Enfim, a emancipação masculina

O que é ser homem hoje? A boa notícia é que ninguém sabe

Lembro de um evento psicanalítico ocorrido em Porto Alegre, anos atrás, sobre “Masculinidade”. De repente, apareceu um engenheiro por lá, adentrando o mundo dos psis. Ele queria entender, como homem, a sua falta de lugar no mundo. Não sei se conseguiu, mas sua presença foi um belo movimento para fora do território conhecido, onde as contas já não fechavam, rumo ao insondável. Ainda tateando sobre esse tema tão fascinante, penso que a melhor notícia para todos nós é a confusão sobre o lugar do homem. Sobre isso, Laerte Coutinho, entrevistado no Roda Viva (TV Cultura) de 20/2, fez uma grande observação: os homens nunca fizeram a revolução masculina.

Para começar, quem é Laerte? Se você não ouviu falar dele, está perdendo uma revolução encarnada numa pessoa. Antes, porém, é importante sublinhar que ele talvez seja o maior cartunista brasileiro. Para mim, é um gênio. E não é uma opinião solitária. Não aquele gênio banalizado dos manuais 171 vendidos nas livrarias, mas gênio mesmo, daqueles que nasce um a cada muitos e muitos e muitos anos. Só para recordar, são dele histórias em quadrinhos como “Piratas do Tietê” e personagens como Overman, Deus e Fagundes, o Puxa-Saco. A minha vida, pelo menos, seria mais pobre se eu não pudesse ler todo dia as tirinhas do Laerte publicadas na Folha de S. Paulo.

Em 2010, Laerte passou a se vestir de mulher – publicamente. Tipo ir à padaria de saia e meia-calça. Laerte se tornou ora ele, ora ela, ele/ela no mesmo corpo e na mesma cabeça. E, desde então, não para de dar entrevistas nas quais parte dos entrevistadores tenta, com certo grau de ansiedade, encaixá-lo/a em alguma definição. A novidade, no sentido libertador do novo, mesmo, é que Laerte se coloca para além das definições. Nem acho que cross-dresser (homem que gosta de se vestir de mulher – ou vice-versa – sem necessariamente ser gay) serve para enquadrá-lo/a. Acho que todos nós ganharíamos – “héteros, gays, bissexuais, transgêneros, travestis, transexuais, assexuais etc etc” – se abolíssemos a necessidade de caber em algum verbete. Seres humanos não são como aqueles jogos de montar para crianças pequenas, em que é preciso encaixar o retângulo no retângulo, o triângulo no triângulo e assim por diante. A única definição que vale a pena é justamente a indefinição. Sou aquele/a que é sem se dizer. Ou sou aquele/a que é sem precisar dizer o que é.

E essa é a novidade de Laerte, que é homem, é mulher, é masculino, é feminino e é também alguma coisa além ou aquém disso. Que se veste de mulher, mas fala e caminha como um homem. Que na infância gostava de costura e de futebol. Que vai jantar de saia e unhas vermelhas com uma namorada, mas pode também ter um namorado. Que enfia um pretinho básico sem se tornar efeminado. Que começa a entrevista de pernas cruzadas e, lá pelas tantas, se empolga e abre as pernas sem se importar que no meio delas more um pinto. Laerte é novo/a porque nos escapa. É um homem novo, mas também pode ser uma mulher nova.

Em janeiro, Laerte foi protagonista de uma polêmica ao ser repelido/a no banheiro feminino de uma pizzaria paulistana por uma cliente que se sentiu incomodada com sua ambígua figura. Surgiram então ideias esdrúxulas, como a de fazer um terceiro banheiro para os que não se enquadrariam nas definições tradicionais. Se o terceiro banheiro vingar, vou começar a frequentar os três, porque começo a achar uma afronta a exigência de que eu tenha de me definir para fazer xixi. Por agora, acho tão ultrapassado haver banheiros separados por qualquer coisa, que nem pretendo me estender nesse assunto. Era apenas para contar um pouco quem é Laerte para aqueles que ainda o/a estão perdendo. E desembarcar no tema que me interessa mais.

A certa altura da entrevista, ele/ela fez a seguinte observação: “Existiu a tal da revolução feminina, que é um dos marcos da humanidade. O que não aconteceu é a revolução masculina”. Laerte referia-se ao fato de que as mulheres já fizeram mil e uma rebeliões e continuam se batendo por aí. Marlene Dietrich, por exemplo, causou comoção por usar calças, mas isso em 1920! Quase um século depois, Laerte nos empapa de assombro por ir ao supermercado de saia. Isso diz alguma coisa, não?

Eu acho que não é nada fácil ser homem hoje em dia porque não se sabe o que seja isso. Mas, se essa dificuldade fez o engenheiro do primeiro parágrafo ousar se sentar na plateia de um seminário de psicanalistas para se entender, esta é também a melhor notícia possível para um homem. A princípio, os homens nunca precisaram fazer nenhuma revolução para conquistar direitos porque supostamente tinham todos eles garantidos desde sempre. Uma posição cômoda, mas apenas na aparência. Podiam fazer o que bem entendiam. Desde que fossem “homens”. E aí é que morava – e ainda mora, em muitos casos – a prisão. Podiam tudo, desde que fossem uma coisa só.

Ser forte e competitivo; sustentar a casa e a família; ter todas as respostas, muitas certezas e nenhuma dúvida; gostar de futebol e de vale-tudo; dar tapas nas costas do colega; falar bastante de mulher, mas jamais de intimidade; nunca demonstrar sensibilidades; dar mesada para a esposa; fazer o imposto de renda; resolver o problema do encanamento… Que peso incomensurável. Era isso ser homem por muitos séculos, sem falar nas guerras. E era preciso estar satisfeito com isso porque, afinal, você estava no topo da cadeia alimentar da espécie, ia reclamar do quê?

Acontece que, hoje, nenhuma das características citadas define o que é ser um homem. Assim como nenhuma característica – tradicional ou não – define o que é ser uma mulher. Do mesmo modo que a anatomia também não é mais capaz de definir o que é ser um homem e o que é ser uma mulher. E nem a escolha da carreira ou a posição na sociedade. Se há algo que define o que é ser um homem e o que é ser uma mulher, este algo está fora das palavras. E isso é o que torna Laerte fascinante: ele se apropriou da confusão e tornou-se a indefinição.

Graças às mulheres, e também aos homens que ousaram sair do armário (e aqui não me refiro somente à orientação sexual), os homens começam a autorizar-se a vagar sem rumo por aí, cada um do seu modo. Até porque não há caminhos já trilhados para seguir, já que não é mais possível apenas refazer os passos do pai ou do avô – nem é suficiente se contrapor totalmente a eles e segui-los pelo avesso. O que há são vidas a serem inventadas.

É claro que muitos homens se arrastam pelas ruas lamentando a perda de lugar. Sem saber o que fazer da existência nem de si, alguns arrotam alto ou espancam gays na tentativa pífia de mostrar que ainda sabem o que são. Perder o lugar e confundir-se não é fácil, não é mesmo. Mas é um espaço inédito de liberdade. É possível arrancar o terno de chumbo e descobrir que pele existe embaixo dele. E faz parte estar ainda em carne viva.

Acho que os homens alcançaram, finalmente, um começo de emancipação. E espero que as mulheres tenham a grandeza de estar à altura desses novos homens que começam a surgir. E enfiem a saudade do macho provedor na lata de material reciclável. Porque há muitas mulheres que ainda suspiram de nostalgia do macho provedor, mesmo se achando modernas e liberadas. Pode até ser que esse seja um bom arranjo para alguém, mas já não há garantias. Faz parte da jornada amorosa acolher a confusão dos homens que amamos porque tudo deve ser mesmo muito novo e muito assustador para eles.

Uma amiga contava, dias atrás, que seu marido passou uns tempos arrebatado pela agente do FBI da série americana “Fringe” (ótima, aliás!). Ocorre que Olivia Dunham, a dita agente, é uma loira linda, inteligente e destemida. E ocorre que o marido da minha amiga não estava encantado no sentido erótico convencional: ele não queria transar com Olivia Dunham, mas “ser” a agente do FBI.

Os leitores com menos imaginação e ainda presos ao velho mundo pensaram nesse instante: o cara é gay. Não, ele não é. Ele pode preferir transar com mulheres – e, no caso, faz minha amiga muito feliz – e se identificar com a agente Olivia Dunham como outros se identificam com os personagens sempre “muito machos” de Sylvester Stallone ou até com o Neymar. Há espaço para tudo. E para todos. Se podemos ter fantasias infinitas, para que se limitar, seja nós o que formos? Minha amiga, que é sábia, achou muito divertido. E, assim, teve a experiência de namorar Olívia Dunham algumas vezes. Ainda não é para qualquer um/a, mas que pena que não é.

Lembram da frase mítica? “Uma terra onde os homens são homens, e as mulheres são mulheres”. Ufa, o faroeste se foi e ninguém sabe bem o que é ser homem nem o que é ser mulher nos dias de hoje. E não, os homens também não são de Vênus, nem as mulheres de Marte. Ou será que era o contrário?

Se estivermos à altura do nosso tempo, descobriremos que há infinitas possibilidades – e não uma só – de sermos seja lá o que for. Como alguém disse no twitter: “Na vida, não limite-se. Laerte-se!”.

(Publicado na Revista Época em 27/02/2012)

Me chamem de velha

A velhice sofreu uma cirurgia plástica na linguagem

Na semana passada, sugeri a uma pessoa próxima que trocasse a palavra “idosas” por “velhas” em um texto. E fui informada de que era impossível, porque as pessoas sobre as quais ela escrevia se recusavam a ser chamadas de “velhas”: só aceitavam ser “idosas”. Pensei: “roubaram a velhice”. As palavras escolhidas – e mais ainda as que escapam – dizem muito, como Freud já nos alertou há mais de um século. Se testemunhamos uma epidemia de cirurgias plásticas na tentativa da juventude para sempre (até a morte), é óbvio esperar que a língua seja atingida pela mesma ânsia. Acho que “idoso” é uma palavra “fotoshopada” – ou talvez um lifting completo na palavra “velho”. E saio aqui em defesa do “velho” – a palavra e o ser/estar de um tempo que, se tivermos sorte, chegará para todos.

Desde que a juventude virou não mais uma fase da vida, mas uma vida inteira, temos convivido com essas tentativas de tungar a velhice também no idioma. Vale tudo. Asilo virou casa de repouso, como se isso mudasse o significado do que é estar apartado do mundo. Velhice virou terceira idade e, a pior de todas, “melhor idade”. Tenho anunciado a amigos e familiares que, se alguém me disser, em um futuro não tão distante, que estou na “melhor idade”, vou romper meu pacto pessoal de não violência. O mesmo vale para o primeiro que ousar falar comigo no diminutivo, como se eu tivesse voltado a ser criança. Insuportável.

A velhice é o que é. É o que é para cada um, mas é o que é para todos, também. Ser velho é estar perto da morte. E essa é uma experiência dura, duríssima até, mas também profunda. Negá-la é não só inútil como uma escolha que nos rouba alguma coisa de vital. Semanas atrás, em um programa de TV, o entrevistador me perguntou sobre a morte. E eu disse que queria viver a minha morte. Ele talvez não tenha entendido, porque afirmou: “Você não quer morrer”. E eu insisti na resposta: “Eu quero viver a minha morte”.

Na adolescência, eu acalentava a sincera esperança de que algum vampiro achasse o meu pescoço interessante o suficiente para me garantir a imortalidade. Mas acabei aceitando que vampiros não existem, embora circulem muitos chupadores de sangue por aí. Isso só para dizer que é claro que, se pudesse escolher, eu não morreria. Mas essa é uma obviedade que não nos leva a lugar algum. Que ninguém quer morrer, todo mundo sabe. Mas negar o inevitável serve apenas para engordar o nosso medo sem que aprendamos nada que valha a pena.

A morte tem sido roubada de nós. E tenho tomado providências para que a minha não seja apartada de mim. A vida é incontrolável e posso morrer de repente. Mas há uma chance razoável de que eu morra numa cama e, nesse caso, tudo o que eu espero da medicina é que amenize a minha dor. Cada um sabe do tamanho de sua tragédia, então esse é apenas o meu querer, sem a pretensão de que a minha escolha seja melhor que a dos outros. Mas eu gostaria de estar consciente, sem dor e sem tubos, porque o morrer será minha última experiência vivida. Acharia frustrante perder esse derradeiro conhecimento sobre a existência humana. Minha última chance de ser curiosa.

Há uma bela expressão que precisamos resgatar, cujo autor não consegui localizar: “A morte não é o contrário da vida. A morte é o contrário do nascimento. A vida não tem contrários”. A vida, portanto, inclui a morte. Por que falo da morte aqui nesse texto? Porque a mesma lógica que nos roubou a morte sequestrou a velhice. A velhice nos lembra da proximidade do fim, portanto acharam por bem eliminá-la. Numa sociedade em que a juventude é não uma fase da vida, mas um valor, envelhecer é perder valor. Os eufemismos são a expressão dessa desvalorização na linguagem.

Não, eu não sou velho. Sou idoso. Não, eu não moro num asilo. Mas numa casa de repouso. Não, eu não estou na velhice. Faço parte da melhor idade. Tenho muito medo dos eufemismos, porque eles soam bem intencionados. São os bonitinhos mas ordinários da língua. O que fazem é arrancar o conteúdo das letras que expressam a nossa vida. Justo quando as pessoas têm mais experiências e mais o que dizer, a sociedade tenta confiná-las e esvaziá-las também no idioma.

Chamar de idoso aquele que viveu mais é arrancar seus dentes na linguagem. Velho é uma palavra com caninos afiados – idoso é uma palavra banguela. Velho é letra forte. Idoso é fisicamente débil, palavra que diz de um corpo, não de um espírito. Idoso fala de uma condição efêmera, velho reivindica memória acumulada. Idoso pode ser apenas “ido”, aquele que já foi. Velho é – e está. Alguém vê um Boris Schnaiderman, uma Fernanda Montenegro e até um Fernando Henrique Cardoso como idosos? Ou um Clint Eastwood? Não. Eles são velhos.

Idoso e palavras afins representam a domesticação da velhice pela língua, a domesticação que já se dá no lugar destinado a eles numa sociedade em que, como disse alguém, “nasce-se adolescente e morre-se adolescente”, mesmo que com 90 anos. Idosos são incômodos porque usam fraldas ou precisam de ajuda para andar. Velhos incomodam com suas ideias, mesmo que usem fraldas e precisem de ajuda para andar. Acredita-se que idosos necessitam de recreacionistas. Acredito que velhos desejam as recreacionistas. Idosos morrem de desistência, velhos morrem porque não desistiram de viver.

Basta evocar a literatura para perceber a diferença. Alguém leria um livro chamado “O idoso e o mar”? Não. Como idoso o pescador não lutaria com aquele peixe. Imagine então essa obra-prima de Guimarães Rosa, do conto “Fita Verde no Cabelo”, submetida ao termo “idoso”: “Havia uma aldeia em algum lugar, nem maior nem menor, com velhos e velhas que velhavam…”.

Velho é uma conquista. Idoso é uma rendição.

Como em 2012 passei a estar mais perto dos 50 do que dos 40, já começo a ouvir sobre mim mesma um outro tipo de bobagem. O tal do “espírito jovem”. Envelhecer não é fácil. Longe disso. Ainda estou me acostumando a ser chamada de senhora sem olhar para os lados para descobrir com quem estão falando. Mas se existe algo bom em envelhecer, como já disse em uma coluna anterior, é o “espírito velho”. Esse é grande.

Vem com toda a trajetória e é cumulativo. Sei muito mais do que sabia antes, o que significa que sei muito menos do que achava que sabia aos 20 e aos 30. Sou consciente de que tudo – fama ou fracasso – é efêmero. Me apavoro bem menos. Não embarco em qualquer papinho mole. Me estatelei de cara no chão um número de vezes suficiente para saber que acabo me levantando. Tento conviver bem com as minhas marcas. Conheço cada vez mais os meus limites e tenho me batido para aceitá-los. Continua doendo bastante, mas consigo lidar melhor com as minhas perdas. Troco com mais frequência o drama pelo humor nos comezinhos do cotidiano. Mantenho as memórias que me importam e jogo os entulhos fora. Torço para que as pessoas que amo envelheçam porque elas ficam menos vaidosas e mais divertidas. E espero que tenha tempo para envelhecer muito mais o meu espírito, porque ainda sofro à toa e tenho umas cracas grudadas à minha alma das quais preciso me livrar porque não me pertencem. Espero chegar aos 80 mais interessante, intensa e engraçada do que sou hoje.

Envelhecer o espírito é engrandecê-lo. Alargá-lo com experiências. Apalpar o tamanho cada vez maior do que não sabemos. Só somos sábios na juventude. Como disse Oscar Wilde, “não sou jovem o suficiente para saber tudo”. Na velhice havemos de ser ignorantes, fascinados pelas dimensões cada vez mais superlativas do que desconhecemos e queremos buscar. É essa a conquista. Espírito jovem? Nem tentem.

Acho que devíamos nos rebelar. E não permitir que nos roubem nem a velhice nem a morte, não deixar que nos reduzam a palavras bobas, à cosmética da linguagem. Nem consentir que calem o que temos a dizer e a viver nessa fase da vida que, se não chegou, ainda chegará. Pode parecer uma besteira, mas eu cometo minha pequena subversão jamais escrevendo a palavra “idoso”, “terceira idade” e afins. Exceto, claro, se for para arrancar seus laços de fita e revelar sua indigência.

Quando chegar a minha hora, por favor, me chamem de velha. Me sentirei honrada com o reconhecimento da minha força. Sei que estou envelhecendo, testemunho essa passagem no meu corpo e, para o futuro, espero contar com um espírito cada vez mais velho para ter a coragem de encerrar minha travessia com a graça de um espanto.

(Publicado na Revista Época em 20/02/2012)

Por que amamos tanto Lisbeth Salander

Ela é a primeira heroína do século 21 – não por ter nascido nele, mas por ser uma síntese das mudanças e inquietações do nosso tempo

É possível que, como acontece com boa parte dos escritores, o sueco Stieg Larsson não apalpasse o tamanho da personagem que criou ao escrever o primeiro volume da série Millennium. Do mesmo modo que morreu sem roçar nem a fama nem os milhões que dela vieram, enfartou sem saber que tinha parido – ele, um homem – a primeira heroína do século 21. Não a primeira porque a obra foi escrita no terceiro milênio – aí seria fácil. Mas a primeira filha desse mundo fluido, sem fronteiras definidas tanto na geografia do planeta como na do corpo dos indivíduos que o habitam. Esse mundo onde ditaduras caem com a ajuda do Twitter e do Facebook. Esse mundo em que as formas são forjadas pela ausência de formas da internet.

Se alguém me pedisse hoje uma indicação de como começar a compreender esse mundo novo, que nos escapa a cada esquina – inclusive porque não tem esquinas –, eu indicaria sem hesitar: conheça Lisbeth Salander. Mais do que qualquer obra acadêmica, ela nos introduz nesse tempo sem tempo. Ou melhor, esfrega-o na nossa cara sem virar o rosto para nos olhar. Como os grandes personagens da literatura, Lisbeth é síntese e antítese de uma época. E um dia, talvez, Lisbeth Salander poderá ser tão universal quanto Hamlet. Mas o “ser ou não ser” de Lisbeth se dá em outros termos – jamais como um dilema, mas como um estar no mundo em si. Para Lisbeth, renascida na internet, “ser e não ser”, ao mesmo tempo, é o único modo possível de existir. E essa é a sua força.

Volto a falar de Lisbeth Salander com a desculpa do filme em cartaz nos cinemas. Desta vez, a versão de Hollywood do primeiro volume da série – “Os homens que não amavam as mulheres”. Queria implicar com essa versão, que botou Daniel Craig, o último 007, a encarnar o personagem do jornalista Mikael Blomkvist, mas não consegui. O roteiro é melhor do que o do filme sueco e David Fincher, o mesmo que fez o excelente “Clube da Luta” e também “Rede Social”, é um diretor capaz de lidar com a violência sem escorregar nos clichês. Mas o filme em cartaz é só uma desculpa para falar do lugar que Lisbeth Salander ocupa não apenas no nosso coração, mas também no nosso fígado.

Se você não teve a chance de ler a trilogia Millennium, não se preocupe. Você é um sortudo, invejado por ainda ter esse prazer à sua espera. Nesse verão, Lisbeth Salander capturou até mesmo meu pai, passado dos 80 anos, que até então era rígido em seus hábitos de só ler livros acadêmicos, ensaios e clássicos em geral. De repente, meu pai se viu abduzido por aquela estranha criatura, uma alienígena no seu mundo, mas dotada de uma humanidade avassaladora. E o segundo volume, que não tinha sido levado para a casa de praia, teve de ser providenciado às pressas. À heroína, então.

Lisbeth Salander é uma hacker. Não uma qualquer, mas uma das melhores. Seu passado – e a pior parte do seu presente – é tudo aquilo que os jovens do movimento mundial Occupy, que protestam contra o sistema financeiro internacional e as instituições que o representam, denunciam que está podre e que não faz mais sentido. Mas as semelhanças, como veremos, acabam aí. Se a internet não houvesse surgido, talvez Lisbeth estivesse condenada a morrer numa clínica psiquiátrica, como tantos, tantas vezes, por obra da velha ordem. Mas a internet surgiu, e com ela uma brecha para Lisbeth escapar e inventar sua frágil resistência.

Lisbeth carrega em si todas as marcas do velho mundo – representado pelo Estado que a condenou e ainda controla a sua vida. Estado este que é encarnado por homens “instituídos” que abusaram – e ainda abusam – de Lisbeth, com a justificativa pública, esta também tão abusada ontem como hoje, do “é para o seu próprio bem”. Por trás deles e do Estado a quem dão face, ocultam-se tanto as perversões individuais quanto os crimes do poder estabelecido que devem permanecer escondidos custe o que custar. E custa muito.

Para dar forma a essas marcas invisíveis, Lisbeth Salander tatua um dragão nas costas. Como descobrimos no desenrolar da história, as expressões físicas das violências que continuam infligindo em Lisbeth acabam sumindo, nos dias. O dragão permanece lá. O dragão resiste, assim como os inúmeros piercings que a perfuram para lembrar que, em cada um deles, foi ela que escolheu se flagelar. O dragão é a marca que Lisbeth escolheu para representar a si mesma – não a que foi imposta a ela. O dragão é a reinvenção possível.

Nossa heroína não acredita em (quase) nada. Nem em (quase) ninguém. Ela não tem ilusões: Lisbeth sabe que está sozinha. Lisbeth foi vítima tanto das utopias que moveram o mundo no século 20 quanto do fim delas. Ela é, de fato, filha da Guerra Fria e dos arranjos que vieram depois, como o leitor vai descobrir nos volumes seguintes. Mas é também filha de si mesma, como tentam ser todos os que vivem nessa época.

Com uma profunda e justificada desconfiança dos homens – a começar pelo próprio pai – e com uma profunda pena das mulheres – a começar pela própria mãe –, Lisbeth Salander cria um homem e uma mulher, um nem homem nem mulher para si. Radical em sua androginia, Lisbeth poderia ser definida como uma bissexual, não fosse esta uma definição superada e que já não dá mais conta da complexidade da sexualidade humana. Lisbeth, também sexualmente, só pode ser definida pela indefinição. Como o mundo que prefere habitar, o da internet, nossa heroína é fluida e sem fronteiras.

No primeiro volume da série, os caminhos de Lisbeth Salander se cruzam com os de Mikael Blomkvist. Quem é Mikael? Um jornalista que investiga e denuncia os poderosos. Um jornalista que acredita em seus ideais, que sacrifica a vida pessoal pela missão de documentar a História – e as histórias – do seu país. Um homem bom. Para isso, Mikael criou, com dois sócios, a revista “Millennium” – uma publicação pequena, independente e combativa. A princípio, parece que é o nome da revista que dá título à trilogia da série criada por Stieg Larsson. Mas acredito que o “Millennium” de Larsson é algo mais profundo – é um ser e estar neste milênio.

No momento em que Lisbeth e Mikael se encontram, ele acabara de perder uma ação na justiça contra um dos homens poderosos – e corruptos – que denunciou. Com a condenação, Mikael perdeu todo o seu patrimônio: não apenas o dinheiro que tinha conseguido guardar em uma vida apertada, como o maior bem de um jornalista decente, de um homem íntegro: sua credibilidade.

Mikael se assemelha muito ao perfil de Stieg Larsson. Como Mikael, o autor da obra foi um dos jornalistas mais importantes da Suécia. Passou a vida denunciando os poderosos – e mais do que todos, aqueles que eram extremistas de direita. Larsson denunciou várias organizações fascistas e racistas enquanto viveu. Por sua luta pelos direitos humanos, recebeu ameaças de morte. Como Mikael, ele mantinha uma pequena, independente e combativa revista, a “Expo”. E foi ao subir os sete lances da escada do prédio da revista, porque o elevador estava quebrado, que ele teve um enfarte e morreu, em novembro de 2004, aos 50 anos. Antes de lançar a trilogia que o tornaria famoso e milionário. E antes de terminar o quarto livro da série – escrevera 200 das 600 páginas previstas – e escrever os outros seis – ele havia sonhado com dez volumes.

Stieg Larsson era como Mikael Blomkvist. Mas, talvez, como todas as pessoas que já viram as tripas do poder legalmente instituído de perto demais e já foram vítimas dos burocratas que dele se alimentam como os vermes que são, aspirasse a ser uma Lisbeth Salander. Acho que Lisbeth Salander foi a vingança de Stieg Larsson. Depois de passar a vida denunciando a podridão – e, veja bem, estamos falando da Suécia –, e se ferrando por isso na vida real, era preciso criar uma vingadora na ficção. Talvez fosse isso ou deixar de acreditar. E, para alguém como Stieg Larsson, deixar de acreditar era morrer. Na ficção, Lisbeth Salander salva Mikael Blomkvist. Me arrisco a pensar que, na vida real, ela também salva Stieg Larsson. E o salvaria por completo, não fosse ele morrer cedo demais. Este, aliás, é sempre o problema com a realidade.

Lisbeth Salander olha para Mikael Blomkvist com algo próximo da ternura. Não são muitos os homens bons na sua vida. Ela o ajuda não por acreditar no que ele acredita, ela o ajuda por acreditar nele. De certo modo, Lisbeth, apesar de sua juventude, é mais vivida e experiente do que Mikael. Como os jovens do Occupy, ela acredita que as instituições estão falidas, que a velha ordem ruiu e que não há como lutar dentro do sistema. Mas, diferentemente deles, Lisbeth não acredita em quase ninguém e, portanto, desconfia das massas. Para Lisbeth, a única saída possível é individual. Ela é um rato resistente, sobrevivendo nos porões e roendo os alicerces da cidade, na mais absoluta solidão existencial. Ela é uma hacker – e o único movimento coletivo possível é aquele onde os indivíduos não sentem o cheiro da pele um do outro, cada um seguro na sua toca.

E essa é uma face importante de Lisbeth: a não face. Ela revela nossa época também por uma não autoria: não é essa, afinal, uma das grandes questões colocadas pela internet e um dos grandes embates travados hoje em torno dos direitos autorais? Enquanto há um movimento em que indivíduos fazem qualquer coisa, até comer baratas ou se submeter a 50 cirurgias plásticas para se diferenciar, ter seus minutos de fama e conquistar uma autoria no mundo, ainda que efêmera, Lisbeth mergulha no anonimato. Renascida na internet, ela é reconhecida apenas por seus pares, outros hackers, mas não com um nome – e sim com um codinome. Lisbeth, ao contrário dos homens e mulheres da geração de Mikael Blomkvist, não se interessa por construir um nome. Sua salvação e sua liberdade estão no anonimato. Lisbeth realiza feitos fantásticos, mas não reivindica nem autoria, nem créditos.

A outra face essencial de Lisbeth é o não pertencimento. Estrangeira em um mundo sem fronteiras, o conceito de nação não faz parte do planeta dela. Lisbeth é mais familiarizada – e a escolha do termo é proposital – com o hacker sem nome de lugar nenhum do que com o vizinho de porta. Lisbeth não tem chaves – tem senhas. Estar em Estocolmo ou em Pequim, para ela tanto faz. Ela não é estrangeira por pertencer a um outro país, ela é estrangeira como um ser em si. Ela é estrangeira diante do outro – ou de quase todos os outros – porque o olhar do outro para ela não faz a menor diferença. Ela não reconhece esse olhar, estrangeira que é frente à sua própria espécie. Ser estrangeira, para Lisbeth, é parte da nova condição humana.

Lisbeth Salander é andrógina, miúda e parece anoréxica – “é metabólico, não engordo”, diz no filme americano. Come junk food, fuma um cigarro atrás do outro, circula pela noite underground. Parece frágil, mas é forte. E se vinga. É marcada – e faz marcas. Sem confiar na lei e no Estado, faz justiça na ilegalidade e nas margens. Para ela, esses limites não existem, o mundo não se coloca mais nesses termos. Todas essas convenções, no olhar e na experiência de Lisbeth Salander, já apodreceram. Em sua moto pelas estradas – ou escondida sob o seu capuz – ela talvez seja a nova mulher, aquela que se recusa a ser vítima, mas que jamais queimará sutiãs em praça pública. Lisbeth Salander é a nova mulher na medida em que também é o novo homem.

________________________________________

P.S. – Nesta segunda-feira, faz três meses e 22 dias que Junior José Guerra foge pelo país por ter denunciado a máfia do ipê no oeste do Pará. Até hoje não recebeu proteção do Estado. A história de Junior foi tema de reportagem na coluna “A Amazônia segundo um morto e um fugitivo”. Nesta semana, o caso ganhou repercussão internacional, em matéria de Tom Phillips, no jornal britânico The Guardian, com o título: “Defensores da floresta enfrentam a morte ou o exílio”. A reportagem pode ser lida em inglês ou em português.

(Publicado na Revista Época em 13/02/2012)

Isso é – ou não é – um escândalo?

Até agora, a turma que aposta na impunidade está ganhando. Depois de denunciar a farra do ipê no oeste do Pará, Junior José Guerra continua sem proteção. O assassinato de João Chupel Primo segue impune. E o governo federal tampouco fez qualquer ação efetiva de ocupação pelo Estado daquele pedaço do país dominado por quadrilhas de madeireiros. Em entrevista, o presidente do ICMBio, Rômulo Mello, dá uma aula sobre as relações entre o órgão de proteção e o grileiro Sílvio Torquato Junqueira, que controla cerca de 80 mil hectares dentro da Floresta Nacional do Trairão

Na coluna anterior, a reportagem “A Amazônia segundo um morto e um fugitivo” detalhava uma operação de roubo de madeira de dentro de unidades de conservação do oeste do Pará por quadrilhas do crime organizado. Toda essa madeira – mais de 90% dela ipê – passa por uma única rua de um assentamento agrário do INCRA. Os conflitos em torno dessas transações criminosas já produziram pelo menos 15 cadáveres nos últimos dois anos. João Chupel Primo e Junior José Guerra, as duas pessoas que denunciaram a operação – em detalhes, com nomes, locais e funcionamento – estão na seguinte situação: João virou cadáver e Junior foge com a família, sem proteção do Estado.

Isso não é um escândalo?

Vou dizer de outra maneira. As unidades de conservação são áreas da floresta amazônica que, por decreto federal, deveriam ser protegidas pelo governo por causa de sua riqueza e biodiversidade. É patrimônio nosso – meu, seu, de todos nós. Nesse patrimônio que é nosso há bandidos tirando ipê, em grande quantidade, para exportação. Por que ipê? Porque hoje o ipê é uma das madeiras mais valorizadas no mercado internacional. Para você, leitor, ter uma ideia, esses bandidos que estão lá, saracoteando tranquilos pelo patrimônio público, pagam cerca de cinco reais o metro cúbico para o ribeirinho e, nas lojas de Paris, o metro cúbico do ipê é vendido ao consumidor por um preço que varia entre 3.000 e 4.000 euros. O negócio parece bom, não é?

Os bandidos têm certeza que sim – e mais certeza têm porque nada acontece com eles e, nas poucas vezes em que acontece, é com o peão, não com o madeireiro. Para tirar toda essa madeira de dentro da nossa terra, os criminosos controlam um assentamento do INCRA, estrategicamente localizado, a ponto de os assentados terem vivido por anos pagando pedágio para conseguir alcançar seus lotes. Assentados e ribeirinhos que tentam resistir ao crime organizado são ameaçados de morte – e, se ainda assim seguirem resistindo, são executados.

Isso não é escandaloso e grave, muito grave?

João Chupel Primo e Junior José Guerra pensaram que era. Acreditaram que, ao denunciar a operação às autoridades, haveria indignação, seguida por ação, seguida por ocupação da área pelo Estado. Não é legítimo imaginar que o Estado vá ocupar um pedaço do Brasil que está na mão do crime organizado? Me parece um pensamento bem razoável. Mas, para muitos, é apenas ingenuidade. Como seria ingenuidade minha insistir no assunto.

Até agora, pelo menos, é preciso reconhecer que a turma que aposta na impunidade está ganhando. Depois que esses dois brasileiros denunciaram a operação ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e à Polícia Federal, em setembro de 2011, nenhuma providência foi tomada. Então, em 20 de outubro, Chupel denunciou ao Ministério Público Federal de Altamira. Nessa reunião, havia uma representante da Secretaria-Geral da Presidência da República. O que aconteceu? Menos de dois dias depois Chupel estava morto. E Junior assinalado como o próximo cadáver.

Isso não é sério, muito sério? O governo federal reconhece que é sério, mas não age como se fosse sério. E muita gente com poder para pressionar que o governo cumpra o seu papel de ser governo também parece achar que é apenas “mais uma bizarrice da Amazônia”. Sim, a Amazônia, esse lugar que 11 entre 10 brasileiros batem no peito para dizer: “É nossa!”. Esse lugar que estará no centro dos debates da Rio +20, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável que acontecerá no Brasil em junho.

Desde a sexta-feira, 27/1, eu tenho perguntado a vários órgãos do governo, com toda educação e com palavras mais finas, algo que pode ser resumido como: “E aí, o que vocês vão fazer a respeito?”. De concreto, nenhuma resposta. A pedido do Ministério Público Federal do Pará, a Polícia Federal teria aberto um inquérito “sigiloso”. A Secretaria-Geral da Presidência da República, que conhece o caso, como já foi dito, desde pelo menos 20 de outubro, afirma que quem pode falar, “oficialmente”, pelo governo, é a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH). Na sexta-feira, 3/2, o secretário-executivo da SEDH, Ramaís de Castro Silveira, deu uma entrevista ao editor de Brasil de Época, Ricardo Mendonça. Você pode ler aqui e concluir por si mesmo se estou sendo exagerada.

Na minha opinião, Franz Kafka, se estivesse vivo, poderia escrever uma segunda versão de “O processo”. A impressão que eu tive ao ler a entrevista é que, a depender dos recursos e tramitações necessários, o pistoleiro pode buscar Junior a pé, caminhando pelo Brasil continental, e tem chances de encontrá-lo antes que ele consiga proteção. Junior vai estar atrapalhado com todas as vias e carimbos enquanto o pistoleiro toma um refrigerante na esquina do seu esconderijo. Espera-se, por exemplo, que Junior, ameaçado de morte, faça um recurso para que seu caso seja novamente analisado. Você, leitor, com certeza já enfrentou a notável burocracia brasileira alguma vez na sua vida. Pois é. Imagine-se ameaçado de morte, mantendo-se com pouco dinheiro e precária estrutura, escondido com sua mulher e seus dois filhos menores de idade – e fora da escola porque também estão sendo caçados por bandidos – e tendo que fazer um recurso para tentar convencer as autoridades de que sua vida precisa ser protegida. Simples, não é?

Há uma parte dessa entrevista, entre tantas, que é particularmente interessante. Nela, Ramaís refere-se ao fato de que João Chupel Primo foi assassinado menos de dois dias depois de fazer a denúncia ao MPF. O secretário da Secretaria de Direitos Humanos afirma: “Neste caso, eu não tenho a menor sombra de dúvida de que o procedimento correto era não ter deixado ele sair na porta do depoimento sem a proteção. Ali, de fato, parece que houve um equívoco”. A crítica ao MPF é legítima. O que chama a atenção, porém, é que Ramaís “não tem a menor sombra de dúvida” de que Chupel não poderia ter saído da sala do procurador sem proteção. E acredito que, hoje, ninguém, com algum senso de humanidade, tenha essa dúvida. Mas Junior tenta, desde o final de outubro, há mais de três meses, portanto, obter proteção do programa coordenado pela secretaria que Ramaís representa e não consegue. Me diga, leitor, estou vendo coisas que não existem ou há um problema de lógica no raciocínio do senhor secretário?

Porque eu insisto nesse assunto? Porque acredito que João Chupel Primo e Junior José Guerra denunciaram um escândalo que diz respeito a todos nós, cidadãos brasileiros. E agora me deparo com outro escândalo, que é a ausência de medidas concretas e efetivas tanto de proteção a Junior, o único dos dois denunciantes que ainda sobrevive, como de medidas concretas e efetivas para retomar aquele pedaço do Brasil para o Brasil. E me deparo ainda com um terceiro escândalo, que é a ausência de espanto geral, tanto com relação ao crime quanto com relação à falta de reação ao crime.

Dito isso, vou abrir uma pequena janela no cenário maior, para compartilhar mais um espanto com vocês. No oeste do Pará, há uma área de cerca de 80 mil hectares de terra chamada de Fazenda Santa Cecília. Essa área foi grilada por Sílvio Torquato Junqueira, um homem da elite paulista, no velho hábito de se adonar de áreas públicas na Amazônia e ver o que dá. Em 2006, essa área pública foi decretada unidade de conservação e chamada de Floresta Nacional do Trairão. O decreto prevê a retirada de qualquer ocupação não compatível com uma unidade de conservação. Grileiros, por exemplo, nunca deveriam ter botado uma cerca em terras que pertencem a todos os brasileiros, sejam unidades de conservação ou não.

O espantoso nessa história é que todas as apropriações similares foram retiradas da Terra do Meio – menos a Fazenda Santa Cecília. O próprio Sílvio Junqueira, na reportagem publicada aqui em 28/1, conta o processo de ocupação com notável transparência e até uma certa singeleza. Disse ainda o seguinte: “Se o governo mandar sair de lá, eu saio”. Isso me fez pensar que talvez, por mais incrível que possa parecer, o governo nunca tenha mandado Junqueira sair da Floresta Nacional do Trairão.

Pois bem, fui compartilhar meu espanto com a autoridade devida: Rômulo Mello, o presidente do ICMBio – órgão que tem a responsabilidade de proteger, fiscalizar e consolidar as unidades de conservação federais. A entrevista me deixou mais espantada ainda. Vou reproduzi-la tal e qual aconteceu, acrescida de comentários, para que você possa compreender por que meu espanto se multiplicou.

Pergunta: Na Terra do Meio, há uma área grilada por Sílvio Torquato Junqueira, em nome de mais de duas dezenas de pessoas, cuja sede é conhecida como Fazenda Santa Cecília. Essa fazenda fica dentro de uma unidade de conservação chamada Floresta Nacional do Trairão. O próprio Sílvio afirmou em entrevista que os funcionários do ICMBio passam por lá e até elogiam, dizendo como a área está bem cuidada, cercada… Minha pergunta é: naquela região, todas as ocupações similares à Fazenda Santa Cecília foram retiradas. Por que só a Fazenda Santa Cecília permanece?

Rômulo Mello – Veja bem, a fazenda, enquanto atividade de pecuária, não funciona lá. O que funciona é a estrutura física relacionada à sede da fazenda.

(Espanto: Me arrisco a cogitar que, se a atividade não é comercial, o gado que por lá pasta deve estar a passeio.)

Pergunta: Mas como é possível existir uma fazenda numa unidade de conservação?

Mello – É possível porque ela está sendo mantida pelo posseiro. Ao criar a unidade de conservação, aquela casa que está lá só vai ser de responsabilidade do Instituto Chico Mendes depois que nós procedermos com o processo de regularização fundiária. Isso quer dizer o seguinte: ou nós indenizamos o Sílvio pela benfeitoria dele ou ele retira suas benfeitorias. Há algum tempo atrás, ele veio aqui no Instituto pedindo que nós autorizássemos que a fazenda funcionasse como empresa de turismo, e nós não autorizamos isso. Ele continuou mantendo a posse dele lá, inativa.

(Espanto: As áreas ocupadas por grileiros foram retomadas nas unidades de conservação da Terra do Meio. Se o grileiro entendesse que tinha direito à indenização, entrava na Justiça. É inevitável pensar: se eu ou você decidimos ocupar uma terra pública na floresta amazônica e, além dessa primeira ilegalidade, cometemos outra, que é a de desmatar para instalar “benfeitorias” sobre terra pública, em vez de sermos responsabilizados pelo malfeito, o Estado deve nos premiar? É a conclusão possível diante da resposta do presidente do ICMBio. Juro que já vi casos em que situações semelhantes foram consideradas crimes ambientais.)

Pergunta: Mas por que só essa fazenda não é tirada?

Mello – Quem tem de tirar as benfeitorias de lá é ele, não somos nós. E nenhuma outra foi tirada por nós. Se alguém tirou foi o próprio posseiro ou o ocupante ou a pessoa que tinha a posse do imóvel.

(Espanto: Isso significa que o Estado deve esperar que as pessoas que cometem atos ilegais deixem de cometê-los, por um súbito ataque de consciência? Não me parece que tenha sido assim que parte dos grileiros foi tirada de áreas públicas da Amazônia. Operações do próprio Ministério do Meio Ambiente, como a Boi Pirata I e II confiscou e retirou gado da Terra do Meio, como nessa notícia produzida pelo próprio governo.)

Pergunta: Mas é legal ele permanecer na unidade de conservação?

Mello – É legal ele permanecer lá até que seja indenizado pelas benfeitorias. Ele não pode é usar, como ele gostaria de usar, como hotel de turismo.

(Espanto: Então, se eu entendi bem, é mais ou menos como dizer o seguinte para alguém que pegou um carro que não era seu – neste caso, uma viatura pública: “Olha, a gente descobriu tudo. Você terá que devolver esse carro. Mas você devolve quando quiser, ok? E tem mais: se você colocou rádio, ar-condicionado, calota ou qualquer outra coisa, avise na hora da devolução porque o Estado vai te dar uma indenização pelas benfeitorias. Mas, alto lá: se você não quiser devolver o carro, já, tudo bem, mas está proibido de ficar andando com ele por aí, entendeu?”.)

Pergunta: Entre as denúncias que foram feitas (por João Chupel e Junior Guerra) está a extração de madeira naquela área, operação comprovada pela análise de imagens de satélite. O que o senhor me diria sobre isso?

Mello – Nós temos apurado e buscado equacionar todas as denúncias que recebemos. Se há uma retirada de madeira na região, as ações de fiscalização em curso enfrentarão isso e tomarão as providências necessárias. O fato de alguém passar por lá e entender que aquilo está bem tratado não quer dizer, absolutamente, que há uma conivência ou que se está tratando de forma diferenciada um determinado ocupante ou infrator na região. Quem for identificado retirando madeira das áreas vai ter o produto apreendido e vai passar pelo processo de apuração e de fiscalização.

(Espanto: Como será que o os funcionários do ICMBio que andaram por lá elogiando as cercas conseguiram não perceber que o ramal madeireiro que corta a Floresta Nacional do Trairão passa na porta da sede da Fazenda Santa Cecília? Mesmo depois de tantas denúncias, não ocorreu a ninguém parar para perguntar se quem ficava na varanda não percebia o fantástico tráfego de caminhões madeireiros avançando por ali vindos da imensa área grilada controlada por Sílvio Junqueira?)

Pergunta: Mas o fato de ter um grileiro numa unidade de conservação já não é em si uma ilegalidade?
Mello – Deixa eu lhe dizer. Dentro do processo de consolidação fundiária, ele construiu uma propriedade lá. O imóvel dele é uma propriedade dele. É uma posse dele. Para que eu tire ele de lá nós temos de indenizá-lo pela benfeitoria. Ou ele retira as suas benfeitorias de lá.

(Espanto: Eu pensava que só poderíamos considerar “propriedade” o imóvel com título registrado e reconhecido, que tivesse cumprido todos os trâmites legais. Eu também pensava que “posseiro” era aquele cara em busca de um pedaço de chão para sobreviver com sua família, que ocupa uma área de algumas dezenas de hectares, para morar e trabalhar. Jamais imaginaria que alguém como Sílvio Junqueira, um homem tão bem sucedido na vida, vivendo a milhares de quilômetros da Amazônia, na rica Ribeirão Preto, pudesse um dia ser chamado de “posseiro” ao grilar cerca de 80 mil hectares de floresta, numa espécie de “condomínio” com familiares e amigos. Eu acreditava ainda que igualar grileiro a posseiro era um tipo de má fé.)

Pergunta: E por que ele não “retira” a fazenda?

Mello – Como eu estou lhe dizendo, ele procurou o Instituto objetivando viabilizar aquilo como um hotel de turismo, e nós nos recusamos a fazer uma parceria com ele.

Pergunta: Mas o ICMBio não tem poder de mandá-lo retirar as “benfeitorias”, já que a terra não pertence a ele?

Mello – Eu só posso fazer isso depois de indenizá-lo pelas benfeitorias. Ou eu o indenizo ou ele retira (as benfeitorias). Ou então por decisão judicial. Nós, apesar de termos poder de polícia, para destruir ou retirar ou derrubar uma benfeitoria teríamos de ter autorização judicial.

Pergunta: Se ele não for indenizado, então é só ele saindo sozinho, por conta própria?

Mello – Precisa ser indenizado, sim, porque eram benfeitorias e ele tem direito a elas. Agora, ele não tem direito ao uso da unidade de conservação para qualquer atividade econômica.

Pergunta: Mas ele está lá, mantém um funcionário, dentro de uma unidade de conservação. E vacas, também.

Mello – Mas não desenvolve qualquer atividade econômica dentro da unidade.

Pergunta: Então, qualquer grileiro, que queira manter uma casa dentro da unidade de conservação…

Mello – (Interrompendo) Não é assim. Não é qualquer grileiro que queira manter papapá… Ao promover qualquer processo de regularização fundiária, a gente toma as providências necessárias à consolidação da área. Ou a gente indeniza as benfeitorias ou judicializa.

Pergunta: E isso já foi feito com relação à área grilada pelo Sílvio Junqueira?

Mello – Eu não posso te afirmar isso porque eu não estou no meu escritório. Mas posso levantar isso para você.

Nesse ponto da entrevista, o presidente do ICMBio pediu que eu ligasse mais tarde, para que pudesse fornecer as informações. Meia-hora depois, Rômulo Mello afirmou: “O Silvio foi autuado várias vezes por nós. E existe uma ação civil pública tramitando para regularização fundiária”.

A entrevista foi feita na sexta-feira, 27/1. Na segunda-feira, 30/1, solicitei, por meio da assessoria de imprensa do ICMBio, a cópia da ação civil pública citada e a lista de autuações. Reiterei o pedido várias vezes ao longo da semana. Apenas no final da tarde da última sexta-feira, 3/2, recebi, por escrito: “Com relação à Fazenda Santa Cecília, houve um equívoco na informação, pois não existe ação civil pública”.

Você, leitor, se espantou? Eu me espantei. E sigo espantada.

Alguém poderia pensar que o tema do início não se relaciona com o tema do final dessa coluna. Equivoca-se. Sempre foi mais fácil tratar apenas dos feios, sujos e malvados – e principalmente distantes – bandidos que atuam nos confins da floresta, sem fazer as relações devidas. Mas só é possível atuar de forma efetiva na pacificação da Amazônia se todas as relações de poder forem feitas. A linha de produção precisa ser seguida e traçada até o final. Junior José Guerra costuma comparar o que acontece no oeste do Pará com o crime organizado nas favelas do Rio. É uma boa analogia.

Pela Fazenda Santa Cecília passa parte da madeira roubada de dentro da Floresta Nacional do Trairão. Nesse caso, a denúncia é comprovada pela análise de imagens de satélite. Não há quem não saiba disso na região – inclusive os funcionários do ICMBio. O caso da Fazenda Santa Cecília foi, inclusive, citado na publicação “Via de Direito, Via de Favor”, feita pelo próprio órgão, em conjunto com o Instituto Socioambiental. Sílvio Junqueira, é importante ressaltar, afirma não pisar na área grilada desde 2006 e nega qualquer conhecimento sobre a operação criminosa. Por outro lado, assegura que controla a área, com cercas e porteiras, inclusive, e acompanha o que acontece lá pelos relatos assíduos do seu “funcionário”.

Sim, eu me espanto. Mas não estou sozinha. Nesse momento, os vários atores envolvidos tanto na operação criminosa como na denúncia da operação criminosa olham para as autoridades. E aguardam. O que o governo federal fizer – ou deixar de fazer – vai definir o futuro próximo. Se a impunidade persistir, apesar das denúncias e do conhecimento público das denúncias, a violência e o crime organizado vão recrudescer no oeste do Pará. Se o denunciante – o que ainda não morreu –, em vez de protegido for assassinado, nenhum outro brasileiro vai ter a coragem de abrir a boca para denunciar um crime.

Veremos.

(Publicado na Revista Época em 06/02/2012)