Socorro! Alguém me salve dos bebês!!!

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Descobri que não há criatura mais ardilosa que um bebê. Eu andava irritada com esses seres cheios de dobrinhas e celulite, como já reclamei aqui, porque eles tinham sequestrado algumas de minhas melhores amigas e amigos e também meu irmão do meio. Se lá dentro da barriga já conseguiam fazer tal estrago, transformando mulheres e homens multitemas em pessoas de uma nota só, imagina depois. Já vislumbrava meus dias de solidão, sem nenhum ombro para babar ao desfiar meus dramas existenciais, quando aconteceu.

Sem alarde, como as coisas realmente importantes costumam acontecer. Primeiro foi o João Bolota, que praticamente se jogou no meu colo, no dia seguinte ao nascimento. E lá ficou dormindo o sono de quem não sabia que meus braços existiam por algum outro motivo que não fosse afofá-lo. E chegou tia, primo, parente, amigo e eu lá, me fazendo de louca. Se alguém chegava perto com a intenção obscura de arrancá-lo do meu colo, eu rosnava de leve, porque tento ser uma mulher elegante. Mas com todos os dentes à mostra. E eu tenho uns caninos bem afiados de comer churrasco e uma ou outra carne de pescoço.

Depois foi a Nina, que teve o desplante de nascer com um corte de cabelo parisiense. Eu dobrava a esquina entre o corredor e a cozinha, disfarçando a minha vontade de olhar para ela, quando ela surgiu no colo da mãe com ares de Juliette Binoche e me abateu com um sorriso. Sim, Nina já sorria. E, segundo seu pai, pronunciou a primeira palavra aos quatro meses. Com toda a clareza. Foi aí que eu comecei a desconfiar que estava sendo cooptada. Porque acreditei.

Em seguida surgiu Rodrigo, o meu sobrinho temporão. Eu tinha antecipado a volta de uma viagem internacional de trabalho porque ele estava programado para nascer logo ali. Na véspera da partida recebi um email da minha mãe avisando que ele tinha ignorado todos os meus esforços e aterrissado no mundo na hora em que bem entendeu. Sim, sim, essa geração já nasce sem o menor respeito pelos mais velhos.

A traição desencadeou em mim um ataque de choro totalmente fora de controle num quarto de hotel. Cheguei a cogitar locar um jato particular de onde desembarcaria correndo, sem pagar, diretamente em Campinas, onde ele nasceu. A alternativa era um tanto fantasiosa e até eu, em meu estado lastimável de tia miseravelmente traída, reconheci a fragilidade do plano. Dias depois eu chegaria esbaforida num táxi, pago com dinheiro da poupança que fiz para a minha velhice desvalida e na qual tinha jurado não mexer nem mesmo se faltasse feijão – o que é mais ou menos o equivalente à morte para mim.

Simplesmente não consegui esperar pelo ônibus. Só caí em mim quando ouvi os risos de escárnio de uns e outros: eu ensinava a língua dos duendes ao Rodrigão (ele é enorme!), em frente a estranhos e sem nenhum amor próprio. Arrrrrschoins… coishloncolin… aidigolgol.

E então veio ela, a minha afilhada. Insuportavelmente irresistível. Tanto que nunca usei tantos advérbios de modo e adjetivos num texto sem temer a condenação eterna dos colegas. Simplesmente porque nada mais me importa. Desde que ela me disse, com sua boca de Angelina Jolie, “Oi, Dinda, cheguei e já te adoro”, apenas alguns minutos após o nascimento, eu perdi a posse de mim mesma.

Tenho certeza de que a Cats me hipnotizou. Sim, porque ficam me repetindo aquelas baboseiras de livros pseudocientíficos de bebês, de que recém-nascidos não enxergam ou só enxergam vultos e blábláblá. Balela. Estes caras não entendem nada de bebês. Eu, sim. A Cats olhou diretamente para mim — e me amou.

Sim, ela me ama. E nada mais importa agora. Se alguma enfermeira malvada a trata com brusquidão, ela imediatamente agarra a minha mão. Depois, escala o meu colo, desabafa uns gemidinhos de Tom Jobim, dá um suspiro sentido e dorme totalmente confiante, como se o meu colo fosse o mundo inteiro.

Fiz até uma proposta para a mãe dela, de deixar a Cats aqui em casa enquanto ela se recupera, se organiza e tal, mas não fui compreendida. O padrinho, que está em estado semelhante, o que significa que não há ninguém para nos chamar à razão, foi detido quando tentava botar a Cats na mochila. E ela queria ir com a gente, era óbvio para quem quisesse ver, porque nem chorou.

Bebês censurados

É perigoso quando a internet confunde banho de criança ou amamentação com atos de pedofilia

Em abril, um pai levou sua filha à cidade onde viveu boa parte da vida para apresentá-la aos amigos mais queridos. Para receber sua família, foi preparado um jantar caprichado na casa da madrinha do bebê. Como o aniversário do pai aconteceria dias mais tarde, os amigos decidiram lhe dar um álbum de fotos desse acontecimento tão especial e planejado desde que a criança nasceu. E assim, a fotógrafa do grupo a qual também pertenço, dedicou-se a registrar todos os momentos.

Tão logo minha amiga editou as fotos, colocou-as num álbum do Hotmail que pudesse ser compartilhado pelo número restrito de pessoas que haviam participado da festa. Algum tempo depois, ela recebeu um aviso enorme da Microsoft, em inglês, que, resumidamente, dizia o seguinte: “Nós encontramos imagens envolvendo nudez de crianças em sua conta. Se você não retirá-las em 48 horas, seremos obrigados a cancelar esta e outras contas. Esta política busca reduzir os riscos na comunidade online. A Microsoft leva a sério a segurança das crianças. As violações incluem nudez, nudez parcial, pornografia, assédio, comportamento ilegal ou ofensivo”.

Minha amiga demorou alguns bons minutos para encontrar alguma pista sobre o crime do qual estava sendo acusada ao fotografar episódio tão amoroso. Então descobriu: havia pelo menos duas fotos dos pais com o bebê durante o banho. E ninguém ali tinha uma mente tão perversa a ponto de pensar que aquele momento inocente pudesse ser remotamente confundido com algum tipo de pornografia ou ato pedófilo que exigisse providenciar o impossível: um banho de roupa no bebê.

Assustadíssima, minha amiga tirou o álbum inteiro da rede. A situação me pareceu surreal. Mais ainda porque, entre as muitas ironias, está o fato de que a suspeita é uma jornalista que se especializou e se dedicou à proteção da infância e da adolescência nos últimos 20 anos. Por sua atuação nessa área é convidada a dar palestras e oficinas no Brasil e fora dele. E já ganhou prêmios por seu trabalho em Direitos Humanos. De fato, não haveria ninguém mais improvável do que ela de cometer algum ato de pedofilia contra um bebê ou disseminar pornografia infantil na internet.

Na semana passada, a imprensa noticiou que a jornalista Kalu Brum foi censurada na mais poderosa rede social do planeta, o Facebook, após postar uma foto amamentando seu filho. Em 10 de maio, Kalu recebeu a seguinte mensagem: “Olá. Você carregou uma foto que viola nossos Termos de uso e ela foi removida. O Facebook não permite a publicação de fotos que ofendam um indivíduo ou grupo, ou que possuam nudez, drogas, violência ou outras violações de nossos Termos de Uso. Essas políticas são desenvolvidas para garantir que o Facebook continue a ser um ambiente seguro e confiável para todos os usuários, incluindo as crianças que usam o site”.

O caso foi divulgado e debatido no blog Mamíferas. E depois de a foto ter sido retirada do ar, Kalu lançou o “Mamaço no Facebook” – um protesto que incentiva as mulheres, até 20 de maio, a trocar as fotos de seus perfis por imagens em que estejam amamentando, e os homens a trocá-las por fotos das mães de seus filhos nesse mesmo ato saudável.

Os dois casos da internet – que com toda certeza não são os únicos, muito pelo contrário –, fazem soar uma sirene na nossa cabeça. E eu acho que precisamos escutá-la antes que o mundo fique estranho demais. Tanto a Microsoft quanto o Facebook estão agindo “em nome do bem”. E, assim como outras corporações poderosas da rede, têm sido pressionados a responder pelos conteúdos veiculados em seu ambiente virtual pela Justiça de diferentes países. Obviamente as mensagens que Kalu e minha amiga – e muitos outros – receberam são automáticas, geradas sempre que o programa detecta algum tipo de ameaça. Uma proporção maior de pele nua, talvez. Só o Facebook e a Microsoft podem nos explicar os mecanismos utilizados em seu sistema para detectar supostas violações.

O fato é que o programa não tem como avaliar subjetividades. E então imagens de uma mãe amamentando ou um bebê tomando banho sob o olhar embevecido de seus pais são imediatamente censuradas em termos ameaçadores. No mundo virtual, o rotineiro banho do bebê cujas fotos circulam entre amigos e parentes passa a ter o mesmo potencial criminoso do rotineiro banho do bebê que circula entre as redes de pedofilia. Porque, a rigor, a nudez do bebê é a mesma. O que muda é o olhar do espectador. E o uso das imagens.

Embora existam quadrilhas que escravizam ou pagam por fotos de meninas em posições eróticas ou atos sexuais, um pedófilo se excitaria, e um criminoso poderia vender a foto de uma criança de biquíni na praia, construindo um inocente castelo de areia, para uso ilegal. Porque, de novo, o que caracteriza a ilegalidade neste caso são o olhar e o uso.

A saída deveria ser voltarmos a uma espécie de era vitoriana e obrigarmos nossos filhos a tomar banho de mar vestidos porque existem pessoas doentes e outras criminosas no mundo em que vivemos? Ou amamentarmos trancadas em quartos, com vergonha de nossa natureza? Ou dar banho no bebê de portas fechadas, escondidos de todos como se fosse algo feio ou proibido? Acredito que lutamos muito para lidar melhor com nossos corpos e nossas vidas para tal retrocesso.

Mas é algo semelhante o que está acontecendo na internet – um mundo no qual vivemos durante boa parte do nosso dia e pelo qual nos comunicamos com amigos, parentes, parceiros de trabalho e desconhecidos. Um mundo virtual – mas bem real.

Na rede, tudo virou a mesma coisa – e confundi-las me parece muito perigoso. Porque, se começarmos a tratar da mesma maneira uma mulher amamentando seu bebê e um ato de pedofilia, logo não saberemos mais a diferença. E, se não soubermos mais a diferença, não haverá mesmo como prevenir e punir o crime.

O outro ponto que deve fazer a sirene da nossa cabeça tocar ruidosamente diz respeito à Lei. Para criar ou alterar uma lei em um país democrático, é necessário antes que o texto seja discutido e aprovado pelo Legislativo. E, ultimamente no Brasil, pelo vazio e pela indigência desta instância, algumas questões cruciais têm sido debatidas e decididas pelo Supremo Tribunal Federal. No processo democrático, o debate se estabelece na imprensa e nas ruas, as opiniões se digladiam, e o cidadão influencia nas decisões seja pelo seu voto, seja pelo seu poder de manifestação. Do mesmo modo, a polícia precisa de autorização judicial para grampear alguém dentro da lei.

Na internet, não. Há uma espécie de polícia virtual, transnacional e privada atuando em nossas vidas como bem entende. Porque, para esta “polícia”, não somos cidadãos – mas clientes (ou “customers”, já que a comunicação, em geral, é em inglês. Quantos de nós, no mundo inteiro, têm seu cotidiano ligado a marcas como Microsoft, Google, Apple, Facebook, Twitter, etc? Me parece que não temos percebido que vivemos sob suas leis. E uma delas nos diz que o banho de nossos bebês ou o momento da amamentação é pedofilia.

A partir do momento em que vasculham nossos arquivos e recebemos o aviso de que estamos violando sua política de uso, nossa escolha é aceitar o veredicto e retirar as imagens do ar, quando não as eliminam por sua própria conta – ou sermos banidos desse mundo.

Supostamente seria uma escolha estar ou não na rede, usar ou não a mercadoria que oferecem. De fato, cada vez mais deixa de ser uma escolha, já que boa parte da população do planeta não pode mais conceber sua vida pessoal e profissional sem estar em alguns desses conglomerados virtuais.

Como disse Kalu Brum para esta coluna: “Tive de concordar que li e aceitei os termos de uso do Facebook de que a foto feria as regras. Fiquei indignada e por isso pensei em sair da rede. Vejo tantas fotos com pessoas de decote, shorts minúsculos, por que uma foto de amamentação, em que o mamilo nem aparecia, estava sendo retirada? Imediatamente pensei que poderia usar a própria rede social para mobilizar mulheres a trocarem suas fotos do perfil”.

Acho ótimo que alguém tenha decidido reagir e torço para que o “mamaço” organizado por Kalu surta algum tipo de efeito no Facebook. Mas sabemos o tamanho e o poder desta rede com mais de 600 milhões de usuários no planeta – e como é difícil atingi-la ou influenciá-la. Não é por acaso que a manifestação contrária à política da rede social aconteça dentro da rede social, sem que o Facebook perca um único usuário. E é sobre isso que também precisamos refletir.

Assim como Kalu, minha amiga também retirou o álbum de fotos, chocada, e seguiu sob o império da Microsoft. E, possivelmente, se me acontecesse algo semelhante, eu faria o mesmo. Porque preciso usar as redes e não tenho escolha. De fato, sem nenhum direito de defesa ou julgamento, se não acatarmos que o banho do bebê ou a amamentação é pedofilia – porque é isso que aceitamos como verdade quando retiramos as imagens da rede ou continuamos lá depois que são retiradas –, somos banidos do mundo. Como párias.

E é assim que chegamos a resultados concretos como estes: uma das jornalistas mais atuantes na área da proteção dos direitos da infância e da adolescência é obrigada a eliminar um álbum virtual de acesso restrito porque há nele a foto de pais dando banho em seu bebê; uma mãe amorosa tem a foto em que amamenta seu filho retirada da rede social da qual participa. Tudo em nome do bem. E, claro, como muito do que nos tem sido impingido nos últimos anos, com a melhor das intenções.

Até o final do século XX, esta era uma realidade que só havíamos vislumbrado pela ficção. Agora, o futuro chegou. Não há respostas nem soluções fáceis para as questões apresentadas pelo novo mundo. Mas acho que é preciso ouvir a sirene e acordar.

(Publicado na Revista Época em 16/05/2011)

A Mulher-Aranha

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

O mundo era melhor quando existiam ônibus de bizarrices. Não as de verdade, mas aquelas feitas para nos enganar. A gente pagava ingresso e se assombrava com os mistérios do mundo. Agora, liga a TV e vê gente com nome e sobrenome comendo barata e cocô para arranjar uns minutos de fama. Pronto, acabou-se o encanto. Eles comem mesmo barata e cocô. É real. E assim nos roubam a possibilidade da fantasia e do espanto. Nada mais é bizarro depois disso. E tudo é real, em tempo real, reality show.

E vai se tornando insuportável viver num mundo com tanta realidade. Overdose de realidade também mata. A gente só vive por causa da fantasia. Só existe uma vida porque inventamos uma vida. Se nosso cotidiano é preenchido apenas por fatos nos tornamos zumbis. Não suporto mais esse mundo de fatos e de pessoas que confundem fatos com verdades absolutas.

Por isso, hoje, depois de testemunhar gente criando camiseta e xícara comemorativa à morte do Bin Laden, eu acordei com saudades de Monga, a mulher-gorila. Talvez a maior frustração da minha infância. Eu nunca vi Monga, a mulher-gorila. Nunquinha. Como toda boa fantasia, ela sempre me escapava. Quando eu achava que ela surgiria entre as nuvens de poeira de Ijuí, ela já estava em outro lugar. Diziam que em Cruz Alta, Catuípe ou Panambi. Mas acho que me enganavam. Monga era inteligente demais para preferir Cruz Alta a Ijuí. Não, é claro que não faz nenhum sentido preferir Cruz Alta a Ijuí. Até Xuxa surgiu em Santa Rosa e depois Gisele Bündchen em Horizontina. Tudo ali, pertinho. Mas nada de Monga.

Ah, Monga, você sim era de verdade. “Capturada nas selvas do Congo, esta mulher leva uma vida oculta, um sórdido segredo, que agora é revelado. Tarde demais. Dolorosas contrações castigam o seu corpo. A metamorfose sinistra já começou. A linda moça se transforma em Monga , a mulher-gorila.” Monga, monga, como eu sofri por você!

Então surgiu em Ijuí ela, a única, a incomparável, a sinistra Mulher-Aranha. E eu tanto implorei, rastejei, me humilhei, que minha mãe me deu dinheiro para entrar no ônibus onde a abominável mulher de pernas pretas e peludas (conheci outras, depois) vivia. Eu tinha uns seis anos. E era tímida como um mico-leão-dourado.

Lembro de ter entrado no ônibus fora de linha com solenidade. Era uma fila e cada um tinha o seu momento com a abominável. Quando chegou a minha vez, eu entrei, uma conga azul marinho atrás da outra. Me postei a uma distância segura daquela mulher loira oxigenada, boca de batom vermelho e oito patas de caranguejeira. Meu deus, era verdade. A Mulher-Aranha existia.

Arrisquei um…

— Oi.

E ela:

— Ahn?

Meu irmão me disse, quando voltei para casa, que a Mulher-Aranha não me ouvia direito porque era um truque de espelhos e ela estava muito mais longe do que de fato parecia. Mas eu não acreditei. Tinha certeza do infortúnio da Mulher-Aranha. Da verdade da Mulher-Aranha.

— Oi.

— Ahn?

— Você nasceu assim?

— Ahn? Fala mais alto!

— VOCÊ NASCEU ASSIM?

— Sim.

Foi neste momento que tive um vislumbre do meu futuro, mas na hora não percebi. Era minha primeira entrevista. E ela revelava não só que eu tinha uma certa queda para a reportagem, como que tipo de repórter eu seria. Cheguei bem perto, perto até demais ela me disse. E perguntei, com os olhos cravados nos dela (ou no espelho, como meu desagradável irmão viciado em fatos insistia em repetir):

— Você sofre muito?

Ela garantiu que já estava acostumada. E meu tempo acabou. Saí com minhas congas azuis, uma atrás da outra, e por um mês andei arrasada me batendo pelos cantos da casa, com pena da abominável. Depois, esqueci.

Hoje, quatro décadas mais tarde, ao assistir ao casamento do príncipe William com a plebeia Kate Middleton, seguido pela operação Bin Laden, tenho certeza de que só Monga, a mulher-gorila, pode salvar este mundo.

O milagre da privada

Por que as novas igrejas evangélicas fazem tanto sucesso

Há um vídeo circulando na internet que tem provocado ataques de riso. É bem engraçado mesmo. Mas não é apenas isso. Ele nos dá a possibilidade de pensar algo importante: por que as novas – novíssimas – igrejas evangélicas arrebanham tantos fiéis e fazem seus criadores, sempre um bispo fulano ou apóstolo sicrano, enriquecer com uma rapidez de deixar qualquer capitalista orgulhoso. E em seguida expandir sua igreja para outros países/mercados – ou muito pobres ou povoados por imigrantes de países pobres. Ao mesmo tempo em que passam, como qualquer empreendedor competente, a diversificar seus negócios para outras áreas de atuação. O fenômeno é bem conhecido, mas este vídeo de três minutos pode nos ajudar a alargar a questão para outros pontos de vista.

O vídeo no YouTube se chama “O milagre da privada”. E, ao terminar de assisti-lo, podemos pensar, com algum senso de humor, que o conceito de onipresença divina acabou de ser ampliado. Nele, uma senhora muito carismática conta ao pastor que Deus fez um milagre com ela. Pelo que entendi, ela usou um travesseiro vendido na igreja através do qual o poder divino se manifesta. No caso dela, colocou o travesseiro na barriga, sobre a região do intestino, e pela primeira vez na vida, segundo seu relato, conseguiu o que lhe parecia impossível.

E aí os leitores mais pudicos que me perdoem – assim como a Época, que com toda razão exige um texto elegante –, mas neste caso é essencial respeitar a linguagem usada, porque ela contém informação. A senhora conta que finalmente, depois de décadas de sofrimento, de passar “de 15 a 20 dias” sentando-se na privada inutilmente, graças à interferência divina obtida através do travesseiro e da igreja, conseguiu dar “uma bela de uma cagada”.

Apesar de termos pudores com esta parte do cotidiano do corpo, a única que nem toda a riqueza do mundo consegue fazer cheirar bem, a compreensão do relato é imediata. E a mulher dá seu testemunho com uma alegria e uma sinceridade que me parece que rimos com ela, por identificação humana – e não dela. O que faz uma grande diferença.

A senhora parece realmente feliz por Deus ter lhe soltado os intestinos depois de uma vida inteira de prisão. Para ela era um grande drama – e todos nós sabemos que pode mesmo ser. “Meu Deus, por que todo mundo caga menos eu?”, relata ela. “Misericórdia, meu Deus!” Era este, afinal, o milagre que esperava de sua fé.

Ela deve ter muitas outras mazelas na vida, mas a maior de todas era esta. E supostamente seus problemas na área acabaram. Porque este ato tão simples para a maioria da humanidade lhe era negado, ela usa a palavra “cagar” várias vezes. Goza com a palavra que nomeia a função a qual finalmente tem acesso. E é por isso que eu a repito aqui. Porque usar “defecar” seria uma traição à sua narrativa.

O vídeo parece genuíno, mas não tenho como comprovar sua veracidade. Se ela é uma atriz, merece um Oscar. Se for uma peça de humor, é ótima. De qualquer modo, “milagres” comezinhos acontecem aos milhares todo dia nessas novas igrejas evangélicas, determinantes para a transformação do Brasil num país cada vez mais multirreligioso. Basta ligar a TV ou acessar os respectivos sites para testemunhar que, se existe um Deus, ele anda ocupadíssimo resolvendo questões as mais prosaicas. Escolho este “milagre”, e não outro qualquer, apenas porque ao alcançar o território da privada ele explicita ainda mais o fenômeno na esfera pública.

A imprensa tem denunciado a exploração dos fiéis e o enriquecimento ilícito de algumas dessas igrejas – e, principalmente, a locupletação de seus fundadores. Como na ótima reportagem “Milagres e Milhões”, de Ricardo Mendonça e Mariana Sanches, publicada na Época em 2010. Os exemplos são muitos e contundentes. Mas há algo, de outra ordem, que é importante compreender nesse fenômeno. E que a senhora de “O milagre da privada” nos conta muito bem.

O problema que encontro na crítica generalizada que se faz a essas novas igrejas evangélicas, da mesa de bar às discussões mais formais, é o menosprezo da capacidade de discernimento do povo. Supostamente os fiéis que lotam os templos seriam apenas vítimas de estelionatários da fé. Dando um dinheiro que lhes falta para quase tudo em troca de fumaça. Me parece que esta é uma verdade em alguns casos – mas apenas parte dela. É preciso complicar mais a questão.

Primeiro porque a fé, por definição, não pertence à esfera das comprovações científicas. Se fosse este o critério, haveria de se proibir todas as igrejas, inclusive a Católica. Fé é crença, não ciência. Você acredita se quiser ou puder. Alguns têm fé, outros não. A Constituição brasileira acolhe a todos ao admitir a liberdade religiosa. Mesmo que – ainda bem – o Estado seja laico. Isso significa que, se a senhora do vídeo quiser acreditar que o travesseiro ungido libertou seu intestino, é um direito dela. Da mesma forma que outros acreditam que João Paulo II é santo. E outros não acreditam em nada.

O problema maior, em meu ponto de vista, é achar que o povo que escolhe essas novas igrejas e acredita em milagres como esse é apenas uma vítima passiva. Este raciocínio reduz as pessoas e a compreensão do fenômeno. Ninguém dá nada – muito menos o seu dinheiro – se não recebe algo em troca. Quando esta troca se desequilibra e as pessoas se sentem enganadas, como em qualquer negócio, elas ou mudam de igreja ou vão à Justiça – se conseguirem acesso.

O povo brasileiro é bastante pragmático. E me parece que as pessoas entendem claramente que é um negócio, ainda que seja um negócio embrulhado em fé – e por isso a maior parte dos casos na Justiça é dessas igrejas e não das tradicionais. Não me parece que a busca maior nesse caso seja pela transcendência: o que se quer é uma solução prática e imediata, como é o espírito do nosso tempo apressado. Se dessacraliza o sagrado para sacralizar literalmente a mercadoria.

Pensar que os fiéis não sabem o que fazem pode ser arrogância – e até preconceito. Assim como ficar repetindo que o povo não sabe votar quando o resultado do processo democrático é diferente do esperado por determinada pessoa ou grupo político.

E o que essas igrejas oferecem que faz valer a pena dar um dinheiro que fará falta? Algo que possivelmente as pessoas que as procuram não encontram em nenhum outro lugar: acolhimento e escuta. É por isso que pagam. Há uma enorme carência de escuta em nosso tempo. Nunca se falou tanto – e talvez nunca tenha se escutado tão pouco. É este o vácuo que tem sido ocupado pela religião de mercado.

Que outro lugar, neste país, hoje, está de portas abertas e com alguém a postos para escutar o que o outro tem a dizer, ainda que possa ser apenas para avaliar o quanto de dinheiro poderá arrancar de quem desabafa? Se você está doente ou seu marido é alcoólatra, você vai encontrar alguém que o escute no SUS? Se seu filho está mal nos estudos ou agressivo em sala de aula e em casa, ou envolvido com traficantes, você vai encontrar alguém que o acolha na escola ou em outra instituição? Se você está sem emprego ou sua casa foi levada pela enchente porque a prefeitura e o estado deixaram de fazer as obras necessárias, onde você vai encontrar um teto e um banco para sentar e um ombro para chorar, ainda que tenha de dar o último trocado que restou no seu bolso? Em que outro lugar você se sentirá parte, ainda que no meio de uma multidão, mas uma com a qual você se identifica e o reconhece como um igual?

Por mais fraudulento que possa parecer – e em muitos casos é –, há algo que funciona nesses espaços. Há uma mercadoria que é entregue – ou os templos estariam vazios. E é entregue em geral não por um pastor ou bispo ou apóstolo ou irmão fulano qualquer, mas um fulano com um nome, sobrenome e rosto parecido com o do fiel. Este acolhimento e esta escuta fazem diferença na vida dessas pessoas ou elas não estariam lá. Deveria ser diferente? Acredito que sim. E lamento que não seja.

Mas as pessoas, todas e especialmente as mais pobres e desamparadas, têm de se virar com a realidade que está aí. Hoje, agora. E estas são as portas que estão abertas – quando quase todo o resto parece falhar. Ou está fechado. Ou não tem vaga.

Onde mais a senhora do vídeo poderia contar no microfone, ser ouvida e ser abraçada por aquele que está no lugar da autoridade porque deu “uma bela cagada” pela primeira vez na vida?

Pois é.

(Publicado na Revista Época em 09/05/2011)

Minuto

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

O carro parou no sinal em Higienópolis. O homem estava deitado sobre uma esteira. Como um chefe de família fazendo uma sesta depois do trabalho. Enquanto isso, a mulher se acocorava diante de uma espécie de armário de cozinha. Era uma cena doméstica rotineira. Mas era uma esquina exposta de São Paulo. Não havia proteção sobre eles, nem mesmo uma marquise, mas a mulher se movia como se inexistisse um mundo para além dela e de seu homem. Como se estivesse numa casa com paredes. Ela pegava restos de alimentos e fazia um prato como se fosse uma dona de casa comum. E o que eu pensei ser um armário era a sua geladeira. Era como espiar alguém que não sabia que era espiada pelo buraco da fechadura. Mas era uma esquina de cidade. E era chocante porque era uma esquina da cidade, mas ela não sabia.

Parecia, porém, que só eu a via. E por alguns segundos cheguei a duvidar que estivesse vendo, que a mulher existisse, que fosse real aquela imagem surreal. Olhei então para o homem. E enquanto a mulher permanecia alheia a tudo menos ele, o homem tentava fazer contato. Para todos que atravessavam a rua e passavam pela esquina, ele abria um largo sorriso. Mas ninguém o olhava. Ele tentava de novo. E ninguém o olhava. No meu horror eu queria gritar que ele estava lá, mas fiquei com medo que ninguém me visse e então eu também teria de duvidar de mim. Finalmente entendi por que a mulher tinha certeza de que havia paredes. Porque havia.

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