O clichê

Era um daqueles almoços que não dava para dizer não, mas dizer sim causava insônia na noite anterior. Sentou-se. Bem no meio, para que as conversas passassem por ele, e ele não passasse por elas. No canto, quem não fala chama atenção. No meio, com sorte dá para virar uma travessa de brócolis. Seu corpo, pelo menos, parece participativo. Está lá, todo exposto e supostamente atento. Sorriu seu melhor sorriso sem dentes. E atacou um salmão apenas selado, cru e tenro por dentro. Ah, um salmão faz um ateu acreditar em Deus. Mas só porque ele não é um salmão. Do ponto de vista do salmão, ser tão saboroso ao paladar do animal no topo da cadeia alimentar era, ao contrário, uma prova da não existência de Deus. Hum…

Estava neste ponto, entre divagações teológicas e uma garfada crocante, quando ouviu. Não havia como não ouvir. O clichê passou zunindo pela sua orelha esquerda. Não! Ele não disse isso! Disse. Um gole redentor de vinho. E zuuuuum, o clichê da réplica raspou em sua orelha direita. Não, isso não aconteceu. Nem mesmo ela poderia ter dito isto a sério. Aconteceu.

E então a clichelândia se instalou. Os lugares-comuns passavam de peito aberto pelas suas orelhas, se achando a última cereja do bolo. Ops! Estava sendo contaminado. Jargões aterrissavam entre os cristais da dona da casa com alarde. Não estou ouvindo, não estou ouvindo. Estava. Recitou mentalmente os primeiros cantos da Ilíada, mas os clichês se imiscuíam entre os versos. Partiu para uma solução radical e repetiu para si mesmo a bula do seu antidepressivo. Não adiantou. Clichês são criaturas inconvenientes. E tão resistentes quanto as baratas.

Nesta hora se distraiu. Abriu a boca, ainda com um resto de salmão nos molares inferiores. Não era possível. Não este. Ninguém poderia dizer este e permanecer impune. Batia 10 na escala Richter dos lugares-comuns e frases feitas, segundo o dicionário do Humberto Werneck. E então, zuuuuum, plaft, ploft. O clichê entrou pela sua boca aberta. Na hora, achou que era uma mosca. Engasgou e babou-se de vinho, calando pela primeira vez a clichelândia.

Se soubesse que era tão fácil, tinha tido um acesso de tosse antes. Seu vizinho na mesa bateu forte em suas costas. Desgraçado. Devia estar se vingando de uma crítica ruim. Babou mais um pouco. Sim, era ele. Colado no céu da boca. Passou uma língua sinuosa por lá. Coladíssimo. Forçou, num rastreamento completo. Nesta altura, já tinha perdido parte da compostura. Nada. Ele parecia ter nascido ali.

Pediu licença e foi ao banheiro, sentindo os comentários maldosos se iniciarem às suas costas. Enfiou o indicador na boca. Ia arrancá-lo dali à unha. Sangrou, mas o clichê continuou grudado. Voltou à mesa. Sorrateiro, botou uma faca no bolso. Voltou ao banheiro. Agora nem esperavam que se afastasse para o maldizerem. Mais sangue. E o clichê lá, misturando-se à sua carne. Outro cliente entrou pelo banheiro e deu meia-volta ao vê-lo escarafunchando a boca com uma faca de peixe. Era melhor ir embora, antes que o levassem preso.

Finalmente em casa, tentou tudo, até a chave de roda do carro. Já nem podia comer nada sólido, tão machucada estava sua gengiva. Mas o clichê seguia impávido. Parecia que tinha posto raízes no céu agora crepuscular da sua boca. Foi ao dentista. Doutor, pelo amor de Deus, tira este negócio daqui. O dentista arrancou um siso incluso, mas do clichê nem um gemido.

Foi possuído pelo medo. E se falasse e o clichê saísse de sua boca de repente? No meio de uma palestra. Numa conversa com seu editor sobre a relação entre a literatura inglesa contemporânea e a baixa taxa de fertilidade dos pandas. Estaria acabado. Um clichê desses aniquilaria uma reputação por pelo menos umas dez vidas. Toda uma existência de estudo e de sacrifícios inenarráveis em nome do conhecimento e, de repente, seu nome jogado na cloaca dos lugares-comuns. Ninguém acreditaria que o clichê não era seu. Afinal, estava ali, dentro da sua boca.

Decidiu que nunca mais pronunciaria palavra alguma.

Os amigos alarmaram-se. Ele sempre havia sido silencioso, mas agora emudecera. A faxineira pediu demissão. Achava que tinha sido possuído por um exu. Foi numa igreja evangélica, disfarçado de homem do saco. O pastor gritava e lhe dava tapas: Saia, que este corpo não te pertence! Um séquito de belzebus o deixou, mas o clichê nem aí.
Fechou a boca em definitivo.

Começou a definhar. Não comia, não bebia, a pele já se descolava dos ossos. E o clichê lá. Reluzente. A única parte em perfeito estado de saúde do seu corpo. A irmã com quem não falava havia anos, desde que ela jogara no lixo sua coleção de times de futebol de botão, foi chamada. Arrastou-o por uma fileira de especialistas. Submeteram-no a uma batelada de exames de sangue e ressonâncias magnéticas. Nada. Os incompetentes não enxergavam o clichê.

Depois de três meses, morreu. Ao exalar seu último suspiro, rodeado por expoentes das letras do seu tempo, já sem domínio dos músculos, abriu a boca. E o clichê partiu, saltitante, deixando atrás de si um homem morto e um rastro de destruição.

Suas últimas palavras.

E o velório ficou às moscas.

Por piedade, os jornais preferiram nem publicar um obituário.

Escrivaninha Xerife

Minha nova vida precisa de gavetas e da coragem de assumir as cicatrizes

Esta coluna é inteiramente sobre mim. Aviso na primeira linha, que é para nenhum leitor reclamar que estava desavisado. Se achar que não vale a pena, pode parar por aqui e pular para outra.

Desde pequena, eu sonho com uma escrivaninha Xerife. Não sabia que se chamava xerife a escrivaninha dos meus sonhos. Descobri agora. Esta escrivaninha de madeira é cheia de gavetinhas e escaninhos de vários tamanhos e tem uma tampa. Quando você para de trabalhar, você fecha e ninguém sabe o que há lá dentro. Não tenho a menor ideia de onde eu possa ter visto uma dessas na minha cidade, lá no interior do Rio Grande do Sul. O fato é que eu sempre achei que essa era a única escrivaninha que um escritor poderia ter. Por causa das gavetinhas e, especialmente, por causa da tampa.

É mágico. Você está lá, escrevendo, todo escancarado e, de repente, você fecha. E até chaveia. Seus anjos e principalmente seus demônios ficam lá dentro, sem risco de se dependurarem no lustre, esconderem-se em algum lugar onde você não os ache ou mesmo assombrar o resto da família.

Tive várias escrivaninhas ao longo da vida, de fórmica à penúltima, toda modernosa, feita com madeira de demolição. No sábado, comprei minha última, a minha própria Xerife. Por que só agora? Porque só agora a mereci.

Decidi que vou me enforcar nas cordas da liberdade. Para isso, precisava me reinventar com tudo aquilo que já era meu. Para marcar este ato, queria transformar algo da matéria volátil dos sonhos em existência concreta. A escrivaninha dos devaneios da minha infância materializou-se, com tudo de incontrolável que existe quando nos arriscamos a desentocar os sonhos – com uma vara que é sempre meio curta – e os expomos às intempéries do real.

Foi um ato de profundo simbolismo para mim, que adoro rituais de passagem. Um dia antes da compra, na sexta-feira, deixei a redação da revista ÉPOCA, depois de dez anos. Poderia continuar ali por mais 20 (se continuassem me querendo, claro), mas achei que estava na hora de inventar uma nova vida para mim. Deixei Porto Alegre e a redação do jornal Zero Hora, onde trabalhei por 11 anos, em janeiro de 2000, para vir para São Paulo e para a ÉPOCA. Estava bem confortável lá. Mas há um momento que, pelo menos para mim, o conforto vira desconforto.

Na ocasião, me perguntavam por que eu deixaria tanto para ir para uma cidade maluca. Eu estava em um ótimo momento. Tinha acabado de ganhar um prêmio Esso (que para os jornalistas é muito importante), tinha uma coluna de reportagem (A Vida Que Ninguém Vê) que eu amava, adorava a cidade, tinha mais amigos do que conseguia dar conta, meu próprio apartamento quitado etc etc. Eu gostava de tudo, mas estava curiosa com a possibilidade de criar uma nova história para mim. Respondia: estou indo porque não quero saber como será a minha vida daqui a cinco anos. E fui.

Agora, completei dez anos incríveis na ÉPOCA. Fiz reportagens que transformaram a minha vida (e, espero, algumas outras), perambulei por Amazônias desconcertantes (elas são várias e sempre escapam), viajei pelas muitas periferias de São Paulo e testemunhei pequenos grandes milagres de gente. Hoje, sou povoada pelos personagens extraordinários com quem cruzei nesta última década. Sou uma Eliane muito mais rica agora do que quando cheguei. E tudo o que vivi dará sentido à nova Eliane que virá.

Não foi uma decisão intempestiva. Ela vem acontecendo dentro – e fora de mim – há um bom tempo. Há cinco anos tenho trabalhado nas férias e finais de semana em projetos paralelos, como documentários, livros, oficinas e palestras. Queria experimentar coisas novas e abrir outros caminhos para fora de mim. Outras maneiras de estar no mundo. Tenho uma convicção comigo: temos uma vida só, mas dentro dessa, podemos viver muitas. E eu quero todas as minhas.

Em 2008, comecei a escrever sobre a morte, de várias maneiras, em minhas reportagens na ÉPOCA. Olhar o rosto da morte, para mim, era desatar o nó que ainda me impedia de viver uma vida mais viva. Desde pequena, eu tenho esta característica. Quando tenho medo de alguma coisa, vou lá e faço. Quase perdi algumas partes do corpo por causa disso. E certamente perdi algumas porções invisíveis de mim mesma.

Ao fazer a principal reportagem desta série, quando acompanhei uma paciente de câncer até o fim da sua vida, perdi um naco da minha alma de supetão. Levei um tempão para parar de sangrar, como quem acompanha esta coluna sabe. Mas, um dos meus muitos apelidos é “Tixa”, de “lagartixa”. Há quem faça fantasias sobre a origem dele. Mas é bem menos picante. Passei a vida deixando a cauda em sustos pelas esquinas de mundo. Sempre acabo me regenerando, ainda que leve tempo. Todos somos lagartixas em alguma medida, apenas que eu abuso um pouco dessa vantagem evolutiva.

Minhas incursões no universo da morte deram-me maior clareza sobre a natureza da vida. Algumas pessoas comentavam que eu devia ter algum problema para ser tão mórbida. Bobagem. Morbidez é outra coisa. Não se fala da morte por causa da morte, mas por causa da vida. Lidar bem com a certeza que todos temos de morrer um dia, mais cedo ou mais tarde, é fundamental para viver melhor. E para compreender a natureza fugaz e preciosa da vida.

A vida rugiu com mais força dentro de mim depois dessas várias reportagens sobre a morte. A última delas, que encerra um ciclo, sairá em breve na revista. Faço 44 anos em maio. Fiz uns cálculos e descobri que preciso me apressar se quiser conhecer o mundo inteiro – e eu quero. E também para escrever o tanto que sonho. Como já disse mais de uma vez, escrever não é o que faço, é o que sou. E estava na hora de comprar minha escrivaninha Xerife e mudar de cenário.

Vou continuar fazendo reportagem. Apenas de um outro jeito, num outro tempo. Sou repórter até os confins da minha alma – e um pouco além. Se conseguir escrever ficção, como também sonho, só será possível pelo tanto de vida real e personagens de carne e osso que conheci nestes últimos 21 anos de reportagem. Só o real é absurdo. A ficção é sempre possível.

Estou com medo, muito medo. Volta e meia choro com saudade de uma vida que já não há. Mas eu não tenho medo de ter medo. Deixo um emprego seguro, numa revista onde respeitam o que sou e o que faço, com um bom salário e todos os benefícios, para me entregar ao vazio. Sei que tudo pode dar errado, sempre pode. Mas se der, eu invento outro jeito de seguir adiante. Esta é outra convicção que tenho: prefiro fazer as coisas do meu jeito e cometer meus próprios erros. Tanto quanto os acertos, os erros também devem nos pertencer.

Esta nova vida que começa hoje vem sendo construída há muito, mas só no final do ano passado descobri que a hora era agora. Não sei como foi. Nem se houve um momento exato. Lembro de dois pequenos episódios, apenas. Num deles eu corria para algum lugar com o João, meu marido, quando ele interrompeu meu passo marcial e disse: “olha”. Eu olhei para todos os lados e nada vi. Até que, com a ajuda dele, localizei uma florzinha diminuta no meio do concreto. Nós nos acocoramos e ficamos olhando o tanto de detalhes que ela tinha. Como era especial e linda e única. Aprendi isso com o João, que se esquece de tudo para passar intermináveis minutos vendo a forma de uma flor ou de uma nuvem ou de uma fatia de bolo de chocolate. Nunca vi ninguém enxergar tanta beleza no mundo quanto ele. Somos tudo o que somos. Mas as pessoas que amamos exacerbam algumas partes de nós, para o bem e para o mal. E o João tem este efeito sobre mim, de me tornar o melhor do que sou.

Naquele instante, percebi que corria tanto para fazer as tantas coisas paralelas que tinha inventado, que estava esquecendo daquilo que sempre deu sentido à minha reportagem, à minha vida: estava esquecendo de olhar de verdade.

O outro episódio aconteceu no final do ano. Eu estava com os meus pais na casa de praia que eles alugam a cada verão. E ficava olhando para eles. Me dava enorme prazer ver os dois se mexendo. Observar o jeito que cada um funcionava com relação a si mesmo e naquele casamento tão amoroso. (Eles andam de mãos dadas depois de 56 anos de casados e o pai dá flores pra mãe no aniversário de “conhecimento”). Num certo momento, fiquei olhando para o cabelo da mãe, o cabelo do pai, o jeito que o vento batia neles. E descobri que não podia mais continuar numa vida que eu não tivesse tempo para olhar o cabelo deles se mexendo com o vento.

Quando voltei para São Paulo e para a ÉPOCA, soube que tinha chegado a hora de partir. E agora lá vou eu. Não sei bem para onde, mas sei que é para mais perto de mim mesma.

Comecei então a procurar minha escrivaninha. Entrei no Mercado Livre, o site da internet que vende tudo, e coloquei na busca: “escrivaninha antiga”. E aí veio de todo o jeito e de toda época, com pés palitos, forma de bambolê, e também a minha, que descobri que se chama Xerife. Havia vários exemplares, mas gostei particularmente de duas. Uma era do Rio de Janeiro, o frete seria caro. A outra morava em São Paulo. Apostei nesta. O dono me deixou dar uma olhada nela antes de comprar. E lá fui eu na quinta-feira com o João num galpão da Barra Funda.

Ela era uma escrivaninha viva. Olhei para ela, ela olhou para mim, e eu soube que era a “minha”. Como na história do Harry Potter, em que é a varinha mágica que escolhe o bruxo – e só há uma varinha, única e singular, para cada bruxo –, a minha escrivaninha era assim, minha. Nasceu antes de mim e pertenceu a outros donos porque precisava me esperar.

Examinamos, eu e o João, ela inteira. E descobrimos que ela tinha mais cicatrizes do que nos prometeram. E alguns moradores indesejados. Numa das gavetinhas, havia um ninho de cupins. Nas costas, ela tinha sido quebrada em algum episódio de violência ou mau humor. Mas eu nunca fui uma boa negociante. As coisas práticas não têm muito efeito sobre mim. A escrivaninha também me receberia com mais rugas e feridas fechadas e abertas do que talvez esperasse. Nenhuma de nós nasceu ontem. Ambas queríamos – e precisávamos – nascer de novo.

Aceitei as cicatrizes da minha escrivaninha como parte da história de sua vida antes de mim. E fechei o negócio. Ela queria ir embora pra casa comigo já, eu senti isso. E o João também. Mas eu ainda precisava fazer o depósito e acertar o frete. Enquanto isso, o vendedor providenciaria um exterminador de cupins. Ao contar para a Maíra, minha filha, sobre a escrivaninha, eu dizia, toda empolgada: “ela tem cupins, mas também tem uma alma dentro dela!”. Com seu senso de humor peculiar, Maíra comentou: “Se tem alma, não traz para casa!”.

O problema é que eu tenho um fraco por almas. Venho de uma família de mulheres que falam com os fantasmas que vagam pela casa com a maior sem-cerimônia. Dava até pena do meu tio-avô, um homenzinho pequeno que passou a vida inventando objetos mirabolantes e deu a si mesmo um nome de passarinho. Quando ele arrastava os chinelos pelo assoalho, era despachado pela sua viúva: “Vai-te embora, Graúna, já disse que não te quero aqui!”. Para ele, a morte não mudou nada. A mulher continuava mandando em seu melancólico espectro.

Hoje é o primeiro dia da minha nova vida. Tenho que fazer um rearranjo completo na minha cabeça programada em mais de duas décadas de vida de funcionária. Não sigo mais uma lógica de segunda a sexta. Posso escrever às 6h da manhã de domingo, como faço agora. E ir ao cinema no meio da tarde de segunda-feira, como pretendo. Minha semana não terá mais finais e começos. Posso ficar acordada à noite e dormir de dia. Posso almoçar à meia-noite e tomar café ao meio-dia. Posso apenas ouvir a chuva batendo no telhado. Posso permanecer olhando para o teto por horas a fio.

O tempo é meu. Esta é a grande mudança. Vou perder dinheiro, segurança, carteira assinada, benefícios, férias remuneradas, décimo-terceiro. Em troca, retomo a propriedade do meu tempo. Me preparei para viver com pouco. Criei minha filha, comprei apartamento, não tenho um real de dívida. Só tenho agora que manter o meu corpinho. E ele é bem barato. Três pratos de feijão o deixam todo feliz.

Mantenho esta coluna exatamente aqui onde está. Ela faz parte do meu projeto de liberdade. Queria muito continuar, não sabia se queriam que eu continuasse. A ÉPOCA e a Editora Globo quiseram. Sou grata por isso. Assim como pela forma extremamente respeitosa com que a ÉPOCA e a Editora Globo trataram minha saída e meu desejo de reinventar minha vida.

Eu adoro escrever para vocês. E amo a internet. Então, toda segunda-feira estarei aqui, como sempre, logo de manhã, para pensarmos juntos sobre essa confusão que é a vida do mundo e a de todos nós.

Agora, vou abrir minha escrivaninha Xerife. Estaremos, eu e ela, com todas as gavetas de nossas almas escancaradas. De peito aberto, no vazio. Vamos ver o que conseguimos fazer juntas.

Torçam por mim! (Por nós!)

(Publicado na Revista Época em 01/03/2010)

A besta

Tinha sonhado com aquela viagem. Planejado cada detalhe. Era do tipo que gostava de ler guias. Assinalava suas partes preferidas com marcadores coloridos. Fazia as reservas de hotel — e sabia em minúcias o que serviam no café da manhã. Resolvia tudo pela internet, mas fazia questão de ligar para conhecer a voz do recepcionista. Não é que não gostasse de imprevistos, mas achava que tudo precisava estar dentro de certo controle. Era bom ir para o mundo, mas nada impedia que essa entrega tivesse o sucesso assegurado por um nível estatístico de previsibilidade.

Na poltrona da classe econômica do avião, os talheres de plástico lhe davam uma sensação de ordem. Estava voando, mas em terra firme. Não tinha medo das turbulências. Elas pertenciam ao território das probabilidades controláveis. Assim como o sorriso quase displicente da aeromoça. E o inglês tatibitate do comandante. Os avisos que só ele obedecia de atar cintos. As instruções as quais prestava total atenção como uma daquelas crianças que pede aos pais para contar sempre a mesma história porque precisa da certeza de que o final ainda é o mesmo.

Ajeitou os fones de ouvido para não perder o começo do filme. Cheri, de Stephen Frears. Esquadrinhou o rosto de Michelle Pfeiffer. Amava Michelle. Seus traços tinham a harmonia da vida como ela deveria ser. Michelle deixava a juventude perder-se sem alarde. Sem desespero nem botox. Sua beleza estava além do tempo. Nunca a desejou carnalmente. Só queria olhar para ela. De longe. Mesmo que a encontrasse, entre o corpo dela e suas mãos haveria sempre uma tela.
Achou melhor que o filme acabasse assim. A melancolia era a segurança de Michelle, que não merecia despentear nem um fio de seu loiro cabelo por nada tão mundano quanto um amor. Cronometrado, sorriu satisfeito ao acompanhar os créditos finais. O piloto avisava que a aeronave estava em “processo de descida”. Sentiu o previsível friozinho no estômago. No caso dele apenas uma brisa, já que tinha se assegurado de não correr risco algum.

Trazia no bolso interno do casaco o valor exato da corrida de táxi e ainda uma gorjeta. Dentro das calças, numa pochete, carregava os cheques de viagem e os dólares. Apalpou seus dois cartões de crédito, cada um de uma bandeira, para que não se apertasse em caso de eventual pane no sistema. Junto com ele guardava o seguro-saúde. Tudo checado, estava perfeitamente pronto para desembarcar e se entregar às delícias de uma viagem de férias por mundos desconhecidos, mas nem tanto.

A esteira de malas sempre lhe dava certo grau de apreensão. Apesar da etiqueta com a identificação completa e o seguro em dia, em caso de extravio perderia um tempo precioso. Mas lá estava ela, com rodinhas de titânio e a bandeira do Brasil costurada na parte posterior. Arrastou-a pelo saguão até a fila do táxi. O carro era menos limpo do que gostaria, mas, voilá. Estava na América Latina. Preferia que o motorista fosse menos moreno, mas não podia esperar um tipo diferente numa população de maioria indígena. Certamente os descendentes de europeus não dirigiam táxis.

Estendeu o endereço do hotel num papel impecável, impresso com papel reciclado em sua copiadora a laser. Com a outra mão segurava o guia de espanhol para turistas. O motorista não sorriu de volta. O povo às vezes podia se revelar uma parte desagradável das viagens, suspirou. No meio do caminho o motorista finalmente falou. Grunhiu um preço duas vezes maior do que ele havia lido no guia. Folheou rapidamente seu espanhol para viagens. Perdoneme señor, pero pienso que este valor está un poquito alto. Mire, aquí em mi guía está escrito que… O mestiço interrompeu-o com um sorriso de dentes amarelos. A la mierda con su guía, brasileño. Si no quiere pagar, bájese de mi coche.

Pagou. A essa altura um pouco mareado. O guia havia garantido que era preciso ter um pouco de cuidado com larápios, mas que o povo era amistoso. Decididamente, o autor não conhecia aquele taxista. Cravou os olhos na janela suja. Não deixaria sua chegada ser contaminada pelo mau comportamento da ralé. Usted me he dado los billetes equivocados. Mire, son dos notas de diez. E tiene que darme dos de cien. Não era possível. Ele nunca se enganaria com algo assim. Empertigou-se e decidiu fazer valer seus direitos de cidadão do mundo. Dessa vez, o motorista gritou. Está dudando de mi, hijo de una perra? Piensa que sólo porque viene de Brasil puede hacer lo que le de la gana? Piensa usted que es el tío como Lula? Que le den por el culo! Págueme o bájese.

Pagou de novo. Agora todo o dinheiro havia se ido. Inclusive a reserva. Só lhe restava a gorjeta, que jamais daria para aquele índio ladrão. E o percurso entre o aeroporto e o centro da cidade ainda estava só no meio. Sentia-se definitivamente mareado. Faltava-lhe o ar. O colarinho da camisa coçava. Entre suas mãos, a capa do guia estava mole de suor. Tudo estragado. As semanas de planejamento. A antecipação. Suas férias. Tudo destruído por causa daquele homenzinho de quinta categoria. Aquela sub-raça que deveria ter sido varrida do mapa das Américas pelos espanhóis. Nunca mais viajaria a um país subdesenvolvido de novo.

Um sentimento novo foi crescendo dentro dele. Ele era um homem que trabalhava direito, que pagava seus impostos, que votava consciente, que separava o lixo, que todo ano apresentava níveis impecáveis de colesterol e triglicérides. Contribuía para a liga das crianças com câncer. Nem mesmo era racista. Sempre dava dinheiro para o guardador de carro pretinho. E um piparote na cabeça nem sempre limpa. Ele era um homem bom! E agora estava ali, no banco de trás daquele pulgueiro, roubado por aquele homúnculo. Não estava certo. O mundo precisava desvirar.

O motorista virava a esquina da rua do hotel. Um hotel-boutique, cada apartamento desenhado por um arquiteto diferente. Havia escolhido com todo o cuidado. Então parou. Bem longe da porta do hotel onde ele já avistava um porteiro uniformizado. Bájese acá, brasileño. E nem fez menção de ajudá-lo com a bagagem. Ao resgatá-la do porta-malas, as mãos trêmulas, viu a chave de roda. Não pensou. Sentia-se várias fronteiras além de qualquer planejamento. Enquanto com uma mão arrancava a chave da ignição, começou a bater no homenzinho. Nem se preocupava em decodificar seus gritos. Só batia e batia e batia.

Quando finalmente a polícia apareceu, o rosto do taxista era um continente de sangue. Seus braços eram as próprias veias abertas da América Latina, riu com gosto da piada interna. Queriam levá-lo preso. Apalpou o bolso da camisa ordinária do homem. Tirou de lá um maço de dinheiro e um dente. Comprou sua justiça. Era um homem civilizado, garantiu aos policiais antes de jogar a chave do carro longe para ter o prazer de ver o motorista engatinhar até ela.

No próprio bolso, conferiu, ainda tinha a gorjeta para dar ao porteiro reluzente do hotel. A viagem ainda poderia ser maravilhosamente previsível. E sem gentalha. Sem realidade. Sem uma vida que não fosse a sua.

Em seu hotel-boutique ele jamais precisaria lembrar que a besta dentro dele não constava de nenhum guia.

O perigo da história única

Contar uma única versão sobre nós mesmos pode significar abrir mão de viver

Desde muito cedo percebi que a trajetória de uma vida continha bem mais do que os conflitos visíveis. Em parte, me transformei numa contadora de histórias ao intuir que a forma como é contada uma vida pode significar a possibilidade desta vida. Assim como pode determinar sua morte. O mundo é um palco onde se digladiam as versões – e o poder é usado para impor a história única como se fosse toda a verdade. Não só entre os países, mas na vida social e também dentro de casa. Compreender o poder da narrativa é o primeiro passo para construir uma vida que vale a pena. É também a chave para alcançar a complexidade – ou as várias versões – da vida do outro.

Na semana passada, duas experiências me fizeram voltar a refletir sobre o poder das histórias, um tema recorrente nesta coluna e no meu trabalho. A primeira foi o filme Preciosa, já lindamente comentado neste site na coluna de Cristiane Segatto. A outra foi uma palestra de uma escritora nigeriana chamada Chimamanda Adichie.

Em Preciosa, filme de Lee Daniels em cartaz nos cinemas, concorrente ao Oscar, a personagem é uma negra gorda e enorme, abusada sexualmente pelo pai e de várias outras maneiras pela mãe, que frequenta há anos a escola sem que ninguém perceba que não sabe ler. Preciosa, este também é o nome enormemente simbólico da personagem, é um nada para muitos – e também para si mesma. Um nada difícil de olhar. Ela mesma, quando se olha no espelho, não se reconhece.

Desde que assisti ao filme, na sexta-feira de Carnaval, o recomendo com veemência aos meus amigos. Mas, assim como as pessoas ao redor de Preciosa, no filme, tinham dificuldade de olhar para ela, alguns amigos têm resistência em ir ao cinema “assistir àquela desgraceira”. Ou acompanhar uma personagem que contém em seu corpo todas as características relacionadas aos perdedores. Alguns amigos viram o trailer e decidiram fugir de Preciosa.

É uma pena. E é o que tenho tentado mostrar a eles – e agora a vocês. Não ver Preciosa é não permitir que ela seja vista de outra maneira. E perder uma oportunidade rara de descobrir que a vida – não apenas a dela, mas também a nossa – pode ser decodificada de uma forma mais generosa se nos reconhecermos em olhos dispostos a enxergar além dos estereótipos. Neste sentido, ao decidir assistir a este filme – tão diferente do que se costuma produzir em Hollywood – o espectador está se tornando parte da transformação de Preciosa. E isso é genial como proposta cinematográfica.

Na capa do livro de Sapphire, uma professora do Harlem em cuja obra se baseou o filme, há uma frase perfeita: “Você testemunha o nascimento de uma alma”. É exatamente isso. O filme é o caminho de Preciosa a partir do momento em que se vê refletida nos olhos da professora que a ensina a ler. Olhos dispostos a enxergar uma alma onde a maioria só via banha, violência e miséria.

Ao percorrermos com ela esse percurso, vivemos momentos muito duros. Mas é também imensamente redentor. No momento em que Preciosa descobre que há outras versões possíveis para a sua vida – e que ela mesma pode construir narrativas melhores – o mundo que é ela se amplia. E com essa experiência, também o mundo que somos nós é ampliado. Pelo menos foi o que eu senti. Saí do cinema mais larga. E amando a humanidade inteira. (Sem contar que a interpretação da atriz que faz o papel de sua mãe já faz parte da história do cinema. Se Mo’Nique não ganhar o Oscar de atriz coadjuvante vou jogar tomates na televisão lá de casa.)

Preciosa nos evoca o perigo da história única. Até não encontrar um olhar acolhedor onde se reconhecer, ela só se reconhecia no não-olhar de sua mãe. A escola que frequentara até então continuava olhando para ela sem ver, o que a manteve analfabeta por anos. Só quando encontrou uma narrativa alternativa para si mesma, Preciosa teve alguma chance de ter não só uma vida, mas também uma alma.

E este é o tema da palestra de Chimamanda Adichie, autora de Meio Sol Amarelo (Cia das Letras, 2008). Esta escritora de 32 anos pertencia a uma espécie de classe média da Nigéria, filha de um professor universitário e de uma secretária. Em sua palestra no TED (Ideas Worth Spreading), ela conta uma história feita de embates narrativos para mostrar como a história única aniquila a vida.

Linda e bem-humorada, Chimamanda mostra como a redução das histórias fez mal a sua maneira de olhar a vida de outros em seu próprio país. E fez mal à forma como outros olharam para a sua vida quando se mudou para os Estados Unidos – e sua colega de quarto só conseguia enxergá-la a partir dos estereótipos ligados a um “país” chamado África. Nesta narrativa, Chimamanda percorre as várias crenças sobre a África – e não deixa de mostrar como ela mesma embarcou na tentação das versões hegemônicas, como quando fez uma viagem ao México e incorporou o preconceito contra “os imigrantes”.

É pela intuição do enorme poder de transformação das histórias contadas que Chimamanda se transforma numa escritora. E também Preciosa. A professora faz mais do que ensiná-la a ler. Todos os dias, Preciosa precisa escrever um diário. Ao contar sua vida, literalmente nas páginas do caderno, ela descobre que é mais do que lhe haviam contado até então. Mais complexa e multidimensional.

Ao escrever sobre sua vida com papel e caneta, Preciosa descobre que pode reescrever sua vida na concretude das ruas. E é o que faz. Agora, ela pode se reconhecer nos olhos de outros. Ela gosta da imagem que vê. E nós, na poltrona do cinema, incomodados no início com toda a coleção de estereótipos que ela representa, também gostamos do que passamos a enxergar.

Numa reportagem que fiz em 2007, sobre a primeira geração de escritores das periferias do Brasil, especialmente de São Paulo, mostro os dados de uma pesquisa de Regina Dalcastagnè, professora da Universidade de Brasília (UnB). Ao analisar os romances brasileiros entre 1990 e 2004, ela revela que 94% dos autores e 84% dos protagonistas são brancos – e apenas 24% dos personagens são pobres. Ou seja, a história contada pela nossa literatura mostra um mundo de gente branca e de classe média.

É ruim? Não exatamente. É pobre. Não há nenhum problema em escrever e ler livros com protagonistas brancos e de classe média. Brancos de classe média fazem parte da sociedade brasileira. E era só o que nos faltava ter de fazer uma literatura politicamente correta. O problema não é o que existe, mas o que não existe, o que não está lá. O perigoso é não existir livros com outras cores e realidades, com diferentes autores e personagens.

A grande novidade também no Brasil, que é a razão da reportagem citada, é que hoje vem se ampliando também a pluralidade das vozes na literatura. Com a entrada de novos protagonistas no cenário das letras, nós, leitores, temos acesso a novas maneiras de ver o mundo e de estar no mundo. E a diversidade sempre faz bem para a vida, tanto a subjetiva quanto a concreta.

Chimamanda conta como fazia mal a ela não fazer parte da literatura, como personagem, já que os livros disponíveis na Nigéria de sua infância eram os escritos pelos colonizadores britânicos. Os personagens dos livros que lia gastavam boa parte dos dias falando sobre o tempo: “Será que vai fazer sol amanhã?”. Fazia todo o sentido para um britânico, mas era estranhíssimo para uma menina nigeriana, na medida em que não era apenas um dos mundos ao qual tinha acesso através dos livros, mas toda a literatura disponível.

Ao mesmo tempo, quando ela se torna escritora, é cobrada que seus romances não são suficientemente “africanos”. Como se ela só pudesse existir como narradora de uma determinada maneira, como se só pudesse contar uma única história. Como se um escritor do Capão Redondo, na periferia de São Paulo, por exemplo, só pudesse escrever sobre a violência e só pudesse escrever usando gírias. A arte é o território da liberdade. E da reinvenção. Nela, podemos qualquer coisa. Até sermos nós mesmos.

Quando Preciosa, no filme, escapa de sua vida impossível para divagações em que é glamourosa, desejada e talentosa, descobrimos porque ela ainda está viva. É pela fantasia que ela mantém a salvo a melhor parte de si mesma. A parte incorruptível de si mesma. Como faz a maioria de nós, mesmo sem ter uma realidade tão perversa como Preciosa.

Lembro que só suportei minha inadequação, na infância, porque ficava inventando enredos na minha cabeça em que era a protagonista. Quando era obrigada a interagir com as crianças da minha idade, só suportava ouvir aquelas conversas em que não encontrava pontos de conexão porque podia escapar pela fantasia. Me sentia um ET no mundo real, mas era uma heroína em meu próprio mundo. Ter a possibilidade de “me contar” em minha literatura íntima, assim como para Preciosa, em outras proporções, me assegurou a sanidade. Até hoje, quando a vida fica muito difícil e nem consigo entender o que falam ao meu redor, mergulho em narrativas inventadas – e nem por isso menos verdadeiras.

O perigo da história única, mais fácil de analisar na geopolítica do mundo, começa dentro de casa, na família. Como no caso de Preciosa. Quando nascemos, é o olhar da mãe o primeiro a nos constituir. Só nos reconhecemos como um ser para além da mãe a partir deste primeiro olhar fundador. Na infância, é no primeiro mundo privado que habitamos, o de dentro de casa, que iniciamos nosso embate com as histórias únicas. Quando os pais determinam que este filho é inteligente, aquele é preguiçoso e um terceiro é malvado, o mais provável é que aqueles filhos assim rotulados cumpram a profecia dos pais. Por isso, é comum ouvirmos: “fulano desde pequeno já era assim…”. Claro, como poderia ser diferente?

A versão dos pais sobre nós é a primeira versão narrativa da vida de cada um. E ela nos marca para sempre. Para o bem – e para o mal. Seja pela displicência, seja pela opressão. Quando é para o mal, se torna uma prisão. Não somos o que podemos vir a ser, mas um estereótipo fechado, vendido como a única verdade sobre nós mesmos. Este é o olhar que nos transforma em pedra. Afinal, as ovelhas negras de cada família são ou tornaram-se?

Se não encontramos alguém que rompa as grades deste olhar na escola, nosso primeiro mundo público, temos poucas chances na vida. Se, ao contrário de ampliar as versões narrativas, o professor cimentar ainda mais os rótulos familiares ou criar outros tão perniciosos quanto – com sentenças como “este é inteligente”, “aquele é burro”, “o outro violento”, “aquele não tem jeito”, “este é um caso perdido” – as chances minguam.

A história única na família e na escola é o ato mais covarde cometido por pais e professores que não sabem o que fazem – ou sabem, mas não conseguem ou não querem fazer diferente. Educar é ampliar as possibilidades narrativas da vida de cada um – e da vida dos outros.

De certo modo, crescer é tornar-se capaz de quebrar a sucessão de histórias únicas sobre a nossa existência. Foi o que aconteceu com Preciosa, a partir do olhar libertador da professora.

Se você estiver atolado na vida porque lhe fizeram acreditar em uma única versão, reaja. Não acredite. Exercite a dúvida sobre si mesmo – e sobre o outro. Será que é assim mesmo? Será que isso é tudo o que sou? Será que é só isso que posso ser? Tornar-se adulto é ter a coragem de se contar como alguém múltiplo e contraditório, um habitante do território das possibilidades.

No filme, Preciosa diz uma frase maravilhosa, num dia especialmente tenebroso. Algo assim: “Que bom que Deus ou não sei quem inventou os novos dias”. É isso. Há sempre um novo dia para todos nós. Um em que podemos nos reinventar.

P.S. – Você pode assistir à Preciosa no cinema ou, se sua cidade não tiver nenhuma sala, esperar o DVD. A palestra de Chimamanda Adichie é bem mais fácil e não custa nada. Basta acessar o seguinte endereço. Ela fala um inglês pausado e claríssimo, mas há também legendas em português. Imperdível. Aliás, vale a pena frequentar o www.ted.com, onde você pode assistir a palestras de algumas das pessoas mais interessantes do mundo. (Se não entender inglês, não se encolha. Depois de entrar no site, clique em “translations”. Centenas já têm legendas em português.) Se quiser saber mais sobre os novos atores da literatura brasileira, pode ler minha reportagem Os novos antropófagos.

(Publicado na Revista Época em 22/02/2010)

O homem-merda

Devia ser proibido obrigar um homem a entrar em contato com a própria merda. Foi o que pensou enquanto o médico preenchia impassível a requisição do exame de fezes. Sentiu inveja do doutor, que podia usar a palavra “fezes”. Discorria sobre as fezes alheias sem perder nem a pompa nem aquele bigode ridículo. Ele, por mais que tentasse, não conseguia. Na cabeça dele as fezes já vinham como merda. Ou irrompiam infantilizadas. Cocô. Mas ele era macho para caralho. E macho para caralho não fazia cocô. Fazia um merdão. Quando o exame ficar pronto, você volta, o médico interrompeu seu raciocínio merdolengo.

Enquanto dirigia até o laboratório, só pensava que teria de fazer cocô num potinho, colocá-lo num saco plástico e entregá-lo a outro homem. Esperava que fosse um homem. Não, não, não, uma mulher não!!! Suou frio e quase bateu no carro da frente. A loira lhe mostrou o dedo pelo retrovisor. Vadia, vem aqui chupar o meu pau! Vaca.

Pensou ter notado um sorrisinho malicioso no canto dos olhos do atendente que preenchia sua ficha no computador, bem ao lado de uma remela pernoitada. Ele sabe, claro. Está rindo por dentro. Me imaginando com um potinho debaixo do cu. Cravou os cotovelos na mesa e arregaçou a camisa, deixando exposta sua tatuagem do dragão de Komodo. Pode rir, imbecil.

Plim-plom. Sua senha brilhou no luminoso. Quase cagou nas calças de felicidade. Era um homem no balcão. Estudou-o. Parecia um cara normal, um que não ria da merda dos outros. Cumprimentou-o com indiferença profissional. Um cara decente. Ganhando a vida honestamente sem humilhar ninguém.

Agarrou rapidamente o kit de plástico. Já virava as contas quando o atendente o chamou. Olha aqui as colherinhas. Depois de fazer, você tem de pegar uma colher e botar em cada um dos potinhos. Repetiu o gesto duas vezes, o bostinha. Sentiu seu rosto pegando fogo. Desde a quinta série que não ficava vermelho. Grunhiu. Já virava as costas de novo quando ouviu a piadinha. Não vai fazer feio, hein. Me traz um potinho que valha a pena. Viado. Só podia ser viado.

Não conseguiu dormir naquela noite. Tentou explicar para a namorada. Eu queria levar para aquele filho da puta um capitão, entende. Se tenho de me expor, que seja com um bagulho bem formado, vistoso, com consistência. A namorada levantou os olhos da Quem Acontece com aquele olhar de não acredito que foi para isso que você interrompeu minha leitura da entrevista do George Clooney. Mulher não entendia dessas coisas. O George Clooney entenderia. Mas o George Clooney não tinha diarreia. Tinha certeza disso. O cara só cagava alta patente, coisa de tenente-coronel pra cima.

Liga para o Paulão, sugeriu ela, arrancando distraída um pedaço da cutícula do mindinho com os dentes. Imagina se ele ia ligar para o Paulão para contar que só cagava chá de boldo há três dias. O Paulão, que arrancava tampa de cerveja com o olho. E isso no tempo em que as tampas exigiam abridor. Arrotou em resposta. Mas achou que até o arroto estava meio metrossexual.

À noite, sonhou que nadava num mar de merda líquida. Cada vez que tentava se agarrar num cocozão para não se afogar, ele se desmanchava na sua mão. Acordou sentado na cama, berrando, no exato momento em que o atendente do laboratório passava num iate, espanejando merda para todo o lado. Merda, gritou. E a namorada, com a voz grogue de sono, recomendou que desta vez não se esquecesse de dar a descarga.

Quando a hora chegou, encaixou o potinho. E deixou a vida lhe levar. Botou uma colher de merda em cada potinho, a respiração trancada. Embrulhou na sacola plástica do laboratório e ainda usou mais duas, uma do supermercado, a outra da academia de jiu-jitsu. Acomodou o potinho ao seu lado, no banco. Dirigiu como uma velha. Depois de meia-hora, estava sentado na sala de espera, de olho no painel. O potinho embrulhado no colo.

Tinha certeza de que aquela velha gorda estava olhando para ele. A desgraçada sabia que era um portador de bosta líquida. Discretamente cheirou o ambiente. Lá no fundo sentiu um cheiro de merda. Será que os outros sentiam? Olhou para os lados, com ar reprovador. De onde vinha aquele fedor? Cravou olhos acusadores na gorda. Vingança. As gordas são os mordomos de hoje.

Se o cara do balcão fizesse algum comentário, enfiaria a sua merda no cu dele. Esperando alguém ou é para você mesmo?, o cara do lado perguntou. Não era possível que o único imbecil a puxar papo naquela sala asséptica tinha se sentado ao seu lado. Vim trazer um negócio aqui. E cravou os olhos no vaso laranja da mesa. Estudou-o como se fosse uma escultura de Rodin.

Peguei gonô de uma periguete numa balada na Lapa. Não gosto de camisinha, saca. E você? Morra, ele pensou. Plim-plom no painel. Não era a senha dele. Nem do babaca ao seu lado. Vim doar esperma para mulher sem homem ter filho, ele disse. Gosto porque a playboy da sua mãe só tem aqui.

Plim-plom. Sua senha brilhou em vermelho no monitor. Levantou-se, pisando duro. Se o cara mostrar os dentes, faço ele beber a merda toda. Largou o pacote no balcão com força temerária. Estou com diarreia, e daí? Vai encarar? Só então olhou para o sujeito.

De trás do balcão lhe sorria uma japonesinha de óculos. Ela conferiu o conteúdo com expressão indiferente. Avisou que o resultado poderia ser acessado pela internet em dois dias. Em seguida, desejou um bom dia. Ele esquadrinhou os olhinhos redondos em busca de um chumaço de sarcasmo. Nada. A japa já estava de volta às suas planilhas.

Pensou em lhe mandar flores. Mas a natureza interrompeu o curso de suas melhores proposições com um chamado urgente. Correu para o banheiro. E, sem potinho nem traumas, esvaziou o intestino. Saiu satisfeito do reservado. Quase sorrindo. E lá estava ele, o merdinha do balcão. De pau na mão. Mijando.

Reconheceram-se. Com o canto do olho, ele mediu a arma do adversário. Ha Ha Ha. Dez centímetros no máximo. Duro. Saiu do banheiro se sentindo macho para caralho. Naquela noite cagou um general de quatro estrelas.

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