O amigo sincero

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Completar 45 anos é algo inquietante na vida de uma mulher – acho que de um homem também. Você começa a pensar que está na meia idade, mas é um autoengano. Na meia idade você estaria se tivesse certeza de que alcançaria os 90, mas as probabilidades estatísticas não estão ao seu lado. E mesmo que chegue lá, aquela idade em que você não sabia que tinha coluna vertebral, em que seis pratos de feijão desciam em espirais de hamornia pelo seu intestino, em que qualquer posição sexual parecia verossímil, já se foi. E já se foi há um bom tempo, mas você não queria ver. No ano que vem você já estará mais para os 50 do que para qualquer número digno. E em alguns anos chegará o dia em que nenhum homem – ou mulher – virará a cabeça para olhar para você com admiração e desejo. É aí, neste ponto, que entra o amigo sincero.

Uma conhecida minha teve a sorte de ter um ao seu lado na travessia para a mais idade. Completou seus 45 anos numa viagem de trabalho com um amigo sincero. Ele estava lá quando ela chegou ao final de horas de voo e um dia difícil, destruída depois de semanas de acontecimentos pedregosos e uns pés torcidos em buracos simbólicos. O amigo sincero olhou para ela e disse: “Nossa! Nunca vi você tão acabada! Está definhada!”.

Ótimo. Ela estava a dois dias dos 45 e era o tipo de estímulo de que precisava. Pensou, inclusive, que era este o tipo de comentário que todos esperam receber quando se sentem – e pelo jeito parecem – péssimos. “É”, explicou ela, enquanto tentava segurar, com o dedo mindinho, um naco de autoestima que escorria pela cadeira. “Estou vivendo um período difícil.”

Depois do jantar, ao subirem pelo elevador do hotel para os respectivos apartamentos, ele abriu o jornal local. Lá estava ela em uma foto – tirada em 2008!! –, estampando uma matéria sobre o evento do qual participaria. O que o amigo sincero diz? “Não dá, né. Você precisa fazer fotos novas. Esta aí foi feita uns 40 anos atrás!”. Era uma piada. Uma piada sincera.

Ela, que nunca sabe como reagir ao fogo amigo, não na hora, pelo menos, sacou o fórceps da bolsa e usou-o para abrir a boca num riso sem graça. Assim que a porta do elevador se fechou, levando para o alto o amigo sincero, rastejou até o espelho do quarto, onde deve ter dormido em algum momento, sonhando em roubar o retrato de Dorian Gray.

Na noite seguinte, ela ainda não tinha assimilado a sinceridade do amigo. Esta minha conhecida é meio, como diria minha mãe, “faísca atrasada”. Incauta, ela seguiu tentando. Ao final do jantar, arriscou uma confissão: “Sabe, eu tenho vontade de fazer aulas de canto. Sofri um trauma quando era adolescente e fiquei com problemas de fala. Acho que o canto pode ajudar, embora ninguém aguente me ouvir cantando”. Ela nunca tinha falado isso para nenhuma outra pessoa além do seu analista. O amigo sincero pareceu surpreso. Então disse, sinceríssimo: “Imagino, sua voz é metálica. Perfura”. Pronto. Enquanto tentava comer o cigarro, ela assistiu ao naufrágio de anos de divã em apenas uma frase.

Adivinha quem foi a primeira pessoa que ela ouviu, às 5h da madrugada do dia do seu aniversário? Sim, ele, o amigo sincero. Gentilmente ele ligava para desejar boa viagem: “Veja se descansa um pouco, hein, porque você está bem amarrotadinha!”. O toque do diminutivo foi deferência carinhosa, é importante deixar claro. E sim, sim, feliz aniversário para você também. Mas ele nem sabia que era o aniversário dela.

Só no avião ela compreendeu. O amigo sincero dizia tudo isso porque gostava dela – e se preocupava com seus sentimentos. A intenção do amigo sincero era das melhores. Ele queria prepará-la para a crueldade do mundo para além do regaço aconchegante da amizade. Havia planejado aquilo para o seu bem. Afinal, se ela ouvia tudo isso de um amigo, nenhum inimigo seria capaz de abalar sua autoestima nos anos em que a sua pele ganharia rugas e cicatrizes outras até virar uma uva passa.

Era um tratamento de choque para botar sua resistência à prova – e endurecer os músculos da sua alma, já que os do corpo tinham começado a se recusar a responder aos seus apelos. Sim, o amigo sincero havia descoberto o que nem ela mesma sabia, que a vida tinha sido fácil demais até então – e era importante providenciar umas rasteiras antes que os 50 chegassem. O amigo sincero tinha assumido, por puro altruísmo, a (in)desejada tarefa de fazer o serviço ele mesmo. Afinal, como dizia Nietzsche, um homem que entendia do assunto, o que não nos mata nos fortalece.

A coluna que (quase) ninguém lê

Para que mais uma morte de pobre não vire estatística – ou vaia de ruralista

Bocão morreu. Tinha esse apelido por causa do sorriso largo, que dava vontade de rir com ele. Por que Bocão ria? Não sei. Por teimosia, talvez. Ou porque sabia que a expectativa de vida dele era de menos da metade da média dos brasileiros e já nascera com menos dias de riso. Bocão tinha ainda outros dois nomes: o do registro, Alexsandro Rocha da Silva, e o do rap ligado ao Grupo de Apoio à Prevenção da AIDS (GAPA), MC Alex. Ele fugiu de casa aos 7 anos para morar nas ruas de Porto Alegre porque o padrasto batia na mãe. E ele bateu no padrasto. E o padrasto bateu nele. História comum entre as crianças e adolescentes das ruas do Brasil. Morreu neste final de maio de uma doença oportunista da AIDS, empurrado de um hospital a outro. Foi enterrado pelo pai que o procurava – e o encontrou.

Bocão viveu mais do que todos. Fez, como costumava dizer, “hora-extra na Terra”. Ele era o último protagonista de uma das histórias mais bonitas que testemunhei em minha vida de repórter, de gente. Em março de 1994, um grupo de guris de rua da capital gaúcha rodeou uma mulher que conheciam por causa do sopão dos pobres. Deirdre Bicca era o seu nome. Ela era professora de matemática. Aqueles meninos estropiados de frio, de fome, de tiro, de droga, de polícia, de HIV, a rodearam não para assaltá-la, como a maioria pode ter pensado. Eles pediram a ela algo pungente: pediram escola.

“A senhora pode dar aula para nós? A gente precisa de estudo para o nosso futuro.” Deirdre começou então a alfabetizá-los primeiro numa praça, depois na escadaria da Igreja das Dores, de onde foram expulsos. E ainda foram enxotados de muitos lugares até conseguirem ter aulas ao relento, no Parque da Redenção. Fora, sempre fora.

Formavam a Turma do Cachorrinho, assim batizados pela rua porque guardavam carros na praça onde também estacionava o cachorro-quente mais famoso da cidade, o cachorro-quente do Rosário. E Rosário é o nome de um tradicional colégio privado onde jamais entrariam. Aqueles meninos com olhos de velho realizaram uma das utopias mais belas e dolorosas deste país – uma escola que sobrevivia a eles. Em um ano em que os acompanhei, sete morreram antes dos 20 anos. Mas, para cada um que morria, eles botavam outro guri de rua no lugar. Para que a escola vivesse. Eles morriam, mas o sonho não. Bocão foi o último.

Mas o último dos primeiros. Uma década atrás, duas jornalistas (Clarinha Glock e Rosina Duarte) criaram com a Turma do Cachorrinho o jornal Boca de Rua. Pelo jornal, com suas mãos e mentes, os meninos se inscreveram na história. Agora não é mais a escola, mas o jornal que vive além deles. E é o bocão de Bocão que estampa o primeiro número – hoje histórico – do jornal. Como diz Rosina, Bocão trazia o nome do jornal no próprio nome.

Uma das muitas noites tristes da vida de Bocão aconteceu ao apanhar da polícia por arrombar um carro para dormir no banco de trás porque temia morrer de frio no inverno gaúcho. Em outra foi marcado por um corte de palmo e meio na barriga que levou seis meses para fechar. Um dos dias felizes da vida de Bocão aconteceu ao ser barrado em um dos principais centros culturais da cidade pelo segurança. Ele lá estava com os companheiros para exibir um filme sobre a experiência do jornal. O segurança perguntou diante de suas roupas de muitas mãos: “Quem são vocês?”. E Bocão não hesitou, apropriando-se do que havia se tornado: “Nós somos os autores”. E foi Bocão que, ao escolherem o título de um livro sobre as escrituras do povo de rua, disse, em um belo achado de linguagem: “Histórias de Mim”.

Quando morreu, uma assistente social comentou: “Ele não tinha nenhum documento. Parecia que nunca havia existido”. Ela estava enganada. Bocão existiu de várias maneiras. E seguirá existindo – porque a ideia que ajudou a construir vive. A morte o calou, mas o que escreveu segue falando pelo Boca de Rua. E seu sorriso está lá, nos lembrando que a vida quer viver.

Alguns podem ter estranhado o título desta coluna. A quem chegou até aqui – porque boa parte não chega –, quero explicar. Em mais de dois anos escrevendo neste espaço, comprovei que os textos menos lidos são aqueles sobre moradores de rua. No início, isso me chocava e me entristecia profundamente. Hoje, entendo que é lógico que, assim como a maioria finge não vê-los nas ruas concretas, também finge não vê-los em todas as camadas de mundo. Para mim, que não me pauto pela audiência, mas pela relevância, esta é uma excelente razão para continuar escrevendo sobre moradores de rua. Meus leitores podem não ler, mas vão ter de fazer a escolha de não ler. Porque aqui está visível. E será preciso assumir a decisão de fazer de conta que eles não existem. E que cada um de nós não tem nada a ver com a sua vida – e com a sua morte.

Quem quiser se conectar com a realidade na qual estamos todos implicados, mesmo quando fingimos que não estamos, pode acessar as colunas menos lidas de minha trajetória neste site: O homem sem país, Uma história de luz, A guria dos 7.

Quem sabe um dia mais gente comece a estranhar que alguns já nasçam com direito apenas a um terço da vida.

bocao

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A semana passada foi uma vergonha para este país. No mesmo dia em que a Câmara dos Deputados aprovou um Código Florestal que beneficia quem vem acabando com o meio ambiente e comprometendo o futuro de todos os brasileiros – e também do planeta –, foram assassinados dois líderes extrativistas que defendiam o manejo sustentável da floresta. José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo Silva foram mortos a tiros na terça-feira, 24/5, em Nova Ipixuna, no sudeste do Pará. Depois, José Cláudio teve parte da orelha decepada. Quando foi anunciado na Câmara o duplo assassinato, o que fez a bancada ruralista? Vaiou. Dois brasileiros foram executados – e alguns de nossos representantes vaiaram.

Como Chico Mendes e Dorothy Stang, o casal também avisava há muito, como mostra este vídeo, que estava “com uma bala na cabeça”. E, como parece sempre acontecer nesse país, a profecia se realizou. Mas, diferente de Chico Mendes e de Dorothy Stang, o espaço dado à sua morte na imprensa foi bem menor. Possivelmente porque a luta de Chico Mendes foi noticiada primeiro pelo New York Times – e Dorothy Stang tinha família americana. Assim como os outros 18 executados no ano passado no Pará por conflitos agrários, como mostra a matéria Eles morreram pela floresta, José Cláudio e Maria eram brasileiros pobres que lutavam pelo que nós todos deveríamos estar lutando. E morreram porque não foram escutados. Também por nós.

Foi uma semana feliz para os assassinos do Brasil – os assassinos de gente, e os de futuro que circulam pelo Congresso. Prestem atenção na votação do novo Código Florestal no Senado, anotem o nome de quem faz o que, porque é uma ideia de país que está em jogo. Não custa lembrar que todos aqueles homens e mulheres que estão decidindo o nosso futuro – boa parte deles mais preocupado com o próprio presente – foram escolhidos e legitimados pelo nosso voto, o que nos coloca na condição de cúmplices da ruína ética a que assistimos no Congresso mandato após mandato. Na sexta-feira, 27/5, Adelino Ramos, outra liderança que combatia o desmatamento da floresta, foi assassinado quando vendia verduras. Desta vez, em Rondônia. Coincidência?

Não é com parlamentares como estes – capazes de queimar a Amazônia em benefício próprio e vaiar quando é anunciado o assassinato de brasileiros que defendiam a floresta – que vamos a algum lugar. Nem com cidadãos que testemunham a indignidade e seguem calados. Essa classe de políticos só tem a ousadia de ser tão vil em suas barganhas e em seus atos porque sabe que sempre pode contar com a nossa omissão.

Não há nenhuma discussão, hoje, no país, mais importante que a do Código Florestal. Seu desfecho determinará muito do que seremos – ou não seremos. Quem sabe ainda dê tempo para mais gente estranhar um Código Florestal que anistia desmatadores ser aprovado pela Câmara em pleno ano de 2011, quando o desafio urgente é – ou deveria ser – o desenvolvimento sustentável do país. E mais gente comece a desconfiar que assassinatos de defensores da Amazônia não combinam com as pretensões do Brasil de ocupar um lugar de destaque no cenário mundial.

(Publicado na Revista Época em 30/05/2011)

O cano que fala

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Meu prédio tem um curioso vazamento de sons. Não ouvimos as brigas na cozinha, nem os bebês chorando, nem os casais transando. Nos primeiros meses, pensei que talvez ninguém ali brigasse, tivesse bebês ou fizesse sexo. Então descobri. Toda a vida vaza pelo encanamento velho demais do banheiro. Como artérias corroídas pelo tempo, os canos vazam a miséria humana em toda a sua glória. E depois nos encontramos no elevador social ou na portaria com sorrisos indiferentes. Eu sei o que vai pelas tripas de cada um — e eles sabem o que vai pelas minhas. Mas, quando nos encontramos, fazemos de conta que não temos tripas.

No início, a invasão da vida alheia pelo encanamento do banheiro me deixava em pânico. Tanto pelo que vinha dos outros, quanto pelo que adivinhava que ia de mim. Cogitei usar o penico de louça que uma amiga transformou em obra de arte. Mas fui impedida pelos outros moradores da casa. Então, bem aos poucos, aceitei.

E, agora, a condição humana assinala cada hora do meu dia. Não uso relógio porque cada som tem seu horário. De manhã bem cedo acordo com os velhos. Alguns têm passarinhos na janela, eu tenho escarros. Toda vez penso que um pulmão vai descer pelo cano e aterrissar na minha banheira. Mas eles resistem. E depois os cumprimento sorridente enquanto pegam sol no pátio. E eles me abanam como se eu não soubesse do seu esforço para despertar e enfrentar o mundo ainda respirando.

À noite, são os mais jovens, com seu desejo apressado e barulhento. Mais devagar, eu quero gritar pelo cano, nessa minha idade do meio. Mas já tive pressa também. E já suspeitei daqueles sons. Às vezes penso em alertar no elevador aquele cara modernetes, com cavanhaque e calça rasgada. Ela finge, planejo anunciar, entre o primeiro andar e o térreo, o tempo exato para desaparecer com um “Tenha um bom dia”. Mas, no fundo, no fundo, ele deve suspeitar. E então apenas digo: “Está precisando chover, não é?”. Ou a variação: “Vamos todos virar sapos se essa chuva não parar”. E ele concorda sempre, como concorda com os gemidos da namorada.

Entre a manhã e a noite, conheço todas as prisões de ventre e sei também quem comeu algo estragado. “Não peça mais comida chinesa do Chinguilingui”, digo para meu marido. E, só uma vez, comentei, como quem não quer nada, com uma mulher sempre nervosa e com o corpo empertigado, cujos segredos o cano me revelou: “Olha só que coisa. Uma amiga estava com o intestino trancado havia 20 dias, comeu um pacote de ameixas secas e ficou ótima”. Na hora, tive certeza de que tinha sido um mau impulso. Ela me olhou com superior indiferença, como se eu fosse um inseto tão insignificante que não valia a pena sujar o salto do seu sapato, e nem respondeu. Mas depois eu soube, pelo cano, que ela estava agradecida.

Nessa altura, alguns devem estar se perguntando. “Mas por que essa infeliz não se muda?” Não me mudo porque o velho encanamento do prédio me deu uma compreensão mais ampla do mundo. A existência humana é uma trama de dores, mas, com alguma sabedoria, acordamos fingindo que nem mesmo vamos morrer. Cumprimentar os vizinhos com um sorriso, como se eles só exalassem Chanel número 5, ainda que testemunhando seu esforço de todo dia, fez de mim uma pessoa melhor.

O velho cano me ensinou duas coisas: aceitar a miséria humana e, ao mesmo tempo, inventar uma vida. Por isso, quando na reunião de condomínio propuseram a troca do encanamento, eu me levantei e gritei: “Não!”. Com tanta verdade, que imediatamente o síndico passou para o próximo item da pauta.

O que “os livro” contam?

Algumas dúvidas sobre a polêmica do livro didático

Li o capítulo do livro “Por uma vida melhor”, que vem causando polêmica há mais de uma semana na imprensa e na comunidade acadêmica. O livro é distribuído pelo Ministério da Educação para ser utilizado pelas escolas públicas na Educação de Jovens e Adultos e foi coordenado pela Ação Educativa – ONG pela qual tenho grande respeito pelo trabalho que realiza no reconhecimento e ampliação das vozes da cultura, especialmente a das periferias. Copio o trecho da discórdia aqui – e sugiro que o leitor leia o capítulo inteiro, intitulado “Falar é diferente de escrever”. É importante ler o texto na fonte para que possamos pensar juntos e para que cada um possa formar sua própria opinião.

O trecho que gerou a polêmica é este:

“Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado.
Você acha que o autor dessa frase se refere a um livro ou a mais de um livro? Vejamos:
O fato de haver a palavra os (plural) indica que se trata de mais de um livro. Na variedade popular, basta que esse primeiro termo esteja no plural para indicar mais de um referente. Reescrevendo a frase no padrão da norma culta, teremos:
Os livros ilustrados mais interessantes estão emprestados.
Você pode estar se perguntando: ‘Mas eu posso falar ‘os livro?’. Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico. Muita gente diz o que se deve e o que não se deve falar e escrever, tomando as regras estabelecidas para a norma culta como padrão de correção de todas as formas linguísticas. O falante, portanto, tem de ser capaz de usar a variante adequada da língua para cada ocasião.”

Ao ler o capítulo inteiro, é fácil perceber que, em nenhum momento, os autores do livro afirmam que não se deve ensinar e aprender a “norma culta” da língua. Pelo contrário. Eles se dedicam a ensiná-la. Logo na primeira página, é dito: “Você, que é falante nativo de português, aprendeu sua língua materna espontaneamente, ouvindo os adultos falarem ao seu redor. O aprendizado da língua escrita, porém, não foi assim, pois exige um aprendizado formal. Ele ocorre intencionalmente: alguém se dispõe a ensinar e alguém se dispõe a aprender”. Mais adiante, os autores estimulam o aluno a ler e a escrever – e a insistir nisso, mesmo que possa parecer difícil, porque é lendo e escrevendo que se aprende a ler e a escrever.

Não há, portanto, nenhum complô contra a língua portuguesa, como algumas intervenções fizeram parecer. Nem mesmo caberia tanto barulho, não fosse uma ótima oportunidade para pensarmos sobre a língua. E o debate das ideias sempre vale a pena. É mais interessante, porém, quando partimos das dúvidas – e não das certezas. Não custa perguntar uma vez por dia a si mesmo: “Será que eu estou certo?”. Ninguém está velho demais, ou sábio demais, ou tem diplomas demais que não possa duvidar e aprender. Um professor que pensa que sabe tudo não é um professor – é um dogma. E dogmas cabem nas religiões e nas ditaduras – e não na escola e na democracia.

Há algumas afirmações no texto que, em minha opinião, merecem uma reflexão mais atenta. E o trecho de “Os livro” é apenas uma delas. Em outro momento, os autores dizem o seguinte:

“Em primeiro lugar, não há um único jeito de falar e escrever. A língua portuguesa apresenta muitas variantes, ou seja, pode se manifestar de diferentes formas. Há variantes regionais, próprias de cada região do país. (…) Essas variantes também podem ser de origem social. As classes sociais menos escolarizadas usam uma variante da língua diferente da usada pelas classes sociais que têm mais escolarização. Por uma questão de prestígio — vale lembrar que a língua é um instrumento de poder —, essa segunda variante é chamada de variedade culta ou norma culta, enquanto a primeira é denominada variedade popular ou norma popular. Contudo, é importante saber o seguinte: as duas variantes são eficientes como meios de comunicação. A classe dominante utiliza a norma culta principalmente por ter maior acesso à escolaridade e por seu uso ser um sinal de prestígio. Nesse sentido, é comum que se atribua um preconceito social em relação à variante popular, usada pela maioria dos brasileiros. Esse preconceito não é de razão linguística, mas social. Por isso, um falante deve dominar as diversas variantes porque cada uma tem seu lugar na comunicação cotidiana”.

É verdade que a língua pode ser um instrumento de dominação – e foi ao longo da História não só do Brasil, mas do mundo. O português mesmo é a língua dos colonizadores – e foi sendo transformado por falantes vindos de geografias e de experiências diversas ao longo dos séculos, num constante movimento. Assim como a apropriação da palavra escrita e a ampliação do acesso à escola estão na base de qualquer processo igualitário. Também é verdade que os pobres sempre foram discriminados por tropeçarem nas palavras e na concordância. Basta lembrar as piadas que faziam com Lula porque no início de sua carreira política ele falava “menas” – em vez de menos. A solução para a discriminação, sempre uma indignidade, não foi afirmar que “menas” também era correto.

O que discordo no capítulo polêmico é exatamente o caminho que o livro propõe para a inclusão. Primeiro, acho complicado afirmar que usar “a norma culta” ou a “norma popular” é uma questão de ocasião. Como neste trecho: “A norma culta existe tanto na linguagem escrita como na linguagem oral, ou seja, quando escrevemos um bilhete a um amigo, podemos ser informais, porém, quando escrevemos um requerimento, por exemplo, devemos ser formais, utilizando a norma culta”.

Aceitar que está correto dizer “Os livro” – ou que basta aprender onde cabe a “norma popular” e onde é mais apropriada a “culta” – pode significar aceitar a dominação e acolher o preconceito. Quem fala e escreve “os livro” o faz não por escolha, mas porque lhe foi roubado o acesso à educação. É verdade que quem assim se expressa supostamente comunica o mesmo que quem respeita a concordância. E o objetivo maior da língua é permitir a comunicação. Mas, se você afirma que a concordância ou não é apenas uma questão de ocasião, você corre o risco de estar acolhendo a discriminação – e não incluindo de fato.

A inclusão real só vai acontecer quando a escola pública oferecer a mesma qualidade de ensino recebida pelos mais ricos nas melhores escolas privadas. Quando o Estado for capaz de garantir a mesma base de conhecimento para que cada um desenvolva suas potencialidades. E este é o problema do país: uma educação pública de péssima qualidade, com adolescentes que chegam ao ensino médio sem condições de interpretar um texto – e muitas vezes incapazes até mesmo de ler um texto.

O que os mais pobres precisam não é que alguém lhes diga que expressões como “os livro” é bom português, mas sim uma escola que ensine de fato – e não que finja ser capaz de ensinar. Para dizer “os livro” ninguém precisa de escola. É óbvio que a língua, como coisa viva que é, também é política. Mas a política de inclusão contida no texto do livro pode estar equivocada. E a discussão sobre o tema, seja de um lado ou de outro, poderia ser mais interessante se fosse menos sobre política – e mais sobre educação.

Dominar as regras é importante até para poder quebrá-las. É preciso conhecer profundamente a origem, a estrutura da língua, para poder brincar com ela. Você precisa partir do parâmetro para reinventá-lo na escrita. Quando o personagem de um romance que se passa na periferia de uma grande cidade diz “Os livro”, seu autor sabe que a concordância correta é “os livros”. Quando ele escolhe colocar essa construção na boca do personagem, há uma intenção literária. Ele está nos dizendo algo muito mais profundo do que uma mera equivalência poderia sugerir. Se você elimina essa possibilidade, pode estar eliminando a denúncia da dominação ou a possibilidade do estranhamento. (Ao final do capítulo polêmico, aliás, há um texto bem interessante sobre a visão de mundo contida na escolha da linguagem escrita, desenvolvido a partir do poema “Migna terra”, de Juó Bananére.)

Quando alguém é discriminado por dizer “Os livro” não me parece ser “um preconceito linguístico”, como os autores afirmam, mas um preconceito. Ponto. Ninguém tem o direito de zombar de outro porque ele não conhece as regras gramaticais – ao contrário, deve ajudá-lo a encontrar os meios de aprender. E é nesse ponto que me parece que pode existir também um equívoco na compreensão do que é a linguagem popular.

Não sou linguista, nem gramática, nem professora de português. Estou sempre estudando para não cometer erros ao escrever, mais ainda agora com a nova ortografia. Mas, mesmo com a gramática e o dicionário já bem gastos pelo uso, às vezes me acontece de atropelar a língua. Acho, porém, que entendo um pouco da linguagem das ruas. E nisso tenho algo a dizer.

Percorro o Brasil há mais de 20 anos ouvindo histórias de gente – e muitos dos que escutei eram analfabetos. Sempre defendo que a principal ferramenta do repórter é a escuta. E é justamente esta escuta que me ensinou que a linguagem popular é muito variada – e muito, muito sofisticada mesmo. Seguidas vezes, meu desafio é apenas escutar com redobrada atenção para reproduzir pela escrita o que foi inventado pela fala. Porque há uma recriação de mundo em cada canto, contida nas pessoas a partir de experiências as mais diversas. É essa sofisticação da linguagem que me abre as portas para o universo que me propus a contar.

Com frequência eu penso, diante de um analfabeto nos confins do Brasil: “Nossa! Isso é literatura pela boca!”. E é. Guimarães Rosa não reinventou a língua portuguesa apenas porque era um gênio. Acredito que era um gênio – mas acredito também que ele bebeu em genialidades orais do sertão do qual se apropriou como poucos.

Então, acreditar que a linguagem popular (ou “variante popular” ou “norma popular”) é dizer coisas toscas como “os livro” pode significar subestimar a riqueza e a diversidade de expressão do povo. Sempre lamentei que as pessoas que me contavam suas histórias não tivessem tido acesso à escola, devido à abissal desigualdade do Brasil, para que não precisassem de mim para transformar em escrita as belas construções, os achados de linguagem que saíam de sua boca.

Nada a ver com “os livro”. Posso estar errada, mas me arrisco a afirmar que o povo brasileiro é muito melhor do que isso. Se o Estado algum dia garantir escola pública de qualidade e professores qualificados, bem pagos e dispostos a ensinar, o português será uma língua muito mais rica também na expressão escrita – como já é na oral.

(Publicado na Revista Época em 23/05/2011)

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