O mito da fertilidade

Na reprodução, estamos mais próximos dos pandas que dos coelhos

Dias atrás, numa reunião de pauta da Época, minha colega Cristiane Segatto, em minha opinião a melhor jornalista de saúde do país, comentou: as chances de uma mulher jovem engravidar naturalmente, sem nenhum problema de fertilidade com ela e com o parceiro e transando no período fértil, é de apenas 25% a cada mês. Dito de outra maneira: se está tudo certo, certíssimo, e você acertou a data da ovulação, tem 75% de possibilidade de NÃO engravidar. E, claro, quanto mais idade, menor a probabilidade estatística. No meu caso, com 43 anos, descobri que, depois de um ano de tentativas, é quase mais fácil eu acertar na mega-sena, o que está nos meus planos (a mega-sena, não o bebê).

Pode ser ignorância minha, mas eu achava que era muito mais fácil. Acreditava que, se tudo estivesse certo com o casal, bastava acertar o período de ovulação e, pronto: baby a caminho. Pelo que tenho conversado por aí, a ignorância não é só minha. Entre minhas amigas, parte delas naquela fase em que enxergam bebês por todo canto, acordadas ou dormindo, o mito da fertilidade segue forte. E fazendo vítimas.

Tenho observado o comportamento feminino. Vejo mulheres bonitas, saudáveis, que têm o privilégio de trabalhar no que gostam, são donas do próprio dinheiro, do nariz e de todo o resto, discorrem sobre temas complexos com inteligência e até mesmo sensatez e…. na hora de engravidar, piram. Alucinam totalmente. Acham que precisam se tornar uma versão sarada da Vênus de Willendorf, aquela figura gordinha, toda protuberante, esculpida mais de 20 mil anos atrás. Quando não conseguem engravidar, se deixam reduzir a um “útero defeituoso”. Sim, já ouvi o termo várias vezes, boquiaberta. Não são mais mulheres, nas várias dimensões da vida, mas úteros. E úteros com problemas. Se pudessem, cobrariam da natureza ou de Deus um recall.

Percebo também que há uma divisão não declarada, mas vivida como verdade: existiriam as mais mulheres que as outras. As mais mulheres, as superfêmeas, são as que engravidam na primeira tentativa ou até sem tentar. Depois, têm parto natural. Sou uma crítica contumaz da indústria das cesarianas, responsável em parte pelo vergonhoso índice de mortalidade materna do Brasil. E uma defensora do parto natural sempre que é possível. Sou contra, porém, um comportamento que começa a se difundir entre as mulheres da classe média urbana e intelectualizada: quem não pôde ter parto natural e fez cesariana é vista como se fosse menos mãe e mulher que as outras. Como se não tivesse “conseguido”.

Devagar. Os extremos nunca fazem bem ao bom senso. Mas este é um tema para outra coluna. O que nos interessa aqui: é maior do que pensamos o número de mulheres esclarecidas que não admitem ter feito tratamento para engravidar porque se sentiriam menos femininas e, depois, menos mães que as outras. Sentem-se mulheres imperfeitas, com defeitos. E escondem esta “mácula” na sua biografia pública.

O que acontece? Acho que estamos muito confusas com a maternidade e todas as suas implicações. Apesar da overdose de informações médicas, ao alcance de todos no Google, há muito que não sabemos. E sobre muitos aspectos do feminino, do sexo e da maternidade, calamos. Como confessar que não somos atletas sexuais em busca de orgasmos múltiplos com as capas de revistas femininas nos transformando em Messalinas do século 21? Ou, o assunto desta coluna, como dizer que temos dificuldade de engravidar, que não somos uma vênus da fertilidade, e que toda essa pressão não nos deixa nem com vontade de transar, o que torna tudo ainda mais difícil? Afinal, boa parte da informação e da publicidade – sempre com amplo uso de termos médicos para dar ares científicos ao que é pura especulação – tenta nos convencer que, para sermos completas, precisamos nos tornar ao mesmo tempo tecnológicas como uma personagem de animação futurista e “naturais” como nossa ancestral Lucy, a australopithecus afarensis de mais de 3 milhões de anos.

Tenha a santa paciência. Dizem que as mulheres falam muito – até demais. Sobre isso, acho que as mulheres falam pouco – de menos. Para quebrar um pouco esse silêncio envergonhado, procurei uma das minhas amigas grávidas. Eu sabia que ela tentara engravidar por muito tempo, mais de um ano. Também sabia que sua vida havia se complicado muito naquilo que ela encarava como “fracasso”. Nesse período, ela se afastou. Quando nos encontrávamos, evitava falar sobre o assunto. E quando me contava sobre seus problemas, descubro agora, eu errava feio. Em vez de escutar de verdade, eu dava conselhos ao estilo de Zeca Pagodinho: “deixa a vida te levar”. Dizia mais. Que conhecia muitas mulheres que fizeram tratamento para engravidar e, depois desse primeiro filho tão difícil, relaxavam e engravidavam sem planejamento. Que ficar tão obcecada só atrapalhava. Que devia esquecer o assunto por uns tempos.

Claro, ela não falava mais. Quando a procurei, me perdoou pela minha estupidez. E me deu a entrevista a seguir, por acreditar que pode ajudar mulheres que sofrem tanto quanto ela. Ou, pelo menos, ajudar a sofrer um pouco menos. Esta é a experiência da minha amiga, com toda a história que é só dela. Com suas neuroses, seus traumas, seus medos, suas expectativas e suas atrapalhações. Há muitas outras. Esta coluna é só um jeito de começar a falar.

Espero que não seja lida só por mulheres. Imagino que não seja fácil para um homem viver todo esse processo ao lado da mulher com quem divide a vida – e o sonho de ter um filho. E um dia gostaria de ouvir um deles. A entrevista pode ajudar a entender um pouco melhor a tão complexa intimidade feminina. E se os dois tiverem a coragem de falar honestamente de seus medos e dificuldades, talvez esse momento possa ser mais leve. E até bem interessante.

Minha amiga está mais perto dos 40 anos que dos 30. E hoje está grávida, mas ainda não contou para a maioria das pessoas. Tentou vários métodos e conseguiu engravidar por fertilização in vitro. Mas decidiu não revelar para os amigos e conhecidos que precisou de tratamento. Ela sabe que é uma bobagem, mas continua se sentindo menos mulher por ter precisado da ajuda da tecnologia para engravidar. Não temos o direito de julgá-la. Só de ouvi-la. Para nos contar sua história, ela precisou de muita coragem para revirar segredos bem doloridos.

Eu: Por que você quer ser mãe?
Ela: Não sei direito. Um pouco porque parece ser uma consequência natural da vida, um pouco pela vaidade da continuidade de mim mesma, da sensação ilusória, mas inevitável, de ter algo verdadeiramente “meu”. Ou que dependa, ao menos por um tempo, exclusivamente de mim. Soa horrível, mas é o que sinto. Às vezes por fatalismo, às vezes por puro egoísmo, não sei. Não é uma escolha racional. É um desejo, quase um capricho.

Eu: Em que medida ser mãe é desejo seu e em que medida é pressão familiar e social?
Ela: Não sei avaliar. Com certeza há uma pressão familiar tácita e social também. Mas é algo meio de bicho ou de obrigação social muito arraigada, a ponto de eu não conseguir identificar. Eu não paro para pensar. Está lá, simplesmente. E há muito tempo.

Eu: Quando você começou a sentir que queria ser mãe? E como este sentimento influenciou sua vida?
Ela: Desde a adolescência a maternidade está presente na minha vida, mesmo que como negação. Sempre levei esse desejo muito a sério. Era como se fosse um desdobramento natural da vida tornar-se mãe, uma questão de tempo para toda mulher, e uma questão com um algo da ordem do sagrado, algo de muito importante. Mas eu queria experimentar isso de uma maneira supostamente responsável, sem grandes atropelos – ao menos assim eu idealizava. Então adiei por muitos anos o plano e sempre me precavi neuroticamente para evitar ficar grávida fora de hora, ou do que eu considerava fora de hora, como vi acontecer com outras amigas e me assustou muito. Mesmo assim, desde os 20 e bem poucos anos tenho os exames pré-natais em dia, porque, por mais que a gente se previna, não temos o controle de tudo. Então ao menos eu estaria pronta fisicamente.

Eu: Isso determinou a escolha dos homens com quem namorou, casou?
Ela: Casei com um homem que tinha alguns impedimentos para ter filhos. Ele topou ter um filho comigo, mas minha impressão era de que era mais por amor a mim do que por um desejo dele. Com o tempo, essa diferença de vontade me pegou. Logo que começamos a namorar, consultamos um especialista e soubemos que teríamos de fazer tratamento. Mesmo eu não querendo engravidar naquela hora, fui ao médico porque queria me sentir segura de que estava preparando o terreno para o futuro da melhor forma possível. Me separei dele dez anos depois por iniciativa minha e por motivos que até hoje não são claros para mim. Na época, ele cogitou que uma das razões fosse a pouca vontade dele de ter um filho ou a dificuldade que teríamos. Não sei. Mas, curiosamente, na sequência me apaixonei por um homem, meu atual marido, muito fértil, que já tinha filhos e é um excelente pai, dedicadíssimo. Desde as primeiras saídas deixei claro que eu queria ser mãe um dia. Se isto não estivesse nos planos dele, então o relacionamento não iria muito longe. Ele topou. Às vezes me pergunto se minhas escolhas não foram influenciadas inconscientemente pelo instinto de ser mãe – se é que ele existe mesmo.

Eu: Quando você decidiu que era hora de engravidar, o que fez? Essa ideia de engravidar não atrapalha na hora de transar? Dá para gozar querendo tanto que um filho seja concebido?
Ela: Quando decidimos que era hora, falei com minha médica, fiz novos exames e tomei novas vacinas. Parei com a pílula. Não mudou exatamente o jeito de transar, de viver, mas, para nós, criou-se uma ansiedade crescente, uma expectativa que virava uma tristeza a cada menstruação. Meu marido era excessivamente otimista e achava que eu ia engravidar no primeiro ciclo. Eu sabia que já era um pouco velha biologicamente, que tinha adiado demais os planos de maternidade e que talvez a coisa demorasse. Os exames estavam todos muito bons, mas a gravidez não acontecia e isso trazia tensão. Por que não acontecia? Eu ficava com raiva dele quando a gente brigava perto dos períodos férteis, porque seria uma oportunidade a menos. Meu foco na transa mudou um pouco, sim. Pareciam aquelas transas sagradas, meio ritualísticas das tradições antigas, com uma finalidade por trás…

Eu: Vocês conversavam sobre isso?
Ela: Nunca falei isso pra ele, até para não comprometer o sexo, que sempre foi uma coisa muito boa nossa. Sinto que ele também ficava ansioso para a gravidez rolar toda vez que transávamos. Acho que eu fiquei menos preocupada em gozar nessa época. O foco era outro. Mas não atrapalhava, não impedia. Ao contrário, parecia que enobrecia. Eu queria muito que meu filho fosse concebido numa transa muito boa, com um belo orgasmo. Mas infelizmente a ansiedade começou a perturbar. Em alguns momentos, ficou um pouco mecânico pra mim.

Eu: Em que momento começou a dar medo de não conseguir? E o que este medo fez com você? E com a sua vida?
Ela: Como eu sou muito ansiosa, o medo veio logo. Meu marido era otimista demais. Isso acabava sendo uma pressão indireta. Ele teve filhos muito facilmente. Por isso, eu comecei a me sentir “defeituosa”, inferior a outras mulheres. Em alguns momentos, tive raiva e inveja de mulheres que engravidavam, mesmo de amigas muito queridas. Ficava puta quando alguém que eu julgava irresponsável, não merecedora daquela “graça”, engravidava. Como se fosse uma questão de mérito, sabe? Por que eu, que tinha feito tudo “direito”, planejado, escolhido um momento de relacionamento tranquilo, de segurança financeira, porque eu, que era uma ótima tia e madrasta, não conseguia, e tanta mulher sacana conseguia? Tive sentimentos muito ruins. Eles me puxavam mais pra baixo ainda. Me sentia muito injustiçada pela natureza. E diminuída, que é o pior dos sentimentos. É como se não ser fértil, ao menos naquele momento, me diminuísse. Mudei de emprego. Não exatamente por causa da gravidez, mas isso pesou. Decidi trabalhar em algo mais tranquilo, com menos horas, pensando no projeto de ser mãe. Mas o trabalho não me satisfazia e, ao mesmo tempo, eu não engravidava. Fiquei meio amarga, meio ranheta, ranzinza, pouco generosa. Estou grávida, mas ainda me sinto um pouco assim. Não sei se os outros se dão conta disso, mas eu me sinto assim.

Eu: A partir de um determinado momento, você teve de enfrentar a questão de que não seria fácil gerar um filho. Tive a impressão de que você ficou meio obsessiva… Como lidou com isso na família, na vida social?
Ela: Eu não falava para as pessoas que estava tentando porque tinha um pouco de vergonha e incômodo de elas saberem que eu não estava conseguindo. Então desconversava sobre esse assunto, fingia desinteresse. Comecei a ler mil sites e porcarias sobre gravidez. Descobri sites horrorosos, com fóruns deprimentes de mulheres inférteis. O que eu chamava de “gineco” ou de “minha médica”, para elas era GO. Estas mulheres tinham abreviações e códigos próprios. Muitas iam a dois médicos ao mesmo tempo, de tão neuróticas. O contato com esse universo me deprimiu, porque pelo menos em um ponto eu me identificava com elas: não conseguia engravidar. Ficava lendo estatísticas para me sentir mais confortada. Descobri, para meu alívio, que mulheres na minha idade tinham 12% de chance de engravidar naturalmente depois de um ano. Parece idiotice, mas este tipo de informação me consolava. Comecei a fazer continhas horríveis de período fértil para transar. Na neura de engravidar, meu marido e eu compramos um produto que mede o dia da ovulação pela quantidade de sal na saliva. Usei três meses esse medidor e me senti meio ridícula e enganada, até que joguei num canto do armário. Não teria coragem de contar a ninguém que fiz isso. E fiquei aliviada quando um amigo do meu marido disse a ele que estava usando um também com a mulher. Não éramos os únicos ETs.

Eu: Você se sentia um ET por não engravidar?
Ela: Me incomodava que meu marido dissesse não conhecer ninguém com dificuldade de engravidar. Eu me sentia pior. Até que fui mostrando a ele casos próximos. Eu precisava provar a ele que não era a única mulher que não engravidava fácil. Amigos passaram a desabafar com ele, e ele percebeu que isso acontecia, mas as pessoas não contavam. As pessoas não gostam de falar de fracassos. Quando viajávamos, meu marido queria comprar coisas para o bebê que não existia. No começo, eu topava, meio a contragosto. Mas isso começou a me incomodar. Era como montar um enxoval para um fantasma. Da última vez que viajamos, eu me neguei, categoricamente. Fui dura. Não queria aquele sofrimento. Quando estivesse grávida mesmo, compraria. Não queria me sentir mais iludida nem patética.

Eu: Em que momento você decidiu que era hora de tentar inseminação artificial?
Ela: Depois de quase um ano tentando, minha médica achou que, pela minha idade, era melhor tentar alguma coisa mais radical. Ela propôs inseminação artificial. Era feita no consultório mesmo. Era importante para mim saber que tudo era simples, que eu não era um alien num laboratório. Meu marido foi bem parceiro nessa hora, com muito bom humor, e isso me ajudou muito. Mas eu me sentia constrangida de estar fazendo um tratamento desses. Eu concordei, mas dentro de mim eu resisti e fiquei triste, tensa. Meu marido me encorajou, a médica falou que era normal, que a Medicina está a nosso serviço. Mas eu torcia para que rolasse naturalmente, nos intervalos do tratamento. Não deu certo e foi uma bomba. No mês seguinte a médica quis esperar, mas não aguentamos. Tentamos algo chamado “coito programado”, em que você é estimulada com hormônios e transa num dia e horário específicos. Péssimo. Foram dias HORRÍVEIS. Deu muito errado, produzi mil cistos, meus ovários ficaram gigantes. Foi o pior momento de todos. Nessa época, eu tinha comprado na rua, por pena da vendedora, três assinaturas de revista. Só queria ajudar a moça e acabei escolhendo uma revista de bebês. Meu marido ficou super entusiasmado. Veio o primeiro número e eu não tinha engravidado. Odiei tanto aquele exemplar… Me senti tão humilhada, com tanta raiva, que liguei suspendendo a assinatura por seis meses. O curioso é que a revista voltou a chegar no primeiro mês da minha gravidez. Foi uma gentileza do destino.

Eu: Nessa época, como era para você se encontrar com bebês e mulheres grávidas? Você chorava?
Ela: Chorar, não. Fiquei mais amarga, tentando me manter “realista”, prática. Houve um tempo em que eu fiquei com um pouco de raiva de bebês. Não fazia questão de pegar nem de chegar perto deles. Nunca fiz muita questão, mesmo, sempre fui arredia, porque eles pareciam e me parecem até hoje assustadores. Mas, nesta fase, eu queria menos ainda. Tinha ainda mais raiva das mães deles. Ainda tenho um resquício disso: inveja de barriga. Espero que passe, porque ainda me culpo por sentir coisas ruins pelas pessoas.

Eu: Você disse que as pessoas silenciam sobre a dificuldade de engravidar. Por isso, quem não consegue se sente um ET. Por que você acha que é tão difícil admitir e lidar com tranquilidade com a dificuldade de engravidar? Por que para você é tão difícil falar sobre isso, mesmo agora, que já engravidou?
Ela: Acho que sou como as outras pessoas. Eu tenho certo constrangimento de dizer que fiz tratamento. Só contei para pessoas muito, muito chegadas, umas cinco. Eu e meu marido pensamos em não falar para ninguém e mentir para quem perguntar. Me sinto mal por mentir. Mas me sinto mal também de achar que podem me olhar diferente, como se meu filho fosse menos, e minha gravidez, artificial. É estranho. Não foi numa transa natural, com orgasmo, secreções e suor. Foi num laboratório. É como se eu fosse menos que as outras, que conseguiram tão naturalmente. Conheço pessoas que engravidaram numa única transa. Meu marido é uma delas – o que já fez e às vezes ainda faz com que eu me sinta uma droga de mulher. Como engravidar era algo muito desejado por mim, essas pessoas me pareciam “superiores”, férteis, mais capazes que eu. Admitir a dificuldade de engravidar é admitir que eu sou “menor”. Sei que soa neurótico, mas não tenho controle sobre isso. Ao longo desse tempo descobri amigas próximas que também tinham feito tratamento, mas nunca me contaram. Falam só em conversas íntimas. Talvez seja uma neura minha. Todo mundo fala que, para ter filhos, basta relaxar e transar. Então, se a regra é essa, quem não consegue tem um problema. É um extraterrestre. Parece que vão te olhar com cara de piedade: “coitada, ela não consegue engravidar”. Foi muito importante pra mim, quando eu estava me sentindo muito mal e insegura, ter encontrado minha dermatologista. Na primeira consulta, eu falei que estava tentando engravidar, pra ela saber que remédios podia me dar. Ela então falou, com cara de felicidade e como se fosse a coisa mais normal do mundo, que tinha feito tratamento. Me desconcertou. Era uma mulher linda, de 32 anos, alegre, poderosa, bem vestida, bem sucedida, num consultório chiquérrimo, falando com a convicção daqueles depoimentos de propaganda na TV.

Eu: Foi nesse momento que você teve coragem de tentar outro tratamento?
Ela: Sim, ela tratava de um jeito natural. Era como eu queria ser e me sentir. Ao longo das consultas, ela intercalava as intervenções com papos de muita leveza sobre a dificuldade dela, a tristeza, as crises de choro a cada mês, durante o que ela batizou de “enterro do modess”, quando a menstruação vinha. Falou das tentativas frustradas e de como ela não quis esperar, apesar de ser nova. Pensou que estava no melhor momento da carreira, da vida pessoal, e que não ia seguir os conselhos dos antigos de esperar que a gravidez viesse na hora que tivesse de vir. Ela me pareceu livre, sabe? Livre para achar que aquela era a hora e dane-se se não fosse a forma ideal. Dane-se o tempo da natureza. Não quero mais sofrer. Ela fez fertilização in vitro e engravidou de gêmeos na primeira. Um casal lindo que eu via nas fotos do consultório. Foi ela quem me indicou a especialista que fez meu tratamento. Primeiro, eu guardei o nome e o telefone da médica e não usei. Dois meses depois, quando a inseminação feita pela minha médica de sempre deu errado, marquei uma consulta. Mas cancelei. Mais dois meses e voltei à dermato. Ela, muito delicadamente, perguntou se eu não tinha ido à especialista. Aquilo me pegou. Foi um incentivo. Marquei nova consulta, mas, dessa vez, fui. A médica era sóbria e delicada, bonita, na dela. Eu tinha horror das clínicas de fertilização dos medalhões, com médicos soberbos falando de bebês como quem fala de reprodução de vacas, de manadas inteiras produzidas no laboratório, que se envaidecem dos muitos bebês que já fizeram na “fábrica” particular deles, de como tudo é muito fácil. Então fui nessa médica que nem eu tinha ouvido falar. Só peguei referências na internet. Deu tudo certo na primeira vez. Sou muito grata à dermatologista linda e assumida que me indicou essa clínica. Grata pelo alto astral e, principalmente, pela naturalidade com o tema que eu não consigo ter, mas que me conforta.

Eu: Como foi isso tudo para o seu marido?
Ela: Para ele, era uma incômoda novidade. Ele teve filhos muito facilmente com a primeira mulher, até quando não quis. Por isso tinha dificuldade de entender que podia demorar, que uma coisa era minha aparência jovem, outra a idade dos meus ovários. Parece que homens falam pouco sobre isso entre si, confundem fertilidade com potência, não têm paciência para assuntos biológicos. Então ele não tinha muito recurso pra lidar com isso. Dei a ele mil “palestras” de reprodução, falava da comprovada baixa competência da espécie humana para a procriação – estamos mais para os pandas do que para coelhos e insetos, na escala de eficiência reprodutiva… Mas ele só absorveu isso com o tempo e com as conversas com os médicos. O excesso de confiança e otimismo dele me incomodavam, mas eu não achava justo desanimá-lo. Alguém tinha de acreditar que daria certo e puxar a gente pra cima. Ele topava tudo, era participativo, ia onde precisasse ir, fazia piada dos detalhes insólitos do tratamento – como as diferentes comodidades de cada “sala de punheta” das diferentes clínicas, a necessidade de colocar um tubo de ensaio com esperma preso no sutiã para “que não esfriasse” (!!!) no caminho entre o laboratório e o médico que faria a inseminação… É todo um universo diferente, maluco. Felizmente, com atendentes e médicos bem-humorados para quebrar o gelo.

Eu: Você fez muitos testes de farmácia? Aquela sensação de querer muito estar grávida, mas no fundo saber que não está? De ficar com medo de ver?
Ela: Aconteceu muito isso e foi horrível. Eu fazia exercícios comigo mesma para não acreditar que eram sintomas de gravidez, para não sofrer. Me dizia: “Você não está grávida. Esta cólica parece de menstruação, este inchaço pode ser qualquer outra coisa”. Claro que não funciona tão bem. Fazer um teste de farmácia que dá errado é uma das coisas mais deprimentes e humilhantes que existem nessa fase.

Eu: Para mim, que acompanhava um pouco de longe, me parecia mesmo uma espécie de obsessão. É assim que você vê?
Ela: Não. Não chegou a parar minha vida no cotidiano. Mas ficava algo suspenso de fundo, uma vida expectante, sei lá. O dia a dia corre normal. Mas parece que o cenário está parado, esperando a grande cena. Meio confuso isso, mas é como eu sentia.

Eu: Você gastou muito dinheiro?
Ela: Sempre me preocupei em guardar grana pra isso, caso precisasse. Hoje, felizmente, há opções acessíveis de tratamento, até para quem não tem dinheiro. Quase fui fazer numa universidade que só cobra os remédios, para apoiar a iniciativa. Mas não tive paciência com os horários e restrições. Hoje há muitas clínicas boas e alternativas para quem não pode pagar. O difícil é a pessoa ter acesso à informação, não ao tratamento. Eu gastei uns 13 mil reais, fora as consultas. Esta área é muito profissionalizada. Se você acha uma clínica séria, como eu achei, eles otimizam seus gastos, ajudam você a planejar, a montar esquemas para gastar menos. É surpreendente como são organizados. Você é assessorado por uma enfermeira que ensina exatamente como aplicar os remédios, que fica disponível 24 horas. Tudo é superexplicado. Eles te dão a opção de comprar os remédios com eles ou indicam revendedores, porque tudo é importado. O tratamento mesmo custou 8 mil reais. O resto foi gasto em remédios e no congelamento dos embriões restantes, porque eu produzi muitos.

Eu: É uma enorme dose de hormônios e medicamentos, imagino… Não é meio assustador?
Ela: Você tem de tomar antibiótico antes de começar e pílula anticoncepcional por um mês. Quando você menstrua, injeção diária de hormônios nos horários exatos, que você aplica em casa. A partir do dia “x”, já é outra injeção. Você bota um adesivo de hormônios no quadril, também. Daí, no dia “y”, você toma uma terceira injeção. Nesse momento, vai lá aspirar os óvulos, sedada. Neste dia eu passei bem mal. Em seguida, você volta depois de três dias para injetar os embriões selecionados – durante três dias eles botam numa cultura para ver quantos e quais vingam, para escolher os melhores. Esta parte do processo foi boa porque eu estava bem orientada. Na inseminação e no tal coito, acho que faltou melhor acompanhamento. Na clínica boa que eu fui eles medem seu fluxo sanguíneo e calculam exatamente quanto de hormônio você vai precisar. Com isso, você sofre menos fisicamente. Eu não senti grandes coisas, só inchaço e cólica durante algumas semanas. Foi bem mais tranquilo do que eu pensava que fosse. Como me estimularam direito, eu produzi muitos óvulos bons. (E isso para mim é uma vitorinha, um alívio sentir que finalmente produzi muito e bem.) Como o sêmen do meu marido era excepcional, como tudo corria muito bem, esta fase foi mais animada. E deu certo. Da melhor maneira, que é um embrião só. Pensei que seria mais fácil não tocar no assunto do tratamento se fosse um só e não gêmeos, como é comum. Olha, quando me senti segura e bem orientada, numa clínica boa, fiquei mais tranquila, acolhida. Eles sorriem e te tratam bem. Foi bem mais fácil, leve e cômodo do que eu pensava. Depois, durante dois meses você tem de tomar progesterona e colocar o tal adesivo de estradiol para ajudar a prevenir abortos.

Eu: Fico observando as palavras que você usa e me vem um estranhamento. Esta história de “o esperma do meu marido era excepcional”, o embrião “ser dos bons”, não é esquisito tratar dessa maneira tão técnica? O que é um esperma “excepcional”? Não é por isso que, por conclusão lógica, você seria uma mãe “defeituosa”, como você diz? E não é meio maluco olhar por esse ângulo? Este não é um jeito de olhar tão mecânico e técnico, mas que, como vemos pelo seu relato, causa um sofrimento, digamos, tão carnal e intenso?
Ela: Eu uso estes termos porque são os que eu ouvi. Ou concluí depois de analisar resultados, comparando com as médias. Há parâmetros para ver a qualidade e é inevitável você xeretar essas coisas. Assim como é inevitável você ficar intrigado ou animado quando recebe seus exames. É como quem olha seu colesterol ou hemograma e fica feliz ou desanimado. Há espermogramas horríveis, existem óvulos ruins. E você vai descobrindo isso naturalmente ao longo do tratamento. Eu não vejo problema em encarar assim. Apesar do envolvimento emocional, sempre me detive nesses aspectos objetivos para pisar na realidade, saber exatamente o que tenho pela frente. Quando um familiar teve câncer, eu sabia tudo “tecnicamente”. Para quem perguntava especificamente, eu respondia assim também: o nome do tumor, o tamanho do risco, o número das vértebras atingidas etc. Para alguns parecia frio quando eu falava em prazos, perspectivas. E aquele era um caso bem pessimista. Minha família às vezes se chocava, mas era a minha maneira de lidar com a realidade, me preparar, saber que atitudes tomar, o que esperar, onde insistir, onde recuar. Eu falo assim das coisas de saúde, sempre. No meu caso, é a minha maneira de lidar com a realidade. Você tem de tomar decisões, avaliar se está tomando o caminho certo, então não adianta apenas ficar triste e emocional. É preciso saber exatamente quais são as suas chances, qual é o seu problema ou do seu parceiro. Se eu tivesse um prognóstico ruim, por exemplo, óvulos ruins, eu teria corrido para esse tratamento muito antes. Se o espermograma do meu marido tivesse acusado problemas, também teria corrido atrás antes, sem tentar outras coisas inócuas. Sinceramente, não faço tempestade com isso, não. Eu pergunto TUDO para saber onde estou pisando. Falar objetivamente não quer dizer que não há ansiedade ou tensão ou sentimento, mas que eu estou tentando me conscientizar dos meus limites e possibilidades, só isso. Eu falo das coisas boas, mas também falo das ruins. Para você pode soar como uma neura ir atrás das estatísticas – e talvez seja mesmo. Mas, para mim, é uma maneira de me situar para o próximo passo. É um pragmatismo necessário, para eu me organizar. Tipo… ponto ruim: sou velha; ponto ruim: não consigo engravidar facilmente; ponto bom: sou saudável; ponto bom: meu companheiro é saudável e fértil. Eu funciono assim com saúde e com grana. Você arranca os cabelos, mas depois senta e fala: “Bem, o que temos aqui? O que dá para fazer? O que é real e o que não vai acontecer mesmo?”. Pode parecer tecnicismo para quem está de fora. Para quem está dentro, é a medida da sua esperança.

Eu: Avaliando hoje, você acha que não conseguia engravidar porque tinha algum problema ou porque a tensão era tanta que se tornava impossível? Ou uma mistura dos dois?
Ela: Sinceramente, acho que não conseguia engravidar pela tensão e ansiedade de ter um filho logo. Se eu tivesse esperado o tal “tempo da natureza”, teria conseguido. Não me culpo por não ter esperado. É curioso que a especialista que me atendeu passou pela mesma coisa: engravidou com tratamento aos 36 anos. Menos de um ano depois, estava grávida naturalmente. Esperar dá medo. Prefiro me precipitar, mas agir.

Eu: Como foi saber que havia conseguido, que está grávida?
Ela: Foi estranho. Acho que eu estava tão prevenida e calejada, por esta frustração e outras tantas que se acumularam, por outras razões, que não fiquei feliz na hora. Não fiquei nada. Sentamos diante do computador, eu e o meu marido, e conferimos o resultado do exame de sangue. Olhamos várias vezes, para ter certeza. Meu marido ficou bem feliz. Eu fiquei estranha, quieta, desconfiada por vários dias, semanas. Sem acreditar que dava para ser feliz. Tinha medo de abortar, de ser um engano. Fiz o beta hcg (exame de sangue) duas vezes, para ter certeza. Só depois do terceiro ultrassom – quando “dois terços do risco do primeiro semestre” haviam passado, e não havia “sinais de descolamento”, e o batimento cardíaco do bebê era ótimo, e seu tamanho “de três dias além da idade gestacional, o que é um excelente sinal”… – consegui ficar feliz. Chorei no ultrassom. A médica disse: “este é dos bons”. Aí comecei a relaxar.

Eu: Como é estar grávida?
Ela: Começa a ser gostoso. Hoje me achei linda no espelho. Comecei a achar a barriga disforme, bonita. Mas a ficha ainda não caiu inteiramente. Ainda não “publiquei” para todo mundo. Estou sendo xiita e aguardando a 12ª semana, por precaução e pele calejada.

Eu: Você está com medo?
Ela: Sempre. Agora é medo do ultrassom morfológico. De meu filho ter síndrome de down, o maior de todos os medos. Também tenho medo de ele ser feio ou burro. Bem, no momento, acho que ele até pode ser horrível e fraco de ideias. Só penso em doenças que não quero que tenha. O conhecimento em excesso traz mais angústias.

Eu: O que você diria hoje para mulheres que querem engravidar e não conseguem?
Ela: Diria para procurarem uma boa clínica, discreta, não de medalhões. Estas pessoas estão acostumadas a lidar com isso e assim você se sente mais “normal”. Existem coisas muito simples que impedem as pessoas de engravidar, mas, em geral, só quando você busca um especialista é que descobre. Não foi meu caso, mas o de outras amigas. O meu era inexplicável. Ansiedade pura, talvez. O que eu NÃO diria é: “tenha paciência, sua hora vai chegar”, “confia na natureza ou em Deus”, “o que tem de ser, será”, “você precisa desencanar que vem”. É muito chato escutar isso quando a única coisa que você aceita esperar é um bebê.

(Publicado na Revista Época em 15/02/2010)

Alien

No dia seguinte acordou com um pouco de febre, uma melancolia de inverno. Estava lá. E ela sabia. De algum modo, sempre soube. Desde o primeiro segundo, soube. Mas preferia não saber. Enquanto pudesse, faria de conta que não. Esconderia dentro dela o apocalipse.

Em suas entranhas, algo estava em curso. Algo que não era ela. Um algo que havia sido colocado ali, à sua revelia, pela violência que durante muitos anos ela esqueceria.

Quando as luzes da casa se apagavam, e deitada na cama ela era obrigada a suportar o silêncio do mundo, ouvia o barulho áspero da pele a se espichar sobre os ossos, seu corpo tão magro ganhar contornos que não pediu. E o ruído da coisa dentro dela. Que a fazia tremer inteira. E a coisa que não era ela tremia com ela.

Só dormia quando estava exausta demais para existir acordada. E ainda que dormisse, sua alma mais profunda sabia que dentro dela havia olhos abertos.

Primeiro, foi um movimento sutil. Como algo que quase poderia não ter acontecido. Algo que foi aumentando até tornar impossível o faz de conta. A coisa se mexia dentro dela. Comia sua comida, bebia sua bebida, sugava seu sangue. A coisa alimentava-se dela. Misturada aos fluidos dela, confundia-se com ela. E a golpeava.

A coisa pedia passagem.

E agora as noites eram mais escuras e aterrorizantes. Quando apagava a luz sabia que não estava só. Sua barriga monstruosa, cada vez maior, se movia com a coisa. Que respirava dentro dela. Até um curto esquecimento.

Acordava sobressaltada, ouvindo um coração que não era o seu.

Por mais que vomitasse, a coisa não estava lá, no meio da gosma no vaso do banheiro. Pensou em enfiar uma faca na barriga. Que atravessasse sua carne e alcançasse os confins de si. Da coisa. Que arrancasse o bicho dentro. Para que ela pudesse morrer estraçalhada, mas una de novo. Íntegra. Para que pudesse morrer possuída apenas por si mesma.

Por muitas noites guardou o facão de churrasco debaixo do colchão. Mas não ousava além dos pequenos cortes. Quando a primeira gota de sangue, seu sangue, aflorava, sentia-se fraca. E deixava para a noite seguinte. E para a seguinte. A seguinte.

Até que a coisa a puniu com uma dor tão oceânica que pensou no morrer como uma bênção. Agora era o algo dentro dela que queria sair. Seu corpo deformado já era pouco para o bicho que a habitava. Voraz, ele queria mais. E mais.

A coisa era uma voragem.

E agora a arrebentava de dentro para fora, seguindo apenas os desígnios de uma natureza indiferente, desamarrada de toda a moral. Para a coisa não importava se deixaria para trás sua carne dilacerada. Só importava seguir.

Ela não gritou. Era inominável demais para ser pronunciado. Ainda que como grito. No silêncio absoluto de seu terror, o monstro a afogou em dor e sangue. E a deixou para trás.

Antes de morrer, viu o bebê arrastar-se sobre seus seios em busca de sua última gota.

O bebê alien

A maternidade não é algo simples como o senso comum insiste em afirmar que é

Uma mulher, qualquer mulher, passa boa parte da vida ouvindo – e muitas delas repetindo – que uma mulher só se torna completa depois de ser mãe. A maternidade é linda e, até quando padecem, as mães estão no paraíso. Aquelas que não quiseram ou não puderam ser mães são olhadas com condescendência pelas mães do ano. Sempre com aquele olhar pleno – e superior – de mulher completa. Bem, sou mãe. E concordo que a maternidade seja uma experiência extraordinária. Nunca soube que era possível amar tanto alguém quanto amo minha filha. Mas não acho que todas as mulheres devam ter filhos nem acho que são menos mulheres aquelas que escolhem não tê-los. Todas as experiências são insubstituíveis e únicas. E a maternidade é tão insubstituível como qualquer outra experiência intensa de vida. Passamos do tempo da imposição reprodutiva. Ser mãe é uma escolha.

Dito isso, queria abordar aqui algo sobre o qual pouca gente fala, já que a maternidade ainda é um dos últimos conceitos a resistir na esfera do sagrado. Se você for uma boa mulher, só pode ter belos sentimentos pelo bebê na sua barriga. E vai achar até as dores do parto algo do âmbito do sublime. Mas a realidade não é bem assim. Mesmo que muitas mulheres não ousem confessar por medo de serem apedrejadas.

Posso afirmar que achei a gravidez uma experiência assustadora. Por muitos anos, pensei que se devia ao fato de ter sido uma mãe adolescente: engravidei aos 15 anos. Nos últimos tempos, porém, muitas amigas na faixa dos 30 e poucos anos começaram a engravidar. E, nestas conversas muito além da escolha dos nomes e da lista do chá de bebê, descobri que a gravidez era difícil para algumas delas. Mesmo desejando muito aquele filho ou filha, a gestação mexia com medos profundos.

As experiências humanas são todas contraditórias. Nunca sentimos uma coisa só. Amamos profundamente o homem ou a mulher ao nosso lado, mas desejamos o George Clooney ou o cara sensível que conhecemos na fila de autógrafos de um autor bacana. Adoramos nosso chefe quando ele se mostra acolhedor e sensível, mas gostaríamos de vê-lo ardendo no mármore do inferno quando ele é ríspido ou mesquinho. E assim por diante. Por que só a maternidade seria um caminho linear e sem conflitos rumo ao paraíso da realização plena?

É claro que cada história é uma história, cada mulher é uma mulher e cada gravidez é uma gravidez. Também imagino que devem existir mulheres que (quase) só têm alegrias na gestação. Mas acho que a maioria sente um pouco de tudo. E é importante ter espaço para falar desses sentimentos aparentemente contraditórios sem se sentir anormal ou má.

Em nome da profana missão de arrancar a maternidade do panteão dos deuses e devolvê-la ao rés do chão da humanidade, vou dar a minha cara para bater ao falar de minha experiência pessoal. Ou, visto de outra forma, vou deslocar um pouco a maternidade da santidade da Virgem Maria – uma mãe tão vocacionada que conseguiu engravidar sem conhecer um homem – e transferi-la para o panteão das deusas da mitologia greco-romana – algumas delas capazes de devorar os próprios filhos se eles enchessem o saco.

Eu, por exemplo, até o fim da gravidez não sabia se dentro de mim havia um bebê ou um alien. Era uma adolescente daquelas bem magras. E o bebê foi crescendo dentro da minha barriga. Eu sabia que era um bebê, óbvio, toda a cidade sabia. E o fato de saber não eliminava o estranhamento de ter algo vivo crescendo no meu útero. Afinal, até ontem não havia nada ali. E, agora, minha pele espichava, estrias apareciam. Tudo no mais absoluto silêncio.

Um belo dia, eu fui ao consultório e o médico colocou um aparelho na minha barriga. Todo animado, amplificou o som do coração do bebê. Achei emocionante. Mas fiquei pensando: como assim? Tem outro coração batendo dentro de mim além do meu? É lindo, claro. Mas, com um pouco de boa vontade, dá para compreender que também é assustador.

Mais um tempo e o bebê começou a se mexer dentro de mim. No início, era algo imperceptível. Eu achava que estava apenas passando mal do estômago. O bebê começou a chutar com mais força. Chamei toda a família porque sabia que era um grande momento. A partir desse dia, minha barriga virou uma parada de mão pública. Ela não era mais minha. Era dele, do ser dentro de mim, e de todas as pessoas que achavam aqueles chutes a coisa mais fofa do mundo. Virei uma mesa onde todos descansavam a mão e diziam: “ohhhhh”.

À noite, ficava pensando que aquele pequeno alien dentro de mim estava se alimentando de mim. Era impressionante. E também um terror. E ele continuava crescendo. E espichando a minha barriga até proporções inimagináveis. Onde estava escondida toda aquela pele?

Numa dessas noites, tive um insight. Aquele ser não mais tão pequeno teria de sair de mim. De uma maneira ou outra. Tirei meus neurônios de todos os projetos paralelos e, histérica, concentrei-os na tarefa principal: descobrir um jeito de o pequeno pimpolho sair de onde estava sem que fosse pelo parto ou por uma cirurgia. Nada.

A partir daquele momento, eu não queria mais que o bebê saísse de dentro de mim. Que ficasse ali pelo resto da vida. Eu já tinha me acostumado com aquelas calças largas. Poderia viver com elas por mais cem anos. E já tinha esquecido como era bom dormir de bruços. Mas o ultra-som não mentia. A coisinha agora era uma coisona. E crescendo. Dava até para saber se era menino ou menina. Mas eu não queria saber. Que fosse uma surpresa. Internamente, ainda não tinha sido abandonada pela ideia de que, no final das contas, era um alien que morava ali.

E então, lá estava eu, ao final de uma manhã de domingo, estudando para uma prova de química inorgânica do segundo ano do ensino médio, quando senti uma dor esquisita. Até hoje cumprimento a Maíra pelo oportuno da hora. Nunca mais precisei fazer aquela prova. As dores foram aumentando e não pararam mais. Até hoje não entendo aquela história dos intervalos que iam encurtando progressivamente. Para mim, foi uma contração atrás da outra, até às 11h43min do dia seguinte. Minha sensação era de que alguém enfiava a mão dentro de mim e abria meus ossos. E eu era obtusa demais para aprender a fazer respiração de cachorro. Não esbocei um gemido. Tinha decidido há muito tempo não dar o gosto de me ver sofrendo para ninguém. Só fechava os olhos quando a dor se tornava impossível.

Quando chegou a hora, o médico, que também era professor da faculdade de enfermagem, trouxe uns dez de seus alunos para assistir ao espetáculo do parto natural. Sem me perguntar, óbvio. Para quê? Eu era só uma paciente. Foi bastante tranquilizador estar com as pernas abertas, na missão – que ainda naquela hora me parecia impossível – de ajudar uma criança a sair de dentro das minhas entranhas, diante de uma plateia de estudantes universitários com alguns poucos anos mais do que eu. Em seguida, o pediatra, que depois virou deputado, tropeçou no soro e quase levou meu braço junto.

Mesmo que o mundo exterior fosse inóspito, o pequeno alien nasceu. Era uma menina. Com uma cabeça em formato de ovo, toda vermelha, e ainda assim linda. Neste momento, me senti uma deusa.

Depois, de novo bem humana, nós duas fomos para casa. Eu olhava para ela. Ela olhava para mim. E nós duas chorávamos. Era um bebê lindo, que eu começava a amar. Ao mesmo tempo, ainda era uma espécie de alien. Dentro do meu cérebro – e do meu coração – eu me perguntava: “Quem é esta?”. E depois: “O que eu faço agora?”.

Algo profundo de mim não entendia quem era aquele ser que até ontem estava dentro e de repente estava fora, cheio de exigências. Então, fomos nos conhecendo, nos amando, e aí começou uma outra história.

Parir outro ser é um ato de vida. Sempre ouvimos e acreditamos nisso. E é verdade. Mas também é um ato de morte. Quando damos à luz um filho, nunca mais seremos as mesmas. Ter espaço para pensar, falar e lidar com esta morte simbólica é importante para seguir a vida. E fazer dela algo que valha a pena.

(Na próxima segunda-feira, 15/2, continuarei a escrever sobre o tema da maternidade.)

(Publicado na Revista Época em 08/02/2010)

A concha

Quando chegou do trabalho já era tarde para ser saudável. Depois de um dia sem tempo nem para um sanduíche, queria se acabar comendo diante da TV. Abriu o freezer em busca de possibilidades, sempre escassas naquele apartamento de mulher muderna com “u”. Já havia comido o carpaccio vencido, a lasanha de presunto, a de quatro queijos, a pizza margarita. Lá no fundo, atrás de uma pilha de bandejas de carne crua, estava o último tapawer contendo as sobras de uma paella encomendada para o aniversário do sogro. Paella às onze da noite. Hum. Tough girl. Programou o micro-ondas para dez minutos enquanto tomava um banho. Só conseguia se sentir em casa depois de tomar banho, vestir o pijama, encaixar os óculos e deitar no sofá azul com um prato de comida diante de algum filme, de preferência uma comédia romântica high school americana, do tipo garota inteligente e feia, mas que por trás dos óculos fundo de garrafa e das roupas largas é bonita, está apaixonada pelo garoto popular que é namorado da loira gostosa, burra e má…

Estava neste ponto, a boca cheia engolindo rápido, quando a viu. Ver mesmo já a tinha visto antes. Mas não tinha enxergado. A concha estava lá, no fundo do prato fundo. Com um pequeno marisco grudado nela. Atacou o cadáver cor de laranja com o garfo. A carne tão grudada que um pedaço continuou colado à parede de madrepérola. A textura era borrachenta, e o gosto de areia. Ficou furiosa com o marisco que ousava morrer sem lhe dar prazer.

A garota inteligente e feia estava sofrendo bullying agora, os livros inteligentes espalhados pelo chão, diante das pernas bronzeadas e expostas da garota popular, os óculos a um metro dela sem que conseguisse alcançá-los apesar de seu QI superior. Como um diretor que dizia gostar de cinema podia fazer o enésimo filme com o mesmo roteiro imbecil? E como ela podia assistir? E, pior, de algum modo gostar de assistir?

Mistério. Levou o prato até o lixo para limpá-lo antes de botar na pia que vivia entupindo. Ao posicionar o garfo para empurrar a concha rumo ao lixo orgânico, não pôde. Não conseguiu. Ficou ali, estática diante do cesto, olhando para a concha. Era bonita demais para misturar-se ao lixo do vizinho, ao lixo do caminhão de lixo, para queimar no aterro entre cascas de batata e bananas podres.

Sem perceber que perdia o primeiro beijo do garoto popular na garota agora menos impopular e quase bonita, levou a concha até a pia e lavou-a com cuidado, livrando-a dos restos alaranjados do cadáver sem gosto que começava a pesar na sua consciência. Molhada, a concha brilhava entre suas mãos.

O filme acabou, e o seriado com a polícia que ela gostaria de chamar de sua porque só sujava as mãos com neurônios começou, e ela continuava ali, de pé no meio da cozinha, olhando para a concha.

Até agora não sabe o que aconteceu. Revirou suas memórias filosóficas, suas pérolas de senso comum, os vãos empoeirados do seu cérebro. Nada. Não compreendeu. Sabe apenas que a concha era bonita demais para ser jogada fora.

Desde então está confusa. Não sabe mais decodificar o padrão do mundo. As referências se embaralharam. Perdeu as pistas para si mesma.

Leva a concha para aonde vai. E, quando tudo silencia ao seu redor, olha para ela. Sabe que a concha tem algo a lhe dizer. Mas não sabe o que é. Só sabe que ela é bonita demais para jogar fora. E que isto bota seu mundo inteiro de pernas para o ar.

A burca, a França e todos nós

O debate francês nos leva a questões cruciais de nossa época

A França está muito perto de proibir o uso da burca (vestimenta em que os olhos são visíveis apenas através de uma tela) e do niqab (véu integral que cobre tudo, menos os olhos das mulheres) nos espaços públicos. O tema é fascinante porque não há respostas fáceis. Em busca delas, temos de enfrentar algumas das principais questões contemporâneas. Quais são os limites do Estado? Onde acaba a liberdade de expressão religiosa? Em que momento o relativismo cultural flerta com o totalitarismo? Proibir a burca vai ajudar as mulheres muçulmanas em sua suposta libertação ou vai marginalizá-las ainda mais? Será um golpe no fundamentalismo islâmico ou estimulará ainda mais o radicalismo? Questões sobre as quais vale a pena pensar porque permeiam a nossa vida cotidiana, para além das burcas reais (poucas, por aqui) e simbólicas (muitas) de nosso mundo.

Para quem não acompanhou, o parlamento francês discute a criação de uma lei banindo as burcas e niqabs de espaços como hospitais, escolas, repartições e transporte públicos. Os argumentos: o Estado francês é laico; a burca e o niqab não seriam expressões religiosas, mas uma violação dos direitos humanos da mulher; é preciso defender os valores basilares da França, aqueles que fazem os franceses serem aquilo que são.

Em meus primeiros contatos com o tema, me parecia razoavelmente claro que: 1) o Estado não tem de se meter com a vestimenta ou a expressão religiosa de ninguém; 2) proibir a burca e o niqab colocaria material inflamável nas mãos dos fundamentalistas islâmicos em sua crescente busca por adeptos, o que só agravaria uma situação que já é tensa e não precisa de mais munição para piorar; 3) a lei marginalizaria ainda mais a já sofrida população de imigrantes muçulmanos, a maior parte deles injustamente identificados com o fundamentalismo; 4) a liberdade só é possível na convivência com as diferenças.

Aqui no Brasil, por exemplo, acho absurda a existência de crucifixos nos espaços públicos. Eles deveriam ter desaparecido das paredes oficiais quando a Constituição de 1891 determinou a separação Estado-Igreja. Sempre que vejo o crucifixo acima da cabeça do presidente do Supremo Tribunal Federal no plenário, sinto engulhos. Parece-me claro – e até hoje nenhum argumento contrário me fez mudar de ideia, mas estou sempre disposta a ouvi-los – que um estado laico não pode estar identificado com nenhum símbolo religioso, seja ele um crucifixo, uma imagem de Oxum ou de Buda ou um retrato de Alan Kardec. Sou de família católica do tipo praticante, mas não sigo a religião, e me sinto violada em meus direitos de cidadã ao ver um crucifixo na parede do Supremo e em outros órgãos públicos.

Por outro lado, não vejo nenhum problema se um cidadão assistir a uma sessão do Supremo com um crucifixo no pescoço. Ou com adereços do candomblé. Ou vestido como um monge budista. Desde que não seja um funcionário público, claro, que naquele momento está representando não a si mesmo, mas a todos os cidadãos em seu pluralismo religioso garantido pela Constituição.

Digo isto porque me parecia que o tema das burcas era semelhante. Eu jamais usaria uma burca e veria o mundo por meio de furinhos de uma tela, mas não me cabe dizer o que faz sentido para outra mulher usar nem que ela deveria ver o mundo sem barreiras sintéticas. Se não admito que tentem me dizer como me vestir ou me obrigar a professar esta ou aquela religião, tampouco me sinto no direito de impor minhas verdades a ninguém. Cada um na sua, convivendo em respeito e harmonia com as diferenças. E, no caso da burca, eu não pisaria em um país que me obrigasse a contrariar minhas convicções me obrigando a vestir uma. Por que, então, seria legítimo o estado francês obrigar as muçulmanas a tirar a sua?

Estas foram minhas primeiras reflexões a respeito da França e da burca. Comecei então a ler mais, a pensar mais, e as questões se multiplicaram. Aqui, um parênteses: gosto bastante das dúvidas. São elas – e não as certezas – que fazem bem à construção do pensamento. Sempre fico embasbacada com aquelas pessoas que já saem brandindo suas verdades absolutas sobre tudo, sempre com uma ótima opinião sobre suas conclusões e nenhum respeito pelas dos outros. O instigante é justamente pensar, debater e aprender – o que pressupõe estar disposto a ouvir o argumento do outro e não enfiar o seu goela abaixo.

Neste caminho, primeiro é preciso entender que este debate é travado na França não por acaso. Não sei bem o que significa ser francês hoje em dia, nem acho que a resposta seja tão fácil como muitos franceses acham que é, mas é preciso reconhecer que a França tem uma história profunda de laicidade que fez muito bem ao mundo. Em 1880, mais de um século atrás, o Estado retirou os crucifixos e símbolos religiosos dos tribunais, escolas e repartições públicas. Nesta época, o ensino religioso foi eliminado do currículo escolar, e magistrados e militares foram proibidos de participar de festas católicas em caráter oficial. Em 1905, a lei da laicidade rompeu unilateralmente a concordata entre a França e o Vaticano, confiscando os bens da Igreja e suprimindo todas as subvenções. Desde então, a França se manteve fiel à separação Estado-Igreja.

No ano passado, o presidente Nicolas Sarkozy fez um discurso contundente, com grande repercussão no mundo muçulmano, classificando a burca como “um sinal de servidão da mulher”. Sarkozy disse: “A burca não é um símbolo religioso, mas de subjugação das mulheres. E não será bem-vindo no território da República francesa”. Jean-Marie Fardeau, diretor do escritório de Paris da Human Rights Watch, uma das mais respeitadas organizações internacionais de direitos humanos, rebateu dizendo que a eventual proibição era uma violação de direitos. Fardeau afirmou: “Proibir a burca não fará mais do que estigmatizar e marginalizar as mulheres que a utilizarem. A liberdade de expressar a religião e a liberdade de consciência são direitos fundamentais”. E acrescentou: “uma proibição que restrinja unicamente a expressão da religião muçulmana enviará um novo sinal a muitos muçulmanos franceses, o de que não são bem-vindos em seu próprio país”.

Quem está certo? Ou qual posição está mais próxima da verdade? Ou da Justiça? Os argumentos de ambos os lados são bons, por isso o debate é interessante.

A França é o país europeu com o maior número de imigrantes muçulmanos, em torno de 5 milhões. Mas apenas 2 mil mulheres usam a burca ou o niqab. Ou seja, esta polêmica toda seria, num olhar simplista, por causa de uma minoria mesmo entre as mulheres islâmicas.

O que está em jogo, porém, é bem mais do que isso. Parece claro que o parlamento francês está dando um recado: se os imigrantes muçulmanos querem desfrutar das benesses do estado francês, precisam assumir os valores da república francesa, entre eles os princípios da laicidade do Estado e da igualdade de direitos entre os gêneros. Não basta estar na França, é preciso “ser” francês – ou pelo menos desejar ser –, no que isto significa de mais profundo.

Mas o que é ser francês hoje em dia? Não acho que exista uma resposta simples para esta pergunta. Nem me parece que, no século 21, exista uma França que não seja multicultural. De qualquer modo, estaria essa suposta “identidade francesa” tão ameaçada que seja preciso brandi-la numa guerra contra as burcas?

De certa forma, fica claro que no “território da república francesa” existem os franceses mais franceses que os outros. Há os franceses mais livres, iguais e fraternos que os outros. E, pelo visto, os imigrantes e seus descendentes, mesmo nascidos na França, não se incluiriam nesta categoria dos bons franceses. Os fundamentalistas, especialmente, seriam hóspedes não “bem-vindos”, que desrespeitariam a casa que os recebe, pátria de algumas intelectuais feministas das mais brilhantes, ao cobrirem o rosto de suas mulheres.

Quando Sarkozy diz que a burca é um “sinal de servidão das mulheres”, à primeira vista parece óbvio que tem razão. Afinal, que mulher emancipada aceitaria ver o mundo exterior por uma tela a vida toda? Mas, e se fosse uma escolha, o modo como determinada mulher escolheu viver sua fé, teria o Estado direito de proibi-la por considerar sua escolha indigna?

Parte-se sempre da certeza de que as mulheres islâmicas usam o véu integral porque não têm escolha. Mas tenho certeza que esta não é toda a verdade. Embora acredite que boa parte não tenha mesmo, existem aquelas que acham que esta é uma boa maneira de viver a sua religião. Já conheci algumas delas. Como o estado francês vai saber quais são obrigadas a usar o véu e quais escolheram usar o véu? Não saberão, a não ser que coloquem câmeras dentro dos lares das famílias que professam a religião islâmica. Nem mesmo em defesa dos “valores da república francesa” seria possível ir tão longe.

Por outro lado, se olharmos para o senso comum das mulheres ocidentais, para o que é aceito como “normal”, poderemos encontrar alguns paralelos interessantes. Como classificar as modelos esquálidas, adolescentes abaixo de qualquer peso considerado remotamente saudável, como vimos mais uma vez na última São Paulo Fashion Week? Desta vez não para obedecer aos princípios de uma religião tradicional, mas para obedecer a outro tipo de religião, possivelmente bastante fundamentalista: os rígidos padrões do mercado da moda. Muitas vezes também elas pressionadas a subir nas passarelas por pais que as veem como um atalho para a ascensão econômica. Não seria esta também uma violação dos direitos humanos das mulheres?

Ou como encarar a morte de mulheres em procedimentos cirúrgicos estéticos, como foi o caso da jornalista da TV Justiça Lanusse Martins, de 27 anos, morta quando se submetia a uma lipoaspiração na semana passada? Ou as cirurgias em que parte do estômago é retirada não por exigência da saúde, mas por vaidade, porque é mais fácil arrancar um pedaço do estômago que emagrecer? Mulheres bem longe da obesidade que arriscam a vida para eliminar quilos, celulites e se adequar aos padrões de beleza. Isto é menos opressor? É melhor porque são valores do nosso mundo – e não do mundo do outro? Pode se argumentar que, pelo menos, é por escolha própria. Será? Para mim, se arriscar aos riscos de um procedimento cirúrgico apenas por questões estéticas é tão absurdo como ver o mundo através de uma burca. Nem por isso acho que o Estado deve criar uma lei proibindo a cirurgia plástica por razões estéticas.

Um amigo parisiense, diante das minhas dúvidas, diz o seguinte: “eu não quero andar na rua do meu país e ver uma mulher de burca”. E se os cidadãos começarem a ficar ofendidos com piercings, tatuagens tribais, cabelos de várias cores, bombachas de gaúchos ou minissaias como a de Geysa Arruda, a garota que quase foi linchada pelos alunos da Uniban e hoje virou subcelebridade? Ou vestimentas de freiras, túnicas de hare krishnas ou quipás de judeus? O Estado deve banir tudo e determinar um uniforme que esteja adequado aos valores da república?

Proibir expressões individuais, seja pelo motivo que for, é comportamento de países fundamentalistas e/ou totalitários. Defender que determinada expressão individual, seja ela religiosa ou não, contraria os princípios do Estado e, portanto, deve ser banida, pode se tornar um escorregão para coisas muito perigosas. Valores são terrenos pantanosos. Se decidir proibir as burcas e os niqabs, a França pode estar se aproximando daquilo que tenta se afastar.

Por outro lado, quais são os limites dos direitos individuais e da expressão religiosa? Haveria, por exemplo, o direito de ser oprimido? Ao defendermos a necessidade de respeitar as diferentes culturas e a complexidade do outro, estaríamos incorrendo num relativismo cultural que só serve ao opressor? A mutilação genital, com a extirpação do clitóris, deve ser permitida porque é parte de uma determinada cultura? Ou o apedrejamento das adúlteras? Quais são os limites? E quem decide?

Neste caso, poderia se argumentar que a burca não fere a integridade física de ninguém. Mas e a integridade psicológica, a saúde de uma mulher obrigada a ver o mundo por uma tela, teria menos valor? Não interferir não seria omissão em vez de respeito? E, como toda omissão, uma forma de apoio àquilo que degrada a dignidade humana?

É complexo. Chego até aqui ainda com muitas perguntas. Tenho, porém, umas poucas convicções. Acredito que, se for aprovada, uma lei banindo burcas e niqabs vai servir para marginalizar ainda mais as mulheres islâmicas que usam os véus integrais, seja por imposição dos pais e maridos, seja por vontade própria. Acredito que vá acirrar ainda mais o sentimento de rejeição vivido por parte dos imigrantes muçulmanos. E não tenho dúvida de que será amplamente propagandeado pelos recrutadores do fundamentalismo, ao dizerem com a boca cheia: viram como eles não respeitam os sagrados ensinamentos do profeta, como riem de nossas crenças, como nos odeiam?

É possível até que mulheres que rejeitavam secreta e silenciosamente seus véus passem a defendê-los, como forma de assegurar a única identidade que conhecem. Nada pior do que uma causa comum para aumentar o radicalismo e o número de adeptos. Nada pior para a construção de uma sociedade tolerante com as diferenças que tratar o outro como bizarro – e seu estar no mundo como bizarrice.

Acredito que o melhor caminho para manter vivos os ideais da liberdade, igualdade e fraternidade é sempre incluir – e não excluir. Não acho que a primeira estratégia do Estado deve ser criar mais uma lei. Nem me parece o modo mais inteligente de enfrentar a questão. Se o parlamento francês gastasse esse tempo e essa energia para assegurar educação e oportunidade para estas mulheres, para ampliar seu acesso à democracia, elas se sentiriam parte. E talvez, um dia, aquelas que não vestem as burcas e niqabs por vontade própria, conseguissem se sentir seguras e amparadas para tirar os véus por si mesmas.

(Publicado na Revista Época em 01/02/2010)

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