A vida dos outros

Quando viajo tento descobrir os restaurantes e botecos que as pessoas do lugar frequentam. Sento a uma mesa de costas para a janela e de frente para a paisagem que mais me interessa, a interior. Fico observando a vida dos outros se desenrolando nas mesas. Começo estrangeira e termino pertencendo. Não se entra na vida dos outros, mesmo que seja apenas com nosso olhar, impunemente. A vida dos outros se agarra à nossa alma e se torna nossa. Foi assim no meu primeiro e único dia em Lisboa, duas semanas atrás. Sentei numa pastelaria de esquina. Era um domingo e o domingo é um dia que crava suas unhas na gente mesmo quando estamos bem.

Pedi meu bacalhau e fiquei olhando a cena da mesa mais próxima. Uma mulher de uns 60 anos conversava com uma amiga da mesma idade, uma diante da outra. E do lado sua filha, uma adolescente com síndrome de Down. A menina apenas observava a conversa, seus olhos passeando pelas mesas como os meus, mas com mais ansiedade que os meus. O único garçom me atendia de cara sisuda porque eu era um corpo estranho num domingo que era deles. Seu olhar me acusava por não ter escolhido um dos restaurantes da outra ponta da rua, que exibiam menus em inglês. Culpava-me pela intromissão. Mas a menina com Down ele chamava pelo nome e todo ele virava um pastel de nata. E por isso eu gostava dele mesmo quando atirou o prato de bacalhau na minha frente.

Diante de mim, num canto, havia um homem de seus 50 e poucos anos. Enfiado numa roupa domingueira ele falava o tempo todo ao celular enquanto comia sozinho. Modulava a voz num tom sedutor e por isso eu adivinhava que falava com uma mulher. Aos poucos as palavras foram chegando e percebi que não era apenas uma, mas uma após a outra. Ele procurava companhia para não naufragar no domingo, mas não havia sins para ele. E a sobremesa chegou e depois o café e seus olhos vagavam cada vez mais velozes pelo quadrilátero da pastelaria, batendo pelas paredes enquanto a voz já perdia a força. E tanto eu quanto ele, ainda que ele não soubesse de mim, sabíamos que a mulher do outro lado já adivinhava seu desespero. E não há nada que as pessoas temam mais que a solidão alheia. Eu não podia ouvir o que elas diziam, mas conhecia o que pensavam: Tire suas mão pegajosas de cima de mim. Minha boia só tem lugar para um.

Do meu canto eu fingi não vê-lo quando o vi levantar ajeitando com mãos nervosas sobre o próprio corpo franzino os últimos fiapos de uma dignidade antiquada. E depois caminhar até a porta do bar mais ou menos ereto. Quase podia imaginar o oceano lá fora, o de Cabral e Vasco da Gama, arrastando-o pelas pernas e afogando-o no mosaico português onde o sol refletia o vazio sem terra à vista do domingo. Mas não o vi porque estava de costas para a janela. E meu olhar era como uma pintura de Edward Hopper, onde mesmo o lado de fora era dentro.

Então a voz da menina com Down se ergueu e tornou-se mais aguda. Mas eu não pude entender o que ela dizia. A mãe estancou a conversa animada com a amiga no mesmo segundo, enquanto a espinha do bacalhau entalava na minha garganta. A mulher então rasgou o silêncio com a mão que estendeu sobre a mão da filha. Olhou bem para a menina e disse. “Filha, a vida dói”. E os olhos de ambas se encheram de lágrimas sem que nada mais fosse dito. E todos nós ali mergulhamos no abismo.

Quando elas partiram eu pedi um café porque não seria capaz de enfrentar o oceano que tragara agora também a elas. Eu tentava imaginar o que a menina disse para que a mãe precisasse dizer aquilo. Queria correr atrás delas e perguntar. Mas era domingo e no domingo a gente não corre. Apenas fica ali, fingindo-se de estátua como na brincadeira de infância, para que a máquina do mundo não nos triture com seus dentes amarelos.

Estávamos sozinhos agora, os únicos clientes. No balcão o homem do caixa se esmerava em arrumar um vaso com flores de plástico porque ele também entendia que às vezes era isso tudo o que restava. Todo o controle que tínhamos sobre a vida eram estas flores que não morriam porque jamais tinham nascido. Ele sabia, o homem sábio, que ajeitando flores de plástico no velho vaso conseguiria ancorar na segunda-feira.

Eu adoçava meu café com o sal do meu próprio mar quando a família entrou. Um casal mais velho, de cabelos brancos, e um mais jovem. Pela mão um bebê que tentava dar seus primeiros passos. Mas só enxerguei a garotinha depois. Eu passeava meus olhos pelo rosto do velho quando ele me abriu um sorriso tão orgulhoso porque ele tinha certeza de que eu, como todos ali, só podia estar olhando para a coisa mais linda do mundo. Então rapidamente eu me refiz do meu enleio e abri o meu próprio sorriso confirmando que sim, não havia nada mais lindo que sua neta nem nunca haveria. Eles estavam pobremente vestidos, mas enfeitados para o domingo. Era sua melhor pobre roupa e a avó até tinha arrumado o cabelo. Possivelmente não tinham dinheiro para comer o prato do dia, então almoçaram em casa e pediam agora apenas um café de domingo.

A pequena portuguesa bamboleou suas perninhas gorduchas até a minha cadeira onde eu a amparei com as mãos. E tive certeza de que acabara de fazer parte de um grande descobrimento. O velho abriu de novo seu largo sorriso onde faltava a maioria dos dentes. Mas era um sorriso tão rico. Então compreendi. Ao compreender, quis sair correndo atrás da mãe e da filha com síndrome de Down para dizer que sim, a vida dói. Mas às vezes não.

Então o garçom sorriu para mim. Um sorriso de boca fechada, rápido o suficiente para que pudesse fingir que não tinha dado um sorriso. Mas eu sabia que agora pertencia àquele domingo que nunca mais sairia de mim. Era apenas uma janela para dentro, mas agora quando eu olhava também me via.

Em nome do bem se faz muito mal

As tentativas de censurar a literatura são mais graves e menos isoladas do que parecem

Apenas entre agosto e outubro deste ano foram três tentativas de censurar a literatura. Três que se tornaram conhecidas, podem ter ocorrido outras. A mais rumorosa delas foi o parecer do Conselho Nacional de Educação recomendando que o livro “Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, fosse banido das escolas públicas. Ou apresentasse notas explicativas alertando sobre a presença de “estereótipos raciais”. Os membros do CNE viram racismo na forma como a personagem Tia Nastácia é tratada no livro. Dois meses antes, em agosto, pais de estudantes do ensino médio da rede pública de Jundiaí, no interior de São Paulo, protestaram contra o uso do livro “Cem Melhores Contos Brasileiros do Século”. Segundo eles, o conto “Obscenidades para uma dona de casa”, de Ignácio de Loyola Brandão, usa “linguagem chula” para descrever atos sexuais narrados em cartas recebidas por uma dona de casa. Ainda em agosto, mais uma polêmica. Desta vez por causa do livro “Teresa, Que Esperava as Uvas”, de Monique Revillion, também destinado ao ensino médio. No conto “Os primeiros que chegaram” a autora descreve um sequestro com estupro e assassinato.

É bastante diferente quando a tentativa de censurar a literatura parte de pais ou pedagogos – indivíduos, portanto – e quando é encampada por um órgão que tem a tarefa de pensar a educação brasileira e ajudar a aprimorá-la com suas análises e recomendações. A má qualidade da educação na rede pública, como todos sabemos, é uma das maiores, senão a maior tragédia nacional. Entre as causas da indigência educacional brasileira está o fato de que os brasileiros leem pouco ou nada leem. Boa parte deles porque não tem acesso a bibliotecas, triste realidade que os programas governamentais têm tentado mudar com menos empenho do que seria necessário.

Quando soube das tentativas de censura, minha primeira reação foi rir. Era tão absurdo que parecia mesmo piada. Percebi então que enquanto nós rimos, eles proíbem. Esta última polêmica atingiu uma repercussão tão grande, capaz de fazer o ministro Fernando Haddad manifestar-se pedindo uma revisão do parecer, apenas por tratar-se de Monteiro Lobato, um autor consagrado. Quem teve a sorte de conhecer Tia Nastácia, Dona Benta, Pedrinho, Narizinho, Emília e todos os habitantes do Sítio do Picapau Amarelo deve ao autor uma das partes mais saborosas de sua infância. Tão deliciosa quanto os bolinhos da Tia Nastácia, aliás. Nos outros dois casos, os protestos e a repercussão tiveram um volume menor.

É assim que o autoritarismo vai se insinuando em nossas vidas, pelas bordas. Vai nos comendo aos poucos e um dia se instala em nosso cotidiano como se fosse um dado da natureza. Acontece quando a equipe responsável pela seleção dos livros depara com um conteúdo que já provocou polêmica antes e, para se poupar de problemas, acaba optando por uma obra mais palatável. Pronto, o livro em questão, apesar de sua reconhecida qualidade, jamais chegará às bibliotecas. Ou quando o professor na sala de aula, que já é criticado por quase tudo, prefere abster-se do risco. Em vez de escolher o melhor livro, opta por aquele que não causará a reação raivosa de nenhum pai ou mesmo uma discussão acalorada na classe. Pronto, os alunos só terão acesso a textos que nada provocam. Ou ainda quando algum escritor começa a se policiar nos termos que usa e nos temas que aborda para ter alguma chance de ser selecionado pelos programas de governo. É assim, muito mais pelo que não é dito, pelos caminhos subjetivos, que a vida se empobrece e o controle se instaura.

A História nos mostra que censurar livros e controlar o que é escrito estão entre os primeiros atos de regimes autoritários. Vale a pena revisitar a obra de Ray Bradbury, “Fahrenheit 451”, um pequeno livro essencial que possivelmente o CNE não aprovaria.

Nas democracias, o autoritarismo costuma vir embalado no discurso do bem. Que é, de longe, o mais insidioso e difícil de identificar. Se o CNE afirma que Tia Nastácia é tratada de modo preconceituoso, como vamos nos posicionar contra a eliminação de algo tão abjeto como o racismo sem nos sentirmos boçais? Só mesmo porque o autor se chama Monteiro Lobato. Mas e se fosse um escritor menos conhecido, ainda que brilhante? Será que tantos teriam a coragem de defender a sua obra?

É preciso dizer que o CNE nega ter cometido qualquer ato de censura da obra de Monteiro Lobato. Ele apenas “recomenda” que todas as obras com “preconceitos e estereótipos”, como “Caçadas de Pedrinho”, não sejam compradas nem distribuídas pelos governos. Para o CNE, isto não é banimento. No caso de clássicos como os livros de Monteiro Lobato, se insistirem em usá-los nas salas de aula, o CNE sugere que seja feita uma nota explicativa alertando para seus pecados. Interpretar esta recomendação bem intencionada como uma tentativa de censura seria apenas mais uma das incontáveis “manipulações da imprensa”.

Entre os argumentos utilizados para defender o parecer está o de que os professores da rede pública não teriam preparo para discutir uma questão complexa como o racismo. Ou para contextualizar a época de Monteiro Lobato assim como o Brasil que ele retrata. Surpreende-me que nenhum professor tenha se manifestado contra uma generalização que poderia ser interpretada como preconceito. Mas, supondo por um momento que esta afirmação esteja correta, a saída seria banir todos os conteúdos que hoje são mal trabalhados nas salas de aula, de Monteiro Lobato à equação de segundo grau?

Neste mesmo rumo, acreditar que as crianças, por lerem “Caçadas de Pedrinho”, começariam a discriminar os negros nas ruas é no mínimo subestimá-las. É preocupante perceber que pessoas responsáveis por pensar e aprimorar a educação brasileira possam enxergar as crianças como meros receptáculos, vazios e passivos, sem capacidade de fazer relações, inferências e mediações. Se aceitarmos o argumento de que Tia Nastácia tem um tratamento racista na obra, sob os olhos de hoje e não da época de Monteiro Lobato, a atitude de um bom educador deveria ser a de calar as contradições e eliminar a oportunidade de debate?

Eu, que tive a sorte de ler toda a obra de Monteiro Lobato entre os 8 e os 9 anos e incrivelmente não me tornei racista, gostaria de dizer aos membros do CNE que mesmo a sua interpretação da personagem Tia Nastácia é pobre. Bem pobre. Mas a Academia Brasileira de Letras disse isso de uma forma muito melhor do que eu faria. Transcrevo aqui parte da manifestação da ABL, contrária ao parecer do CNE:

Um bom leitor de Monteiro Lobato sabe que tia Nastácia encarna a divindade criadora, dentro do sítio do Picapau Amarelo. Ela é quem cria Emília, de uns trapos. Ela é quem cria o Visconde, de uma espiga de milho. Ela é quem cria João Faz-de-conta, de um pedaço de pau. Ela é quem “cura” os personagens com suas costuras ou remendos. Ela é quem conta as histórias tradicionais, quem faz os bolinhos. Ela é a escolhida para ficar no céu com São Jorge. Se há quem se refira a ela como ex-escrava e negra, é porque essa era a cor dela e essa era a realidade dos afrodescendentes no Brasil dessa época. Não é um insulto, é a triste constatação de uma vergonhosa realidade histórica.

Em vez de proibir as crianças de saber disso, seria muito melhor que os responsáveis pela educação estimulassem uma leitura crítica por parte dos alunos. Mostrassem como nascem e se constroem preconceitos, se acharem que é o caso. Sugerissem que se pesquise a herança dessas atitudes na sociedade contemporânea, se quiserem. Propusessem que se analise a legislação que busca coibir tais práticas. Ou o que mais a criatividade pedagógica indicar.

Mas para tal, é necessário que os professores e os formuladores de políticas educacionais tenham lido a obra infantil de Lobato e estejam familiarizados com ela. Então saberiam que esses livros são motivo de orgulho para uma cultura. E que muito poucos personagens de livros infantis pelo mundo afora são dotados da irreverência de Emília ou de sua independência de pensamento. Raros autores estimulam tanto os leitores a pensar por conta própria quanto Lobato, inclusive para discordar dele. Dispensá-lo sumariamente é um desperdício.

A obra de Monteiro Lobato, em sua Integridade, faz parte do patrimônio cultural brasileiro”.

A única parte boa desta tentativa de censura foi me dar uma excelente desculpa para reler “Caçadas de Pedrinho” (Editora Globo) aos 44 anos e renovar minha gratidão a Monteiro Lobato pelo tanto de imaginação que me deu. Assim como comprar “Os cem melhores contos brasileiros” (Objetiva) para ler o texto de Ignácio de Loyola Brandão que provocou furor no interior de São Paulo. E de quebra ler Clarice Lispector, Graciliano Ramos, Machado de Assis, Mário de Andrade, Nélida Piñon, Lygia Fagundes Telles, Hilda Hilst, Carlos Drummond de Andrade, Raduan Nassar, Moacyr Scliar, Caio Fernando Abreu, João Ubaldo Ribeiro e todos os grandes da literatura brasileira que fazem parte da coletânea. Banir tal livro das escolas? Por favor, não!

O conto de Ignácio de Loyola Brandão é excelente. Ótimo mesmo. Quando li a notícia de que alguns pais e estudantes queriam proibi-lo por usar “linguagem chula” na descrição de atos sexuais, estranhei. Afinal, tratava-se de adolescentes do terceiro ano do ensino médio, na faixa dos 17 anos. Neste mundo. Nesta época. Será que não seriam capazes de lidar com isso? Parece-me que, se não conseguem lidar com isso, então sim temos um problema.

Foi só ao ler o conto que formulei minha própria hipótese sobre a razão de tanto incômodo. Eu arriscaria dizer que o que pode ter perturbado estes pais e estes filhos é uma outra realidade que o conto desnuda, esta sem “linguagem chula”, com a qual muitos podem se identificar. Quem ler o conto, talvez concorde comigo. É verdade que é sempre mais fácil proibir aquilo que nos produz incômodo do que olhar para dentro e tentar compreender com honestidade os nossos porquês. Perturbar, incomodar e até transtornar o leitor, em minha opinião, são qualidades num texto.

Não encontrei o “Teresa, que esperava as uvas” (Geração Editorial), de Monique Revillion. Infelizmente. Pelo que li nos jornais, o conto da discórdia chocava pela crueza da descrição da violência. De novo, o livro era usado como material de apoio para estudantes do ensino médio, com idades a partir de 15 anos. Houve quem acreditasse, com bastante estardalhaço, que os adolescentes não seriam capazes de lidar com temas como a violência urbana e a sexual. Não compreendo como não ocorreu a estas mentes privilegiadas proibir logo todo o noticiário, que nem mesmo pode alegar em sua defesa que é ficção. Que os jornais e revistas sejam vendidos nos fundos das bancas, junto com os filmes pornôs.

Tudo isso – sempre – em nome do bem. Com as melhores intenções.

Sou filha de professores de português e literatura que dedicaram boa parte da vida a dar aulas na rede pública. Meus pais, que me ensinaram a amar os livros, se esforçaram muito para que tivéssemos uma biblioteca em casa. Na minha família as roupas eram remendadas e herdadas dos primos mais velhos. Se sobrava algum dinheiro era sempre para livros, para a educação. Numa cidade pobre em bibliotecas e com bibliotecas pobres, a nossa era uma das melhores. E foi lá que amigos meus e de meus irmãos, assim como alunos dos meus pais, se serviam livremente das letras. Volta e meia encontro alguém que me interrompe o passo na rua para me dizer que a biblioteca da minha casa foi fundamental na sua vida.

Devo a esta lucidez e a esta biblioteca boa parte do que sou e consegui fazer de mim. Assim como a Lili Lohmann, a moça da livraria cuja história já contei aqui. Nunca, em nenhum momento, nem meus pais nem Lili dificultaram o acesso a um livro. Eu lia o que bem entendia porque eles sabiam que esta busca pertencia a mim, era determinada pelos meus anseios e pelos meus incômodos, pela minha curiosidade que só aumentava. A viagem da literatura é talvez a travessia mais fascinante, importante e – ainda bem – sem fim da minha vida.

Eu era criança e já intuía que a literatura era o território do indizível. Nela cabia tudo o que era humano. Mesmo o feio, o brutal. Mesmo a covardia, a inveja, os sentimentos todos que a gente prefere dizer que não sente. A literatura, como as várias manifestações da arte, é o não-lugar geográfico onde podemos lidar com nossos demônios sem que eles nos devorem. A literatura só é literatura se incontrolável.

Tenho medo que os bem intencionados do politicamente correto inventem a maior ficção de todas, que é um homem sem conflitos, sem pequenezas e sem contradições. E então a literatura, que não será mais literatura porque deixará de estar encarnada na vida, ficará reduzida a uma casca vazia e sem ressonância onde não nos reconheceremos. Porque se estes iluminados se decidirem a revisar a literatura sob a ótica do que é politicamente correto nesta época, podem começar a alimentar sua fogueira com a Odisséia de Homero. E dali em diante não sobra nada. Em sua sanha não devem se esquecer de incluir a Bíblia – aliás, como ainda não pensaram nisso?

É sério, muito sério. E nenhum de nós deve se omitir quando tentarem arrancar o cachimbo do Saci Pererê ou submeter as bruxas dos contos de fadas a um tratamento a laser para eliminação das verrugas. Sobre isso sugiro ler “Saci sem cachimbo, lobo sem dentes e gente sem pensamento”. Percebam bem quantos absurdos nos assediam, nas mais variadas instâncias, em nome do bem. Estamos conseguindo resistir, mais ou menos, e até colecionamos algumas vitórias parciais, como a reversão da censura ao humor nestas eleições. Mas é preciso se manter vigilante nesta luta de resistência.

Não sei o que pensam vocês. Mas eu, quando vejo aquelas pessoas com seu par de olhos angelicais, anunciando que ainda que seja contra a minha vontade estão fazendo o que fazem para o meu bem, não hesito. Corro.

(Publicado na Revista Época em 08/11/2010)

Meu marido e o polvo Paul

Estou ali, tomando meu chimarrão e admirando a vista de São Paulo pela janela. Três prédios cinzentos e um viaduto engarrafado. Lindo. Ouço os passos dele atrás de mim. Me viro com um bom-dia pendurado nas cordas vocais. E estanco. Ele tem cara de enterro. Será que fiz algo condenável durante a madrugada? A noite passa inteira em um segundo pela minha mente. Nada que eu lembre. Alguma má notícia pelo celular que eu não ouvi? Melhor perguntar. O que aconteceu? E ele diz, um travo de choro na voz. “O polvo morreu.”

Fiquei olhando para ele com um ponto de interrogação na testa enquanto tentava lembrar quem era o polvo. Não, não havia nenhum amigo com apelido “Polvo” no meu disco rígido. Quem era o polvo? Percebo agora a complexidade quase irrespondível da minha pergunta. “O polvo!”, ele diz, ofendido. Não bastava ter morrido, já era esquecido. Que polvo?, agora estou nervosa. “O povo Paul, ora!”. Caralho, quem é este tal de polvo Paul? Eu falo mais palavrões que um caminhoneiro. Então pesco uma fagulha de memória num canto do cérebro. O da Copa do Mundo? “Que outro seria?”, ele responde indignado.

Fico muda. Tínhamos acabado de voltar de viagem e ele pedira salada de polvo em todas as oportunidades. Se perguntarem para ele qual é o seu prato preferido, polvo assado, frito, refogado, empanado, no espeto, recheado… estará em seu top five. É exatamente o que lembro a ele. Ele faz cara de culpado. Mas recupera-se rapidamente. “Mas não é o Paul.” Sim, eu entendo. Paul, o polvo vidente, se particularizou, ganhou nome, personalidade, atributos humanos e até divinos. É como no caso dos mineiros do Chile. Milhares de mineiros no mundo inteiro padecem em condições indignas em minas insalubres e morrem mais cedo das doenças causadas por elas — e ninguém liga. Mas os do Chile levaram multidões às lágrimas. Viraram heróis enquanto os colegas continuam e continuarão morrendo no anonimato.

Eu começo a fazer este discurso, mas ele me interrompe. “Por favor, será que eu posso sofrer em paz pela morte do Polvo Paul?” Sim, agora é “Polvo Paul”, praticamente nome e sobrenome. Percebo então que ele realmente está sofrendo com a morte do Polvo Paul. Por amor, esqueço minhas convicções e arrisco um ele-morreu-de-que (?) bem compungido. “Tudo indica que de morte natural.” Ah… eu digo, por absoluta falta do que dizer. E ele volta para o quarto. Para chorar, provavelmente. Eu retorno ao chimarrão e à paisagem paradisíaca.

Para minha surpresa, começo a pensar no Polvo Paul. Sinto até um beliscão no peito pelo Polvo Paul. Tão jovem, penso eu. Será que era jovem? Ligo o computador e começo a gugar. Polvo Paul tinha dois anos e meio. Me parece pouco, mas entro num site sobre cefalópodes. Sim, dois anos e meio parece ser uma idade em que os polvos morrem de velhos. Que horror! Pobre Paul! Assim sendo, faço um cálculo rápido, ele gastou quase 5% da vida dele adivinhando o placar da Copa do Mundo. Pode parecer pouco, mas não é de jeito nenhum. Imagine alguém que viva até os 70 anos, um pouco menos que a expectativa de vida dos brasileiros. Cinco por cento são três anos e meio. Pense no que fazemos e no que acontece em três anos e meio! Sim, Polvo Paul teve a vida roubada. Ainda que pop star, uma vítima do capitalismo. E da cartolagem internacional. E num aquário! Tenha dó.

Tornei-me uma obcecada pelo Polvo Paul. Rastreio notícias sobre ele na internet noite e dia. Tenho certeza de que algumas são cifradas. Há muito mistério em torno da sua vida. A começar por uma disputa em torno do local de seu nascimento. A comunidade italiana Marina Di Campo, da Ilha de Elba, garante que ele foi pescado lá, em suas águas azuladas, quando ainda era um bebê. E já lavrou um registro de nascimento em bom italiano. (E tanta gente implorando por uma cidadania italiana!)

Polvo Paul será nome de rua, garantiu o prefeito. “Ainda não se sabe o que escrever na placa: ‘Rua polvo Paul, adivinhador’ ou ‘Travessa polvo Paul, infalível adivinho de eventos esportivos’”, relatou a administração em uma nota à imprensa. Já está decidido que a placa será bilíngue — inglês e italiano — e que será colocada na rua que liga a praia de Marina Di Campo com a de Porto Caccamo. Segundo algumas investigações iniciais, seria lá que Polvo Paul teria passado os primeiros dias de sua mais tenra infância. No caso dele, tão tenra que dá água na boca.

Entre seus despojos foram encontrados uma camisa da seleção espanhola e uma placa de “Amigo Predileto” da cidade espanhola de Carballino, na Galícia. O prócer municipal, Carlos Montes, acompanhado por autoridades locais da referida comunidade, havia entregado pessoalmente a homenagem ao Polvo Paul logo depois de a Espanha ter se tornado campeã com acertadíssima previsão do ilustre vidente. Agora, Montes reivindica os restos mortais do “Oráculo da Copa do Mundo” para construir o “Museu do Polvo”. Sim, o polvo também é espanhol. Na verdade, um cidadão europeu, quiçá do mundo. Uma mente oracular e cosmopolita, ninguém duvida. Muito menos eu.

Que homenagem edificante e merecida, penso eu, com lágrimas nos olhos. Então… bingo. Eu sabia! Começam agora as primeiras incertezas sobre a sua morte. A cineasta chinesa Jiang Xiao, que faz um filme sobre a vida do mais ilustre molusco da história, garante que ele morreu dois dias antes do final da Copa. “Eu investiguei muito e sei do que estou falando”, ela afirma. E continua, implacável como só as filhas da China conseguem ser: “Eu estou 60% a 70% convicta de que Paul morreu em 9 de julho e os alemães estão encobrindo isso desde então”. Sempre fico confusa com o raciocínio que levou a estes precisos “60% a 70%…”, mas relevo. Pelo Polvo Paul. Senhorita Xiao já tem título para o seu filme: “Quem matou o Polvo Paul?”.

Quem? Who? Wer?

Quem então adivinhou a vitória da Espanha sobre a Holanda? Mais um mistério. O que teria sido feito do dublê naquele aquário de Oberhausen, nas mãos daqueles assassinos de invertebrados? “Meu deus, será que eu comi?”, diz meu marido, quase vomitando o Toddy. Não, não, estávamos longe. Mas alguém comeu. Meu marido vomita o Toddy.

Viu como este mundo é, eu digo. O Polvo Paul vai ter até um filme porque virou celebridade instantânea e ninguém liga para o destino do coitado do dublê, para o mundo tanto faz se virou salada ou picadinho. Sou muito preocupada com os pobres e oprimidos de qualquer espécie, não faço distinção. Anuncio então para meu marido. Tinha passado parte da noite de insônia pensando nisso. Vamos batizar o corredor do nosso apartamento, que liga o quarto à sala, de “Corredor Polvo Paul”. E com um adendo: “Homenagem ao dublê desconhecido”. Pensei que ele ia adorar. Mas meu marido me olha de um jeito estranho.

Dilma-lá!

Faz alguma diferença ter uma mulher na presidência?

Não tenho resposta para esta pergunta. Mas acho interessante fazê-la. E pensar sobre ela. É claro – e é bom dizer logo no começo – que é importante, significativo e até histórico ter, pela primeira vez, uma mulher na presidência. Como Lula gosta de dizer, “nunca antes neste país” uma mulher ocupou este lugar. Supostamente, se uma mulher é eleita para ocupar o cargo máximo de poder em um país, então qualquer mulher pode ocupar qualquer posto, o que é uma conquista, ainda que na prática não funcione exatamente assim. Mas a pergunta que tenho me feito e que trago para esta coluna é se o fato de uma mulher ocupar a presidência faz alguma diferença por ser uma mulher – e não um homem. Se há um jeito feminino de governar.

Em 1938, pouco antes do início da II Guerra Mundial, a escritora inglesa Virginia Woolf publicou um ensaio em que respondia a um advogado que havia feito a ela a seguinte pergunta: “Como nós podemos evitar a guerra?”. Virginia respondeu a ele num texto corajoso e cáustico chamado “Três guinéus”, no qual relacionou “guerra, tratamento desigual das mulheres e patriarcado”. Logo no início ela já dizia que não existia aquele “nós”. Ainda que pertencessem à mesma “classe instruída”, ele era um homem e ela era uma mulher. E as mulheres não faziam guerra. A maioria dos homens sentia “uma glória, uma necessidade e uma satisfação em lutar” que a maioria das mulheres não sentiria. O texto desagradou até mesmo seus amigos mais íntimos, assim como uma parcela das feministas. A escritora, que não viu o conflito acabar porque acabou com a própria vida antes, afirmou que a guerra tinha um gênero – e este gênero era masculino. Para Virginia, era tarefa das mulheres emancipar os homens da violência para que a paz e a liberdade pudessem ser alcançadas. Tal feito só seria possível “destruindo os atributos masculinos, a violência e a idolatria do poder”.

Quando li esse ensaio, fiquei pensando no que milhares de mulheres ao longo da história já pensaram e continuam pensando: se há um jeito feminino de fazer política. Era outra época – e outro contexto. Mas ainda que muitos – e eu mesma – possam discordar das conclusões de Virginia Woolf, a questão é atual. E mesmo o movimento feminista tem dado diferentes respostas a ela. Lembrei desse ensaio ao me perguntar, a partir da eleição da primeira presidenta do Brasil, se há características de gênero que tornam o governo de uma mulher diferente do governo de um homem.

Se procurarmos na história das democracias modernas a diferença que mulheres fizeram no governo por ser mulheres não encontraremos nada no legado de Margaret Thatcher ou Golda Meir, por exemplo. Sobre esta última, aliás, David Ben-Gurion, o primeiro chefe de governo de Israel, disse em tom de elogio: “Golda Meir é o único homem do meu gabinete”. Já Thatcher foi “a dama de ferro” dos britânicos. Mesmo olhando para nossa época, nem governantes como Michelle Bachelet, ex-presidente do Chile, ou Angela Merkel, a atual chanceler da Alemanha, ou mesmo Cristina Kirchner, da Argentina, independentemente de sua competência, nos fazem supor que há “um jeito feminino de governar”. O mesmo vale para as governadoras e prefeitas do Brasil.

Há algum significado de conteúdo, para além do ineditismo, na ascensão da primeira mulher ao Planalto? Em busca de pistas para esta questão revisitei o que foi dito sobre a condição feminina de Dilma Rousseff ao longo da campanha eleitoral. Foi um percurso revelador.

Logo no lançamento oficial de sua candidatura, em junho, a própria Dilma tratou de marcar o ineditismo de uma mulher na presidência do Brasil como estratégia de marketing eleitoral. Ela disse: “Chegou a hora de uma mulher governar este país. Nós, mulheres, nascemos com o sentimento de cuidar, amparar e proteger. Somos imbatíveis na defesa da nossa família e dos nossos filhos”. Dilma, possivelmente aconselhada por Lula e por marqueteiros, anunciava ali as supostas vantagens de uma mulher para governar um país.

Primeiro, é arriscado afirmar que “cuidar, amparar e proteger” seja um sentimento inato das mulheres. Teríamos de acreditar que todas as mulheres guardam dentro de si desde a concepção o ímpeto de cuidar, amparar e proteger. E que todos os homens, por sua vez, não possuiriam este mesmo ímpeto. Em seu discurso, o “cuidar” está associado à família e aos filhos. Isso dito numa época em que uma parcela das mulheres escolhe não ter filhos e a parcela que opta por tê-los divide com o pai das crianças até mesmo a tarefa de trocar fraldas soa ultrapassado. É claro que há muitos homens que ainda acham que algumas tarefas e cuidados não lhes pertencem, mas estes são vistos cada vez mais como espécimes de um modelo arcaico.

Como Dilma defende que estes são os melhores atributos para uma governante, ela transforma o Brasil numa casa de família e nós todos em seus filhos. E Lula explicita ainda mais: “A palavra não é governar, mas cuidar”. Mais tarde Dilma dirá que vai “cuidar como uma mãe do povo brasileiro”. Logo, se acreditarmos nas palavras de Dilma, uma mulher não governa – cuida. E o melhor que uma mulher pode fazer como presidente é ser mãe.

Mais: segundo este discurso, ao governar ela transforma o público em privado – e cidadãos autônomos em crianças que precisam ser cuidadas, protegidas e eventualmente corrigidas. Em seguida, Lula esclarece que, sim, ela será mãe. Mas não de todos: apenas dos mais pobres entre nós. Dilma será a “mãe dos pobres”. Portanto, os pobres teriam, além da pobreza, o ônus de serem tratados como crianças numa relação desigual e baseada no afeto, cujas benesses viriam de seu bom comportamento nas urnas – e não cidadãos com direitos garantidos pela Constituição que legitimaram um governante com seu voto consciente por um período determinado.

Colocado dessa maneira – ainda que seja apenas discurso de marqueteiro, porque acredito e espero que Dilma seja mais inteligente que isso –, uma mulher na presidência seria não um avanço, mas uma regressão a um populismo tosco, ainda que matriarcal. A certa altura, Lula chegou a dizer que votar em Dilma era dar uma chance (à minha, à sua), à nossa mãe. E a seguinte letra foi cantarolada num jingle: “Deixo em tuas mãos o meu povo e tudo o que mais amei/ mas só deixo porque sei que vais continuar o que fiz/ o país será melhor e meu povo mais feliz/ do jeito que sonhei e sempre quis/ As mãos de uma mulher vai nos conduzir/ O meu povo ganhou uma mãe que tem um coração que vai do Oiapoque ao Chuí/ deixo em tuas mãos o meu povo”.

Depois do pai, a mãe. Depois da grande mulher atrás do grande homem evoluímos para o grande homem atrás da grande mulher. Ou seria o mito de Pigmalião aplicado à política?

Se levarmos a sério este discurso – e acho que precisamos levar porque foi também com ele que pela primeira vez uma mulher se tornou presidente do Brasil –, os principais trunfos de uma mulher na política e na administração pública seriam atributos colocados como inatos – e não conquistados com estudo, trabalho e esforço. E atributos ligados à biologia, à vocação reprodutiva da mulher. É por parir que uma mulher supostamente seria uma boa governante.

Em artigo recente, o teólogo Leonardo Boff desenvolveu a tese de que há uma ruptura entre o trabalho e o cuidado – e um predomínio do homem sobre a natureza e a mulher. Há, segundo ele, “uma urgência de feminilizar as relações” e, para isso, é preciso “reintroduzir em todos os âmbitos o cuidado”. Por ser mulher, Dilma seria, na opinião de Boff, capaz de fazer esta síntese. Acompanhe o raciocínio: “Ela poderá unir as duas dimensões do trabalho que busca racionalidade e eficácia (a dimensão masculina) e do cuidado que acolhe o mais pobre e sofrido e projeta políticas de inclusão e de recuperação da dignidade (dimensão feminina). Ela possui o caráter de uma grande e eficiente gestora (seu lado de trabalho/masculino) e ao mesmo tempo a capacidade de levar avante com enternecimento e compaixão o projeto de Lula de cuidar dos pobres e dos oprimidos (seu lado de cuidado/feminino). Ela pode realizar o ideal de Gandhi: ‘política é um gesto amoroso para com o povo’”.

Aqui, vale a pena observar quais são as qualidades atribuídas a cada gênero. Ao masculino, a racionalidade, a eficácia e o “lado trabalho”. Ao feminino, o cuidado, a ternura, a capacidade de acolhimento, a compaixão e a atitude amorosa. Se concordarmos com esta divisão de atributos correspondentes a cada gênero, Dilma Rousseff está apta a governar porque sintetiza o masculino e o feminino em seu corpo de mulher. Poderíamos pensar então que é preciso ser mais do que uma mulher para governar. É necessário ser um tipo particular de mulher, uma mulher com um homem dentro dela.

Mas vamos seguir adiante. Quando Dilma foi entrevistada no Jornal Nacional, Lula achou que o apresentador William Bonner foi duro demais. Ao reclamar, o argumento que usou foi: “Eu, que conheço debates há muitos anos, esperava que pelo fato de você ser mulher e ser candidata, o entrevistador tivesse um pouco mais de gentileza”. Deu a Dilma uma rosa por ter mantido “a calma e a tranquilidade” durante a entrevista. Se acreditarmos neste discurso, teríamos de ficar preocupados com as futuras e inevitáveis negociações duras que nossa presidenta terá de enfrentar dentro e fora do país. E sugerir que os chefes de Estado levem rosas nas negociações com as governantes do mundo.

O mais curioso é que Dilma era conhecida como uma administradora dura. As palavras usadas para descrevê-la eram “truculenta”, “autoritária”, “mandona”, “forte”, pouco afeita a conciliações. Sua voz grossa ajudava a compor esta imagem. Para os preconceituosos – e isso ficou explícito nos ataques na internet –, ela seria uma “mulher masculinizada”. Escutei estarrecida, mais de uma vez, mulheres comentarem que Dilma não as representaria porque não era, “como poderiam dizer, uma mulher-mulher”.

Ao começar a ser esculpida como candidata, Dilma passou por uma espécie de “feminilização”, tomando por modelo uma ideia de mulher mais compatível com o tempo de nossas avós. Submeteu-se a cirurgias plásticas e tratamentos estéticos, mudou o cabelo, trocou o guarda-roupa, modulou a voz. Tudo no sentido de transformá-la numa mulher mais “feminina”, numa candidata mais suave e palatável, em alguém que o povo pudesse identificar com uma maternidade tradicional. Submeteu-se a uma metamorfose difícil – precisava se fragilizar para se adequar a uma ideia muito específica de feminino e se manter forte para convencer como futura governante. Ao submeter-se a isso acredito que Dilma Rousseff fez um desserviço às mulheres deste país. Por que Dilma não poderia ser uma mulher como Dilma efetivamente é? Por que Dilma precisou ser outra para convencer como mulher?

Vale a pena voltar a Virginia Woolf e a quase um século atrás. Numa conferência que a escritora fez em 1931, para as mulheres reunidas no Congresso da National Society Women’s Service, em Londres, ela defendeu o “matricídio”. Simbólico, obviamente. Para se tornar escritora e uma mulher com expressão pública, ela confessa que precisou “matar” a sua mãe, o modelo de uma mulher que era só bondade, generosidade, compreensão, doçura e beleza, que se dedicava de corpo e alma aos outros, confortava, pacificava, se sacrificava. Como diz uma de suas biógrafas, Nadia Fusini, precisou matar a imagem que é a base da hagiografia feminina vitoriana, o “anjo do lar”.

Nesta campanha, o que assistimos – alguns de nós bem espantados – foi exatamente a volta do “anjo do lar”, mas aplicada à política e transferida ao espaço público, o que é bem curioso. Esta imagem do feminino, aliada a atributos identificados como masculinos, como “racionalidade, eficácia e um lado trabalho”, supostamente tornavam Dilma Rousseff uma candidata qualificada e a tornariam uma boa presidente para o Brasil. E aqui não estou analisando em que medida esta embalagem funcionou ou não – apenas apontando as escolhas que foram feitas para definir o feminino e suas vantagens na política e na governança.

Chocadas com o slogan “Pátria livre, Pátria Mãe”, algumas feministas ligadas ao PT lembraram que não bastava ser mulher, era preciso se comprometer com uma agenda de políticas públicas relacionadas às mulheres. É discutível, como tudo. Mas se acreditarmos que esta é uma diferença significativa entre o governo de um homem e de uma mulher, Dilma recuou de sua posição sobre o aborto na primeira ameaça de perder votos de parte dos evangélicos e dos católicos. Não hesitou em assinar uma carta comprometendo-se a não alterar a legislação do aborto nem “promover nenhuma iniciativa que afronte a família”. A descriminalização do aborto tem sido uma luta histórica das feministas brasileiras.

Completado o percurso, não há nada que nos esclareça se faz alguma diferença ter uma mulher – por ser mulher – na presidência do Brasil. O tratamento estapafúrdio do feminino – e o que Lula e os marqueteiros fizeram da mulher que é Dilma Rousseff, assim como o que ela deixou fazer consigo mesma – só nos revelam que foi uma campanha de baixo nível – em todos os sentidos. Resta-nos torcer que a indigência dos argumentos sobre o feminino seja apenas obra de marqueteiros, não crença real de quem tem a tarefa de comandar o país. Em certo momento, juro, temi topar com algum slogan do tipo “Serra é de Marte, Dilma é de Vênus”. Por sorte, acabou. E agora, talvez, possamos descobrir quem é esta mulher chamada Dilma Rousseff.

Tomara que a gente goste.

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P.S. 1 – Em algumas semanas, uma coluna é pouco diante dos temas factuais sobre os quais eu gostaria de escrever. Foi o caso da semana que passou, pródiga em barbaridades. Como precisei escolher, queria deixar aqui meu repúdio (e meu horror) à censura de Monteiro Lobato nas escolas públicas pelo Conselho Nacional de Educação. E sugerir a leitura de uma coluna anterior na qual o psicanalista Mário Corso argumenta brilhantemente sobre a influência (nefasta) do politicamente correto em nossas vidas.

P.S. 2 – Outra indignidade foi o “rodeio das gordas”, promovido por estudantes da Unesp de Araraquara, no interior paulista. Se o que aconteceu é reflexo de várias mazelas atuais, inclusive a da educação, é também reflexo do preconceito que perpassa nossa sociedade, obcecada por uma ideia distorcida de saúde e por um modelo de beleza anoréxico. Em geral destilado em doses mais ou menos disfarçadas, neste caso o preconceito foi levado ao extremo e a uma atitude criminosa. Espero que não fique impune. Escrevi duas colunas sobre o tema que podem nos ajudar a refletir: Porca Gorda e O insustentável peso do ser.

Boa leitura e até a próxima!

(Publicado na Revista Época em 01/11/2010)

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