Maracutaia Filmes S.A.

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Eu confesso: comprei um filme pirata. Sim, sim, eu sei. É como contribuir com o tráfico, botar uma AK-47 na mão de uma criança inocente, afundar Hollywood em tempos em que os Estados Unidos já estão tão por baixo, tadinhos. Mas, compreenda. Eu estava numa cidade sem cinema, trabalhando duro de sol a sol, fazia mais de 40 graus lá fora do quarto de hotel com ventilador de teto que espalhava mais poeira do que vento, e o cara anunciou 3 filmes por 10 real. Eu resisti, mas estaqueei na esquina. Voltei. Recuei. Comprei e enfiei na bolsa sem olhar pra trás. Sim, sim, me corrompi miseravelmente.

Mas fui punida. Acreditem. Castigada mesmo. Um filme pirata é um mergulho no processo anticivilizatório para o qual caminha a humanidade a passos largos de boçalidade. Comecei achando fascinante. Ao ler o nome do empreendimento cinematográfico em letras garrafais na tela — “Maracutaia Filmes S.A.” — fiquei com cara de conteúdo, tipo estudante de Ciências Sociais. Não é sensacional? A cara de pau, o senso de humor, o deboche. Nenhum disfarce, nenhum verniz, nem mesmo uma tentativa. Só aquilo que é: “Maracutaia Filmes”. E o S.A. para dar o toque de gênio. Depois dizem que brasileiro não é empreendedor.

Então, o filme começou. Mas não pude assisti-lo. Porque havia outro — aquele que se desenrola na plateia. Sim, porque o Pirata S.A. foi gravado da primeira fila do cinema, em plena sessão. Que já começou com um celular tocando. “Desliga o celular!”, alguém grita. E o fulano não desliga. De vez em quando a tela inteira fica preta, numa sombra que a cobre progressivamente. Efeito interessante, comentei com minhas orelhas. Só depois entendi que era alguém passando na frente da câmera para ir ao banheiro. E era só o primeiro.

A mãe judia foi morta pelo nazista em frente ao filho ainda criança. No filme oficial. No meu filme, a plateia riu. Assim mesmo. Não ouvi o tiro, só as gargalhadas. Eles achavam hilariante um nazista matar uma mulher esquálida diante do filho. E assim seguiram até o fim em cascos de rebanho. Toda vez que aparecia alguém deformado, eles riam. Quando alguém chorava, eles riam. Se alguém sangrava, eles riam. Finalmente, quando alguém se beijava ou havia alguma insinuação sexual, eles gritavam e batiam os pés. Ainda bem que Barba Negra não viveu para testemunhar essa barbárie. Ele não suportaria ser pirata num mundo assim.

Quem são eles?, pensei. A resposta veio célere e aterrorizante: somos nós. Não, eu não. Mas nós. Me lembrei de um domingo, meses atrás, em que fiquei zapeando a TV aberta no final da tarde. E fui me deprimindo, me deprimindo, até virar uma pocinha no chão da sala, mais amarga que um chá de losna. Percebi ali que era tudo em vão. Não havia esperança. Era me iludir ou morrer. Então fiz minha opção pela vida. E me iludi.

E vivia razoavelmente contente até aquele maldito camelô me atentar com aquela droga do Matrix. Sim, um filme pirata é como a pílula vermelha que Morpheus oferece a Neo. Você quer enxergar ou seguir vivendo na ilusão? Mas o camelô não me deu escolha, ele me enganou. Não, não é verdade. Não posso me absolver. Eu sabia o que estava fazendo. É pior que uma Ak-47 nas mãos de uma criança, é mais devastador do que uma pedra de crack. A realidade é sempre muito mais violenta. Eu não sabia que assistiria ao filme mais pesado da minha vida. Não o da tela, mas o da plateia assistindo ao filme da tela.

Quando o filme acabou, e a plateia urrava diante dos créditos que deslizavam sobre corpos humanos despedaçados pelo Holocausto, eu descobri o segredo de Lars Von Trier. Ele tinha assistido ao mesmo filme que eu. E então o filmou. E é o que vem fazendo desde então.

A vida sugada por um ralo de piscina

Uma mãe leva ao Congresso sua luta pela proteção dos filhos dos outros

Sempre que viajo, seja em um ônibus ou avião, olho ao meu redor e penso no que leva cada uma daquelas pessoas desconhecidas para o mesmo destino que o meu. Sei que o destino apenas parece o mesmo no mostrador da sala de embarque, mas que é sempre diferente para cada um de nós. Assim como sei que cada pessoa de fato não carrega uma mala, mas sua história. E que algumas delas suportam um excesso de peso que não pode ser mensurado na balança do check-in. Na véspera de 9 de agosto, talvez alguém possa ter olhado para aquela mulher de olhos verdes, cabelos ondulados, calças pretas, bata estampada e salto alto, e pensado que ela era uma executiva ou mesmo uma assessora parlamentar no voo SP-Brasília das 15h51. Ela recusa a bebida e o lanche que a aeromoça oferece. Aceita uma bala. Gestos casuais, escolhas que nada dizem. Talvez a passageira da janela esteja fazendo dieta. Ou tensa demais para comer ou beber. Ou apenas enfastiada ou enjoada. Nem mesmo alguém com muita imaginação poderia supor que uma parte essencial daquela mulher não está ali, mas presa no fundo de uma piscina há 13 anos.

Odele Souza, este é o seu nome, embarcou naquele avião porque sua filha teve os cabelos, tão parecidos com os dela, sugados pelo ralo da piscina do condomínio em que a família vivia, em São Paulo. A sucção era tão forte que o irmão mais velho puxou a menina de 10 anos com toda a sua força e só conseguiu arrancar um punhado de cabelos. Desde então, Odele vive uma dor que ninguém pode medir: a de testemunhar sua filha crescer e se tornar mulher deitada em uma cama, sem consciência de si mesma. Flavia tem hoje 23 anos.

Em Brasília Odele se encontrou com um homem que também carregava um peso invisível à balança eletrônica. Ele vinha do Rio de Janeiro para encontrá-la. Com a mesma tragédia, ele difere de Odele porque sua dor ainda é carne viva. Este homem é pai. E perdeu sua filha mais velha, também com 10 anos, quando ela brincava numa piscina de fibra de vidro na casa de amigos numa festa de aniversário. Em certo momento, os amigos resolveram sair da piscina em busca de outra brincadeira. Ela ficou. Plantava bananeira quando teve os cabelos sugados pelo ralo. Só conseguiram tirá-la de lá depois de desligar a bomba da piscina. Muito tarde para a menina. Como Flavia, ela era excelente nadadora. Diferentemente de Flavia, ela morreu ali.

Era 12 de fevereiro deste ano. E esse pai não consegue falar de sua perda imensurável sem chorar. Ele é professor de educação física e começou a ensinar sua filha a nadar quando ela tinha três meses de idade. Odele sabe que o choro vai secar um dia. Para ela, foram dois longos anos em que as lágrimas se tornaram parte de seu olhar. Depois, elas foram estancando e agora aparecem em geral à noite, quando se sente muito só entre as paredes do seu quarto. Odele sabe que as lágrimas até podem secar, mas a dor não acaba nunca.

E é por saber disso que ela e esse pai estão ali. Junto com eles há um perito americano, Lawrence Doherty, que foi consultor das leis de segurança nas piscinas aprovadas nos Estados Unidos e na Colômbia, e o brasileiro Augusto Cesar Araújo, representante da Associação Nacional dos Fabricantes e Construtores de Piscinas e Produtos Afins. À noite, no hotel, eles alugam um projetor de slides e acertam os últimos preparativos para a exposição em PowerPoint que farão no dia seguinte para o deputado federal Darcísio Perondi (PMDB-RS), relator da lei federal de segurança nas piscinas que tramita no Congresso.

Foi Odele quem reuniu aquele grupo na capital federal para propor uma emenda ao projeto de lei que possa garantir que nenhuma criança ou adulto morra porque seus cabelos ou membros foram sugados pelo ralo de uma piscina. Às vezes a pressão é tão forte que chega a sugar parte dos intestinos, como aconteceu com Abigail Taylor, uma menina americana de 7 anos. Uma ameaça real, que mata pelo menos uma pessoa por ano no Brasil, isso se forem considerados apenas os casos divulgados pela imprensa – uma minoria. O Brasil é um dos países com maior índice de mortes por afogamento no mundo – mas não há estatísticas oficiais de quantos deles são causados pela sucção dos ralos das piscinas.

Do interior do seu apartamento em São Paulo, de onde pouco pode sair porque Flavia está presa a uma cama e ela é refém dessa tragédia, Odele se conecta à internet e usa a tecnologia para mover uma campanha incansável para que os brasileiros saibam que, mesmo no fundo das piscinas mais rasas, pode haver perigo de morte. Um risco que poderia ser evitado com o uso de equipamentos simples de proteção, como tampas antiaprisionamento e dispositivos que desligam automaticamente a bomba em caso de obstrução ou bloqueio do ralo. Como, por ignorância ou descaso, não existe a atenção devida à segurança, Odele briga para salvar a vida dos filhos dos outros de ter o destino da sua.

Como Flavia teve a fala roubada, sua mãe criou uma voz para ela. No blog Flavia vivendo em coma, Odele narra sua luta cotidiana por um mundo onde crianças não percam o futuro apenas porque estavam brincando em uma piscina num dia quente de verão. E, para ela, é como se Flavia pudesse falar, e estivessem juntas nessa batalha por dignidade. Contei a história dessas duas mulheres em uma reportagem chamada Saudades de sua voz. E também em um texto nesta coluna, com o título de Deus e a Eutanásia. Desde 2009 tenho testemunhado a força de Odele Souza. E mais uma vez pergunto a ela: “Por que você briga tanto para que os filhos dos outros não morram?”. E ela me responde, com a inteireza de sempre e um olhar que queima, mesmo quando suas pupilas bóiam em água salgada:

– A luta por uma Lei Federal para Segurança em Piscinas, com ênfase na sucção dos ralos, significa muito para mim. Além da indiscutível importância pública, essa luta me ajuda a conviver com o fato de ter visto Flavia crescer numa cama sem possibilidade de se tornar uma jovem como qualquer outra de sua idade. Sem a chance de estudar, se divertir, namorar, enfim, viver a sua juventude de forma saudável. Essa luta me ajuda a conviver com o fato de ver Flavia crescer nessa “cama-casulo”, se tornando uma borboleta. Que essa minha luta possibilite à Flavia, mesmo presa e imobilizada em seu estado de coma, voar o mais alto que ela possa. Que Flavia voe alto e longe e que leve às outras vítimas desse tipo de acidente – e são muitas – uma mensagem de amor, de resistência e de cidadania por alertar para o perigo existente nos ralos de piscinas. Antes da tragédia ocorrida com Flavia, poucos sabiam que ralos de piscinas – se vendidos, instalados e mantidos fora dos padrões de segurança – podem prender embaixo d’água uma pessoa pelos cabelos, ou por qualquer outra parte do corpo. Antes do mergulho sem volta de Flavia, poucos sabiam que ralos de piscinas podem matar ou deixar uma pessoa em coma. Com minha luta tento compensar, se é que isso é possível, a dolorosa convivência com o silêncio ao qual Flavia foi condenada a viver. Diante da cruel imobilidade imposta à minha filha, eu não me permito ficar imóvel. Diante da imobilidade e do silêncio impostos à Flavia, eu preciso estar em constante movimento. E preciso gritar. Gritar por mim, por Flavia e por todas as vítimas que morreram afogadas enquanto nadavam em uma piscina sem segurança.

Odele é assim. Intensa e inteira, mesmo sabendo que para sempre lhe faltará um pedaço essencial de si. Quando penso nela, a enxergo ao lado de Flavia, que se tornou uma moça de beleza suave sobre a cama. Em seu coma vígil, ela abre os olhos durante o dia e os fecha à noite, e se sobressalta com qualquer ruído. Vejo Odele com seu inseparável lap top, sentada perto de sua filha, gritando por justiça enquanto em sua casa o silêncio a perfura. Pelas internet ela descobriu peritos em diferentes países do mundo, arregimentou aliados e fez amigos. E no dia 9 alcançou Brasília. Depois de duas horas de exposição e da entrega de um texto cuidadosamente elaborado ao longo de meses com a sugestão de emenda ao projeto de lei, Odele deixou a Câmara dos Deputados com a promessa de que sua proposta será incluída e que o projeto será votado o mais rápido possível – talvez até o final desse ano. Se alguém fez a Odele uma promessa que não pretende cumprir, mal sabe a encrenca que se meteu. Conheço poucos brasileiros tão obstinados quanto ela. Dia após dia, Odele acorda para gritar.

No voo de volta Odele estava ansiosa. Afastar-se de Flavia exige uma operação complexa. Ela não conta com nenhum familiar para ajudá-la. Na ansiedade, pergunta ao passageiro ao lado se ele tem filhos. Ele responde que tem. Odele tenta contar sobre a sua luta. O passageiro ouve, mas parece não escutar e nada diz. Quando chega em casa, é para Flavia que Odele narra mais um capítulo da história que constrói para ambas. Como ela diz: “Em minha eterna conversa com minha filha, onde só se ouve a minha voz”. É chorando que Odele diz à Flavia:

– Princesa, mesmo sem sair da cama e do seu quarto, você viajou comigo para Brasília. Você estava presente na reunião. Você voou, Flavia.

(Publicado na Revista Época em 15/08/2011)

“Pega no Jobim!” — e outras histórias de falo numa mesa de meninas

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ana Maria não sabe se acontece só com os homens que ela conhece. Mas, dado o fato de que está com 38 anos e já teve mais namorados do que sua mãe gostaria, dois maridos e dúzias de amigos, acredita que o fenômeno é um pouco geral. Refere-se à fixação no pinto. Você pensa que os homens só falam de mulher?, ela discursa numa mesa de bar com as amigas. Errado. Eles só falam de pinto. Seja ele um pedreiro, que ganhe a vida com as mãos, ou um intelectual daqueles que pontifica até sobre a marca da comida do seu cachorro, a preocupação de fato é com o falo. E continua, cada vez mais inflamada: por amor, por solidariedade, porque você sabe que não faz tanta diferença assim, seja lá o que se apresente diante dos seus olhos, uma mulher de verdade faz Óóóóóóóóóóóóóó da primeira à última transa. E deixa seu homem feliz e agradecido e disposto a amá-la melhor.

Nenhum homem sobrevive ao próprio pinto ser chamado de góli-góli ou bilu-bilu, ela ainda segue, agora já um pouco vermelha. Eles gostam de nomes como King Kong ou Godzilla. Então, finalmente as amigas entendem o porquê desse súbito discurso antropológico. Ana Maria desabafa. Ela está com um problema sério desde a semana passada. Ana Maria e o namorado assistiram ao Roda Viva com o Nelson Jobim e, contra todas as probabilidades, o programa afetou a vida sexual dos dois.

Impressionado com o tamanho do ego do ministro (que depois virou ex), o namorado da Ana Maria fez uma estranha relação e, naquela noite, pediu a ela que chamasse seu pinto de “Jobim”. Ana Maria não conseguiu — claro. “Pega no Jobim”, ele dizia. Ela bem que tentou, mas quando já estava a um milímetro, recuava. Resultado: há uma semana Ana Maria sofre de enxaqueca.

O tema empolgou a plateia. Em solidariedade à Ana Maria, Marlene resolveu contar a história de seu amigo Paulão. Ah, sim, elas conheciam Paulão muito bem. Paulão é aquele tipo de homem que habita o imaginário de todas as mulheres, independentemente de cor, origem geográfica ou classe social. Paulão é aquele tipo de homem que iguala o sexo feminino num suspiro uníssono. Ele é negro, grande e largo. Um metro e 97 centímetros de altura, um metro de ombros na largura, menos gordura no corpo do que um leite desnatado. Quando Paulão sorri, dá vontade de saber tocar piano. Para arrematar o que já era perfeito, por herança de um avô italiano safado e desaparecido, Paulão tem uns olhos verdes de gato.

E, o melhor de tudo, ele existe. Vocês sabem por que eu não vejo mais o Paulão?, diz Marlene, numa pergunta retórica. Vou contar. Lembram que Paulão era triste. Ele disfarçava, mas era triste. E nunca namorava ninguém. Sim, sim!, todas gritam. Paulão driblava as mulheres mais interessantes como se estivesse numa quadra de basquete. E, quando estava numa quadra de basquete, ele tinha sempre uma desculpa para não trocar de roupa no vestiário. Fato que, por si só, eliminava a hipótese de ele ser um gay escondido entre as camisas brancas impecáveis do seu armário.

Por que ele não namorava ninguém? Por quê? Por quê?, todas perguntavam ao mesmo tempo, e várias cabeças masculinas de outras mesas se viraram para prestar atenção. Então, eu só descobri a razão noites atrás. Lembram daquela madrugada que foi a noite mais fria do ano em São Paulo? Pois é. Eu e o Paulão tomávamos um vinho no tapete da minha sala, depois de termos assistido pela sexta vez ao Alien IV, aquele em que a Sigourney Weaver vira um clone. Ninguém lembrava, mas ela continuou mesmo assim. Pois ele me disse ali, talvez impressionado pelo monstro: “Eu tenho pinto pequeno”. Não!!!!! Sim, sim, eu também tentei disfarçar meu espanto, mas não consegui. “Viu só?”, ele me disse. “Isso que você nem viu. E nem está interessada em ver. E já fez essa cara de decepção.”

Sim, Paulão tinha seu pequeno falo entalado na garganta. Nestas horas, quando a ocasião é grave, vocês sabem que minha mente se desanuvia e eu me torno um modelo de racionalidade. Imediatamente comecei a seguir um método lógico. Deixa eu entender melhor, Paulão. Você sofre e evita se envolver com uma mulher porque acredita que seu pinto é pequeno. “Não acredito, ele é pequeno. Se eu fosse um homem de estatura normal, até que lidaria melhor com isso. Mas as mulheres olham para mim e esperam o Long Dong Silver, entende? Imagina, eu sou o clichê da potência sexual masculina do Ocidente. Negro e grande. (E lindo!, todas gritaram.) E aí, um pintinho de nada.”

Sim, Paulão era vítima do mito da raça. Ao desabafar, lágrimas cascateavam de seus olhos felinos. Tive de me concentrar muito para não fazer óin-óin na sua grande e bela cabeça de ébano. Não, pelo amor de deus, óin-óin não!, grita Carol. Se acalma, mulher, eu me segurei. Mas para de me interromper. E agora já dava para ouvir as moscas no bar. Mas, Paulão, vamos ser objetivos e trabalhar com fatos. Qual é o tamanho do seu pinto? “Quinze centímetros.” Mole? “Não! Duro. Viu, só? É disso que eu estou falando.” E desandou num tsunami.

Ah, meninas, eu respirei aliviada. Era uma bobagem. E eu sabia exatamente o que dizer.

Paulão, você está deixando a sociedade de consumo iludir você com sua propaganda enganosa. Eu posso garantir que seu pinto está acima da média do pênis… dos gaúchos, por exemplo. Não, não, não me olhe assim. Não estou falando de experiência prática, tenho comprovação científica. Eu li uma matéria sobre isso na Zero Hora quando passei um tempo casada com aquele gaúcho lá em Santa Maria. Um urologista fez essa pesquisa, cientificamente, acho até que tinha verba do CNPq. E, não posso lembrar os números exatos, mas era menos de 15 centímetros com toda certeza. Acho que em torno de 14, no máximo. Talvez 13 ou até 12. Duro.

“Você está dizendo isso só para me agradar”, fungou Paulão, ainda piscando lágrimas, mas já com um brilho no olhar.

Eu juro. Eu posso pedir para uma amiga localizar a matéria nos arquivos se você quiser. E você sabe muito bem como são os gaúchos. O mais belo pôr-do-sol do mundo, o povo mais politizado ao sul do Equador, o estado mais endividado da federação, os homens mais machos do Brasil… e o bigulino bem médio. O cara mediu. Está lá. Publicado.

“Não!”.

Nesta hora, contou Marlene, eu até me empolguei e me arrisquei na antropologia. Para que você acha que servem aquelas bombachas? Para criar o bicho solto? Nada disso. É para disfarçar a medianidade. Um pinto honesto, funcional. Esforçado. Nem mais nem menos que o de um baiano ou de um paraguaio, talvez menor que o de um argentino. Um pinto como outro qualquer, milhares de combinações genéticas depois, feito para procriar ou até brincar, mas não para impressionar.

Paulão se tornava um novo homem diante de mim. Autoconfiante. Pintudo. Até deu uma ajeitadinha no saco sobre a calça.

Paulão! Você está coçando o saco! É melhor ter pinto pequeno do que coçar o saco!

“Desculpa, desculpa, Marlene. Me empolguei.”

Pronto. Uma estatística idiota e o drama de uma vida inteira resolvido.

Quem entende os homens?, meteu-se Juliana. Calma, calma, o melhor vem agora, anunciou Marlene. Paulão saiu lá de casa andando diferente. Pernas afastadas. Queixo de espartano. E, desde então, não me liga. Está ocupado demais com seu novo olhar sobre o mesmo pinto.

Abandonada por um dos meus melhores amigos, fui possuída pelo mal. Depois de ouvir pela quinta vez sua voz de locutor de rádio na secretária eletrônica do celular, deixei um recado. Bem fofa a minha voz. E agora até o garçom está paralisado com a bandeja carregada de canecos de chope nas mãos, esperando o desfecho:

“Paulão, sabe aquela matéria que eu li lá na Zero Hora? Pois é. Pedi para minha amiga conferir no arquivo. Na verdade, a média do pinto dos gaúchos é de 20 centímetros. Mas não te preocupa, você é um cara muito bonzinho e as mulheres não se importam com o tamanho do pênis. O que importa, você sabe, é a inteligência.”

Não! Você não fez isso!, disseram todas elas e também o resto do bar.

Fiz. Faz cinco dias, já. E Paulão desapareceu. Será que se matou?

No resto da noite, o chope chegou quente na mesa das meninas.

O Dia do Medo Macho

Os “machões” da Câmara de São Paulo estão precisando de terapia

Quando li nos jornais que a Câmara de Vereadores de São Paulo tinha aprovado um projeto de lei criando o “Dia do Orgulho Hétero”, minha primeira reação foi de indignação. Como cidadã que tem crises de bronquite por causa da poluição da cidade, em que ônibus, carros e caminhões circulam deixando nuvens de fumaça com monóxido de carbono, entre outras porcarias, sem que ninguém pareça fiscalizar. Como cidadã que tropeça nos buracos de calçadas quando anda a pé e já sofreu trancos na coluna quando anda de carro por causa da péssima pavimentação das ruas. Como cidadã que passa horas todo dia num trânsito empacado e é empurrada e machucada em trens e ônibus lotados porque o transporte público é insuficiente e ineficiente e a população que dele depende é tratada como gado. Como cidadã que testemunha a péssima qualidade da educação pública e do atendimento nos postos de saúde. Como cidadã que sofre nos períodos de seca com a qualidade do ar, mas teme a chuva porque ano após ano os mais pobres morrem soterrados ou têm suas casas destruídas por causa do descaso do poder público e de obras adiadas. Como cidadã que vive tudo isso na cidade mais rica de um país que é a sétima economia do mundo, ao ler a notícia minha primeira reação foi de indignação.

Afinal, será que os vereadores que deveriam honrar o voto da população não têm problemas reais para discutir no seu tempo muito bem pago com dinheiro público? Mais ainda ao saber que o autor do projeto, o vereador Carlos Apolinario (DEM) apresentou a proposta em 2005 e só conseguiu aprová-la, em primeira votação, no ano de 2007. Botou de novo a proposta em discussão em junho deste ano e, desde então, segundo a imprensa paulistana, estava emperrando a análise de outros projetos para, como chegou a ser dito, “vencer pelo cansaço”.

Quem é Carlos Apolinario, o homem que está tão preocupado com os gays? Como lembrou Fernando de Barros e Silva, colunista da Folha de S.Paulo, Apolinario é um adepto do troca-troca, pelo menos na política: “Já esteve no PMDB, passou por um tal de PGT, frequentou o PDT e hoje se abriga no DEM”. Mas, pelo empenho demonstrado, parece que aprovar o “Dia do Orgulho Hétero” era uma questão de convicção e de fidelidade para o vereador. E o projeto foi aprovado por 31 de 55 vereadores que só estão lá porque seus eleitores pensaram que fariam um bom trabalho.

Datas como o “Dia do Orgulho Gay” ou o “Dia da Mulher” ou o “Dia da Consciência Negra” fazem parte da luta pelos direitos básicos de parcelas da população que historicamente sofreram – e ainda sofrem – as consequências da discriminação e do preconceito por aquilo que são. Os gays, por exemplo, contra os quais o “Dia do Orgulho Hétero” se opõe, têm sofrido diariamente por séculos e continuam a ter ainda hoje sua vida ameaçada mesmo em cidades como São Paulo, em que os casos de homofobia aparecem com frequência alarmante nas manchetes da imprensa. Dezenas de pessoas são assassinadas por ano no Brasil por causa de sua orientação sexual. E, em julho, um homem teve parte de sua orelha decepada no interior de São Paulo ao abraçar seu filho porque foram “confundidos” com um casal homossexual – como se isso justificasse a violência.

A homofobia é um problema sério, que tem ameaçado a vida de cidadãos honestos, pagadores de seus impostos, que com seu trabalho ajudam a manter São Paulo e o Brasil funcionando. E a homofobia merece a preocupação dos vereadores de São Paulo. Em vez de se preocupar com isso, o que eles fazem? Aprovam uma lei que só vai acirrar a violência.

Em seu site oficial, Carlos Apolinario, que se autointitula “o vereador das mãos limpas”, discorre sobre “heterofobia” e “ditadura gay”. E assim justifica seu projeto: “Na verdade, meu projeto de lei que cria o Dia do Orgulho Hétero não significa um ataque à figura humana dos gays, que eu respeito. Meu objetivo é combater os excessos e privilégios praticados pelos gays”.

De fato, como todos sabemos, na vida real não há notícia de nenhum heterossexual sendo espancado por gays na Avenida Paulista ou discriminado na escola, no trabalho e em espaços públicos, como acontece com os homossexuais. Não há notícia de nenhum heterossexual ouvindo piadas nem risinhos por onde passa. Logo, o “Dia do Orgulho Hétero” pode ser interpretado como, no mínimo, uma provocação vulgar. Mas com consequências nefastas, na medida em que a homofobia tem causado a morte de seres humanos.

Como os heterossexuais nunca tiveram seus direitos nem sua vida ameaçados por causa de sua orientação sexual, não há justificativa para uma data como esta ser aprovada pela Câmara e fazer parte do calendário oficial de São Paulo. Como disse Pedro Estevam Serrano, professor de direito constitucional da PUC-SP: “Constitucional é (a lei). Mas, legítima no sentido humano, não é. Não é uma atitude de paz, é uma atitude beligerante”.

Por tudo isso, minha primeira reação foi de indignação. E, como cidadã, é indignada que devo me manter, já que a lei foi criada e aprovada por homens e mulheres públicos para ter repercussão e consequências públicas sobre a vida dos milhões de moradores de São Paulo. E com ecos no país e fora dele.

Mas, é sempre bom a gente dar a volta, e tentar compreender porque homens como Carlos Apolinario e os outros 30 que votaram a favor de seu projeto tiveram a atitude que tiveram. Sempre vale a pena vestir a pele do outro, ainda que em casos como este seja uma tarefa e tanto. A pergunta que me fiz foi a seguinte: “Por que homens e mulheres heterossexuais, que nunca tiveram sua orientação sexual questionada ou sofreram qualquer discriminação por causa dela, se sentem tão ameaçados pela homossexualidade do outro?”.

E segui com questões que me permitissem alcançar Carlos Apolinario e os outros 30: “Se eu me considero heterossexual e estou em paz com minha orientação sexual, por que vou me incomodar com a do outro? Por que preciso criar uma lei que se oponha ao modo de ser do outro, se ele e o mundo inteiro respeitam o meu modo de ser? Por que me sinto ameaçado por uma expressão da sexualidade que é pessoal apenas porque é diferente da minha?”. Por quê?

Em geral, a violência, seja ela física ou psíquica, é uma reação à percepção de ameaça. Você reage para se defender. Sente-se inseguro, arma-se (com pistolas, palavras ou leis) e reage com violência porque não consegue lidar de uma forma mais sofisticada com aquilo que interpreta como uma agressão. Se, na vida pública, não há nenhuma ameaça contra os heterossexuais sob nenhum ponto de vista, logo, não é aí que está o nó da questão. Portanto, é legítimo pensar que a ameaça possa ser uma percepção de foro íntimo para Carlos Apolinario e os outros 30. E, por dificuldades de lidar com essa questão no âmbito pessoal e privado, ela acabou se manifestando em fórum indevido, consumindo dinheiro público e acirrando problemas coletivos numa cidade que tem sido palco de crimes movidos pela homofobia.

Com isso não quero reforçar o clichê de que quem se sente incomodado com os gays pode estar com sua homossexualidade escondida no armário. Mas lembrar o que a necessidade de criar o “Dia do Orgulho Hétero” só desvela: a sexualidade é um território pantanoso e, para cada homem e mulher é pantanoso de uma maneira diversa. Não sei que tipo de perturbação moveu cada um dos vereadores que aprovaram a lei – e suas pulsões só acabaram por dizer respeito a mim e a todos os cidadãos de São Paulo porque eles fizeram dela algo público – fizeram dela uma lei.

Carlos Apolinario e os outros 30 não merecem o nosso escárnio, mas sim a nossa compaixão. Estes muitos homens e algumas mulheres precisam de ajuda, não de condenação. Preocupada com essa constatação, fui conferir seus rendimentos e verifiquei que um vereador de São Paulo recebe, por mês, R$ 15.033 de salário, além de R$ 16.359 de verba de gabinete para despesas variadas. Conclusão: dá bem para pagar uma terapia, dá não? Eles serão mais felizes e, mais bem resolvidos, poderão até se dedicar aos problemas reais de São Paulo. Nós todos, por razões humanitárias e de cidadania, agradecemos.

(Publicado na Revista Época em 08/08/2011)

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