O mundo invisível de cada um

Estirado no calçadão, o mendigo cobre o rosto, inventa paredes e conta uma história para si mesmo. Em casa, nós fazemos o mesmo

O homem está esticado no canteiro da Avenida Sumaré, em São Paulo. Seu corpo está exposto. Mas ele cobre a cabeça com um daqueles cobertores que nunca vi em outra cama que não as calçadas. Fala com alguém que não podemos enxergar. É uma discussão sobre macarrão. Apurando o ouvido, é possível perceber que ele pede macarrão a alguém, mas a pessoa recusa. Ele insiste, porque tem fome de macarrão. Gostaríamos de seguir escutando a conversa, mas sentimos que ficar ali seria como profanar as paredes invisíveis que ele construiu com seu cobertor de mendigo. E seguimos em respeito à privacidade do homem exposto ao mundo.

Na volta, ele continua ali. E agora ele geme. Demoramos a entender, até enxergar a braguilha aberta e perceber que ele se masturba. A descoberta não nos choca, nem nos ofende. Não é um homem exibindo sua ereção para os passantes. Mas um homem que só tem como casa e como paredes aquele cobertor de mendigo. Ele não nos remete a nenhuma tara. Ao contrário. Ele nos lembra as crianças bem pequenas, na fase em que acreditam que, ao tapar os olhos com as mãos, se tornam invisíveis. Ninguém mais pode enxergá-las porque não enxergam ninguém. “Siscondi”, elas dizem, com as mãozinhas sobre os olhos. Aquele homem ali, masturbando-se no canteiro da Sumaré com a cabeça coberta, “siscondeu”.

Seguimos porque, naquele momento, a melhor forma de vê-lo era fingir que não o víamos. Enxergá-lo era acreditar que ele se escondeu. Que o cobertor era ao mesmo tempo parede e teto. A melhor forma de respeitá-lo era fingir junto com ele que, lá fora, havia um dentro.

Seguimos comovidos, como sempre ficamos diante de um homem em uma luta feroz pela vida que escapa. Aquele homem com o rosto tapado, mas exposto a tudo, só tinha morte e inventava a vida. Estirado no asfalto, com apenas um cobertor para se proteger do tempo e da multidão, ele desejava. Desejava macarrão, desejava uma mulher. Era para ele estar quase morto, e em certa medida estava. Mas ele fingia viver. Fingia tanto que vivia.

Acho que os moradores de rua são o espelho que mais tememos. Por isso, na maior parte do tempo em que eles tentam chamar a nossa atenção, reclamando de sua fome, de seu frio, usamos nossos olhos como paredes para não enxergá-los. Na maior parte do tempo, somos nós que fingimos não vê-los por muitas razões. Uma delas é porque encarnam nossos medos mais fundos.

Suspeito de que os comerciantes que os escorraçam da porta de suas lojas o fazem não porque não reconhecem um humano ali – mas porque reconhecem. E temem o que veem mais do que podem confessar. Porque mesmo os mais duros entre nós pressentem a textura de cristal da vida, que se parte com tanta facilidade quanto profundos são os cortes que deixa para trás. E, à noite, quando estamos sós, é raro aquele que não teme perder as paredes e o teto que o protegem, mas nem tanto.

Diante de um morador de rua, tememos que um dia o mundo que criamos – e que nos custa tanto manter em pé sobre nossos ombros – possa ruir. E estaremos lá, indefesos na vitrine. Por isso, em geral, a parede que eles não desejam, mas que se mostra inabalável, é a dos nossos olhos. Fingimos que não os vemos não porque eles são diferentes – e sim porque são semelhantes demais. Mas, quando eles erguem seus frágeis muros para fazer o que todos nós fazemos entre os nossos de tijolos, apontamos. Quando apontamos, com nossos dedos e nossos gritos de decência ofendida, fingimos mais uma vez não enxergar o que enxergamos.

Ao seguirmos nossos caminhos cientes disso o suficiente para deixarmos as paredes invisíveis do morador de rua da Sumaré intocadas, pensei que era esse mesmo jogo de olhar e não olhar que rege a vida cotidiana de todos nós. Que constrói a cada dia a miséria de nossa pequeneza. A cada manhã custa muito para boa parte de nós levantar da cama. E nos levantamos ajeitando nossa máscara – ou os farrapos que restam dela – com a mesma esperança do morador de rua ao cobrir o rosto com o cobertor.

Saímos para a rua torcendo para que não nos descubram, mas a multidão está lá. No ponto de ônibus, no escritório, em toda parte. Morrendo de medo e farejando a fragilidade do outro para expô-la, na expectativa de que não descubram a sua. Apontando. Sempre apontando, enquanto em seus interiores o medo é uma sucuri que dá voltas.

É assim que nos reduzimos todo dia, na incerteza de nossa superioridade – e por isso mesmo afirmando-a o tempo todo. Em meio a tantos sorrisos de plástico, sabemos que nossos iguais esperam apenas que nosso pé falseie num degrau para se atirar sobre nós. E quando gritamos a nossa dor de existir, nossas chagas expostas como leprosos do mundo antigo, virarão as costas pela nossa inconveniência.

Diante da verdade do nosso desespero, terão paredes no lugar dos olhos e cimento enfiado nos ouvidos. Mas, se a raiz branca de nossos cabelos tingidos aparecerem, vão apontar. Se a barriga espichar a camisa, vão apontar. Se a caspa polvilhar nossa blusa, vão apontar. Se a unha estiver roída, vão apontar. Se o suor manchar a nossa roupa, vão apontar. Se gaguejarmos e nossas mãos tremerem, vão apontar. Há sempre gente demais pronta a desnudar nosso ridículo.

Espero que, diante do morador de rua da Sumaré, ninguém tenha chamado a polícia. E que ele tenha sido feliz em seu mundo invisível, onde as mulheres o desejam e um prato de macarrão o espera depois do amor. Olhar para dentro é também um olhar de súplica por humanidade. Um olhar que pede, que sonha, que fantasia, que se imagina mais bonito, mais forte, mais amado. Ali, exposto e indefeso em seu desamparo, o morador de rua conta histórias para si mesmo. Estirado na impossibilidade, ele se torna possível pela narrativa. Para além da tragédia, é grande e é belo o mendigo que inventa uma vida e estremece de gozo estirado no meio fio.

Protegida por paredes de tijolos, com as cortinas azuis da janela fechada, eu me encontro com o morador de rua em uma esquina de humanidade, para além de todas as diferenças impostas por um país desigual. Tenho certeza de que só me mantenho viva por causa do mundo invisível onde ninguém pode me alcançar para me ferir e posso fingir que a vida faz sentido mesmo quando não faz. Ali, quando os zumbis do mundo de fora me acossam com seus dedos sujos de sangue, invento a beleza e me reinvento como possibilidade. Alguns olham para dentro e enxergam apenas vísceras. Outros, horizonte.
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Em minha coluna de 14/11, intitulada “A dura vida dos ateus em um Brasil cada vez mais evangélico”, escrevi sobre o crescimento da intolerância religiosa na vida cotidiana brasileira, com a multiplicação das novas igrejas pentecostais nas últimas décadas. Indagado sobre o meu artigo em uma entrevista ao jornal The New York Times, o pastor Silas Malafaia me chamou de “tramp”. A palavra de língua inglesa significa “vagabunda”. A afirmação do pastor é autoexplicativa: ao atacar minha honra por discordar de minhas ideias, ele proporciona a maior prova do acerto e da relevância do meu artigo.

(Publicado na Revista Época em 28/11/2011 e atualizado em 30/11/2011)

Laura é doida por cinema

Lembrar para esquecer

O que fazer com a memória? Documentário acompanha a viagem de quatro filhos em busca da vida do pai, um sobrevivente do Holocausto, nos campos de concentração nazistas

– Alô, é do sanatório? Sim, David Fisher fugiu. Mas eu estou aqui com ele. Querem fazer o favor de buscá-lo? Ele está visitando campos de concentração. É sua ideia de férias.

A brincadeira é feita por um dos irmãos do cineasta israelense David Fisher. Neste momento, David e seus três irmãos estão numa van a caminho dos campos de concentração onde seu pai, Joseph, foi confinado pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial. É o início da viagem, e eles fazem muitas piadas sobre o fato de terem aceitado o convite do irmão maluco, abandonado suas próprias famílias e iniciado as férias mais estranhas da sua vida. Assim começa “Six million and one” (Seis milhões e um), filme exibido na mostra competitiva do IDFA, um dos festivais de documentários mais importantes do mundo, realizado em Amsterdã, na Holanda, de 16 a 27 deste mês.

O filme toca numa questão em aberto: como a segunda (ou terceira) geração de sobreviventes do Holocausto – ou de qualquer outra tragédia humanitária – lida com a memória. O que se faz com o horror? É possível esquecer? Ou é possível fingir que esquecemos? Ou ainda: como esquecer aquilo que só conhecemos como lembrança dos pais (ou avós)? Há uma diferença entre aquilo que esquecemos porque pode ser lembrado e aquilo que fingimos esquecer porque não podemos lembrar. E por isso ecoa dentro de nós dia após dia.

Os irmãos de David acreditavam que o melhor jeito de lidar com a memória era não lidar. Mas um dia David ligou para suas casas e convidou-os para uma viagem ao passado presente do pai. David tem a autoridade do irmão mais velho. E por esta ou por outras razões naquele momento inconfessáveis, eles aceitaram o convite. Irônicos, afetuosos, rabugentos, mas sempre íntimos, os quatro adultos com rugas no rosto e cabelos rajados de cinza iniciam a jornada rumo ao horror que também os constituía sem jamais ter sido pronunciado.

Enquanto vivera, o pai quase nada havia contado sobre sua vida nos campos de concentração. Apenas os lugares onde esteve e pouco mais. Mas, dois anos antes de morrer, ele escreveu suas memórias num caderno. É o legado do pai. E é este diário que agora queima nas mãos dos filhos. E que David foi o único a ler. “Por que eu preciso passar por isso?”, reclama a irmã, única mulher no grupo. “Eu não preciso visitar campos de concentração. Sempre carreguei isso dentro de mim. Isso sempre esteve lá, no nosso café da manhã.”

Por quê? É o que eles descobrem nessa saga familiar. Em um dos momentos mais belos do filme, todos estão sentados dentro do túnel construído pelos judeus para ser uma fábrica subterrânea de fuselagem para aviões nazistas. É um lugar claustrofóbico e insalubre, e nas paredes há marcas das unhas dos prisioneiros. Pouco antes, o responsável pelo lugar havia dito: “Não é possível que seu pai tenha sobrevivido dez meses cavando esse túnel. A sobrevivência média dos judeus que cavavam era de uma semana”.

O pai sobreviveu a isso e a bem mais do que isso. E ali, no túnel, já varridos por sentimentos contraditórios, os filhos fazem a catarse que pertence a todas as famílias – e que, afinal, é a prova de que sobreviveram. Falam de desamor, de ciúmes, de desamparo, de rivalidades, de raiva. Brigam, choram e riem. E então é preciso sair do túnel e seguir adiante.

Por que é importante lembrar? Essa é a pergunta que diz respeito não só a David e a seus irmãos, mas a todos nós. Por causa dessa indagação universal o filme tem lotado as salas de cinema de Amsterdã. Tudo o que é vergonhoso ou aterrorizante costuma ser relegado ao esquecimento. “É melhor não mexer nisso”. Ou “não vamos falar disso”. Ou ainda o clássico “com o tempo você esquece”. Ou o pior de todos: “não aconteceu”. A verdade, como anos atrás me ensinou uma judia que fugiu da Alemanha nazista e teve a mãe incinerada num campo de concentração, é que, “com o tempo, a gente não esquece”.

Não há como esquecer, é o que também afirmam os veteranos americanos com quem David conversa para saber como foi o dia da libertação. “Nós não sabíamos que havia um campo de concentração ali. Então, quando encontramos os judeus presos lá dentro, sem água nem comida, eles nos cercaram, nos agarraram. Eles tinham fome. E nós demos comida. E demos cigarro porque pediram. E pensávamos que fumariam o cigarro, mas eles comeram o cigarro”, conta o velho soldado. Nesse momento, o queixo do seu companheiro de tropa começa a tremer e logo todo o seu rosto treme. “Nós demos comida, e eles morreram duas horas depois porque o estômago deles não suportava tanta comida. Eu me sinto culpado porque dei comida, e eles morreram.”

É sobre a capacidade humana de produzir horror que o pai de David escreve. “Às vezes, um nazista entrava no dormitório e acordava um de nós. E escolhia outro, muito maior e mais forte para sentar sobre o peito do mais fraco até que ele morresse asfixiado. Eu fingia que estava dormindo enquanto isso acontecia”, é um dos trechos do diário. Ou: “Dentro do túnel, eles botavam gente puxando a carroça no lugar dos cavalos. Lembro de um pai e de um filho, poloneses. O nazista mandou que o filho chicoteasse o pai, mas o menino se recusou. O pai, temeroso pelo filho, ordenou: me chicoteie bem forte”.

Só há um jeito de esquecer o horror: lembrar. É por saber disso que David empurra os irmãos para uma travessia que lhes permita sair mais vivos do outro lado. Se não lidamos com a memória do horror, seja ele qual for na vida de cada um, ele pulsa dentro de nós como um buraco negro que nos engole de dentro para dentro. O horror fica ali, vagando livremente por cada centímetro de nossa vastidão interna, numa repetição sem fim e sem destino. É por isso que no Brasil é preciso que todos compreendam que o acesso à memória é um direito inalienável de cada ser humano – não como vingança, mas para que se possa deixar de vagar pelo não dito e seguir adiante.

A certa altura do documentário, David reproduz um filme caseiro. É o aniversário de uma criança da família. O pai está lá, batendo palmas e quase sorrindo. Mas o pai não está lá. O pai escreveria no diário depois: “Como não podemos esquecer, somos todos atores”. Ele também poderia ter dito: “Como não podemos lembrar, somos todos atores”. Joseph Fisher poderia ter sido o “six million and one”, mas não foi. E, como tantos sobreviventes, é consumido pela culpa. “Por que eu?”, é a indagação incessante que faz a si mesmo.

Só no parapeito da morte o pai sente-se pronto para dar um lugar para o horror. Pela memória do único texto que precisa interpretar, o pai finalmente pode deixar de atuar. O pai então escreve o diário – e transforma o monstro que o come por dentro em palavra escrita. Mas, para que sua sobrevivência ao Holocausto tenha sido não uma morte, mas uma vida, ele precisa endereçar essa memória. Pois a carta que não chega ao seu destino para ser lida pelo outro não é uma carta, mas um esquecimento sem lembrança. E é assim que o diário chega às mãos de David.

Entre todos os irmãos, David é o único capaz de compreender que precisam percorrer o caminho do pai como filhos. David entende que o pai escreve o diário não apenas para poder esquecer, mas para que os filhos tenham uma chance de lembrar. Se, para o pai, foi um diário, caberia aos filhos encontrar a sua forma de materializar e nomear o inominável. Como disse recentemente o psicanalista Paulo Endo, em uma banca de doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, numa frase que é para todos nós: “Em vez de ser perseguido pelo trauma, é preciso perseguir o trauma”. É o que David e seus irmãos fazem ao seguir as pegadas do pai.

Para arrancar os pés do passado e avançar rumo ao futuro é preciso antes fazer marca. Essa é a beleza do humano que, se é capaz de produzir tanto horror, também é capaz de criar beleza a partir do horror. O filme exibido hoje nos cinemas do mundo é a marca que permitiu a David e seus irmãos seguirem adiante levando o legado do pai como vida – e não mais como morte. “Six million and one” é uma bela cicatriz.

(Publicado na Revista Época em 21/11/2011 )

A vida dos mortos

O que os mortos podem nos contar sobre a vida: quem prefere esquecer a morte, corre o risco de não lembrar que está vivo

Sempre que posso, faço uma visita aos meus mortos no dia de finados. (Acho finados, aliás, uma daquelas palavras perfeitas, que dispensariam verbos e objetos, ela mesma uma sentença inteira.) Sei que possivelmente os mortos não estão em lugar algum além da nossa memória, mas talvez por eu ter nascido bem antes da internet e da existência virtual, preciso apalpar os túmulos com as mãos para senti-los mais de perto. A maioria dos meus mortos mora no cemitério rural de um povoado cada vez mais despovoado no interior do município gaúcho de Ijuí, chamado Barreiro, onde há mais gente estendida debaixo da terra do que saracoteando sobre ela. É uma paisagem com as cores da Toscana que nessa época está coberta pelo dourado dos trigais sob um céu azul e um vento de primavera que bota as folhas secas a dançar como na cena clássica do “Era uma vez no Oeste”, de Sergio Leone. (Quando eu tenho a sorte de visitar a Toscana, digo por lá que a paisagem tem as cores do Barreiro, e os brasileiros ficam me olhando com ironia e os italianos com descrença, mas assim é que é.) Gosto do silêncio dos cemitérios e, em todas as minhas viagens pelo mundo, visito os mortos para compreender como vivem os vivos naquela geografia virgem para os meus sentidos. Mas, para mim, não há nenhum como o do Barreiro, porque ele é habitado por algumas das histórias que fazem de mim o que sou.

Talvez a explicação para minha alegre visita aos mortos esteja na minha tia Nair. Finados, para ela e para todas as donas de casa da zona rural, era um dia de muito trabalho e de muita festa. Mal chegávamos e ela se punha a correr porta afora esfregando as mãos no avental e uma na outra, com um sorriso de orelha a orelha. Era na sua casa que os parentes vinham de toda a região para honrar os falecidos lembrando suas histórias ao redor da galinha com polenta da tia Nair, antecipada por voltas e mais voltas de chimarrão. Para mim era ainda melhor, porque ela me chamava de canto e me carregava para o bolicho na parte da frente da casa, onde penetrávamos na escuridão ainda desabitada dos bêbados que chegariam mais tarde, porque também eles tinham mortos para chorar ou amaldiçoar. Naquela caverna de Ali Babá, onde o silêncio cheirava a couro, salame e fumo, tia Nair enfiava suas duas mãos bordadas pelos calos de uma vida de roça e colhia do baleiro doces de mil e uma noites. Era um momento de suprema felicidade, como os do filme do Jabor.

Quando agora vou chegando pela estradinha poeirenta do Barreiro, avisto tia Nair correndo para nos dar as boas vindas, com seu sorriso pendurado pelas orelhas, e sei que nunca mais serei tão bem recebida por ninguém. Tia Nair já não está mais lá, é apenas na minha memória que ela vive, mas mesmo assim a criança que mora em mim também como memória enche as mãos de balas que só existiam lá. Depois sigo meu caminho para deixar uma palma na porta de sua casa no cemitério.

E de lá começa nossa visita, eu, meu pai e minha mãe, minha mãe sempre apressada, meu pai querendo se deixar ficar para fazer suas homenagens. E eu tentando ajeitar as flores nos vasos com meu desajeito, porque sempre fui uma destra com duas mãos esquerdas e nenhuma delas se entende com a outra. Está lá Pietro Brum, o meu trisavô italiano (meu pai me disse que o pai do meu bisavô não é tataravô ou tetravô, mas trisavô, que todo mundo erra e seria bom que eu acertasse), que veio da Itália fugindo com o filho Antônio, que aponta sua cara do além-túmulo com o mesmo ar topetudo que devia ter quando embarcou clandestino no navio para o Brasil, fugindo de mais uma guerra. Mas basta um olhar para minha bisavó Carlota, com sua mirada de faca, para eu ter certeza de que ela o fazia andar no miúdo. Mas essa história já contei aqui há algumas semanas, em A perna fantasma, e sigo adiante.

Estacionamos nossos pés diante do túmulo de meus avós paternos, José e Victoria, minha avó que nunca deixou ninguém sair do seu portão sem uma cuca, um pão, um queijo, um salame ou um presunto, e por isso recebia mais visitas do que sua azáfama diária permitiria. E que nas noites de tempestade carregava todos para o porão, por causa da tia Maria Henriqueta que morreu de raio quando, ao dormir entre duas de suas irmãs, era a única encostada na cama de ferro. Ao lado dela, no túmulo vizinho, brinca tia Lídia, que mudou de mundo ainda na infância depois que uma vizinha deu a ela uma dose de querosene para curar uma dor de barriga.

E mais uma vez xingamos um tio-avô que teve o péssimo gosto de tomar veneno justo no dia do casamento de minha tia Iolanda, sem o menor respeito pela alegria alheia. Espalhamos mais umas flores aqui e ali, como para a minha tia Cristina que me emprestou seu nome para botar no meio do meu. Acabei banindo-o assim que pude porque ela, quando ainda era uma alma encarnada, já era lembrada como uma mulher tão boa que a tudo suportava, coisa que não me caía muito bem. Mas eu adorava a tia Cristina que me esperava com doces de leite e cuidou das duas galinhas que eu criava como filhas e cuja educação repassei a ela depois que não couberam mais na minha casa de cidade. Tia Cristina zelou pelas minhas filhas de penas até a morte de uma e depois de outra, e mesmo quando a branca engoliu a sua corrente de ouro e todo o Barreiro insistiu que aquela franga desaforada estaria melhor na panela. Minha boa tia Cristina jamais magoou ninguém além de si mesma.

Para jamais esquecer que a vida é tecida com sentimentos contraditórios e gentes mais ainda, é diante do túmulo da minha tia Cristina que ofereço um buquê de comigo-ninguém-pode para minha tia A., esta pelos lados da minha mãe. À distância, porque essa tia se encontra em um cemitério da capital, a quase 400 quilômetros dali. Apesar do nome de querubim, que aqui estou proibida de mencionar por decreto familiar, enquanto viveu, tia A. urinou no túmulo do falecido que a havia traído com tanta assiduidade. Por causa desse péssimo hábito, meu bem posto tio-avô deve ter negligenciado a parte da anatomia que tia A. passou a obrigá-lo a enxergar em seu duvidoso descanso eterno.

Minha avó materna não visito em túmulo, porque a sinto tão presente que é quase como se estivesse ainda por aqui. Tenho sua máquina de costura bem ao lado da minha escrivaninha-xerife e, enquanto escrevo, ela alinhava capas de chuva feitas de saquinhos de leite, porque sempre achou as embalagens industrializadas uma maravilha. Muito antes de qualquer conversa ecológica, vó Teresinha afirmava que algo tão bonito não podia ser descartado como lixo e tratava de transformar logo em alguma utilidade. Sempre proseamos enquanto escrevo e, quando estou triste além da conta, ela me bota a cabeça em seu colo com cheiro de bolacha Maria e me conta uma história de Pedro Malasartes. Vó Teresinha, que viveu como uma santa, tinha outra por dentro. E ainda hoje, nas manhãs desmaiadas dos domingos, nós duas lamentamos que esta outra não tenha saído para botar ordem no seu mundo enquanto o tempo ainda era vivo.

Enquanto passeamos pelo cemitério, pausando para visitas aqui e ali, meu pai, minha mãe e eu sabemos o que nos espera logo adiante. Meu primo Gilberto, o Beto, e a Mana, sua mulher, nos aguardam logo na descida da lomba com o melhor churrasco da região e cucas recheadas que desmancham na boca. Beto é filho da minha tia Nair e, na companhia querida da Mana, mantém a tradição de acolher os parentes que vêm de longe e de perto para honrar os mortos. Na ocasião, meu primo também recolhe as ofertas para a festa da padroeira, quando eu divido com meu pai e meu irmão mais velho a doação de uma vaca. Com uma pontada de culpa porque sei que a malhada vai virar churrasco, mas não com culpa suficiente para me converter em vegetariana.

Mas o percurso dos finados ainda não acabou. E, para mim, a visita mais importante é a última, ao alcançar uma mulher que não conheci, mas que permitiu que eu tudo conhecesse. Ela se chama Luzia de Figueiredo Neves e nasceu no ventre de um romance. Seu pai, Sabino Andrade Neves, era sobrinho-neto do General Andrade Neves, cujos feitos à frente da cavalaria na sangrenta Guerra do Paraguai o alçou à posição de Barão do Triunfo. Enquanto do pai de Luzia se conhece o nome e todos os sobrenomes, da mãe não restou nenhuma letra. Era uma escrava da estância do pai de Sabino, e Luzia nasceu deste amor. Que era amor mesmo e não a violência tão comum naquela época, praticada contra as negras por filhos de estancieiros – e pelos próprios. Para dar nome e criar a filha, Sabino abriu mão da herança e do conforto de sua bem-nascença. Tornou-se professor pelas lonjuras do Rio Grande e fez da filha mestiça também professora. Da mãe, só se sabe que partiu jovem.

Quando estou diante do túmulo de Luzia, me certifico mais uma vez que a vida é desatino. Porque não fosse essa trágica história de amor e de preconceito, que obrigou um Sabino formado para ser general, ou pelo menos advogado na capital, a ser tornar professor e a criar uma filha, e talvez tudo tivesse se desacomodado de outro jeito na minha pequena história. Por isso, quando a vida se desentende com o destino e descarrila em desgoverno no rumo do imprevisto, eu penso: talvez seja uma boa coisa… e eu acabe em lugares mais interessantes.

Em minhas andanças pelo Brasil, ouvi de homens e mulheres das mais variadas geografias uma expressão que atesta a finura da linguagem do povo brasileiro: “Sou cego das letras”. Era como expressavam, em voz sentida, sua condição de analfabeto. Pois foi Luzia, com esse nome tão profético, quem arrancou meu pai da cegueira das letras. E, com ele, todas as gerações que vieram depois. Caçula entre os homens de uma família de 12 filhos criados no cultivo da erva-mate, Luzia iluminou primeiro o nome do meu pai. Quando lá chegou na escolinha do Barreiro, com os pés descalços e os largos olhos que desde pequeno carrega como faróis, meu pai não sabia como se chamava, já que em casa e por todos era conhecido pelo apelido. Quando Luzia chamou – “Argemiro” –, meu pai, então um guri de sete anos, não se mexeu. Só na terceira ou quarta chamada, descobriu-se. E com o nome veio um mundo inteiro.

Aos 12 anos meu pai foi assaltado por uma pneumonia dupla e, enquanto lutava pela vida numa época e numa paisagem em que era mais fácil sucumbir do que escapar da doença, meu avô sentiu-se mal depois de uma sequência de noites no soque da erva-mate e logo mandou buscar, a cavalo, o médico e também o padre. Quando meu pai despertou, em território dos vivos, não sabiam como contar a ele que, naquele soluço do tempo, tornara-se órfão. Foi chamado um homem de nome Pacífico para dar a notícia, mas o mais perto que ele chegou de cumprir sua missão, destituído que estava de toda paz, mas não de sutileza, foi avisar ao meu pai de que dali para frente veria os irmãos com um traje de cor diferente. Uma tia então deixou escorregar com dedos tímidos o jornal aberto sobre a mesa na página do obituário.

Meu pai descobriu ali que saber ler podia ser uma maldição. E naquele momento aceitou o custo às vezes por demais elevado de compreender as letras, em algumas ocasiões com revelações brutais, como naquele pedaço de jornal, em outras, como descobriria mais tarde, torcidas pelo cinismo e pela má fé, com o veneno escorrendo das entrelinhas e a mentira encarapitada nas vírgulas. Arrisco-me a dizer que meu pai escolheu ali, quando recuperava a vida para descobrir que o pai havia perdido a sua, que existiria com verdade.

Aprendi com meu pai a honrar o presente de Luzia. E a tirar meu chapéu invisível diante de Sabino, uma raridade de homem que, nos finalmentes do século XIX, deixou posição e riqueza para criar uma filha sozinho e lançou-se nos interiores do Rio Grande para educar os rebentos dos colonos europeus que desembarcavam com quase nada além de esperança e do preconceito com gente de pele mais escura, como a própria Luzia. Era ele e não seu tio-avô que deveria ser nome de rua na capital e por todo canto se o mundo fosse justo.

Desde que me entendo por gente meu pai coloca flores no túmulo de sua primeira professora. Não sei dizer em que altura do caminho eu comecei a segui-lo nesse gesto, a ponto de ter se tornado uma estrelinha no meu calendário pessoal. Não necessariamente no dia de finados, mas em algum dia do ano eu preciso agradecer a Luzia pelas letras. Sento-me à beira do seu túmulo e, depois de dizer obrigada, me enfio dentro de mim e começo a pensar em minha vida de palavras.

É um momento de vestir minha própria pele, eu, que como repórter, estou sempre tentando me emburacar na pele do outro. Penso se estou usando com verdade o que Luzia me deu. Investigo se tenho sido digna e se tenho sido honesta no meu percurso, não só com os outros, mas comigo mesma. Se tenho amado bem não só os de perto, mas também os de longe. Apaziguo-me com as batalhas que talvez não ganhe, mas que nem por isso a luta deixa de valer a pena. Encaro o medo que muitas vezes me perfura e tento usá-lo para me tornar mais atenta às armadilhas. E refaço meus votos de contar histórias usando o melhor que tenho em mim. De alguma forma, acredito que Luzia sempre encontra um jeito de me responder.

Estava nesse ponto de minhas perambulações internas, neste último 2 de novembro, quando ouço a voz da minha mãe discutindo com o responsável do cemitério, que não encontrava meus últimos pagamentos em seu caderno. Minha mãe insistia que as taxas estavam em dia, um despropósito de 15 reais por ano (!!!) para que eu tenha o direito de lá ser enterrada quando o único acontecimento previsível da vida chegar. Eu já tinha dado uma vistoriada na minha futura casa, reservada embaixo de uma árvore, e agora peleava para me manter concentrada em minha conversa com Luzia, mas já começava a achar o debate divertido. De repente, eu escuto: “Mas a Eliane é falecida há muito tempo?”. E minha mãe, rapidíssima: “Está bem viva, sentada ali naquele túmulo”.

Abanei para ele e, toda faceira, lembrei: sim, eu estou beeeeeem viva.

Foi uma lembrança importante.

(Publicado na Revista Época em 07/11/2011)

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