma força que não temos, para que não nos sugue de dentro para dentro.

Devagar, bem devagar, muito mais devagar do que o mundo lá fora nos exige, o vazio vai virando uma outra coisa. Uma que nos permite viver. Descobrimos que nossos mortos nos habitam, fazem parte de nós, correm em nossas veias fundidos a hemácias e leucócitos. Que suas histórias estão misturadas com as nossas, que seus desejos se deixaram em nós. Que, de certo modo, somos muita gente, multidão. Como também nós seremos em muita gente, deixando, em cada um, ecos de diferentes decibéis e intensidades. Acolhemos então aquele que nos falta de uma forma que nunca mais nos deixará. Como saudade. E como saudade não poderá mais partir.

Somada, a vida humana é um rio barulhento de memórias no leito do tempo. Enquanto outras espécies sabem, sem que ninguém tenha ensinado, que precisam voar para o sul para não sucumbir no inverno ou que devem escalar dezenas de metros de uma árvore em busca da fêmea para se acasalar num momento preciso, nós perpetuamos lembranças. Não é uma intuição prática, no sentido ordinário do termo. Mas é tão vital quanto o acasalamento ou a fuga do inverno.

Assim como a natureza tece mil expedientes para perpetuar seus genes, pertençam eles a um chimpanzé ou a uma mosca; nós, cuja diferença evolutiva nos permitiu inventar a cultura e ser na cultura, perpetuamos a vida através da memória. Já que, para nós, não há vida sem a consciência da vida. Transmitimos as histórias, o conhecimento e os sentimentos dos que se foram, tanto como humanidade quanto como indivíduo, como se fossem parte de um DNA imaterial. Do contrário, seria impossível conviver com o privilégio de nossa espécie, a consciência do fim.

Quem não entende isso acha que, quando doamos as roupas e os objetos de quem amamos e se foi ou deixamos de chorar no cemitério, superamos a perda. Não acredito que exista superação no sentido do esquecimento. O que acontece é que compreendemos que aquela pessoa não estará mais no mundo externo, não pertence mais a ele. Mas também não é mais um vazio que grita como nos primeiros meses, às vezes anos. Ela agora mora no mundo de dentro, vive como memória nossa, em nós. E assim não está mais morta, mas viva de um outro jeito. É o que me ensina João, o homem que divide comigo a aventura arriscada de viver. De luto por sua própria mãe, percebo que a carrega nos olhos quando se maravilha com a novidade do mundo.

Ele me ensina que a vida dos mortos em nós não é possessão nem fantasma. Nem é morte. O mórbido é quando não conseguimos dar um lugar vivo para o morto. Então a memória fica pregada naquele momento de horror e a vida se torna impossível, porque a existência não é água parada, mas rio que corre. Acontece quando alguém, pelos mais variados motivos, não consegue fazer o luto e dar um lugar de saudade para a dor. Quando nos fixamos, num dogma ou numa falta, partes importantes de nós gangrenam. Mas quando os mortos se acomodam em nós como lembrança que muda segundo o viver de quem vive, tudo flui. Se há algo que a vida é em essência é movimento. E o luto é um movimento que reabre as portas para a vida ao romper com a rigidez da morte em nós. Por isso, para o luto não pode haver pressa, porque é grande e largo o gesto que temos de fazer acima e apesar do horror que nos atinge até mesmo em partes que nem sabíamos que existiam.

Quando perdeu a mãe, João compreendeu por completo a poesia que Carlos Drummond de Andrade escreveu para a poeta Ana Cristina Cesar, que se suicidou aos 31 anos atirando-se pela janela do 13° andar. Ela fala da diferença entre falta e ausência. “Por muito tempo achei que a ausência é falta. E lastimava, ignorante, a falta. Hoje não a lastimo. Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim. E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços, que rio e danço e invento exclamações alegres, porque a ausência, essa ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim.” É isso. A ausência não é falta. Ou, dito de outro modo, a falta nos come vivos. A ausência, por paradoxal que pareça, nos preenche.

Há um filme de extraordinária beleza sobre a perda, a saudade e o lugar dos mortos em nós. Chama-se “Hanami – Cerejeiras em flor” (Doris Dörrie, 2008 – Alemanha/França). Passou nos cinemas, ainda resiste numa sala ou outra, mas já assisti ao filme na TV por assinatura. Se você encontrar este nome na programação, não deixe de ver. Feche as cortinas, proteja-se do barulho da rua, programe-se para algo especial. O filme conta a história de um homem que não gosta de sair da rotina em sua viagem mais longa e menos previsível. Ele parte em busca de sua mulher e só a encontra quando descobre que ela está dentro dele, nos gestos dele, no corpo e nos olhos que ele empresta a ela. É um filme sobre a morte que nos leva ao único lugar onde vale a pena chegar, à vida.

Quando sofremos uma grande perda ou somos abalroados por uma catástrofe pessoal de outro gênero, as pessoas dizem, para nos consolar e com as melhores intenções, que tudo passa. Acho que, na verdade, nada passa. A frase mais precisa seria que tudo muda. Também nós que aqui estamos como matéria um dia seremos apenas eco. Tanto pelas nossas células que alimentam e se agregam a outros seres vivos a partir da decomposição de nosso corpo como pelas histórias que transmitimos e permanecem além de nós. Aquela que fui ontem já mudou, a ruga que há um ano não existia agora é visível na pálpebra direita, minha percepção do mundo não é mais exatamente a mesma do mês passado, alterada por novas experiências que me alargaram. De certo modo, nascemos e morremos tantas vezes até o fim da vida. E é este o movimento que importa.

Queria dizer isso à amiga que perdeu a mãe de repente. Mas agora minha amiga ouve, mas não pode escutar. A dor a está comendo viva como as formigas africanas. Tudo é horror e absoluto. Mas com o tempo, um período só dela e que não pode ser determinado em parte alguma nem por ninguém, minha amiga vai começar a perceber que a mãe é uma ausência presente no formato das suas unhas, num certo jeito de mexer a cabeça quando fala, na tonalidade rara dos olhos. Está nas palavras e nas histórias que conversam dentro dela, na mitologia familiar que se perpetua, nos sons da memória. E então poderá reencontrar a mãe dentro dela. E levá-la para passear.

E, num dia que sempre chega, viverão as duas como história, como cacos de lembranças encaixados em diferentes rearranjos de vitrais, na vida dos que vieram depois. É pouco, talvez. É tudo o que temos.

(Publicado na Revista Época em 18/10/2010)

Comer, rezar, amar

Alugara o apartamento pela internet. O site fora indicação de um amigo diplomata que servira em Roma. Patrício escrevia razoavelmente bem em português. E esta familiaridade da mesma língua dera a ela uma confiança. Era o sonho dela. Escrever um romance num pequeno apartamento de Roma, com o sol entrando pela janela junto com as eternidades da cidade dos Césares. Ignoraria o Papa. Nunca entendeu aquela frase: “Ir a Roma e não ver o Papa”. Para ela seria estranho ir a Roma e perder tempo com o Papa. Preferia ruínas vivas.

Levou uma semana para se decidir entre os apartamentos que ele lhe enviara por e-mail. Entrou nos links e reviu os vídeos de cada um dezenas de vezes. Se fosse você, qual escolheria?, ela perguntava a Patrício, como se ele fosse um velho amigo. Pega sol? A cama é boa? Veja bem, trata-se de um sonho. Ela achava que as pessoas ligavam para sonhos.

Escolheu um pequeno loft numa rua com nome de mulher, perto da Piazza Navona. Uma escolha racional. Gostou da vielinha deserta com um café no térreo que viu no vídeo da imobiliária. Imaginava-se tomando o café com os donos, a mulher lhe serviria um pedaço de bolo que acabara de fazer, uma receita de sua velha nona. Depois os deixaria acenando na porta para comprar 100 gramas de presunto Parma e uma garrafa de Chianti na mercearia da esquina.

Chegou assim na estação Termini. Um táxi a deixou no café simpático enquanto esperava o moço da imobiliária. Patrício havia dito que um funcionário chamado Pablo a esperaria à uma da tarde. Os donos do café simpático não entendiam o seu italiano. Nem eram simpáticos. Atrapalhada, ela acabou pedindo uma cerveja em vez de um capuccino. Pablo apareceu dez minutos depois da hora marcada. Com uma cara fechada. Disse que era argentino de Buenos Aires, vivia em Roma há um ano. Se tivesse algum problema, era para falar com ele. Não com Patrício. Só com ele. Disse que não precisava explicar nada do apartamento porque tudo era “muy sencillo”. Só depois ela percebeu ter assinado um papel sem ler, atarantada com a dureza da recepção. De repente, a diferença do fuso horário pesava como algemas.

Quando Pablo a deixou sem se despedir, descobriu que estava no que deveria ter sido o porão de um prédio medieval. Uma masmorra, talvez. Lá no alto havia uma janela gradeada, mas não conseguia alcançá-la. Abriu um pouco dela para arejar por meio de um pedaço de pau comprido. A luz do sol mal esbarrava nas grades. Sentiu a claustrofobia de criança cravando unhas mofadas no seu coração. Agora que se sentia desprotegida no velho mundo.

O pior eram as chaves da porta. Havia duas, mas ela só recebera uma. A mais simples. Sempre tivera problemas com chaves. As portas de todos os seus apartamentos tinham muitas fechaduras. Só se sentia segura depois de checar três vezes se todas tinham sido trancadas e estavam na sua mão. Só então conseguia dormir. Com uma luz acesa na cabeceira. E agora se encontrava ali, com uma chave só. E a outra, onde andaria?

Xingou a si mesma. Elizabeth Gilbert, a autora de Comer, rezar, amar, com certeza não se intimidaria. E por isso havia ficado rica, famosa e ainda tinha encontrado um grande amor. Ela era adulta. Ou não era? Não fazia sentido tudo isso. Tinha alugado um apartamento em Roma e estava assustada como uma menina de cinco anos. Era uma mulher agora. Uma escritora. Tinha um sonho. E o faria acontecer.

Pegou a mochila e partiu em busca de uma mercearia nas redondezas. Encontrou um pequeno supermercado. Tentou puxar assunto com o moço que lhe cortava cem gramas de mortadela. Ele não sorriu. Escolheu alguns pacotes de sopas de microondas. Sim, lembrava que tinha visto um num canto do apartamento. Um suco com aquela laranja vermelha de que gostava. Uma barra de chocolate branco. Pretendia rever Cinema Paradiso no computador antes de dormir. Combinava com uma barra de chocolate branco. A caixa do supermercado não respondeu ao seu bongiorno. Jogava suas compras no balcão como se fossem ratazanas. Disse que não tinha troco para sua nota de 100 euros. Ela sentiu vontade de chorar, mas era adulta. Fechou a cara e não falou grazie. A italiana não dormiria naquela noite.

Decidiu encher a pequena banheira e relaxar lendo um livro. Descobriu que só saía água fria das torneiras. Desta vez, chorou. Prendeu a respiração e molhou o corpo inteiro. Depois se ensaboou. Enxaguou o corpo pensando que precisava emagrecer. Era curioso como a verdade se revelava quando se mudava de cenário. De repente estava ali, uma mulher de meia-idade, acima do peso. Com um sonho.

Emagreceria na volta. Enquanto se enxugava com uma toalha gasta, concluiu que, afinal, banho frio fazia bem para a saúde. Tinha um amigo que só tomava banho frio, mesmo no inverno. Ela poderia adotar isso. Sentia-se revigorada quando deitou na cama com seu computador e a música de Ennio Morricone encheu o apartamento lambendo a sua alma. Agora sim estava parecido com um sonho.

O padre tocava o sino violentamente enquanto o casal se beijava na tela. O sinal para Alfredo cortar o fotograma na fita. Totó espiava pela cortina. Ela ouviu alguma coisa. Não queria ouvir nada. Totó pedia a Alfredo que lhe ensinasse a mágica dos filmes. Ela ouviu de novo. Agora não poderia ignorar. Apertou a tecla pause. Caminhou descalça, com um pouco de nojo. Ela era assim, a casa que não era dela a contaminava. Não ouviu mais nada. Nem viu nada estranho. Voltou para a cama.

Totó agora levava uma surra da mãe porque os restos de película que escondera numa lata debaixo da cama tinham pegado fogo e quase mataram sua irmã caçula. O fogo da tela iluminou o medo dentro dela. A porta. Nem apertou a tecla pause. Correu até a porta sem se preocupar com a pedra suja sob os seus pés. Tentou puxar o trinco. Nada.

Estou nervosa. Devo ter eu mesma me trancado. Ofegante, chaveou de novo. E deschaveou. Um arrepio embaralhou suas tripas. Sentiu aquele gelo no cérebro de quando o medo não é mais além da imaginação. Alguém a tinha trancado por fora. Caminhou de volta para a cama. E de volta para a porta. Ficou alguns minutos assim, sem saber o que fazer. Ainda com vergonha de gritar. Será que ela, sempre tão contida, sabia gritar? Lembrou que quando o homem no cinema tinha agarrado o peito que não tinha aos 11 anos ela não tinha conseguido gritar. E não gritou até o suspiro final dele. É curioso como algumas coisas assomam na cabeça… Ela estava trancada num porão reformado num prédio medieval da cidade eterna. Só podia ser pegadinha. Claro. Riu um riso nervoso. Era a rata da ratoeira que veio atrás do parmigiano-reggiano e virou linguiça.

Olhou para a janela gradeada lá no alto. Descobriu que podia gritar. Começou a berrar e a esmurrar a porta. Sabia que havia apartamentos em cima do seu. Não tinha visto ninguém entrar no prédio além dela, mas sabia que existiam, vislumbrara luz numa janela. Quebrou uma cadeira na porta. Agora estava furiosa. Quebrou um objeto atrás do outro. O ponteiro do relógio já tinha virado meia-noite e nenhum barulho externo entrava pela janelinha do alto. Lá longe, bem longe, uma sirene. E mais nada.

Na tela do computador, o Cinema Paradiso pegava fogo quando ela sentiu o cheiro de queimado.

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