Arquivos anuais: 2011
O que só a ficção suporta
Realidades que só a ficção suporta
“Percebi que há certas realidades que só a ficção suporta”
Meus vizinhos se foram
Quando chegamos, eles já estavam aqui. Na primeira vez em que o homem falou, levamos um susto, apenas uma parede entre nós. Ele tinha uma voz grande. Tem gente com voz grande que é pequeno. Ele, não. A voz dele tem o seu tamanho, como constatei em encontros esporádicos no elevador de serviço, que ambos preferimos. Apavorados com a invasão oral, corremos a botar cortiça entre o vão das janelas que nos separavam. Mas a voz dele entrava mesmo assim, tonitruante, enquanto o cheiro de mil e uma noites da comida árabe dela penetrava pelo flanco da cozinha e colava nas nossas narinas aniquilando qualquer possibilidade de dieta. Foi assim que iniciamos um diálogo de silêncios, pelos sentidos. E só hoje, quando eles se foram sem palavras, descobri que era uma relação amorosa.
No meu sofá azul eu escuto agora um silêncio que é vazio, o vazio de uma casa que já não fala. E me aniquilo de saudade. Como é que eu não sabia deste amor? Que minha vida também ganhava sentido por causa do viver deles no avesso da parede? Como não percebi a tempo que não saberia viver sem a alegria briguenta dele e a delicadeza quase desesperada dela?
Nossa história de sete anos foi polvilhada por detalhes que só agora ganham a dimensão que sempre deveriam ter tido. Um dia ouvimos uma movimentação anormal ao lado, e era a mãe de um deles cujo corpo partia pelo elevador de serviço depois de a morte tê-la levado pelas escadas. Em outro ela deixou uma bandejinha de quibes na nossa porta, e nunca havíamos comido melhores. Passei a deixar as revistas que ela gostava, mas só eu tinha dinheiro para comprar, sobre o tapete da porta dela. E iniciamos assim um novo capítulo em nossa relação silenciosa, mas jamais muda. Só falamos, nós duas, uma vez em que soou o alarme de incêndio, e ambas nos alarmamos a ponto de conversar uma com a outra também com nossa voz.
Sabíamos, pela conta do condomínio, já que poucas instituições são tão cruéis quanto os condomínios ao denunciar os que não puderam pagar a taxa, que eles tinham dificuldades e uma dívida que precisou ser negociada. Uma vez, encontrei com ele no elevador, e do nada ele me disse de repente. Sabe, nós moramos aqui há mais de 20 anos, mas de aluguel. E meu coração estalou porque ninguém merecia pagar por tanto tempo para morar no lugar ao qual pertencia.
Pensei que eles eram para sempre. E hoje eles se foram. Porque já não podiam mais ficar. Deixaram apenas o recado de que não puderam se despedir porque choravam. E eu soube que a vida dos meus dias tinha encurtado. Que a voz de Pavarotti dele e os cheiros de hortelã dela eram uma felicidade que eu não sabia que tinha. E agora viraram morte.
Sempre pensei saber que eram estes pequenos detalhes que emprestam sentido a uma vida. Sempre acreditei que saberia identificá-los a tempo. Mas não vi, não soube. E agora já não há. A casa deles foi arrancada da nossa. E a nossa nunca mais será a mesma. Já a ouço claudicar como uma ferida de guerra que sente falta do membro que lhe foi amputado.
Então eu choro enquanto escrevo no meu sofá azul, porque deveria ter dito a eles o quanto eram importantes quando havia tempo, e não pude. Choro pela cega que me habita. Choro de saudades. E porque o silêncio do avesso da parede me perfura.