“Percebi que há certas realidades que só a ficção suporta”

Meus vizinhos se foram

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Quando chegamos, eles já estavam aqui. Na primeira vez em que o homem falou, levamos um susto, apenas uma parede entre nós. Ele tinha uma voz grande. Tem gente com voz grande que é pequeno. Ele, não. A voz dele tem o seu tamanho, como constatei em encontros esporádicos no elevador de serviço, que ambos preferimos. Apavorados com a invasão oral, corremos a botar cortiça entre o vão das janelas que nos separavam. Mas a voz dele entrava mesmo assim, tonitruante, enquanto o cheiro de mil e uma noites da comida árabe dela penetrava pelo flanco da cozinha e colava nas nossas narinas aniquilando qualquer possibilidade de dieta. Foi assim que iniciamos um diálogo de silêncios, pelos sentidos. E só hoje, quando eles se foram sem palavras, descobri que era uma relação amorosa.

No meu sofá azul eu escuto agora um silêncio que é vazio, o vazio de uma casa que já não fala. E me aniquilo de saudade. Como é que eu não sabia deste amor? Que minha vida também ganhava sentido por causa do viver deles no avesso da parede? Como não percebi a tempo que não saberia viver sem a alegria briguenta dele e a delicadeza quase desesperada dela?

Nossa história de sete anos foi polvilhada por detalhes que só agora ganham a dimensão que sempre deveriam ter tido. Um dia ouvimos uma movimentação anormal ao lado, e era a mãe de um deles cujo corpo partia pelo elevador de serviço depois de a morte tê-la levado pelas escadas. Em outro ela deixou uma bandejinha de quibes na nossa porta, e nunca havíamos comido melhores. Passei a deixar as revistas que ela gostava, mas só eu tinha dinheiro para comprar, sobre o tapete da porta dela. E iniciamos assim um novo capítulo em nossa relação silenciosa, mas jamais muda. Só falamos, nós duas, uma vez em que soou o alarme de incêndio, e ambas nos alarmamos a ponto de conversar uma com a outra também com nossa voz.

Sabíamos, pela conta do condomínio, já que poucas instituições são tão cruéis quanto os condomínios ao denunciar os que não puderam pagar a taxa, que eles tinham dificuldades e uma dívida que precisou ser negociada. Uma vez, encontrei com ele no elevador, e do nada ele me disse de repente. Sabe, nós moramos aqui há mais de 20 anos, mas de aluguel. E meu coração estalou porque ninguém merecia pagar por tanto tempo para morar no lugar ao qual pertencia.

Pensei que eles eram para sempre. E hoje eles se foram. Porque já não podiam mais ficar. Deixaram apenas o recado de que não puderam se despedir porque choravam. E eu soube que a vida dos meus dias tinha encurtado. Que a voz de Pavarotti dele e os cheiros de hortelã dela eram uma felicidade que eu não sabia que tinha. E agora viraram morte.

Sempre pensei saber que eram estes pequenos detalhes que emprestam sentido a uma vida. Sempre acreditei que saberia identificá-los a tempo. Mas não vi, não soube. E agora já não há. A casa deles foi arrancada da nossa. E a nossa nunca mais será a mesma. Já a ouço claudicar como uma ferida de guerra que sente falta do membro que lhe foi amputado.

Então eu choro enquanto escrevo no meu sofá azul, porque deveria ter dito a eles o quanto eram importantes quando havia tempo, e não pude. Choro pela cega que me habita. Choro de saudades. E porque o silêncio do avesso da parede me perfura.

Nunca estamos onde queremos

Conto de fadas de Woody Allen discute os limites do presente

Depois de alguns minutos, o novo filme de Woody Allen – “Meia-Noite em Paris” – nos provoca um delicioso sorriso bobo, que permanece até o final. O diretor no presenteia com uma história de Cinderela para adultos. À meia-noite, o protagonista embarca em um calhambeque tinindo de novo e pronto, está onde sempre quis estar: na animada Paris dos Anos 20. Gil Pender, como boa parte de nós, acha o presente insuficiente. O passado era melhor. Não qualquer passado, mas o idealizado por ele. Como uma fada madrinha do nosso tempo, Woody Allen realiza, com essa varinha de condão que é o cinema, o desejo que é de todos. E por isso abrimos um sorriso encantado.

Me convenci a dar uma espiada para o lado e para trás e vi no público a mesma boca aberta de antecipação e deleite das crianças quando escutam um conto de fadas. Desde o surgimento do calhambeque, a gente já sabe o que vai acontecer. É porque queremos muito que aconteça que é tão prazeroso. Como as crianças que pedem para repetir mil vezes a mesma história, a gente tem vontade de gritar: “De novo! De novo!”.

A identificação com o protagonista é imediata. O ator Owen Wilson vive Gil Pender, mas, ao mesmo tempo, encarna Woody Allen com tanta competência, que às vezes enxergamos o próprio. No filme, ele é um roteirista de Hollywood que tenta escrever um romance enquanto visita Paris com uma noiva mimada e um casal de sogros tão digestivos quanto óleo de rícino. Os personagens são todos estereotipados como num bom conto de fadas.

A noiva é uma típica menina rica, fútil e ambiciosa, mais preocupada com a aparência da vida e dela mesma do que com a vida em si. Os sogros são americanos bem sucedidos, republicanos do Tea Party, com todos aqueles valores que conhecemos melhor ao acompanharmos a trajetória de Sarah Palin. Ao chegarem a Paris, a noiva encontra um casal de amigos. Ele, um homem pelo qual já foi apaixonada, é também um personagem comum do nosso tempo: um especialista em tudo, de vinhos a Rodin. E, desde o início do filme, o detestamos como se deve fazer com um bom vilão que não causa mais mal do que abusar da nossa paciência e da de Gil com seu pedantismo e seu conhecimento de Wikipedia, programado para impressionar um certo tipo de moça. Já Gil, nosso herói, é doce, sensível e com aquele ar meio perdido de quem quer muito ir, mas não sabe direito para onde. Também um personagem clichê da nossa época.

Nesta escolha dos personagens, há algo interessante que podemos pensar. Esses dois estereótipos masculinos representam em parte a confusão do que significa ser homem hoje em dia. Ambos inseguros depois do naufrágio do papel masculino definido por uma tradição que já não existe. Mas com respostas diferentes para a questão. E, como a mulher deste milênio, a noiva também oscila entre esses dois homens sem saber bem se quer aquele que sabe tudo sem saber (e que jamais saberá qualquer coisa porque não tem planos de parar de fingir) – ou deseja aquele que admite que não sabe, mas um dia talvez possa descobrir porque procura.

Esta não é a questão principal do filme, mas Woody Allen sempre foi hábil em falar da (bendita) confusão dos papéis masculinos (e femininos) de nossos dias – e seu conto de fadas não poderia ser diferente. O dilema central de nosso Cinderelo é que ele queria viver onde não vive.

Gil Pender desembarca na cidade dos seus sonhos – e Woody Allen também nos dá, desde o início, uma Paris de cartão postal, com direito a própria Carla Bruni interpretando uma guia turística. Mas Gil está acompanhado pela noiva fútil, os sogros fúteis, o casal de amigos fúteis e fazendo coisas fúteis com todos eles. Preso, portanto, a um presente que não quer, mas que não tem forças para mudar. Como acontece com boa parte de nós aqui, em nossa vida cotidiana – e também em férias idealizadas das quais voltamos com fotos em que estamos sorridentes, sobre as quais contamos maravilhas para os amigos e parentes, mas secretamente sabemos que não foram tão perfeitas assim.

Então, à meia-noite, num determinado lugar, a carruagem passa e o carrega para a Paris que deseja. E Gil Pender encontra, entre outros personagens fascinantes que se reuniram em Paris nos Anos 20, Zelda e Scott Fitzgerald, Cole Porter, Ernest Hemingway, Pablo Picasso, Salvador Dalí, Luis Buñuel. E consegue dar seu romance para a própria Gertrude Stein avaliar. Todos esses personagens reais que fizeram a efervescência e a lenda dos (pelo menos para nós e para Gil Pender) gloriosos Anos 20 estão lá não como são – mas como nosso Cinderelo os vê. É o passado idealizado por ele – não o passado como foi para quem o viveu. Só assim, afinal, é possível ter um conto de fadas.

Posso contar tudo isso aqui porque, como nas fábulas, não importa o que acontece, importa que tenhamos certeza que acontece. Por isso as crianças querem ouvir a história tantas vezes e viver seus medos protegidas pela segurança do enredo conhecido. Depois dos primeiros 15 minutos de filme, sabemos o que Woody Allen vai nos dar. E então é só a delícia de assistir ao desenrolar dos fatos que já antecipamos.

Mas Woody Allen nos trai com uma personagem clandestina, que não faz parte do roteiro das fábulas – a mulher comum. Aquela que esteve na história, mas não foi registrada nela. Aquela que não sobreviveu à morte como memória. É a partir das inquietações dela, que em determinado momento torna-se o espelho dele, que Gil Pender tem de fazer uma opção que é a de todos nós: entre o tempo que não há e o tempo que há. Ele precisa fazê-la na prática. Nós temos de fazê-la dentro de nós, como uma escolha interna que determina todo o enredo da história que é nossa.

Gil Pender, nosso Cinderelo, coloca o impasse entre a idealização da vida e a vida como ela é com uma das sacadas geniais que fazem Woody Allen ser quem é: “Você se dá conta que esses caras vivem sem anestesia nem antibiótico?”. A frase é bem melhor do que esta, mas eu não tinha nenhum bloquinho para anotar. É quando o homem que procura encontra algo – e descobre que precisa fazer uma escolha se quiser viver onde está – não importa se na Paris dos Anos 20, na Paris da Belle Époque ou na Paris de hoje. Para quem o viveu, o passado era presente.

Assim como não há passado, só presente – não há vida idealizada, só vida. É com essa vida, no presente, que temos de fazer o melhor que pudermos, mesmo que sempre nos pareça insuficiente. Para, quando chegar ao final que sempre chega, termos a chance de concluir: “Que pena que acabou. Mas vivi, não tudo o que quis, mas o melhor que pude”. E só dá para ter certeza de que fizemos o melhor possível com nossa vida imperfeita quando temos a coragem de fazer escolhas. Que, inclusive, podem dar errado – e muitas vezes dão. Mas também podem dar certo, ou dar errado dando certo de um jeito que não sabíamos que existia.

Do contrário, vamos ficar fingindo que conhecemos o enredo, como o chato da história, e ninguém encontra nada sem se arriscar ao vazio e às perguntas difíceis, com respostas às vezes indigestas. Não há final feliz – o final é sempre a morte, como nos repetiram tantos poetas. O que temos é o presente possível para experimentar por tentativa e erro.

As grandes questões da existência, afinal, são sempre as mesmas – e é para nos lembrar disso que servem os contos de fadas. “Meia-noite em Paris” é um dos bons.

(Publicado na Revista Época em 27/06/2011)

A pesadeira

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Não sei por quanto tempo ela ficou nos telhados, à espreita de mim. São tantas as câmeras nesse mundo que confunde imagem com verdade, mas nenhuma delas capturou o olhar sanguíneo dessa mulher alta e esquálida como uma modelo. A pesadeira faria sucesso hoje nas passarelas, com seu porte alongado e anoréxico, não fossem seus olhos de fogo e suas unhas amareladas, irredutíveis a todos os esmaltes com nomes de paixão.

Eu podia senti-la no ar que aspirava a golfadas e que vinha com farelos de um medo tão atávico que arrepiava as mucosas do meu nariz e deixava meu pulmão em carne viva. Sabia que algo me observava. Mas não adivinhava que era ela. Até porque não sabia o que era ela.

Numa madrugada acordei sentada, como só acontece nos filmes de Hollywood, berrando de pavor. Não lembrava o pesadelo. Mas acendi a luz, com mãos de gelo. E então vi sobre o travesseiro ao meu lado uma lasca de unha amarelada. Fiquei um tempo sem medida do tempo olhando para aquela unha, sem saber o que fazer. Minha mão caminhou como uma aranha de jardim até ela e a tocou. Pedra.

Caminhei de pés descalços até o banheiro e peguei um pedaço de papel higiênico para embrulhar a lasca, com nojo de tocá-la de novo. Joguei-a na privada e fiquei com a mão grudada no botão da descarga esperando que ela tragasse o meu pesadelo. Mas na manhã seguinte, a lasca de unha continuava lá. E meu xixi fez um barulho macabro ao tentar afundá-la.

Nas noites seguintes me dopei de tarjas-pretas e acordava sonada, cambaleando até a pia do banheiro. Quando tirava o pijama para tomar o banho que me despertaria, podia ver a mancha vermelha do peito no reflexo do espelho. Grande e rosada, cada dia ela era mais funda. Marquei hora de urgência na dermatologista e ela me enfiou várias agulhas, para ver se eu sentia algo. Mas eu só me sentia asfixiar. E ela me despachou do consultório com uma expressão condescendente, uma pomada qualquer e a amostra grátis de um antidepressivo. Possivelmente é uma doença psicossomática, ela me disse. Este remédio vai ajudá-la a relaxar.

Botei tudo fora porque sabia que o que acontecia comigo nas madrugadas era real, ainda que eu não soubesse nomear. E decidi que, naquela noite, não dormiria. Coloquei a faca do churrasco embaixo do travesseiro e fingi dormir. Mas enquanto fingi nada aconteceu, embora eu pudesse sentir o ar se adensar ao meu redor. Acabei me entregando a um cochilo de negação. E antes de abrir os olhos já sabia que ela estava lá. Sentia todo o seu peso sobre o meu peito e preferia morrer a abrir os olhos. Ar que entra, ar que sai, tentei me concentrar para romper com a paralisia do pânico. E agora podia sentir seus pés ásperos nos flancos das minhas costelas, ela, que me montava como se eu fosse a sua égua.

Abri os olhos de supetão. Mas era uma ilusão. Eles continuavam fechados. Não sei quanto tempo levei para abrir de verdade. Então vi seu rosto terno e malévolo ao mesmo tempo, os olhos vermelhos cravados nos meus. Não, ela não gargalha como dizem nas lendas. A pesadeira é silêncio. Leve em sua anorexia, o peso do seu corpo é feito da matéria impalpável dos sonhos. E é assim que ela foi me asfixiando com as toneladas de gordura do meu medo.

Mas não, ela não me matou. Agora ela mora em mim. E a cada noite me sinto quase romper por dentro. Quase. É apenas a vida que pesa com medo da morte. Descobri então que terei de viver carregando comigo a pesadeira. Porque a outra opção é pior.

Por que vale a pena ouvir Marina Silva

Com conhecimento de causa e prática ética, ela tem renovado o debate político

Gosto de acompanhar a trajetória de Marina Silva porque ela soa como algo novo em um momento histórico do Brasil em que até o que se prometia diferente ficou dolorosamente igual. Acredito que, mesmo para seus (muitos) inimigos, é possível (sempre é) discordar de suas ideias, mas acho difícil duvidar, pelo menos até hoje, de sua integridade ética. E ética, convenhamos, é algo que foi varrido do horizonte da política brasileira, o que causa, a mim e a muitos, um bocado de desespero.

Aprecio a delicadeza firme de Marina Silva, que antes de se tornar política gastou as mãos e a saúde nos seringais do Acre, foi empregada doméstica em Rio Branco e, com grande coragem e esforço pessoal, se formou professora. Respeito sua força num corpo tão frágil, contaminado por mercúrio e solapado por três hepatites, cinco malárias e uma leishmaniose; sua voz que vem de uma garganta arranhada, mas que se expressa com tanta inteligência apesar de só ter se alfabetizado aos 16 anos.

Por isso, recomendo que assistam ao Roda Viva (TV Cultura) em que Marina Silva foi a entrevistada, na segunda-feira, 13/6. Com o braço direito enfiado numa tipoia porque uma ressonância magnética constatou uma ruptura parcial no músculo, ela usa a esquerda para dar ênfase às palavras com gestos elegantes. Sim, Marina é elegante, não daquele jeito que se compra em loja, mas daquele que emana da inteireza de sua postura na vida. Vale muito a pena abrir um espaço na rotina e escutá-la – o link está aqui, basta clicar. Especialmente o segundo e o terceiro blocos são muito esclarecedores em mais de um sentido. Porque, acho importante repetir, estamos diante de uma encruzilhada no Brasil.

Se o país fosse uma pessoa, estaria naquele momento da vida em que pode ir por aqui ou por ali, e qualquer que seja a decisão tomada, ela vai definir o resto da sua existência – e o bem-estar ou não de seus descendentes. Se não compreendermos isso e não nos posicionarmos, vamos deixar que outros decidam a nossa vida, que os “outros” de sempre decidam o futuro do país com a costumeira pequeneza de ideais (e de ideias) e o desrespeito pela coisa pública que temos testemunhado no cotidiano do Congresso e de alguns setores do governo.

O novo (e nocivo) Código Florestal – que ainda pode ser rejeitado no Senado se a sociedade civil fizer o seu papel – e a licença para a usina de Belo Monte são questões estratégicas, que deveriam estar sendo discutidas nas ruas, com a família na mesa do jantar, nas escolas e nas universidades – e não estão. E Marina Silva é uma das poucas pessoas públicas que tem se dedicado a desmascarar com propriedade as mentiras que circulam por aí. Mentiras que circulam há tanto tempo que colam, mesmo em gente inteligente, como verdade. E são usadas com a habitual má fé por aqueles que só pensam na urgência do seu próprio bem-estar. Como disse Marina Silva, “as políticas para o Brasil devem ser de longo prazo, mas os políticos são de curto prazo”.

É bastante impressionante, mas, ainda hoje, para parte da população as questões ambientais soam como algo descartável, uma espécie de luxo, de assunto menor, ao qual se pode prestar atenção ou não. Parece não compreender que a escassa preocupação com os recursos naturais e as fortes pressões contrárias à sua preservação interferem na sua vida já. Esquece-se de todas as perdas que já sofreu no dia-a-dia por causa da contaminação do meio ambiente e se acostuma com qualquer coisa, até mesmo com o fedor do rio que banha sua cidade e a fuligem que cobre sua pele depois de um dia de trabalho.

Ambientalistas são tachados de “ecochatos”, como se estivessem atrapalhando uma festa – e não tentando salvá-la. (Assim como colunistas que voltam à questão com frequência.) Aqueles que lutam pela preservação ambiental são imediatamente colocados, pelas raposas de plantão, como se fossem contra o desenvolvimento e contra a agricultura e a pecuária. E o mantra é reproduzido pela manada de sempre. Quando, na verdade, são apenas os setores mais atrasados do agronegócio que defendem teses como a do novo Código Florestal, já apelidado de “Código de Devastação Florestal”.

Só lembrando: entre outras aberrações, o texto perdoa quem ocupou e desmatou áreas ilegais até 2008 e facilita o cultivo e a pecuária em zonas de proteção ambiental, inclusive nascentes. A mera discussão do novo Código pelos deputados causou a multiplicação do desmatamento no Mato Grosso, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Na semana de aprovação do texto pela Câmara, cinco agricultores ligados à preservação da Amazônia foram assassinados no Pará e em Rondônia – uma prova cabal de que o Brasil ainda é um país mais velho do que novo em muitas de suas práticas.

Se o novo Código for aprovado, proteger as florestas se tornará uma exceção – e não a regra. Homens e mulheres que lutam em defesa do meio ambiente nos rincões do país, como afirma Marina Silva, até agora tinham pelo menos a lei ao seu lado. Se o novo Código Florestal for aprovado também no Senado, aqueles que hoje arriscam (e muitas vezes perdem suas vidas) para proteger a floresta estarão na ilegalidade.

O agronegócio moderno (e sim, ele existe no Brasil) sabe que só vai vender no Exterior quem tiver respaldo ambiental. Quem pratica a agricultura predatória estará condenado no futuro próximo, é um Neandertal num mundo assombrado pela devastação do planeta. A questão é falsamente colocada – de propósito, para confundir a população – como uma oposição entre o agronegócio e o meio ambiente. De fato, o que há é uma discussão em torno da escolha dos rumos do país, uma opção entre manter as velhas práticas de exploração indiscriminada dos recursos naturais, como se não existissem outros caminhos, ou incluir o Brasil entre os países engajados no desenvolvimento sustentável.

O manejo dos recursos naturais – e especialmente da água – tem movido as discussões sérias do planeta. Até grandes predadores têm percebido que, se nada fizerem, vão ter problemas ainda maiores logo ali na frente. Por que a China, a nova potência econômica do mundo, mas ameaçada pela degradação ambiental e a desertificação, tem como prioridade a construção da “Grande Muralha Verde” (em alusão à histórica Muralha da China), com o objetivo de reflorestar 356 mil quilômetros quadrados de terra até 2050? Alguém conhece competidores mais agressivos na economia internacional que os chineses? Alguém acha que eles querem reflorestar porque acham as árvores bonitas ou precisam de sombra? Óbvio que não. É por pragmatismo e visão de futuro.

Enquanto isso, no Brasil, vende-se o retrocesso embalado em desenvolvimento. Em vez de o país ocupar uma posição estratégica nesse momento histórico do mundo, na medida em que apesar da devastação ainda pode contar com recursos naturais importantes, parece existir no Brasil um esforço para que o país volte para trás, apenas para que os mesmos de sempre não percam seus privilégios. E o mais incrível é que pessoas decentes caem nesse conto da Carochinha. É para estas, as decentes, que escrevo, na tentativa de que comecem a duvidar das máximas repetidas a exaustão pelos suspeitos de sempre.

Quando a proposta é manter as conquistas e aprimorar a legislação ambiental – em vez da libertinagem difundida no novo Código Florestal –, logo surge aquele discurso de que a riqueza do Brasil são as commodities (mercadorias de origem, matérias-primas) e que os “gringos”, sempre eles, querem que o Brasil deixe de ser uma potência agrícola. Essa conversa é mais falsa que uma nota de três reais, mas cola. O pior é que cola.

Parte da população não percebe que a maior commodity do Brasil não é a soja, a carne ou o café, como tem alertado o recém criado Comitê Brasil em Defesa das Florestas e do Desenvolvimento Sustentável. A mais importante commodity do Brasil é a água. Sem água, qualquer um percebe que não há nem agricultura. E as mudanças propostas pelo novo Código Florestal colocam a grande reserva hídrica do Brasil em risco. Ou seja, o discurso mais retrógrado deste país, vendido como sendo “em prol do desenvolvimento”, é aquele que quer acabar com a riqueza estratégica do país, aquela capaz de garantir ao Brasil um lugar de liderança no cenário mundial. É por isso que esta não é uma queda de braço entre ambientalistas e ruralistas – mas uma urgência de toda a sociedade.

Comecei esta coluna falando de Marina Silva porque ela tem representado uma nova forma de fazer política – depois da corrosão ética do PT. Não sei se ela fica ou não no PV, que por enquanto tem preferido ser um partido de ocasião, nem como articulará sua próxima candidatura. O que acho importante reconhecer em sua trajetória é o fato de que ela – até agora – tem feito política para além do fisiologismo, do troca-troca, da barganha e do imediatismo. Está aí, brigando pelas questões que acredita e é a principal voz contra o novo Código Florestal e a licença de Belo Monte. Com consistência, com dados, com história.

Afinal, em sua gestão à frente do Ministério do Meio Ambiente (2003 a 2008) – de onde saiu pela força de pressões poderosas, internas e externas – o desmatamento anual na Amazônia caiu de 27 mil quilômetros quadrados para menos de 7 mil quilômetros quadrados. Em seu mandato foi apreendido 1 milhão de metros cúbicos de madeira ilegal. “O equivalente a uma fileira de caminhões carregados de toras unindo São Paulo ao Rio de Janeiro”, exemplifica. É importante ouvir Marina Silva porque ela se expressa com a clareza de quem sabe o que diz – porque vive o que diz.

Sabiamente Marina Silva tem conseguido manter o fato de ser evangélica na esfera do privado. No momento em que agir diferente, ela tem consciência de que perderá o apoio da parcela urbana, jovem e intelectualizada que se alinha ao seu lado e lhe garantiu parte significativa dos quase 20 milhões de votos na última eleição presidencial. Afinal, no pleito de 2010, não foi ela, mas sim José Serra e Dilma Rousseff que fizeram aquele papelão no segundo turno, submetendo-se aos interesses religiosos, em especial os da Igreja Católica.

É por isso que vale a pena ouvir o que Marina Silva tem a dizer. Porque ela está entre os poucos políticos em atuação que tem um discurso consistente, alicerçado na trajetória pessoal, sobre algo que vai mudar talvez não a nossa vida – mas a de nossos filhos, netos e bisnetos. Sem a participação da sociedade, que vai muito além do voto, a democracia não passa de uma ficção. Por isso é que já passou da hora de falar de meio ambiente com sua família na mesa do jantar. Porque botar a questão ambiental na mesa, no dia-a-dia, não é uma escolha, é um dever. Significa debater e decidir o que queremos ser e qual legado queremos deixar. Eu e você. Nós.

(Publicado na Revista Época em 20/06/2011)

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