Nos longos dias depois do acidente, a escuridão a assustava. Era como estar aprisionada no interior de uma caverna de carne, com estalactites que ela não adivinhava. A última imagem gravada em sua mente havia sido o clarão do carro que a apunhalou. Depois a dor e mais nada. Ao acordar, já era breu. Teve tanto medo que não conseguiu gritar, o pavor como um polvo em sua garganta, apertando suas cordas vocais. O buraco negro dentro dela. E ela, onde estava? De onde vinha aquele estar no mundo que era ela?
Quando vão tirar as bandagens, ela perguntava? É cedo, lhe diziam. E o nervoso na voz da mãe a fazia estremecer. Tinha os braços presos a algo cravado ao lado da cama do hospital, os ossos quebrados. Ela não podia se mexer. Era só um algo desperto em um corpo castigado demais para existir.
Apurava os ouvidos, o único sentido que parecia vivo nela, além daquela voz rascante que agora era dela. O grito que não pôde libertar ao ver o clarão e adivinhar a morte havia se cristalizado ali, como um gelo permanente em suas cordas vocais, as palavras que ainda diria para sempre estilhaçadas.
Conhecia os passos de cada enfermeira, a entonação impessoalmente íntima do médico. Sabia quando a mãe forçava otimismo com o espírito esmagado. Então um dia ela estava lá, auscultando seu negrume, quando a família entrou batendo palmas. Sentiu o cheiro do bolo de chocolate com mel, seu preferido. Será que havia passado tanto tempo ali que seu aniversário havia chegado?
Hoje vão libertar seus braços, querida. Ela ficou genuinamente animada com a possibilidade de se tocar. E as bandagens, perguntou? Quando vão tirar as bandagens dos meus olhos? Silêncio. E a voz apressada da mãe. Você continua a mesma, sem paciência, querendo tudo de uma vez, a mãe disse, quase ríspida.
Os braços eram seus novamente. Timidamente ela testou-os, flexionou as mãos que formigavam. Lentamente foi levantando-os rumo ao rosto. Queria saber quem era ela agora. A algazarra tensa se desfez em silêncio de pedra, a perna inquieta do irmão mais novo como o farfalhar das asas de uma borboleta encurralada.
Ela foi se tocando devagar, a boca ainda era dela. O nariz parecia inchado e latejava, mas foi reconfortante apalpá-lo. Delicadamente, ela levou as mãos às bandagens sobre os olhos. Primeiro com medo, depois afobadamente. Onde elas estavam? Mãe, cadê as bandagens?
Não havia nada lá. Também não existiam olhos. O clarão havia roubado toda a luz da vida dela. Gritou. Gritou aquele grito que tinha virado gelo na garganta dela. Gritou um iceberg em um milhão de pedaços. Gritou até sentir a lava queimando suas cordas vocais, descendo pelo esôfago, fazendo bolhas no caminho.
Agora ela era só audição. O mundo todo lhe chegava pelo som. O médico impessoalmente íntimo lhe deu alta. Ela não entendeu. Como assim? Você não pode me mandar embora no escuro. Uma enfermeira, a dos passinhos rápidos ao redor dela, fungou num canto. Você vai se acostumar, há muito que você pode fazer, o médico disse. Ela usou a voz nova para amaldiçoar as mil gerações da família dele que ainda estavam por vir.
E de novo ela estava no mundo. Mas onde estava ela?
A mãe a levou para a casa de praia. Toda manhã a colocava no sol da manhã. Ela podia sentir a luz em sua noite eterna. Alternando sombra e luz começou a ouvir tudo ao redor dela. O cachorro histérico do vizinho, preso atrás da cerca. O bebê que chorava inutilmente. O som das panelas da mãe, sempre preparando algo para que ela, outrora tão comilona, devorasse lambuzando os dedos.
O garoto que havia aberto o cano de descarga da moto para que parecesse mais potente. O velho dizendo que para não morrer bastava se concentrar. O filho do velho, que havia comprado um carro do ano e contava ao vizinho da frente quanto havia gastado com os acessórios. A moça grávida que se assustava com os fogos das festas e temia perder o bebê. O moço que vinha do nordeste vendendo redes tão longe de casa. A coluna vergada pelo peso de tantos quilômetros e tantos quilos e tantas dores emprestando uma nota triste à oferta.
A mulher que vendia sonhos no portão há tantos anos com sua voz sem esperança. Como alguém que vende sonhos pode ser tão triste? Ela achava que se comesse aqueles sonhos morreria engasgada de melancolia.
Mesmo assim, comprava, na tentativa de alegrar a mulher, e os guardava no armário onde os sonhos se transformavam em culpas.
E eram tantas as músicas diferentes ao redor dela, que lhe chegavam de todos os quintais ao seu redor. E o cortador de grama. As pessoas gostavam de cortar grama. Este era um mistério jamais decifrado por ela. Essa obsessão por cortar grama o tempo todo, mesmo quando todo o gramado já havia sido ceifado. Então o vizinho da direita cortava a grama dos canteiros, dos terrenos baldios, procurava a grama que crescia clandestina na areia da praia. O que será que ele cortava, ela ficava pensando.
No início ela acreditou que poderia refazer seu mundo com essa algaravia da vida humana. Afinal, os sons sempre estiveram ali, e ela conhecia todas as imagens que os acompanhavam. Quando ainda podia enxergar, muitas vezes fechava os olhos porque preferia que elas não existissem. Fazia esse exercício, de juntar som à imagem. Como estaria o rosto da vizinha depois de um ano do último veraneio? Se divertia a envelhecendo um pouco mais, um pouco menos. Pedia que a mãe descrevesse o biquíni.
Numa manhã em que sentia a luz nos braços nus, começou a escutar o tédio. Quando cada instrumento da orquestra da vizinhança fazia seu solo, ela o escutou. Era o tédio a base de todas as melodias. E agora ela não escutava mais nada além desta base que ocupava todo o tempo-espaço da vida dela. E era como se estivessem todos mortos e aquele fosse apenas um programa de computador repetindo a mesma versão de uma vida sem vida.
Você vai aprimorar os outros sentidos, havia lhe dito o médico íntimo-impessoal. Era só uma meia verdade. Como ele poderia saber? Descobriu que a luz a havia confundido a vida inteira, sua existência de antes.Ver embaralhava tudo. Agora, que não enxergava, estava condenada à lucidez.
Quando tocou no poço de seus olhos ausentes pela primeira vez, ainda no hospital, assustara-se com a certeza de viver presa no buraco negro de si mesma. Não imaginou que estaria condenada ao buraco negro dos outros.
Pediu à mãe uma faca para tentar aprender a descascar uma maçã ela mesma. A mãe ficou feliz com essa demonstração-de-vontade-de-viver. Quando foi tirá-la do sol do fim da tarde, a descobriu sangrando pelos ouvidos. E comendo a maçã ensanguentada com o primeiro sorriso depois do acidente.
Ela finalmente refazia seu mundo. Sua própria escuridão era toda a verdade que podia suportar.