Na reprodução, estamos mais próximos dos pandas que dos coelhos
Dias atrás, numa reunião de pauta da Época, minha colega Cristiane Segatto, em minha opinião a melhor jornalista de saúde do país, comentou: as chances de uma mulher jovem engravidar naturalmente, sem nenhum problema de fertilidade com ela e com o parceiro e transando no período fértil, é de apenas 25% a cada mês. Dito de outra maneira: se está tudo certo, certíssimo, e você acertou a data da ovulação, tem 75% de possibilidade de NÃO engravidar. E, claro, quanto mais idade, menor a probabilidade estatística. No meu caso, com 43 anos, descobri que, depois de um ano de tentativas, é quase mais fácil eu acertar na mega-sena, o que está nos meus planos (a mega-sena, não o bebê).
Pode ser ignorância minha, mas eu achava que era muito mais fácil. Acreditava que, se tudo estivesse certo com o casal, bastava acertar o período de ovulação e, pronto: baby a caminho. Pelo que tenho conversado por aí, a ignorância não é só minha. Entre minhas amigas, parte delas naquela fase em que enxergam bebês por todo canto, acordadas ou dormindo, o mito da fertilidade segue forte. E fazendo vítimas.
Tenho observado o comportamento feminino. Vejo mulheres bonitas, saudáveis, que têm o privilégio de trabalhar no que gostam, são donas do próprio dinheiro, do nariz e de todo o resto, discorrem sobre temas complexos com inteligência e até mesmo sensatez e…. na hora de engravidar, piram. Alucinam totalmente. Acham que precisam se tornar uma versão sarada da Vênus de Willendorf, aquela figura gordinha, toda protuberante, esculpida mais de 20 mil anos atrás. Quando não conseguem engravidar, se deixam reduzir a um “útero defeituoso”. Sim, já ouvi o termo várias vezes, boquiaberta. Não são mais mulheres, nas várias dimensões da vida, mas úteros. E úteros com problemas. Se pudessem, cobrariam da natureza ou de Deus um recall.
Percebo também que há uma divisão não declarada, mas vivida como verdade: existiriam as mais mulheres que as outras. As mais mulheres, as superfêmeas, são as que engravidam na primeira tentativa ou até sem tentar. Depois, têm parto natural. Sou uma crítica contumaz da indústria das cesarianas, responsável em parte pelo vergonhoso índice de mortalidade materna do Brasil. E uma defensora do parto natural sempre que é possível. Sou contra, porém, um comportamento que começa a se difundir entre as mulheres da classe média urbana e intelectualizada: quem não pôde ter parto natural e fez cesariana é vista como se fosse menos mãe e mulher que as outras. Como se não tivesse “conseguido”.
Devagar. Os extremos nunca fazem bem ao bom senso. Mas este é um tema para outra coluna. O que nos interessa aqui: é maior do que pensamos o número de mulheres esclarecidas que não admitem ter feito tratamento para engravidar porque se sentiriam menos femininas e, depois, menos mães que as outras. Sentem-se mulheres imperfeitas, com defeitos. E escondem esta “mácula” na sua biografia pública.
O que acontece? Acho que estamos muito confusas com a maternidade e todas as suas implicações. Apesar da overdose de informações médicas, ao alcance de todos no Google, há muito que não sabemos. E sobre muitos aspectos do feminino, do sexo e da maternidade, calamos. Como confessar que não somos atletas sexuais em busca de orgasmos múltiplos com as capas de revistas femininas nos transformando em Messalinas do século 21? Ou, o assunto desta coluna, como dizer que temos dificuldade de engravidar, que não somos uma vênus da fertilidade, e que toda essa pressão não nos deixa nem com vontade de transar, o que torna tudo ainda mais difícil? Afinal, boa parte da informação e da publicidade – sempre com amplo uso de termos médicos para dar ares científicos ao que é pura especulação – tenta nos convencer que, para sermos completas, precisamos nos tornar ao mesmo tempo tecnológicas como uma personagem de animação futurista e “naturais” como nossa ancestral Lucy, a australopithecus afarensis de mais de 3 milhões de anos.
Tenha a santa paciência. Dizem que as mulheres falam muito – até demais. Sobre isso, acho que as mulheres falam pouco – de menos. Para quebrar um pouco esse silêncio envergonhado, procurei uma das minhas amigas grávidas. Eu sabia que ela tentara engravidar por muito tempo, mais de um ano. Também sabia que sua vida havia se complicado muito naquilo que ela encarava como “fracasso”. Nesse período, ela se afastou. Quando nos encontrávamos, evitava falar sobre o assunto. E quando me contava sobre seus problemas, descubro agora, eu errava feio. Em vez de escutar de verdade, eu dava conselhos ao estilo de Zeca Pagodinho: “deixa a vida te levar”. Dizia mais. Que conhecia muitas mulheres que fizeram tratamento para engravidar e, depois desse primeiro filho tão difícil, relaxavam e engravidavam sem planejamento. Que ficar tão obcecada só atrapalhava. Que devia esquecer o assunto por uns tempos.
Claro, ela não falava mais. Quando a procurei, me perdoou pela minha estupidez. E me deu a entrevista a seguir, por acreditar que pode ajudar mulheres que sofrem tanto quanto ela. Ou, pelo menos, ajudar a sofrer um pouco menos. Esta é a experiência da minha amiga, com toda a história que é só dela. Com suas neuroses, seus traumas, seus medos, suas expectativas e suas atrapalhações. Há muitas outras. Esta coluna é só um jeito de começar a falar.
Espero que não seja lida só por mulheres. Imagino que não seja fácil para um homem viver todo esse processo ao lado da mulher com quem divide a vida – e o sonho de ter um filho. E um dia gostaria de ouvir um deles. A entrevista pode ajudar a entender um pouco melhor a tão complexa intimidade feminina. E se os dois tiverem a coragem de falar honestamente de seus medos e dificuldades, talvez esse momento possa ser mais leve. E até bem interessante.
Minha amiga está mais perto dos 40 anos que dos 30. E hoje está grávida, mas ainda não contou para a maioria das pessoas. Tentou vários métodos e conseguiu engravidar por fertilização in vitro. Mas decidiu não revelar para os amigos e conhecidos que precisou de tratamento. Ela sabe que é uma bobagem, mas continua se sentindo menos mulher por ter precisado da ajuda da tecnologia para engravidar. Não temos o direito de julgá-la. Só de ouvi-la. Para nos contar sua história, ela precisou de muita coragem para revirar segredos bem doloridos.
Eu: Por que você quer ser mãe?
Ela: Não sei direito. Um pouco porque parece ser uma consequência natural da vida, um pouco pela vaidade da continuidade de mim mesma, da sensação ilusória, mas inevitável, de ter algo verdadeiramente “meu”. Ou que dependa, ao menos por um tempo, exclusivamente de mim. Soa horrível, mas é o que sinto. Às vezes por fatalismo, às vezes por puro egoísmo, não sei. Não é uma escolha racional. É um desejo, quase um capricho.
Eu: Em que medida ser mãe é desejo seu e em que medida é pressão familiar e social?
Ela: Não sei avaliar. Com certeza há uma pressão familiar tácita e social também. Mas é algo meio de bicho ou de obrigação social muito arraigada, a ponto de eu não conseguir identificar. Eu não paro para pensar. Está lá, simplesmente. E há muito tempo.
Eu: Quando você começou a sentir que queria ser mãe? E como este sentimento influenciou sua vida?
Ela: Desde a adolescência a maternidade está presente na minha vida, mesmo que como negação. Sempre levei esse desejo muito a sério. Era como se fosse um desdobramento natural da vida tornar-se mãe, uma questão de tempo para toda mulher, e uma questão com um algo da ordem do sagrado, algo de muito importante. Mas eu queria experimentar isso de uma maneira supostamente responsável, sem grandes atropelos – ao menos assim eu idealizava. Então adiei por muitos anos o plano e sempre me precavi neuroticamente para evitar ficar grávida fora de hora, ou do que eu considerava fora de hora, como vi acontecer com outras amigas e me assustou muito. Mesmo assim, desde os 20 e bem poucos anos tenho os exames pré-natais em dia, porque, por mais que a gente se previna, não temos o controle de tudo. Então ao menos eu estaria pronta fisicamente.
Eu: Isso determinou a escolha dos homens com quem namorou, casou?
Ela: Casei com um homem que tinha alguns impedimentos para ter filhos. Ele topou ter um filho comigo, mas minha impressão era de que era mais por amor a mim do que por um desejo dele. Com o tempo, essa diferença de vontade me pegou. Logo que começamos a namorar, consultamos um especialista e soubemos que teríamos de fazer tratamento. Mesmo eu não querendo engravidar naquela hora, fui ao médico porque queria me sentir segura de que estava preparando o terreno para o futuro da melhor forma possível. Me separei dele dez anos depois por iniciativa minha e por motivos que até hoje não são claros para mim. Na época, ele cogitou que uma das razões fosse a pouca vontade dele de ter um filho ou a dificuldade que teríamos. Não sei. Mas, curiosamente, na sequência me apaixonei por um homem, meu atual marido, muito fértil, que já tinha filhos e é um excelente pai, dedicadíssimo. Desde as primeiras saídas deixei claro que eu queria ser mãe um dia. Se isto não estivesse nos planos dele, então o relacionamento não iria muito longe. Ele topou. Às vezes me pergunto se minhas escolhas não foram influenciadas inconscientemente pelo instinto de ser mãe – se é que ele existe mesmo.
Eu: Quando você decidiu que era hora de engravidar, o que fez? Essa ideia de engravidar não atrapalha na hora de transar? Dá para gozar querendo tanto que um filho seja concebido?
Ela: Quando decidimos que era hora, falei com minha médica, fiz novos exames e tomei novas vacinas. Parei com a pílula. Não mudou exatamente o jeito de transar, de viver, mas, para nós, criou-se uma ansiedade crescente, uma expectativa que virava uma tristeza a cada menstruação. Meu marido era excessivamente otimista e achava que eu ia engravidar no primeiro ciclo. Eu sabia que já era um pouco velha biologicamente, que tinha adiado demais os planos de maternidade e que talvez a coisa demorasse. Os exames estavam todos muito bons, mas a gravidez não acontecia e isso trazia tensão. Por que não acontecia? Eu ficava com raiva dele quando a gente brigava perto dos períodos férteis, porque seria uma oportunidade a menos. Meu foco na transa mudou um pouco, sim. Pareciam aquelas transas sagradas, meio ritualísticas das tradições antigas, com uma finalidade por trás…
Eu: Vocês conversavam sobre isso?
Ela: Nunca falei isso pra ele, até para não comprometer o sexo, que sempre foi uma coisa muito boa nossa. Sinto que ele também ficava ansioso para a gravidez rolar toda vez que transávamos. Acho que eu fiquei menos preocupada em gozar nessa época. O foco era outro. Mas não atrapalhava, não impedia. Ao contrário, parecia que enobrecia. Eu queria muito que meu filho fosse concebido numa transa muito boa, com um belo orgasmo. Mas infelizmente a ansiedade começou a perturbar. Em alguns momentos, ficou um pouco mecânico pra mim.
Eu: Em que momento começou a dar medo de não conseguir? E o que este medo fez com você? E com a sua vida?
Ela: Como eu sou muito ansiosa, o medo veio logo. Meu marido era otimista demais. Isso acabava sendo uma pressão indireta. Ele teve filhos muito facilmente. Por isso, eu comecei a me sentir “defeituosa”, inferior a outras mulheres. Em alguns momentos, tive raiva e inveja de mulheres que engravidavam, mesmo de amigas muito queridas. Ficava puta quando alguém que eu julgava irresponsável, não merecedora daquela “graça”, engravidava. Como se fosse uma questão de mérito, sabe? Por que eu, que tinha feito tudo “direito”, planejado, escolhido um momento de relacionamento tranquilo, de segurança financeira, porque eu, que era uma ótima tia e madrasta, não conseguia, e tanta mulher sacana conseguia? Tive sentimentos muito ruins. Eles me puxavam mais pra baixo ainda. Me sentia muito injustiçada pela natureza. E diminuída, que é o pior dos sentimentos. É como se não ser fértil, ao menos naquele momento, me diminuísse. Mudei de emprego. Não exatamente por causa da gravidez, mas isso pesou. Decidi trabalhar em algo mais tranquilo, com menos horas, pensando no projeto de ser mãe. Mas o trabalho não me satisfazia e, ao mesmo tempo, eu não engravidava. Fiquei meio amarga, meio ranheta, ranzinza, pouco generosa. Estou grávida, mas ainda me sinto um pouco assim. Não sei se os outros se dão conta disso, mas eu me sinto assim.
Eu: A partir de um determinado momento, você teve de enfrentar a questão de que não seria fácil gerar um filho. Tive a impressão de que você ficou meio obsessiva… Como lidou com isso na família, na vida social?
Ela: Eu não falava para as pessoas que estava tentando porque tinha um pouco de vergonha e incômodo de elas saberem que eu não estava conseguindo. Então desconversava sobre esse assunto, fingia desinteresse. Comecei a ler mil sites e porcarias sobre gravidez. Descobri sites horrorosos, com fóruns deprimentes de mulheres inférteis. O que eu chamava de “gineco” ou de “minha médica”, para elas era GO. Estas mulheres tinham abreviações e códigos próprios. Muitas iam a dois médicos ao mesmo tempo, de tão neuróticas. O contato com esse universo me deprimiu, porque pelo menos em um ponto eu me identificava com elas: não conseguia engravidar. Ficava lendo estatísticas para me sentir mais confortada. Descobri, para meu alívio, que mulheres na minha idade tinham 12% de chance de engravidar naturalmente depois de um ano. Parece idiotice, mas este tipo de informação me consolava. Comecei a fazer continhas horríveis de período fértil para transar. Na neura de engravidar, meu marido e eu compramos um produto que mede o dia da ovulação pela quantidade de sal na saliva. Usei três meses esse medidor e me senti meio ridícula e enganada, até que joguei num canto do armário. Não teria coragem de contar a ninguém que fiz isso. E fiquei aliviada quando um amigo do meu marido disse a ele que estava usando um também com a mulher. Não éramos os únicos ETs.
Eu: Você se sentia um ET por não engravidar?
Ela: Me incomodava que meu marido dissesse não conhecer ninguém com dificuldade de engravidar. Eu me sentia pior. Até que fui mostrando a ele casos próximos. Eu precisava provar a ele que não era a única mulher que não engravidava fácil. Amigos passaram a desabafar com ele, e ele percebeu que isso acontecia, mas as pessoas não contavam. As pessoas não gostam de falar de fracassos. Quando viajávamos, meu marido queria comprar coisas para o bebê que não existia. No começo, eu topava, meio a contragosto. Mas isso começou a me incomodar. Era como montar um enxoval para um fantasma. Da última vez que viajamos, eu me neguei, categoricamente. Fui dura. Não queria aquele sofrimento. Quando estivesse grávida mesmo, compraria. Não queria me sentir mais iludida nem patética.
Eu: Em que momento você decidiu que era hora de tentar inseminação artificial?
Ela: Depois de quase um ano tentando, minha médica achou que, pela minha idade, era melhor tentar alguma coisa mais radical. Ela propôs inseminação artificial. Era feita no consultório mesmo. Era importante para mim saber que tudo era simples, que eu não era um alien num laboratório. Meu marido foi bem parceiro nessa hora, com muito bom humor, e isso me ajudou muito. Mas eu me sentia constrangida de estar fazendo um tratamento desses. Eu concordei, mas dentro de mim eu resisti e fiquei triste, tensa. Meu marido me encorajou, a médica falou que era normal, que a Medicina está a nosso serviço. Mas eu torcia para que rolasse naturalmente, nos intervalos do tratamento. Não deu certo e foi uma bomba. No mês seguinte a médica quis esperar, mas não aguentamos. Tentamos algo chamado “coito programado”, em que você é estimulada com hormônios e transa num dia e horário específicos. Péssimo. Foram dias HORRÍVEIS. Deu muito errado, produzi mil cistos, meus ovários ficaram gigantes. Foi o pior momento de todos. Nessa época, eu tinha comprado na rua, por pena da vendedora, três assinaturas de revista. Só queria ajudar a moça e acabei escolhendo uma revista de bebês. Meu marido ficou super entusiasmado. Veio o primeiro número e eu não tinha engravidado. Odiei tanto aquele exemplar… Me senti tão humilhada, com tanta raiva, que liguei suspendendo a assinatura por seis meses. O curioso é que a revista voltou a chegar no primeiro mês da minha gravidez. Foi uma gentileza do destino.
Eu: Nessa época, como era para você se encontrar com bebês e mulheres grávidas? Você chorava?
Ela: Chorar, não. Fiquei mais amarga, tentando me manter “realista”, prática. Houve um tempo em que eu fiquei com um pouco de raiva de bebês. Não fazia questão de pegar nem de chegar perto deles. Nunca fiz muita questão, mesmo, sempre fui arredia, porque eles pareciam e me parecem até hoje assustadores. Mas, nesta fase, eu queria menos ainda. Tinha ainda mais raiva das mães deles. Ainda tenho um resquício disso: inveja de barriga. Espero que passe, porque ainda me culpo por sentir coisas ruins pelas pessoas.
Eu: Você disse que as pessoas silenciam sobre a dificuldade de engravidar. Por isso, quem não consegue se sente um ET. Por que você acha que é tão difícil admitir e lidar com tranquilidade com a dificuldade de engravidar? Por que para você é tão difícil falar sobre isso, mesmo agora, que já engravidou?
Ela: Acho que sou como as outras pessoas. Eu tenho certo constrangimento de dizer que fiz tratamento. Só contei para pessoas muito, muito chegadas, umas cinco. Eu e meu marido pensamos em não falar para ninguém e mentir para quem perguntar. Me sinto mal por mentir. Mas me sinto mal também de achar que podem me olhar diferente, como se meu filho fosse menos, e minha gravidez, artificial. É estranho. Não foi numa transa natural, com orgasmo, secreções e suor. Foi num laboratório. É como se eu fosse menos que as outras, que conseguiram tão naturalmente. Conheço pessoas que engravidaram numa única transa. Meu marido é uma delas – o que já fez e às vezes ainda faz com que eu me sinta uma droga de mulher. Como engravidar era algo muito desejado por mim, essas pessoas me pareciam “superiores”, férteis, mais capazes que eu. Admitir a dificuldade de engravidar é admitir que eu sou “menor”. Sei que soa neurótico, mas não tenho controle sobre isso. Ao longo desse tempo descobri amigas próximas que também tinham feito tratamento, mas nunca me contaram. Falam só em conversas íntimas. Talvez seja uma neura minha. Todo mundo fala que, para ter filhos, basta relaxar e transar. Então, se a regra é essa, quem não consegue tem um problema. É um extraterrestre. Parece que vão te olhar com cara de piedade: “coitada, ela não consegue engravidar”. Foi muito importante pra mim, quando eu estava me sentindo muito mal e insegura, ter encontrado minha dermatologista. Na primeira consulta, eu falei que estava tentando engravidar, pra ela saber que remédios podia me dar. Ela então falou, com cara de felicidade e como se fosse a coisa mais normal do mundo, que tinha feito tratamento. Me desconcertou. Era uma mulher linda, de 32 anos, alegre, poderosa, bem vestida, bem sucedida, num consultório chiquérrimo, falando com a convicção daqueles depoimentos de propaganda na TV.
Eu: Foi nesse momento que você teve coragem de tentar outro tratamento?
Ela: Sim, ela tratava de um jeito natural. Era como eu queria ser e me sentir. Ao longo das consultas, ela intercalava as intervenções com papos de muita leveza sobre a dificuldade dela, a tristeza, as crises de choro a cada mês, durante o que ela batizou de “enterro do modess”, quando a menstruação vinha. Falou das tentativas frustradas e de como ela não quis esperar, apesar de ser nova. Pensou que estava no melhor momento da carreira, da vida pessoal, e que não ia seguir os conselhos dos antigos de esperar que a gravidez viesse na hora que tivesse de vir. Ela me pareceu livre, sabe? Livre para achar que aquela era a hora e dane-se se não fosse a forma ideal. Dane-se o tempo da natureza. Não quero mais sofrer. Ela fez fertilização in vitro e engravidou de gêmeos na primeira. Um casal lindo que eu via nas fotos do consultório. Foi ela quem me indicou a especialista que fez meu tratamento. Primeiro, eu guardei o nome e o telefone da médica e não usei. Dois meses depois, quando a inseminação feita pela minha médica de sempre deu errado, marquei uma consulta. Mas cancelei. Mais dois meses e voltei à dermato. Ela, muito delicadamente, perguntou se eu não tinha ido à especialista. Aquilo me pegou. Foi um incentivo. Marquei nova consulta, mas, dessa vez, fui. A médica era sóbria e delicada, bonita, na dela. Eu tinha horror das clínicas de fertilização dos medalhões, com médicos soberbos falando de bebês como quem fala de reprodução de vacas, de manadas inteiras produzidas no laboratório, que se envaidecem dos muitos bebês que já fizeram na “fábrica” particular deles, de como tudo é muito fácil. Então fui nessa médica que nem eu tinha ouvido falar. Só peguei referências na internet. Deu tudo certo na primeira vez. Sou muito grata à dermatologista linda e assumida que me indicou essa clínica. Grata pelo alto astral e, principalmente, pela naturalidade com o tema que eu não consigo ter, mas que me conforta.
Eu: Como foi isso tudo para o seu marido?
Ela: Para ele, era uma incômoda novidade. Ele teve filhos muito facilmente com a primeira mulher, até quando não quis. Por isso tinha dificuldade de entender que podia demorar, que uma coisa era minha aparência jovem, outra a idade dos meus ovários. Parece que homens falam pouco sobre isso entre si, confundem fertilidade com potência, não têm paciência para assuntos biológicos. Então ele não tinha muito recurso pra lidar com isso. Dei a ele mil “palestras” de reprodução, falava da comprovada baixa competência da espécie humana para a procriação – estamos mais para os pandas do que para coelhos e insetos, na escala de eficiência reprodutiva… Mas ele só absorveu isso com o tempo e com as conversas com os médicos. O excesso de confiança e otimismo dele me incomodavam, mas eu não achava justo desanimá-lo. Alguém tinha de acreditar que daria certo e puxar a gente pra cima. Ele topava tudo, era participativo, ia onde precisasse ir, fazia piada dos detalhes insólitos do tratamento – como as diferentes comodidades de cada “sala de punheta” das diferentes clínicas, a necessidade de colocar um tubo de ensaio com esperma preso no sutiã para “que não esfriasse” (!!!) no caminho entre o laboratório e o médico que faria a inseminação… É todo um universo diferente, maluco. Felizmente, com atendentes e médicos bem-humorados para quebrar o gelo.
Eu: Você fez muitos testes de farmácia? Aquela sensação de querer muito estar grávida, mas no fundo saber que não está? De ficar com medo de ver?
Ela: Aconteceu muito isso e foi horrível. Eu fazia exercícios comigo mesma para não acreditar que eram sintomas de gravidez, para não sofrer. Me dizia: “Você não está grávida. Esta cólica parece de menstruação, este inchaço pode ser qualquer outra coisa”. Claro que não funciona tão bem. Fazer um teste de farmácia que dá errado é uma das coisas mais deprimentes e humilhantes que existem nessa fase.
Eu: Para mim, que acompanhava um pouco de longe, me parecia mesmo uma espécie de obsessão. É assim que você vê?
Ela: Não. Não chegou a parar minha vida no cotidiano. Mas ficava algo suspenso de fundo, uma vida expectante, sei lá. O dia a dia corre normal. Mas parece que o cenário está parado, esperando a grande cena. Meio confuso isso, mas é como eu sentia.
Eu: Você gastou muito dinheiro?
Ela: Sempre me preocupei em guardar grana pra isso, caso precisasse. Hoje, felizmente, há opções acessíveis de tratamento, até para quem não tem dinheiro. Quase fui fazer numa universidade que só cobra os remédios, para apoiar a iniciativa. Mas não tive paciência com os horários e restrições. Hoje há muitas clínicas boas e alternativas para quem não pode pagar. O difícil é a pessoa ter acesso à informação, não ao tratamento. Eu gastei uns 13 mil reais, fora as consultas. Esta área é muito profissionalizada. Se você acha uma clínica séria, como eu achei, eles otimizam seus gastos, ajudam você a planejar, a montar esquemas para gastar menos. É surpreendente como são organizados. Você é assessorado por uma enfermeira que ensina exatamente como aplicar os remédios, que fica disponível 24 horas. Tudo é superexplicado. Eles te dão a opção de comprar os remédios com eles ou indicam revendedores, porque tudo é importado. O tratamento mesmo custou 8 mil reais. O resto foi gasto em remédios e no congelamento dos embriões restantes, porque eu produzi muitos.
Eu: É uma enorme dose de hormônios e medicamentos, imagino… Não é meio assustador?
Ela: Você tem de tomar antibiótico antes de começar e pílula anticoncepcional por um mês. Quando você menstrua, injeção diária de hormônios nos horários exatos, que você aplica em casa. A partir do dia “x”, já é outra injeção. Você bota um adesivo de hormônios no quadril, também. Daí, no dia “y”, você toma uma terceira injeção. Nesse momento, vai lá aspirar os óvulos, sedada. Neste dia eu passei bem mal. Em seguida, você volta depois de três dias para injetar os embriões selecionados – durante três dias eles botam numa cultura para ver quantos e quais vingam, para escolher os melhores. Esta parte do processo foi boa porque eu estava bem orientada. Na inseminação e no tal coito, acho que faltou melhor acompanhamento. Na clínica boa que eu fui eles medem seu fluxo sanguíneo e calculam exatamente quanto de hormônio você vai precisar. Com isso, você sofre menos fisicamente. Eu não senti grandes coisas, só inchaço e cólica durante algumas semanas. Foi bem mais tranquilo do que eu pensava que fosse. Como me estimularam direito, eu produzi muitos óvulos bons. (E isso para mim é uma vitorinha, um alívio sentir que finalmente produzi muito e bem.) Como o sêmen do meu marido era excepcional, como tudo corria muito bem, esta fase foi mais animada. E deu certo. Da melhor maneira, que é um embrião só. Pensei que seria mais fácil não tocar no assunto do tratamento se fosse um só e não gêmeos, como é comum. Olha, quando me senti segura e bem orientada, numa clínica boa, fiquei mais tranquila, acolhida. Eles sorriem e te tratam bem. Foi bem mais fácil, leve e cômodo do que eu pensava. Depois, durante dois meses você tem de tomar progesterona e colocar o tal adesivo de estradiol para ajudar a prevenir abortos.
Eu: Fico observando as palavras que você usa e me vem um estranhamento. Esta história de “o esperma do meu marido era excepcional”, o embrião “ser dos bons”, não é esquisito tratar dessa maneira tão técnica? O que é um esperma “excepcional”? Não é por isso que, por conclusão lógica, você seria uma mãe “defeituosa”, como você diz? E não é meio maluco olhar por esse ângulo? Este não é um jeito de olhar tão mecânico e técnico, mas que, como vemos pelo seu relato, causa um sofrimento, digamos, tão carnal e intenso?
Ela: Eu uso estes termos porque são os que eu ouvi. Ou concluí depois de analisar resultados, comparando com as médias. Há parâmetros para ver a qualidade e é inevitável você xeretar essas coisas. Assim como é inevitável você ficar intrigado ou animado quando recebe seus exames. É como quem olha seu colesterol ou hemograma e fica feliz ou desanimado. Há espermogramas horríveis, existem óvulos ruins. E você vai descobrindo isso naturalmente ao longo do tratamento. Eu não vejo problema em encarar assim. Apesar do envolvimento emocional, sempre me detive nesses aspectos objetivos para pisar na realidade, saber exatamente o que tenho pela frente. Quando um familiar teve câncer, eu sabia tudo “tecnicamente”. Para quem perguntava especificamente, eu respondia assim também: o nome do tumor, o tamanho do risco, o número das vértebras atingidas etc. Para alguns parecia frio quando eu falava em prazos, perspectivas. E aquele era um caso bem pessimista. Minha família às vezes se chocava, mas era a minha maneira de lidar com a realidade, me preparar, saber que atitudes tomar, o que esperar, onde insistir, onde recuar. Eu falo assim das coisas de saúde, sempre. No meu caso, é a minha maneira de lidar com a realidade. Você tem de tomar decisões, avaliar se está tomando o caminho certo, então não adianta apenas ficar triste e emocional. É preciso saber exatamente quais são as suas chances, qual é o seu problema ou do seu parceiro. Se eu tivesse um prognóstico ruim, por exemplo, óvulos ruins, eu teria corrido para esse tratamento muito antes. Se o espermograma do meu marido tivesse acusado problemas, também teria corrido atrás antes, sem tentar outras coisas inócuas. Sinceramente, não faço tempestade com isso, não. Eu pergunto TUDO para saber onde estou pisando. Falar objetivamente não quer dizer que não há ansiedade ou tensão ou sentimento, mas que eu estou tentando me conscientizar dos meus limites e possibilidades, só isso. Eu falo das coisas boas, mas também falo das ruins. Para você pode soar como uma neura ir atrás das estatísticas – e talvez seja mesmo. Mas, para mim, é uma maneira de me situar para o próximo passo. É um pragmatismo necessário, para eu me organizar. Tipo… ponto ruim: sou velha; ponto ruim: não consigo engravidar facilmente; ponto bom: sou saudável; ponto bom: meu companheiro é saudável e fértil. Eu funciono assim com saúde e com grana. Você arranca os cabelos, mas depois senta e fala: “Bem, o que temos aqui? O que dá para fazer? O que é real e o que não vai acontecer mesmo?”. Pode parecer tecnicismo para quem está de fora. Para quem está dentro, é a medida da sua esperança.
Eu: Avaliando hoje, você acha que não conseguia engravidar porque tinha algum problema ou porque a tensão era tanta que se tornava impossível? Ou uma mistura dos dois?
Ela: Sinceramente, acho que não conseguia engravidar pela tensão e ansiedade de ter um filho logo. Se eu tivesse esperado o tal “tempo da natureza”, teria conseguido. Não me culpo por não ter esperado. É curioso que a especialista que me atendeu passou pela mesma coisa: engravidou com tratamento aos 36 anos. Menos de um ano depois, estava grávida naturalmente. Esperar dá medo. Prefiro me precipitar, mas agir.
Eu: Como foi saber que havia conseguido, que está grávida?
Ela: Foi estranho. Acho que eu estava tão prevenida e calejada, por esta frustração e outras tantas que se acumularam, por outras razões, que não fiquei feliz na hora. Não fiquei nada. Sentamos diante do computador, eu e o meu marido, e conferimos o resultado do exame de sangue. Olhamos várias vezes, para ter certeza. Meu marido ficou bem feliz. Eu fiquei estranha, quieta, desconfiada por vários dias, semanas. Sem acreditar que dava para ser feliz. Tinha medo de abortar, de ser um engano. Fiz o beta hcg (exame de sangue) duas vezes, para ter certeza. Só depois do terceiro ultrassom – quando “dois terços do risco do primeiro semestre” haviam passado, e não havia “sinais de descolamento”, e o batimento cardíaco do bebê era ótimo, e seu tamanho “de três dias além da idade gestacional, o que é um excelente sinal”… – consegui ficar feliz. Chorei no ultrassom. A médica disse: “este é dos bons”. Aí comecei a relaxar.
Eu: Como é estar grávida?
Ela: Começa a ser gostoso. Hoje me achei linda no espelho. Comecei a achar a barriga disforme, bonita. Mas a ficha ainda não caiu inteiramente. Ainda não “publiquei” para todo mundo. Estou sendo xiita e aguardando a 12ª semana, por precaução e pele calejada.
Eu: Você está com medo?
Ela: Sempre. Agora é medo do ultrassom morfológico. De meu filho ter síndrome de down, o maior de todos os medos. Também tenho medo de ele ser feio ou burro. Bem, no momento, acho que ele até pode ser horrível e fraco de ideias. Só penso em doenças que não quero que tenha. O conhecimento em excesso traz mais angústias.
Eu: O que você diria hoje para mulheres que querem engravidar e não conseguem?
Ela: Diria para procurarem uma boa clínica, discreta, não de medalhões. Estas pessoas estão acostumadas a lidar com isso e assim você se sente mais “normal”. Existem coisas muito simples que impedem as pessoas de engravidar, mas, em geral, só quando você busca um especialista é que descobre. Não foi meu caso, mas o de outras amigas. O meu era inexplicável. Ansiedade pura, talvez. O que eu NÃO diria é: “tenha paciência, sua hora vai chegar”, “confia na natureza ou em Deus”, “o que tem de ser, será”, “você precisa desencanar que vem”. É muito chato escutar isso quando a única coisa que você aceita esperar é um bebê.
(Publicado na Revista Época em 15/02/2010)