A vida dos outros

Quando viajo tento descobrir os restaurantes e botecos que as pessoas do lugar frequentam. Sento a uma mesa de costas para a janela e de frente para a paisagem que mais me interessa, a interior. Fico observando a vida dos outros se desenrolando nas mesas. Começo estrangeira e termino pertencendo. Não se entra na vida dos outros, mesmo que seja apenas com nosso olhar, impunemente. A vida dos outros se agarra à nossa alma e se torna nossa. Foi assim no meu primeiro e único dia em Lisboa, duas semanas atrás. Sentei numa pastelaria de esquina. Era um domingo e o domingo é um dia que crava suas unhas na gente mesmo quando estamos bem.

Pedi meu bacalhau e fiquei olhando a cena da mesa mais próxima. Uma mulher de uns 60 anos conversava com uma amiga da mesma idade, uma diante da outra. E do lado sua filha, uma adolescente com síndrome de Down. A menina apenas observava a conversa, seus olhos passeando pelas mesas como os meus, mas com mais ansiedade que os meus. O único garçom me atendia de cara sisuda porque eu era um corpo estranho num domingo que era deles. Seu olhar me acusava por não ter escolhido um dos restaurantes da outra ponta da rua, que exibiam menus em inglês. Culpava-me pela intromissão. Mas a menina com Down ele chamava pelo nome e todo ele virava um pastel de nata. E por isso eu gostava dele mesmo quando atirou o prato de bacalhau na minha frente.

Diante de mim, num canto, havia um homem de seus 50 e poucos anos. Enfiado numa roupa domingueira ele falava o tempo todo ao celular enquanto comia sozinho. Modulava a voz num tom sedutor e por isso eu adivinhava que falava com uma mulher. Aos poucos as palavras foram chegando e percebi que não era apenas uma, mas uma após a outra. Ele procurava companhia para não naufragar no domingo, mas não havia sins para ele. E a sobremesa chegou e depois o café e seus olhos vagavam cada vez mais velozes pelo quadrilátero da pastelaria, batendo pelas paredes enquanto a voz já perdia a força. E tanto eu quanto ele, ainda que ele não soubesse de mim, sabíamos que a mulher do outro lado já adivinhava seu desespero. E não há nada que as pessoas temam mais que a solidão alheia. Eu não podia ouvir o que elas diziam, mas conhecia o que pensavam: Tire suas mão pegajosas de cima de mim. Minha boia só tem lugar para um.

Do meu canto eu fingi não vê-lo quando o vi levantar ajeitando com mãos nervosas sobre o próprio corpo franzino os últimos fiapos de uma dignidade antiquada. E depois caminhar até a porta do bar mais ou menos ereto. Quase podia imaginar o oceano lá fora, o de Cabral e Vasco da Gama, arrastando-o pelas pernas e afogando-o no mosaico português onde o sol refletia o vazio sem terra à vista do domingo. Mas não o vi porque estava de costas para a janela. E meu olhar era como uma pintura de Edward Hopper, onde mesmo o lado de fora era dentro.

Então a voz da menina com Down se ergueu e tornou-se mais aguda. Mas eu não pude entender o que ela dizia. A mãe estancou a conversa animada com a amiga no mesmo segundo, enquanto a espinha do bacalhau entalava na minha garganta. A mulher então rasgou o silêncio com a mão que estendeu sobre a mão da filha. Olhou bem para a menina e disse. “Filha, a vida dói”. E os olhos de ambas se encheram de lágrimas sem que nada mais fosse dito. E todos nós ali mergulhamos no abismo.

Quando elas partiram eu pedi um café porque não seria capaz de enfrentar o oceano que tragara agora também a elas. Eu tentava imaginar o que a menina disse para que a mãe precisasse dizer aquilo. Queria correr atrás delas e perguntar. Mas era domingo e no domingo a gente não corre. Apenas fica ali, fingindo-se de estátua como na brincadeira de infância, para que a máquina do mundo não nos triture com seus dentes amarelos.

Estávamos sozinhos agora, os únicos clientes. No balcão o homem do caixa se esmerava em arrumar um vaso com flores de plástico porque ele também entendia que às vezes era isso tudo o que restava. Todo o controle que tínhamos sobre a vida eram estas flores que não morriam porque jamais tinham nascido. Ele sabia, o homem sábio, que ajeitando flores de plástico no velho vaso conseguiria ancorar na segunda-feira.

Eu adoçava meu café com o sal do meu próprio mar quando a família entrou. Um casal mais velho, de cabelos brancos, e um mais jovem. Pela mão um bebê que tentava dar seus primeiros passos. Mas só enxerguei a garotinha depois. Eu passeava meus olhos pelo rosto do velho quando ele me abriu um sorriso tão orgulhoso porque ele tinha certeza de que eu, como todos ali, só podia estar olhando para a coisa mais linda do mundo. Então rapidamente eu me refiz do meu enleio e abri o meu próprio sorriso confirmando que sim, não havia nada mais lindo que sua neta nem nunca haveria. Eles estavam pobremente vestidos, mas enfeitados para o domingo. Era sua melhor pobre roupa e a avó até tinha arrumado o cabelo. Possivelmente não tinham dinheiro para comer o prato do dia, então almoçaram em casa e pediam agora apenas um café de domingo.

A pequena portuguesa bamboleou suas perninhas gorduchas até a minha cadeira onde eu a amparei com as mãos. E tive certeza de que acabara de fazer parte de um grande descobrimento. O velho abriu de novo seu largo sorriso onde faltava a maioria dos dentes. Mas era um sorriso tão rico. Então compreendi. Ao compreender, quis sair correndo atrás da mãe e da filha com síndrome de Down para dizer que sim, a vida dói. Mas às vezes não.

Então o garçom sorriu para mim. Um sorriso de boca fechada, rápido o suficiente para que pudesse fingir que não tinha dado um sorriso. Mas eu sabia que agora pertencia àquele domingo que nunca mais sairia de mim. Era apenas uma janela para dentro, mas agora quando eu olhava também me via.