Rebeliões, intimidades e desfechos imperfeitos

Aquilo que permanece em nós é o que tece nossos dias– e nem sempre é grandioso aos olhos do mundo. Lembranças íntimas, revoltas necessárias

Escrevo do meu não Natal. Neste ano, consegui fazer um acordo com a minha família de que o sentido era o do encontro e o do afeto – e para isso não precisava acontecer na data estabelecida nem pela religião, nem pelo mercado. Marcamos nosso Natal para 6 de janeiro, quando as estradas já se esvaziaram, algumas liquidações de verão começaram em lojas vazias, as passagens aéreas estão mais baratas e o espírito natalino, em geral tenso e agressivo pelo cansaço e pelas obrigações, já foi tarde.

Me escondi num lugar em que pude passar os dias observando a natureza e sua mistura de beleza e violência. Passei a maior parte do tempo seguindo a uma distância regulamentar um casal de bem-te-vis alimentando os filhotes em um ninho sempre ameaçado por um gato amarelo, um quero-quero aflito escoltando seu filho aleijado de uma perna enquanto patrulhava a área com passadas marciais, um formigão que repete sempre o mesmo trajeto diante de mim, manhã após amanhã, aparentemente sem sentido, mas com muita convicção, a quem apelidamos de “Sem Noção”. E há um pardal, o “Folga”, que come qualquer coisa, inclusive os enfeites da sala.

Tenho certeza de que, até o fim desta semana, Folga vai tentar comer algumas letras do meu computador. Então, não se surpreendam se na próxima coluna eu apresentar aqui uma língua saqueada de vogais e consoantes, digeridas no estômago desse pardal petulante entre pedaços de pão e sementes de melancia. O Folga nada entende de antropofagia nem conhece Oswald de Andrade e, neste exato momento, me olha com um interesse guloso. Acho que pensa se vale a pena dar uma bicadinha nos meus olhos ou é melhor provar outra freguesia. (“Seja esperto, Folga, e mantenha essas penas no corpo!”, digo a ele, que se faz de canarinho.)

Não foi um ano fácil, o que passou. Acho que para o mundo – e também para o nosso mundo bem aqui. Acabo de terminar um pequeno livro, escrito pela historiadora e psicanalista francesa Elizabeth Roudinesco – “Lacan, a despeito de tudo e de todos” (Zahar). E duas frases se aplicam muito ao balanço inevitável que, mais do que o de um ano que passou, é de uma época que não passa. A primeira delas é: “Nossa época é dividida entre um desejo de fundamentalismo e uma busca ilimitada do gozo”. Voltarei a essa ideia numa próxima coluna. Ela vale não só para a vivência individual, mas também para a política.

A outra se encaixa em cada uma das muitas violências que testemunhamos no Brasil neste 2011 pródigo em barbáries: contra índios, extrativistas e quilombolas; contra homossexuais; contra moradores de rua; contra a Amazônia (onde hoje é travado o debate central sobre o país que seremos e, portanto, sobre o que e quem somos nós). Foi um ano assinalado pela violência contra todos os “outros” que nos ameaçam com sua diferença e por isso devem ser destruídos ou subjugados aos interesses mais imediatos e mesquinhos, antes que corramos o risco de conhecê-los e sermos transformados pela experiência sempre transtornadora do reconhecimento. A frase, que se refere “às relações características do individualismo do mundo democrático moderno”, é esta: “Destruir o outro no lugar de aceitar o conflito”.

Na política de Estado, é também isso que temos testemunhado. Os conflitos de ideias e de visões de mundo que nos levariam a um país mais rico, diverso e desejante, com mais de todos nós dentro de si, está sendo calado com o que há de mais abjeto no exercício do poder, com os instrumentos da Lei a serviço da injustiça, de uma suposta governabilidade e de velhos, velhíssimos interesses fisiológicos.

Temos sido atacados também, em todas as instâncias, com o cada vez mais nefasto discurso do bem, em que o Estado entra na nossa casa disposto a executar “o que é bom para nós” e, se não aceitamos, é porque ainda somos imaturos como filhos que não cresceram. Neste ano que vem, vou continuar fugindo dessa gente que diz, com o olhar fugidio dos fanáticos encastelados em cargos de confiança ou em lugares de poder: “É para o teu próprio bem…”.

Penso que cabe a nós manter o conflito vivo – o das ideias, sempre vale a pena deixar claro – e pegar à unha o desafio que assusta e fascina, que é o de construir um novo jeito de ser na política. E para isso contamos com os novos instrumentos de um mundo novidadeiro e mutante, como em raros momentos históricos, onde aquilo que ainda nos esmaga já começa a cheirar a podre – de novo. Ainda tateamos na invenção desse novo mundo, que só tem chance de ser melhor que este se conseguir acolher os conflitos e dialogar com eles – e não afogá-los em autoritarismo.

Em homenagem à nossa teimosia de seguir buscando a possibilidade em terra ensanguentada, reedito uma outra grande frase do ano que termina. Desta vez do escritor uruguaio Eduardo Galeano, diante das manifestações dos jovens na Espanha: “Este mundo de merda está grávido de outro!”. (Estes 11 minutos de lucidez e de esperança, que pode ser visto clicando aqui, é meu presente de Natal para vocês.)

Mas agora, depois de renovar a revolta necessária à manutenção da esperança, me volto para dentro de mim. E nos próximos parágrafos compartilho com vocês o que me faz sorrir, para além de todos os ganhos e perdas, porque me recuso a ser limitada por essa conta sem imaginação. Por mais que tentemos escapar dessas datas ritualísticas, elas nos fazem pensar no que vivemos, até porque boa parte de nós só tem tempo para si nesses feriados. Proponho aqui uma conta que não é a das metas grandiosas, mas a das descobertas pequenas, que, ao final, são o que nos mantém respirando no tecido asfixiante e por vezes sintético da vida cotidiana.

Por um simples impulso de compartilhar e de estimular uma reflexão que cada um possa fazer por seus próprios desejos e caminhos, me arrisco aqui ao prosaico e ao piegas, porque também sou feita dos dois, ainda bem. Como disse Galeano, nesse depoimento antológico: “Eu não quero ser uma cabeça que rola por aí. Sou uma pessoa. Sou cabeça, sexo, barriga, tudo. (…) Cuidado! Temos que raciocinar e sentir. E, quando a razão se divorcia do coração, comece a tremer, porque este personagem pode levar ao fim da existência humana no planeta. Não, eu não creio nisso. Creio nessa fusão contraditória, difícil mas necessária, entre o que se sente e o que se pensa. (…) A mim me interessa (a sabedoria) que combina o cérebro com as tripas. Essa que combina tudo o que somos”.

A seguir, minha lista de pequenas epifanias de 2011:

1) Ao longo do ano, passo semanas sem datas e motivos com os meus pais na cidade em que eu nasci, no interior gaúcho. Meu pai tem 81 anos, minha mãe, 76. Nesta segunda, fazem 58 anos de casamento. Gosto de acompanhar a rotina sistemática deles, como um balé cada vez mais lento, ainda que a mãe corra pela casa com seus pés e joelhos problemáticos, contrariando, como é do seu feitio, todos os vaticínios médicos. Jantamos às 19h e então vem a melhor parte. Vamos para o quarto deles assistir ao JN e à novela das nove, ritual sagradíssimo na hierarquia dos dias dos meus pais. Eles sentam cada um em sua poltrona. Eu deito na cama deles. Tenho ali a consciência grandiosa de como sou privilegiada por, aos 45 anos, fingir que ainda sou menina, com meus pais velando o meu sono. E durmo muito antes de a novela começar. Depois, volto para a minha cama cambaleando, e a mulher retorna em mim. Mas alargada pela menina que espia como quem acabou de fazer arte, inventando uma infância quando já está perto de ser avó.

2) Em 2011, os bebês desembarcaram na minha vida pelas barrigas de amigas com hormônios em fúria. E também pelo desejo de um irmão cientista que até então tinha jurado que jamais botaria no mundo um “bípede desplumado”. Olhei com desconfiança redobrada para aquelas caras de velhinhos, só para descobrir que a natureza faz destas criaturas uns bichos insidiosos. Minha afilhada, Catarina, é tão fofurenta que temo a força da gravidade e quero botar um sutiã nas bochechas da guria. Não sei mesmo onde vão parar aquelas bochechas de buldogue. Como ela vai conseguir caminhar com aquelas bolotas puxando perigosamente para baixo, finjo preocupar-me? Mas, quando estou triste, é neste sutiã de bochechas que penso e de imediato ganho um sorriso de Mona Lisa.

Meu sobrinho, Rodrigo, fez o favor inestimável de contrariar todas as expectativas do seu pai, que leu com rigor os livros científicos existentes sobre o funcionamento do cérebro dos bebês e do desenvolvimento motor e blábláblá. Meu irmão do meio, que sempre mediou a vida pelo conhecimento apreendido nos livros, foi tomado de assalto por um humano que não seguia nenhum manual, mesmo que o compêndio tivesse vindo de Harvard. Para começar, em vez de desplumado, Rodrigo tem a cabeça coberta por uma plumagem ruiva com mechas brancas que ninguém sabe de onde veio, embora a avó materna jure que era igualzinha. E ainda não se tornou um bípede. Mas tem se esforçado. Muito. Quando estou triste, materializo diante de mim sua figura imponente (é um bebê enorme!), em pé, agarrado às grades do berço, com sua empáfia de guerreiro viking, segundos antes de cair de bunda no colchão. Neste efêmero instante em que se equilibra sobre as duas pernas, ele me diz, com seu olhar de máximo orgulho: “Olha como eu sou lindo e fico em pé. E ainda por cima tenho DOIS dentes!”. A vida sempre vale a pena depois dessa memória.

3) Meu irmão mais velho me levava para Passo Fundo com a minha mãe para eu pegar o avião para São Paulo quando, de repente, tivemos a conversa mais verdadeira possivelmente de nossa vida inteira. Ele viveu tempos duros, o meu irmão. Tempos que eu só acompanhei de longe. Fiquei ali, escutando no banco de trás do carro as palavras que vinham de um desejo de encontro – e não, como é na maioria das vezes, em nossa relação com o outro, um preenchimento superficial de espaço que ninguém quer preencher, mas sente que precisa, ou uma disputa de poder e de lugar. Foi um momento grandioso. Porque é sempre raro e grande encontrar alguém. Neste instante, a máquina do mundo se abre diante de nós. E não importa mais ser poeira em um universo que não compreendemos. Estamos ali, em nós mesmos, ainda que por um átimo de tempo. Enlaçados em uma história de redemunhos, mas conscientes de que a vida humana é assim, um possível impossível.

4) Desde que os bebês apareceram, descobri que os homens também ovulam. Meu marido nunca quis filhos. Mas apaixonou-se de tal maneira pelos filhos dos outros não como um pai, mas como um tio e um dindo disposto a solapar qualquer esforço de botar limites que os pais possam vir a ter, que passou a gastar a maior parte de seu tempo livre criando armadilhas para filhotes humanos. Num destes dias de ovulação ensandecida, embrenhou-se na 25 de Março, a rua mais muvuquenta e barata do comércio do centro de São Paulo, praticamente uma instituição, e voltou de lá com uma piscininha de plástico. Instalou- a bem no meio da sala. Em vez de água, colocou edredons e almofadas para que os bebês pudessem dormir e brincar. Mas, como somos apenas eu e ele que moramos lá, quem acaba na piscininha seca somos nós. E volta e meia é de dentro dela, preciso confessar antes que o ano acabe, que escrevo esta coluna. Toda feliz porque tenho ao meu lado um homem tão corajoso que pode se dar ao luxo de virar menino.

5) Estava no aeroporto de Congonhas esperando pela minha filha que chegaria para me visitar. Minha filha tem 29 anos e somos ligadas por um amor tão profundo que nunca sei o que fazer primeiro quando ela aparece: se a encho de feijão, se a boto no colo fingindo que ela tem 5 anos ou se tomamos um vinho conversando sobre nossas últimas descobertas existenciais. Toda faceira porque sei que ao longo dos dias faremos tudo isso e mais um pouco. Estava lá quando avistei de repente uma mulher linda. Ela caminhava como se fosse dona do seu mundo, imersa nele não com prepotência, mas com leveza. Quem cruzasse o caminho daquela mulher podia esperar dela uma força que vem da delicadeza. Seus cabelos loiros e longos esvoaçavam como se batidos por uma brisa inexistente, e a saia ondulava ao redor de suas pernas a cada passo. Como é linda, eu pensei. Então a mulher focou uns olhos que eu descobri azuis bem nos meio do castanho dos meus, sorriu pra mim e caminhou na minha direção. Era a minha filha.

Termino em momento épico. Alertada por um quero-quero esganiçado, acabo de salvar um ovo de bem-te-vi da bocarra de um calango. Segundos depois de me sentir heroica, percebi que tinha sido injusta com o lagarto, roubado de sua ceia natalina pela minha interferência em curso indevido. A vida é assim, um campo minado de contradições e desfechos imperfeitos.

(Publicado na Revista Época em 26/12/2011)

Presente de Dilma azeda o Natal no Semiárido

Às vésperas das festas de fim de ano, o governo federal rompe a parceria com a organização que abalou os alicerces da indústria da seca ao implantar mais de 370 mil cisternas de alvenaria no sertão nordestino. E começa a distribuir cisternas de plástico

Parte do Brasil conhece o sertão nordestino pela literatura, com clássicos como “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, e “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto. Também conheceu o semiárido pela imprensa, nas constantes denúncias de corrupção e desvio de verbas públicas em obras que deveriam combater a seca, mas estagnavam nas mãos privadas de coronéis. Nos últimos anos, porém, a paisagem do sertão estava mudando, graças a um movimento iniciado em 2003. No primeiro ano do governo Lula, a ASA (Articulação no Semiárido Brasileiro), uma rede que reúne centenas de organizações não governamentais, procurou o presidente para propor uma parceria para a construção de cisternas de alvenaria no sertão nordestino. Seus interlocutores eram Frei Betto e Oded Grajew, então no governo. Assinalado pela sua origem de retirante, de menino pobre do semiárido que migrou com a mãe e os irmãos de Caetés, em Pernambuco, para São Paulo, Lula acolheu a ideia. Ele conhecia bem a aridez geográfica e a imutabilidade dos desmandos políticos que faziam da sua terra um lugar brutal. O resultado deste esforço entre governo federal e sociedade civil organizada foram 371 mil cisternas de cimento, envolvendo 12 mil pedreiros e pedreiras das comunidades e beneficiando mais de 2 milhões de brasileiros em 1.076 municípios. Algo grande, muito grande, para quem acompanha a história do Nordeste brasileiro. Basta andar pelo semiárido para ver que, quando há vontade política, é possível fazer milagres de gente. A presença da água, com a implantação coletiva de uma simples cisterna, tem mudado não apenas a economia, mas a autoestima do povo que vê florescer a vida e também a possibilidade de reescrever sua história – desta vez como autor, e não mais como personagem.

Tudo ia muito bem até este mês de dezembro, quando a coordenação da ASA foi informada pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) que suspenderia o pagamento dos recursos para o “Programa Um Milhão de Cisternas”. O governo anunciou que pretendia mudar os arranjos para o Plano Brasil Sem Miséria e ampliaria os convênios com os estados – sinalizando o afastamento das organizações não governamentais do processo. A ASA foi aconselhada a negociar com os estados e municípios.

O que isso significa? Muito.

A ASA fará uma manifestação em Petrolina (PE) na manhã desta terça-feira, 20/12, para protestar contra a ameaça ao Programa Um Milhão de Cisternas e para denunciar que a sociedade civil organizada está sendo excluída do governo de Dilma Rousseff.

Milhares de sertanejos partirão de diferentes estados nordestinos para se reunir em Petrolina e alertar o país para uma possível volta às velhas práticas do passado, quando a indústria da seca era a única coisa que vicejava no semiárido brasileiro e qualquer arremedo de solução era usado como moeda eleitoral.

O rompimento da parceria com a ASA é anunciado no momento em que a opinião pública está predisposta a considerar qualquer ONG fraudulenta. Como foram denunciados muitos “malfeitos” nos convênios entre algumas organizações não governamentais e ministros demitidos, como Orlando Silva e Carlos Lupi, não há melhor hora para romper com a sociedade civil organizada. E fazer parecer que as ações são um esforço de moralização dos recursos públicos. Esquece-se – talvez por conveniência – que o surgimento das ONGs é resultado direto da redemocratização do país. E também que uma parcela significativa delas não apenas é honesta, como tem operado uma grande transformação nas relações e nos resultados em várias áreas cruciais.

A sociedade civil organizada tem – e para parte dos políticos é aí que mora o incômodo – impedido que as verbas públicas sejam interceptadas e manipuladas por grupos instalados em setores estratégicos. E assim, impedido governos, em todos os níveis, de agradar aliados com a possibilidade de administrar uma parcela polpuda das verbas públicas. É claro que há ONGs corruptas, que se aliaram a políticos corruptos, para lucrar com o dinheiro do povo. Mas demonizar todas elas é uma esperteza de quem está doido para voltar ao modelo antigo – e é também má fé e desrespeito com o avanço conquistado pela sociedade brasileira nas últimas décadas.

Em novembro, o ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria-Geral da Presidência da República, afirmou que o governo separaria “o joio do trigo”. Disse mais: “As organizações sérias não têm nada a temer”. Pesquisei, então, em que lugar se situa a ASA na paisagem da sociedade civil organizada. Descobri que, na opinião do governo federal, a ASA é “trigo” da melhor qualidade.

Pela seriedade e competência da sua atuação, a rede já recebeu uma dezena de prêmios. Entre eles, o Prêmio de Direitos Humanos do governo federal, na categoria “Enfrentamento da Pobreza”, entregue pelo próprio Lula no final de 2010. E também um prêmio da ONU, que a considerou “uma referência de gestão e inclusão social no campo do acesso à água e do direito à segurança alimentar e nutricional das famílias carentes do semiárido”. Em entrevista à TV Brasil, em novembro, Luiz Navarro, secretário-executivo da Controladoria Geral da União (CGU), disse que algumas organizações não governamentais apresentavam mais condições de realizar determinadas ações do que o Estado. Entre os exemplos, afirmou que haviam acabado de avaliar o Programa Um milhão de cisternas, da ASA: “Nossa avaliação é extremamente positiva. Não sei se o Estado teria o mesmo dinamismo para fazer o que essas ONGs têm feito”.

Sendo esta a opinião do próprio governo federal e de seus órgãos de fiscalização, por que o governo decidiu suspender a parceria com a ASA?

“O governo rompeu a parceria com a ASA. Mas os ladrões não estão no nosso meio”, afirma Naidison Baptista, coordenador da rede. “Nós não somos construtores de cisternas apenas, nós somos uma rede de organizações da sociedade civil que influencia na política para o semiárido como parte do processo democrático. Temos orgulho de ter pautado o governo federal para a construção de cisternas e de políticas de convivência. Se você voar hoje sobre o semiárido, vai ver os pontinhos brancos. São as cisternas. As pessoas não entram mais na fila da água em troca de voto. Cortamos a raiz do coronelismo do Nordeste. Então perguntamos: por quê?”.

A ASA atua usando o conhecimento da comunidade e estimulando que as pessoas se apropriem coletivamente do processo de construção de cada cisterna. É a comunidade que decide em conjunto quem vai receber a cisterna primeiro, a partir de critérios como pobreza, número de crianças e de idosos, se a mulher é a chefe de família etc. Cada família participa da construção da cisterna, que dura cerca de cinco ou seis dias, e fornece a água para a vizinha enquanto não chegar a vez dela. Para a construção é usada a mão de obra da cidade ou povoado e o material das lojas dos pequenos comerciantes, movimentando a economia local. É também a agricultura produzida em cada região que fornece a alimentação. Para a ASA, a implantação de uma cisterna é mais do que uma obra: é a construção de um espaço social de onde tem emergido novas lideranças e uma juventude ativa. Mudança socioeconômica e política importante em uma região historicamente dominada por oligarquias em que sempre coube aos sertanejos ou se submeter a algum “painho” – ainda que com pinta de moderno – ou migrar para o centro-sul. “A água estava concentrada na mão de poucos”, resume Baptista. “Com as cisternas, a água foi repartida.”

Na tecnologia social da ASA, a implantação das cisternas não é vista como favor do governo, mas como direito. Não é assistencialismo, mas política pública. As pessoas são estimuladas a exercer a cidadania e a tomar suas próprias decisões, coletivamente – tornando o voto de cabresto cada vez mais difícil. Bem diferente, portanto, de um modelo assistencialista/populista que forma gerações de eleitores agradecidos a um pai ou mãe magnânimos. Seria isso que estaria incomodando o governo federal e seu amplo e heterogêneo espectro de aliados às vésperas das eleições municipais de 2012? Espero – sinceramente – que não.

No mesmo período em que a ASA foi informada de que não receberia os recursos para os próximos meses, o Ministério da Integração Nacional anunciou e comemorou a instalação da primeira de 300 mil cisternas de polietileno, em meio a campanhas de protesto das comunidades do semiárido que rejeitam o equipamento de plástico. O governo alega que as cisternas de polietileno podem ser produzidas em grande escala e assim atingir um número maior de famílias com mais rapidez. Segundo o governo, não se trata de substituição de uma tecnologia por outra, mas de complementação.

A ASA apresenta argumentos convincentes para condenar as cisternas de plástico. “Elas custam mais do que o dobro do valor das cisternas de alvenaria. Enquanto a nossa custa R$ 2.080, a de plástico custa R$ 5.000. Ou seja: se fosse só o dobro, com o mesmo valor as empresas fazem 300 de plástico – e nós construiríamos 600”, diz Baptista. Pelos cálculos da ASA, para cada 10 mil cisternas de alvenaria instaladas, há uma injeção de R$ 20 milhões na economia local. Com as de plástico, a maior parte dos recursos públicos ficará nas mãos dos empresários. Na mesma lógica, a população se tornará para sempre dependente das empresas para a manutenção e a reposição, já que não dominará a técnica. Quando existe qualquer problema com as cisternas de alvenaria, o pedreiro da comunidade resolve de forma simples.

“Em vez de construir, as pessoas vão receber as cisternas de presente. Das mãos de quem? É o que vamos ver. E a gente sabe que, como simples beneficiárias, do meio para o fim do processo as famílias não cuidam mais. Temos vários exemplos de cisternas que foram entregues prontas e que hoje não funcionam mais porque as comunidades não se envolveram em sua construção, não tem o sentido do pertencimento”, diz o coordenador da rede. “É a volta da indústria da seca, com grandes obras nas quais a população fica à margem, e o dinheiro na mão de grupos.”

É possível ter uma ideia de quem vai ganhar com a mudança. Mas, por quê?

Por que um trabalho que funcionava tão bem, a ponto de ser elogiado e premiado pelo governo federal, está sendo descartado pelo governo federal? Se funciona bem, por que mudar? Seria porque funciona bem demais? Espero, sinceramente, que não.
A seguir, reproduzo parte da nota divulgada pela ASA:

“Após oito anos de parceria com o Governo Lula, a decisão do governo federal, expressa pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), de não mais renovar os Termos de Parceria com a Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA), pode levar ao fim uma das ações mais consistentes de garantia de água para as famílias do meio rural semiárido: o Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC) e o Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2). Sem dúvida, o maior programa com apoio governamental de distribuição de água e de cidadania, em uma região onde antes só existia fome, miséria e a indústria da seca. (…) A argumentação é de que a partir de agora o governo federal vai priorizar a execução do Programa, que integra o Plano Brasil Sem Miséria, apenas via municípios e estados, excluindo a sociedade civil organizada. A sugestão dada pelo MDS é que a ASA negocie sua ação em cada um dos estados contemplados. Para além da parceria com estados e municípios, o governo também anuncia a compra de milhares de cisternas de plástico/PVC de empresas que começam a se instalar na região. Ou seja, o governo não apenas rompe com a ASA, mas amplia a estratégia de repasse de recursos públicos para as empresas privadas. Consideramos isso um retrocesso, o que pode gerar um retorno claro e nítido a velhas práticas da indústria da seca, onde as famílias são colocadas novamente como reféns de políticos e empresas, tirando-lhes o direito de construírem sua história”.

Reproduzo também a nota divulgada pela Assessoria de Comunicação do MDS diante das primeiras manifestações de surpresa e protesto contra a decisão governamental. O título da nota é: “O Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) reafirma que não existe ruptura na parceria estabelecida com a Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA) para a construção de cisternas”. Mas o texto não diz isso. Reproduzo-o na íntegra para que algum leitor possa encontrar o que eu não encontrei. O texto refere-se apenas – e de forma pouco clara – à “reavaliação e ampliação do arranjo institucional” e à “importância de todos os parceiros”. Com relação à ASA, limita-se a reconhecer e elogiar o trabalho já realizado:

“Uma das prioridades do Governo Federal é garantir que os brasileiros das áreas rurais tenham acesso à água para consumo e para a produção de alimentos. No Plano Brasil Sem Miséria, o programa Água Para Todos definiu a ambiciosa meta de atender 750 mil famílias rurais com água para beber no semiárido, até 2013, e de assegurar água para a produção agrícola de outros milhares de famílias. Atingir este objetivo exige a reavaliação e a ampliação do arranjo institucional vigente até então, incluindo a formação de novas parcerias estratégicas entre diversos ministérios, órgãos públicos, estados, municípios e organizações da sociedade civil. O MDS reafirma a importância de todos os parceiros no sucesso desta agenda, visando ao atendimento integral das famílias que hoje não têm acesso à água de qualidade para manutenção de sua condição de vida. O MDS está empenhado na preparação das condições de atuação para o próximo exercício, no menor prazo possível, dentro das novas regras que orientam a atuação de todas as unidades do Governo Federal no próximo exercício. Em relação à AP1MC/ASA, o MDS reconhece e valoriza os resultados alcançados na construção de mais de 300 mil cisternas, numa parceria exitosa ao longo dos últimos nove anos”.

Para terminar, reproduzo também o texto escrito por um integrante da Comissão Pastoral da Terra sobre o presente natalino de Dilma Rousseff aos nordestinos. A ironia do texto, como se verá, não é opcional. Quem fala agora é Roberto Malvezzi, o Gogó:

“O presente da presidente Dilma ao povo do semiárido neste Natal já está decidido: uma cisterna de plástico. A presidente é uma excelente gerente, pessoa íntegra e acima de qualquer suspeita. Quando criou o ‘Água para Todos’ nos encheu de alegria. Afinal, agora iríamos acelerar a construção das cisternas para beber e produzir. Mas a presidente preferiu doar centenas de milhares de cisternas de plástico para os nordestinos. Descartou o trabalho histórico da Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA) e vai trabalhar exclusivamente com os estados e municípios. Claro que essa decisão está acima de qualquer interesse eleitoreiro, ou dos coronéis do sertão, ou dos 10% das empresas fabricantes do reservatório. Dilma é uma mulher honrada. Claro que os empresários enviarão junto com as cisternas pedagogos, exímios conhecedores do semiárido, que farão a educação contextualizada realizada a duras penas por milhares de educadores da ASA. Esses pedagogos evidentemente conhecem o semiárido, o regime das chuvas, a pluviosidade de cada região, como se deve cuidar dos telhados, das calhas. Irão pelo sertão, pelas serras, pelos brejos, gastarão dias de suas vidas em meio às populações para realizar com um cuidado sacerdotal as tarefas que a questão exige. Claro que os políticos farão, antes de entregar as cisternas, uma crítica ao coronelismo nordestino, ao uso da água como moeda eleitoral, afinal, já superamos os períodos mais aberrantes da política nordestina. Quando a cisterna quebrar, os pedreiros capacitados saberão reparar os estragos, sem depender da empresa, e as cisternas de plástico não virarão um amontoado de lixo no sertão. As empresas também enviarão agrônomos para dialogar com as comunidades como se faz uma horta com a água de cisterna para produção, uma mandala, uma barragem subterrânea, uma irrigação simples por gotejamento. Claro, o interesse das empresas e dos políticos é continuar o trabalho pedagógico da ASA tão premiado no Brasil e em outros lugares do mundo. Não temos, portanto, nada a protestar. A presidente e a ministra (Tereza) Campello são exímias conhecedoras do Nordeste, mesmo tendo nascido no Sul e Sudeste. Conhecem cada palmo da região, dessa cultura, cada um de seus costumes. Claro que não nos enviarão mais sapatos furados, roupas rasgadas em tempos de seca, como acontecia antigamente. Até porque o trabalho da ASA eliminou as grandes migrações, a sede, a fome, as frentes de emergência e os saques. Mesmo não sendo nordestinas, nem jamais tendo vivido aqui, conhecem a região melhor que o povo que aqui nasceu ou aqui habita. Portanto, gratos por tanta generosidade. Vamos conversar com os milhões de beneficiados envolvidos na convivência com o semiárido. Eles vão entender as razões da presidente e da ministra e vão retribuir com a generosidade que lhes é peculiar. O povo do semiárido jamais esquecerá que, no Natal de 2011, ganhou como presente da presidente Dilma Roussef uma cisterna de plástico”.

De minha parte, chego ao fim deste ano perplexa. Cresci ouvindo que o Brasil era o país do futuro, mas não podia acreditar porque passei a infância e a adolescência numa ditadura que torturava gente como a então jovem Dilma Rousseff. Participei dos comícios das “Diretas Já” e cobri como jornalista as primeiras eleições da redemocratização. Muito mais tarde, testemunhei e escrevi sobre a eleição de Lula e o comício da vitória, em 2002. Nos últimos anos, já madura, ouço que o futuro chegou. E estava começando a acreditar, pelo menos em alguns aspectos. E não é que agora, às vésperas de 2012, anunciam com eufemismos que podemos estar voltando ao passado também no sertão nordestino? Não há de ser por saudades da literatura de Graciliano Ramos e de João Cabral de Melo Neto, porque esta é a única que com certeza não voltará.

(Publicado na Revista Época em 19/12/2011)

Uma defecou, outra filmou: a vida sem recalques

Uma reflexão sobre barbárie e civilização a partir de um vídeo da internet

A cena diante da câmera:

Desde a semana passada circula um vídeo na internet em que uma mulher, totalmente nua, defeca em uma agência bancária de Aracaju. Em seguida, ela se atira no chão, de costas, como se sentisse um grande prazer. Alguém, talvez um funcionário da agência, a cutuca. Ela reage com agressividade, levanta-se e empunha a calcinha suja de fezes como uma arma ao caminhar pelo hall. Depois, volta, limpa as fezes no chão com a roupa. E sai, nua e altiva. A porta da agência é rapidamente fechada. E lá fora ela parece proferir alguns xingamentos.

Isso é o que se vê no vídeo. Mas há algo menos explícito, que não pode ser visto, mas que vale a pena enxergarmos.

A cena por trás da câmera:

Desde o início da gravação, ouvimos uma risada feminina, talvez de quem filma a cena ou está ao lado de quem filma. Não parece ser aquele riso nervoso, que às vezes nos sucede diante de algo inusitado. Parece mais uma risada de alguém que se diverte com a cena. A risada vai aumentando. Ao final, quando a mulher já está fora do banco, a dona da risada faz um comentário: “Está com o demônio no corpo.”

Isso não se vê no vídeo. Apenas ouvimos.

Ao assistir às imagens, senti incômodo. Mas fiquei tão incomodada com a mulher nua e defecando quanto com a mulher filmando a cena. (E aqui vou tratá-la como mulher, por causa da voz, mas não faz a menor diferença se for um homem.) Ao investigar a razão do meu incômodo, percebi que estava diante de dois atos pré-civilizatórios: um óbvio e escancarado, o outro menos visível, mas não menos chocante.

O que é uma mulher nua defecando em uma agência bancária? Somos nós, quando ainda estávamos na natureza – e antes de nos tornarmos cultura. Naquele momento, ela era como um bebê que sente vontade de fazer cocô e faz. Vira-se no chão com visível prazer e alívio. E então é alcançada pelo homem – a Lei – que a cutuca dizendo que ela não pode fazer aquilo. Lembrando-a, portanto, do contrato social. A mulher reage ainda como natureza, ameaçando o homem com suas fezes. E, de repente, algo que também está nela retorna. Ao limpar as fezes no chão, ela volta a se inscrever na cultura.

Não é possível afirmar se a mulher está vivendo algum tipo de surto, mas me parece mais delírio do que protesto. Por que os atos dessa mulher chamam atenção é óbvio. A grosso modo, nos tornamos civilizados no momento em que sacrificamos a nossa natureza, recalcando nossos instintos mais primitivos, para garantir a vida em sociedade. Não podemos mais sair por aí fazendo o que bem entendemos, como defecar nus no meio de uma agência bancária quando sentimos vontade. É preciso procurar um banheiro, chavear a porta, usar papel higiênico, lavar bem as mãos depois e, quem sabe, até aplicar um spray para mascarar o mau cheiro. A repressão de nossos instintos, em todas as esferas do humano, tem um custo alto. Mas, em troca, ganhamos a segurança proporcionada pelo contrato social. A mulher que defeca na agência bancária quebra o contrato que garante a vida em sociedade (na nossa, pelo menos) e por isso se torna perturbadora.

O que me parece é que a mulher que a filma também quebra, mas isso não é interpretado desse modo nem por quem está presenciando a cena nem por quem assiste ao vídeo. Por que não podemos estuprar quem desejamos ou matar quem odiamos? Porque isso nos devolveria a um estado de natureza. Temos de reprimir nossos instintos e, assim, abrir mão de nossa liberdade. Nesse processo, é necessário enxergar o outro como uma pessoa, um semelhante, alguém com direitos, para que o pacto se torne possível. Por que, então, é aceitável que alguém filme a cena de um ser humano em total desamparo e a dissemine na internet? Por que esse ato não é visto como um rompimento do contrato social?

Quem filma a cena e muitos dos que a assistem, a julgar pelos comentários, não reconhecem mais na mulher nua que defeca em público uma semelhante – uma humana. Esse estranhamento os autorizaria a desnudá-la de uma forma muito mais profunda, para além das roupas, diante não apenas dos clientes da agência bancária, mas do mundo inteiro. Ou talvez a reconheçam tanto como uma igual, ao invejar sua liberdade selvagem, defecando no banco enquanto eles esperam na fila para pagar alguma das muitas contas sempre chatas, caras e burocráticas da vida em sociedade, que precisam imediatamente se afastar dela. E afastam-se filmando e expondo o que consideram sua diferença.

Ao filmar a cena e ao difundi-la na rede, embora exponha a mulher por completo, aquela que a filma não a enxerga de fato nem por um segundo. Porque para enxergar é preciso se identificar com o outro. Se em algum momento a mulher que filma tivesse conseguido se identificar com a mulher filmada, acredito que a teria protegido – e não a exposto mais.

Nesse sentido, embora seja a mulher filmada que esteja sem roupas, é a mulher que filma a mais nua entre as duas. É isso, no meu ponto de vista, o mais interessante desse vídeo e o que me faz trazê-lo para esta coluna: ele revela mais da mulher que filma do que da mulher filmada. Mas, em geral, não chama atenção o fato de alguém filmar uma pessoa em total e visível desamparo. Isso é visto como “normal” e aceitável. Minha hipótese, porém, é de que é um ato de barbárie, na medida em que deixa de reconhecer o outro como humano. Ao apontar e amplificar a barbárie que acredita estar na outra mulher, é ela que se torna bárbara.

Assim, ambas – a mulher filmada e a mulher que filma – se igualam ao eliminar o recalque e dar vazão aos seus instintos sem se identificarem uma com a outra. Uma não se reprimiu ao defecar em público, a outra não se reprimiu ao filmar a cena. A primeira exibiu as próprias fezes no ambiente de uma agência bancária, a segunda exibiu as fezes da outra para milhares de pessoas no ambiente da internet. Por que uma causa espanto e a outra não?

Pessoalmente, acho mais ameaçadora ao pacto civilizatório a mulher que filma do que a mulher que caga.

(Publicado na Revista Época em 12/12/2011)

Você consegue viver sem drogas legais?

Como Pedro descobriu que tinha se tornado uma “máquina humana” – ou um “bombado psíquico”. E como sua história fala do nosso tempo e de muitos de nós

Pedro – o nome é fictício porque ele não quer ser identificado – é um cara por volta dos 40 anos que adora o seu trabalho e é reconhecido pelo que faz. É casado com uma mulher que ama e admira, com quem tem afinidade e longas conversas. Juntando os fundos de garantia e algumas economias os dois compraram um apartamento anos atrás e o quitaram em menos de um ano. Este é o segundo casamento dele, e a convivência com os dois filhos do primeiro é constante e marcada pelo afeto. Ao contrário da regra nesses casos, a relação com a ex-mulher é amigável. Pedro tem vários bons amigos, o que é mais do que um homem pode desejar, acha ele, porque encontrar um ou dois bons amigos na vida já seria o bastante, e ele encontrou pelo menos uns dez com quem sabe que pode contar na hora do aperto. A vida para Pedro faz todo sentido porque ele criou um sentido para ela.

Ótimo. Ele poderia ser personagem de uma daquelas matérias sobre sucesso, felicidade e bem-estar. Mas há algo estranho acontecendo. Algo que pelo menos Pedro estranha. Há dois anos, Pedro toma Lexapro (um antidepressivo), Rivotril (um ansiolítico, tranquilizante) e Stilnox (um hipnótico, indutor de sono). Dou os nomes dos remédios porque os psicofármacos andam tão populares que se fala deles como de marcas de geleia ou tipos de pão. E o fato de nomes tão esquisitos estarem na boca de todos quer dizer alguma coisa sobre o nosso tempo.

Pedro conta que a primeira vez que tomou antidepressivo, anos atrás, foi ao perder uma pessoa da família. A dor da perda o paralisou. Ele não conseguia mais trabalhar. Queria ficar quieto, em casa, de preferência sem falar com ninguém. Nem com a sua mulher e com os filhos ele queria conversar. Pedro só queria ficar “para dentro”. E, quando saía de casa, sentia um medo irracional de que algo poderia acontecer com ele, como um acidente de carro ou um assalto ou ser atingido por uma bala perdida. Ele mesmo pediu indicação de um bom psiquiatra a uma amiga que trabalha na área. Pedro sentia que estava afundando, mas temia cair na mão de algum charlatão do tipo que receita psicofármacos como se fossem aspirinas e acredita que tudo que é do humano é uma mera disfunção química do cérebro.

O psiquiatra era sério e competente. Ele disse a Pedro não acreditar que ele fosse um depressivo ou que tivesse síndrome do pânico, apenas estava em um momento de luto. Precisava de tempo para sofrer, elaborar a perda e dar um lugar a ela. Receitou um antidepressivo a Pedro para ajudá-lo a sair da paralisia porque o paciente repetia que precisava trabalhar. A licença em caso de luto – dois (!!!!) dias, segundo a legislação trabalhista – já tinha sido estendida por um chefe compreensivo. Por Pedro ser muito bom no que faz recebera o privilégio de duas semanas de folga para se recuperar da perda de uma das pessoas mais importantes da vida dele. Pedro não queria “fracassar” nessa volta. E não “fracassou”. Com a ajuda do antidepressivo, depois de algumas semanas ele voltou a produzir com a mesma qualidade de antes. Três meses depois da morte de quem amava, ele já voltara a ser o profissional brilhante.

Pedro tomou o antidepressivo por cerca de um ano, com acompanhamento rigoroso e consultas mensais. Como não agradava nem a ele nem era o estilo do psiquiatra que escolheu, pediu para parar de tomar o remédio. O psiquiatra concordou, e Pedro foi diminuindo a dose da medicação até cessar por completo. Tocou a vida por mais ou menos um ano e meio.

Neste intercurso, ele se tornou ainda mais criativo. Aumentou o número de horas de trabalho, que já eram muitas, porque se sentia muito potente. Pedro multiplicou o seu sucesso, que sempre foi medido por ele não pela quantidade de dinheiro, mas de paixão. E achava que tudo estava maravilhoso até começar a ter insônia. Pedro dormia e acordava, sobressaltado. Sem conseguir voltar a dormir, pensamentos terríveis passavam pela sua cabeça. Pedro pensava que perderia todo o seu sucesso, a sua possibilidade de fazer as coisas que acreditava e às vezes temia morrer de repente. As noites de Pedro passaram a ser povoadas por catástrofes imaginárias, mas bem reais para ele. E, toda vez que saía de casa pela manhã, voltara a ter medo de ser atingido por alguma fatalidade, por algo que estaria sempre fora do seu controle.

Algumas semanas depois do início da insônia, Pedro paralisou de novo. Não conseguia trabalhar – e este, para Pedro, era o maior dos pesadelos reais. Voltou ao consultório psiquiátrico e há dois anos toma os três remédios citados. Pedro, que sempre tinha olhado com desconfiança para a prateleira de psicofármacos, começou a achar natural precisar deles para enfrentar os dias e também as noites. “Que mal tem tomar uma pílula para dormir?”, dizia para a mulher, quando ela o questionava. “Ou tomar umas gotas de tranquilizante para não travar o maxilar de tensão? Ou 15 mg de antidepressivo para vencer a vontade de se atirar no sofá e ficar apenas olhando para dentro?” Sua mulher conta que ele parecia o Capitão Nascimento, em “Tropa de Elite”, tomando comprimidos no banheiro e dizendo à esposa: “Isso aqui não tem problema nenhum. Todo mundo faz isso. Não tem problema nenhum”.

Em 2011, Pedro teve momentos em que achou que tudo estava muito bem mesmo. E, se para tudo ficar tão bem era preciso tomar algumas pílulas, não tinha mesmo problema nenhum. Pedro talvez nunca tenha produzido tanto como neste ano e, por conta disso, até ganhou um aumento de salário sem precisar pedir. Mas, às vezes, não com muita frequência, ele se surpreendia pensando que algumas dimensões da sua vida tinham se perdido. Pedro não tinha mais o mesmo desejo pela sua mulher, e o sexo passou a ser algo secundário na sua vida. Não tinha mais tanto desejo pela sua mulher nem desejo por mulher alguma. “Efeito colateral do antidepressivo”, conformou-se.

Pedro trabalhava tanto que tinha reduzido às idas ao cinema, os encontros com os amigos e a pilha de livros ao lado da cama continuava no mesmo lugar. Ele também tinha perdido o interesse por viagens de lazer com a família, porque estava ocupado demais com seus projetos profissionais. Pedro constatou que os momentos de subjetividade eram cada vez mais escassos na sua vida. E, embora o trabalho lhe desse muita satisfação, ele tinha eliminado uma coleção de pequenos prazeres do seu cotidiano. Por volta do mês de setembro, Pedro começou a sentir uma difusa saudade dele mesmo que já não conseguia ignorar.

“Devagar eu comecei a perceber que tinha criado uma vida que não podia sustentar sem medicação. E tinha aceitado isso. Como, acho, boa parte das pessoas que conheço e que tomam esse tipo de remédio”, conta. “Eu só consigo fazer tudo o que faço porque tenho essa espécie de anabolizante. Sou um bombado psíquico. Vivo muitas experiências todo dia e não tenho nenhum tempo para elaborar essas experiências, como não tive tempo para elaborar o meu luto. É uma vida vertiginosa, mas é uma vida não sentida. Às vezes tenho experiências maravilhosas, mas, na semana seguinte, ou na mesma semana, já não me lembro delas, porque outras experiências se sobrepuseram àquela. E sei que só durmo porque engulo pílulas, só acordo porque engulo pílulas. Só suporto esse ritmo porque engulo pílulas. Até pouco tempo atrás eu achava que tudo bem, então eu ficaria tomando pílulas pelo resto da vida. Em vez de mudar meu cotidiano para que ele se tornasse possível, eu passei a esticar meus limites porque sabia que podia contar com os medicamentos e, se voltasse a cair, me iludia que bastaria aumentar a dose. Eu me tornei uma equação: Pedro + medicamentos. Aos poucos, porém, comecei a perceber que não é essa vida que eu quero para mim. Tem algo errado quando a vida que você inventou para você só é possível porque você toma três comprimidos diferentes para poder vivê-la. E, talvez, daqui a pouco, eu esteja tomando Viagra para ter desejo pela mulher que amo. Isso aos 40 anos. E, com o tempo, os efeitos colaterais desses remédios vão causar, pelo prolongamento do uso, doenças em outras partes do meu corpo. Eu sei que muita gente, como eu, já se habituou a achar que é normal viver à custa de pílulas. Mas, se você parar para pensar, isso é uma loucura. Isso, sim, é doença. E os médicos estão nos mantendo doentes, mas produtivos, usando os remédios para ajustar a máquina a um ritmo que a máquina só vai aguentar por um certo tempo. De repente, percebi que eu era uma máquina humana. E que eu estava usando remédios legais como se fossem cocaína e outras drogas criminalizadas. E o mais maluco é que todo mundo acha que tenho uma vida invejável e que está tudo ótimo comigo. Por serem drogas legais, por causa da popularização de coisas como depressão e síndrome do pânico, todo mundo acha normal eu tomar pílula para ter coragem de sair da cama de manhã e pílula para conseguir dormir sem ter medo de morrer no meio da noite. De repente, me caiu a ficha, e eu comecei a enxergar que estamos todos loucos, a começar por mim. Loucos por achar que isso é normal.”

Com a autorização de Pedro, procurei o psiquiatra dele para uma conversa. É um profissional inteligente e sério. E foi de uma honestidade rara. Perguntei a ele porque receitava psicofármacos para gente como Pedro. “Porque vivemos num mundo em que as pessoas não têm tempo para elaborar o que é do humano. Muitas vezes eu me deparo com essa situação no consultório. Vejo uma pessoa ali me pedindo antidepressivo porque não consegue mais trabalhar, não consegue mais tocar a vida. Eu sei que ela não consegue mais trabalhar nem tocar a vida porque é a sua vida que se tornou impossível, porque precisa de um tempo que não tem para elaborar o vivido. É óbvio que não é possível, por exemplo, elaborar um luto ou uma separação em uma semana e seguir em frente como se nada tivesse acontecido. Assim como não é possível viver sem dúvidas, sem tristezas, sem frustrações. Tudo isso é matéria do humano, mas o ritmo da nossa vida eliminou os tempos de elaboração. Essa pessoa não é doente – é a vida dela que está doente por não existir espaço para vivenciar e elaborar o que é do humano. Só que esse cara precisa trabalhar no dia seguinte e produzir bem ou vai perder o emprego. Então eu dou o antidepressivo e faço um acompanhamento sério, com psicoterapia, para que esse cara possa dar um jeito na vida e parar de tomar remédios. É um dilema e não tem sido fácil lidar com ele, mas é neste mundo que eu exerço a profissão de psiquiatra. Porque no tratamento da depressão, de verdade, a doença, de fato, é muito difícil obter resultados, mesmo com os medicamentos atuais. Assim como outras doenças psíquicas, quando são doenças mesmo. Os resultados são muito mais lentos – e às vezes não há resultado nenhum. A maioria das pessoas que estamos medicando hoje não é doente. E por isso o resultado é rápido e parece altamente satisfatório. Estas pessoas só precisam dar conta de uma vida que um humano não pode dar conta.”

Pedro, que nunca foi adepto das famosas resoluções de Ano-Novo, desta vez se colocou uma que talvez seja a empreitada mais difícil que já enfrentou. “Estou reduzindo progressivamente a dose dos medicamentos e vou parar até março. Minha meta, em 2012, e talvez leve muitos réveillons para conseguir alcançar isso, é criar uma vida possível para mim. Uma vida e uma rotina que meu corpo e minha mente possam dar conta, uma vida em que seja possível aceitar os limites e lidar com eles, uma vida em que eu tenha tempo para sofrer e elaborar o sofrimento, e tempo para usufruir das alegrias e dos pequenos prazeres e da companhia dos que eu amo. Sei que vai ter um custo, sei que vou perder coisas e talvez tenha até de mudar de emprego, mas acho que vai valer a pena. Não quero mais uma mente bombada, nem ser uma máquina bem sucedida. Quero só uma vida humana.”

Torço por Pedro, torço por nós.

(Publicado na Revista Época em 05/12/2011)

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