A pesadeira

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Não sei por quanto tempo ela ficou nos telhados, à espreita de mim. São tantas as câmeras nesse mundo que confunde imagem com verdade, mas nenhuma delas capturou o olhar sanguíneo dessa mulher alta e esquálida como uma modelo. A pesadeira faria sucesso hoje nas passarelas, com seu porte alongado e anoréxico, não fossem seus olhos de fogo e suas unhas amareladas, irredutíveis a todos os esmaltes com nomes de paixão.

Eu podia senti-la no ar que aspirava a golfadas e que vinha com farelos de um medo tão atávico que arrepiava as mucosas do meu nariz e deixava meu pulmão em carne viva. Sabia que algo me observava. Mas não adivinhava que era ela. Até porque não sabia o que era ela.

Numa madrugada acordei sentada, como só acontece nos filmes de Hollywood, berrando de pavor. Não lembrava o pesadelo. Mas acendi a luz, com mãos de gelo. E então vi sobre o travesseiro ao meu lado uma lasca de unha amarelada. Fiquei um tempo sem medida do tempo olhando para aquela unha, sem saber o que fazer. Minha mão caminhou como uma aranha de jardim até ela e a tocou. Pedra.

Caminhei de pés descalços até o banheiro e peguei um pedaço de papel higiênico para embrulhar a lasca, com nojo de tocá-la de novo. Joguei-a na privada e fiquei com a mão grudada no botão da descarga esperando que ela tragasse o meu pesadelo. Mas na manhã seguinte, a lasca de unha continuava lá. E meu xixi fez um barulho macabro ao tentar afundá-la.

Nas noites seguintes me dopei de tarjas-pretas e acordava sonada, cambaleando até a pia do banheiro. Quando tirava o pijama para tomar o banho que me despertaria, podia ver a mancha vermelha do peito no reflexo do espelho. Grande e rosada, cada dia ela era mais funda. Marquei hora de urgência na dermatologista e ela me enfiou várias agulhas, para ver se eu sentia algo. Mas eu só me sentia asfixiar. E ela me despachou do consultório com uma expressão condescendente, uma pomada qualquer e a amostra grátis de um antidepressivo. Possivelmente é uma doença psicossomática, ela me disse. Este remédio vai ajudá-la a relaxar.

Botei tudo fora porque sabia que o que acontecia comigo nas madrugadas era real, ainda que eu não soubesse nomear. E decidi que, naquela noite, não dormiria. Coloquei a faca do churrasco embaixo do travesseiro e fingi dormir. Mas enquanto fingi nada aconteceu, embora eu pudesse sentir o ar se adensar ao meu redor. Acabei me entregando a um cochilo de negação. E antes de abrir os olhos já sabia que ela estava lá. Sentia todo o seu peso sobre o meu peito e preferia morrer a abrir os olhos. Ar que entra, ar que sai, tentei me concentrar para romper com a paralisia do pânico. E agora podia sentir seus pés ásperos nos flancos das minhas costelas, ela, que me montava como se eu fosse a sua égua.

Abri os olhos de supetão. Mas era uma ilusão. Eles continuavam fechados. Não sei quanto tempo levei para abrir de verdade. Então vi seu rosto terno e malévolo ao mesmo tempo, os olhos vermelhos cravados nos meus. Não, ela não gargalha como dizem nas lendas. A pesadeira é silêncio. Leve em sua anorexia, o peso do seu corpo é feito da matéria impalpável dos sonhos. E é assim que ela foi me asfixiando com as toneladas de gordura do meu medo.

Mas não, ela não me matou. Agora ela mora em mim. E a cada noite me sinto quase romper por dentro. Quase. É apenas a vida que pesa com medo da morte. Descobri então que terei de viver carregando comigo a pesadeira. Porque a outra opção é pior.