A primeira morte

A pequena tragédia de um homem comum diante do exame de colesterol

A notícia veio em um exame de rotina, aberto na página do laboratório na internet enquanto tomava um chocolate quente. Na verdade, leite com um chocolate em pó cheio de porcarias que ele toma desde a infância e, por isso, aos 43 anos, é uma fonte de alegria permanente na prateleira da cozinha. Quando bateu na minha porta, os olhos escancarados, avisando que tinha uma má notícia, eu pensei logo em câncer. No nosso tempo, é o que a gente sempre pensa, mesmo que não diga. “Meu colesterol está alto”, ele disse. “Muito acima do péssimo.” Amoleci inteira e até esbocei um sorriso. “Ah, mas isso não é tão grave.” Mas era. Eu não fui capaz de perceber logo, mas era a primeira morte de meu melhor amigo.

Não era uma doença incurável, não era um drama humanitário, não era nada que alterasse a ordem do mundo. Era só a pequena tragédia dele. Comezinha e cotidiana. A tragédia de um homem comum, com uma vida comum, que sentia a primeira fisgada do fim.

No percurso de uma vida, quando temos a sorte de ter uma existência longa, passamos por várias pequenas mortes e renascimentos. É importante que partes de nós morram para que outras possam nascer – ou apenas para que esses pedaços mofados de nossas crenças sobre nós ou da crença de outros sobre nós saiam do caminho. É triste quando alguém é uma coisa só a vida toda – perdendo a chance de acolher todos os outros de si. Quando alguém anda pela vida apertado em uma roupa que nunca lhe serviu direito, mas que foi vestida nele ou nela por seus pais ainda na infância, como se fosse o único modelo que lhe coubesse.

É importante que, em algum momento, de preferência mais cedo do que tarde, a gente descubra que essa roupa não serve – ou que apenas algumas partes servem e outras precisam ser jogadas fora, para que novas possam ser inventadas. É essencial que nos libertemos dos dogmas impingidos sobre nós para podermos criar uma vida que faça mais sentido – e para nos sentirmos livres para recriá-la o tempo todo. O olhar do outro sobre nós, a começar pelo dos nossos pais, às vezes é redenção, em outras é prisão, em geral é ambos.

Por isso me parece que uma vida é mais rica quando morremos e renascemos muitas vezes. Mas esta é a existência psíquica, é o que se passa em nossas porções invisíveis, naquela parte da nossa geografia que não se pode tocar com as mãos. Poucas coisas ou nenhuma são mais assustadoras do que ousar se libertar de um jeito de ser cujo funcionamento conhecemos. Porque ainda que esse jeito nos sequestre o desejo, nos parece mais seguro do que enfrentar o vazio de descobrir formas de viver mais próximas de nossos anseios. Mas, se tivermos essa coragem que anda de mãos agarradas com o medo, nós nos responsabilizamos pelas nossas escolhas, seguimos e criamos e morremos e renascemos. Muitas vezes.

Em algum momento, porém, o corpo anuncia uma morte da qual não é possível renascer. A rigor, começamos a morrer desde o nascimento. De fato, nosso declínio físico começa aos 20 e poucos anos, mas esses sinais podem ser ignorados. E são. Por volta dos 40 – um pouco depois, para quem tem mais sorte, um pouco antes, para quem tem mais azar –, recebemos a notícia da primeira morte que não podemos ignorar. A primeira morte do corpo.

Foi o que aconteceu com meu melhor amigo. Para não morrer nos próximos anos de enfarte ou AVC por causa das artérias entupidas de gordura, ele matou com um só golpe um mundo inteiro dentro de si. Não é uma mera mudança de hábitos, como médicos e nutricionistas tentam nos convencer em consultas, reportagens e sites da internet. É um mundo inteiro que se extingue como se o Sol explodisse de repente, muito antes dos bilhões de anos calculados pelos astrônomos. Para quem vive nesse planeta, é uma hecatombe. Para a imensidão do universo, é um nada, estrelas morrem o tempo todo sem que a ordem da vida dos outros se altere.

Para o planeta humano que é meu melhor amigo, foi uma hecatombe. Acabaram-se as feijoadas, o churrasco, a pizza, o hambúrguer, a batata frita, os pastéis, os bolos, os bolinhos, as tortas, os chocolates. Mas não só. Encerrou-se a possibilidade de renovar a qualquer momento a memória de uma vida de afetos: a receita de bacalhau da mãe que morreu, a torta de morangos que só a sogra sabe fazer, o feijão gordo que a mulher prepara toda quinta-feira e havia se tornado um acontecimento, a noite com o amigo de infância recheada de cumplicidade, chope e frituras.

Acabou-se a possibilidade de degustar territórios ainda não desbravados. As experiências gastronômicas com um amigo chefe de cozinha. O acesso às dores de alma e as alegrias de outros povos e terras através da comida, dos ingredientes e dos temperos, que o instigavam a jamais perder nenhuma chance de viajar. Suas próprias invenções com as panelas que reuniam os mais próximos em alegres descobertas na mesa da cozinha. Agora, ele terá de recusar pratos em almoços e jantares – e será um problema na cozinha alheia.

Um mundo dentro do mundo morreu em um segundo. E a notícia dessa morte o lembra o tempo todo de que é só a primeira das muitas que virão. “Tenho medo de morrer de repente”, ele diz. Porque sente que uma parte dele teve morte súbita tendo ele mesmo por testemunha. “Eu não fumo, não uso drogas, só bebo em ocasiões especiais”, ele diz, traído. Eu quase digo: “A vida não dá garantias”, mas me contenho a tempo.

Sei que dentro dele toca o réquiem de Verdi, dramático e grandiloquente, mas só ele escuta. Porque sua tragédia é prosaica, acontece com muitos, não é notícia nem na família. Ele é só mais um homem diante do parapeito da ponte – sem vontade de atirar-se dali, mas apavorado porque um dia vai estar lá embaixo.

Pesquisamos juntos na internet, tentamos inventar receitas, descobrir novos ingredientes, criar um mundo novo dentro do universo restrito ao qual ele foi confinado. Cheiramos desconfiados uma linguiça de soja, passamos retos pela manteiga, enchemos o carrinho de coisas verdes. Depois vamos ao cinema para esquecer seu pequeno drama diante da grandeza do drama maior de um outro, mas quando estaqueamos diante da pipoca, o luto desce sobre ele, inexorável. Sabemos que é preciso aceitar essa morte, assim como todas que virão, com o excesso de perdas que ela contém. Em geral não se morre de uma vez só, mas aos poucos. E é o corpo que nos ensina a brutalidade dessa verdade.

O colesterol não encolheu apenas a largura das artérias de meu melhor amigo, mas também a largura da sua vida. Ele sabe que não pode escapar dos limites impostos pelo corpo. Pode, como todos nós, no máximo adiá-los. No exame do laboratório o tal do LDL avisa que a juventude, aquele tempo no qual era possível fingir que não havia limites, acabou. Mas a gordura que entulha as artérias de meu melhor amigo não lhe obstrui o espírito. Porque morreu e nasceu muitas vezes ao longo de seus 43 anos, há nele uma vida dentro da vida que se amplia também nesse choque com os limites. Enquanto o corpo falha, sua mente recolhe suas lágrimas, sua surpresa e sua dor e os transforma em uma experiência a mais.

Sempre foi assim, afinal. É no confronto com a miséria da condição humana que produzimos o melhor do humano. Condenados eternamente ao fracasso de nosso embate com a morte, inventamos essa vida dentro da vida. Que, se tivermos a ousadia de morrer e nascer várias vezes no espaço de uma existência, será uma vida maior que a vida.

Não tenho dúvidas de que meu melhor amigo seguirá suspirando de saudades de uma picanha gorda ou de um feijão com costelinha de porco. Mas, nesse último final de semana, ele já havia colado um cartaz patético na cozinha, com imagens suas de a.C. e d.C. – “C” não de Cristo, mas de colesterol. Estava entrouxado de roupas porque acreditava que os 100 gramas que tinha perdido desde que abriu o exame tornaram-no “mais friorento”. E tentava inventar uma maionese caseira sem ovos nem óleo.

Soube então que estava salvo. Não do colesterol, mas de algo muito pior: uma vida pequena.

(Publicado na Revista Época em 16/07/2012)

 

Gauchês: a única língua sustentável

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Dedicado à minha amiga Giovana Villanova Maciel, especialista em gauchês que me ensinou a enxergar a beleza da gramática riograndense, numa longa conversa em que nenhuma de nós desperdiçou um único “s”

— Vou escovar os dente!

Digo eu toda noite. Escovo os dente em outros horário do dia, também. Assim como lavo os pé, em vários momento. E mais ainda as mão. Mas é à noite que gosto de anunciar. Não sei por quê. E não passa uma noite sem que o infeliz rebata:

— Um dente só?

Parece um mero diálogo doméstico. Não é. Nestas duas frase mora o paradoxo contemporâneo.

Eu, gaúcha, muito à frente do meu tempo, como todos os gaúcho. O infeliz, carioca-paulista, ainda no século XX. Eu, consciente da exaustão dos recurso do planeta, o infeliz consumindo os recurso do planeta como se houvesse amanhã. Eu economizando esse. O infeliz desperdiçando esse.

Esta é a sina do gaúcho. Ser um visionário — e pagar o preço no olhar invejoso dos que não tiveram a sorte de nascer abaixo do Mampituba. Maior é a desgraça se tu precisar dividir não só o país, mas a casa com um não gaúcho, como é a minha desventura. Eu, anos-luz além, e o pedrobó resmungando: “Esqueceu do plural”. Mimimimimimi.

O mundo acima de nossas praia de Santa Catarina fazendo estardalhaço com a Rio +20, e depois chorando as pitanga que deram com os burro nágua. Nós, gaúcho, nem as hora. Em vez de propor, a gente pratica a única língua sustentável do planeta — quiçá da Via Láctea e além — no dia a dia. Elegantes, sem alarde, sem precisar mostrar os peito na rua.

Como eu sei o quão duro é não ser gaúcho, vou tentar simplificar para até mesmo um paulista ou um carioca entenderem. A pesquisa é de Harvard, desenvolvida, claro, por um gaúcho que botou uns gado e plantou umas soja lá nos campo da Ivy League pra dar uma racionalizada no Primeiro Mundo. Teve uns problema, especialmente quando tentava derrubar um daqueles prédio véio pra fazer uma coisa vistosa, com bastante cimento. Mas não esmoreceu, que o bicho era bagual.

Como até meu guaipeca sabe, um esse não pronunciado é um esse a menos na atmosfera, é um esse a menos a esburacar a camada de ozônio, é um esse a menos a piorar o efeito estufa. Segundo o gaúcho de Harvard, um neto do gaúcho de Bagé, um gaúcho comum economiza cerca de 5 esse por minuto, 300 esse por hora, 7.200 esse por dia, 216 mil esse por mês, 2,6 milhão de esse por ano. Contando apenas a população do estado, seriam bilhões de esse a menos por ano.

Entendeu? Já vi que não. Como acabei de voltar de uma temporada de ilustração no Rio Grande, coisa que todo gaúcho expatriado precisa fazer de três em três mês, no mínimo, pra não embotar, estou magnânima. É o efeito de terminar o dia admirando o pôr-do-sol mais bonito do mundo. Vou explicar as regra melhor enquanto minha magnanimidade não passa. Mas, atenção, percebam a beleza, a harmonia, o equilíbrio contido nessa fórmula simples. É quase uma Mona Lisa. Ou um poema do Jaime Caetano Braun, o que dá no mesmo.

Pra ficar em um exemplo familiar ao leitor, vamo usar a conjugação com a palavra “dente”.

Se for um dente, é como entre os não gaúcho. Tu diz “um dente”. Pronto, todo mundo sabe que é um.

Já se forem dois dente, tu diz exatamente assim: “dois dente”. Teu interlocutor já sabe que se trata de mais de um, menos de três dente.

Agora, se forem mais de dois dente, pra facilitar — e esta, na minha opinião, é a parte mais sofisticada do raciocínio —, tu diz: “os dente tudo”.

Recapitulando.

Um dente = 1.

Os dente = mais de 1, menos de 3.

Os dente tudo = entre 3 e zilhão.

Agora, aqui em casa, acabei de dizer, elegante, proativa e sustentável:

— Vou escovar os dente tudo.

O imundícia, com a prepotência que só a ignorância permite, não alcançou. Tascou:

— Aproveita e vê se encontra em algum lugar da língua os plural tudo.

O azar do vivente era que o efeito do pôr-do-sol já tinha passado. Puxei meu canivete suíço (ando meio fresca depois que me mudei pra Sumpaulo), botei no pescoço do abostado e indaguei uma vez só: “Pode escolher. Quer que eu arranque a guampa, as guampa ou as guampa tudo?”.

Que guampa?, o estropício teve a incautidão de perguntar.

Guardei o canivete. Mais vale um corno manso na mão do que os corno tudo avoando.

Todo dia é dia de estupro

Ela deixou o coração das trevas para contar sua história. A travessia de Marie Nzoli – do Congo a um hotel de luxo de São Paulo

“Por que a água é azul?”, pergunta Marie Nzoli, apontando para a piscina. Em um mundo com infernos demais, ela acabara de chegar do pior deles. Pela primeira vez em 48 anos de vida, deixara a República Democrática do Congo e, depois de uma saga de três dias, desembarcara no Gran Hyatt, um luxuoso hotel de São Paulo, com vista para a Ponte Estaiada. Na mala, trazia lençóis.Como nunca havia pegado um avião, ela pensava que seria necessário forrar a poltrona com eles. Ao olhar para a piscina e constatar que “a água é azul”, talvez estivesse tão ou mais encantada que o astronauta Iuri Gagarin ao ver pela primeira vez a Terra do espaço. Marie Nzoli atravessara vários mundos –fora e dentro de si – para contar sua história ao Brasil.

De onde Marie vem, o estupro é um instrumento de guerra. E as mulheres contaminadas pelo HIV são armas biológicas. O Congo é devastado por conflitos armados antes e depois da independência da Bélgica, em 1960. No final do século 19, quando a África já tinha sido canibalizada pelos europeus, a terra de Marie inspirou Joseph Conrad a escrever o perturbador “O coração das trevas” – livro que no século 20 inspiraria Francis Ford Coppola ao filmar“Apocalipse Now”, transportando o horror para o Vietnã. Hoje, o Congo continua habitado pela insanidade. Além das guerras, é arrasado também pela fome, pela falta de água potável e por doenças como Aids, sarampo e malária. Tem o pior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do planeta.

Para compreender o espanto de Marie é preciso apalpar as dimensões de sua travessia.Marie deixara uma casa de madeira, tijolo e barro, com uma plantação de batata e feijão e uma criação de cabras, porcos e coelhos, na pequena cidade de Butembo, no Kivu do Norte, uma das regiões mais perigosas do Congo.E, quando algo é muito perigoso no Congo, pense no inimaginável. Encravado no leste do país, a província de Kivu do Norte faz fronteira com Uganda e Ruanda. E, para além de todos os tormentos, vive uma disputa étnica entre tutsis e hutus. O genocídio que matou cerca de 1 milhão de tutsis na vizinha Ruanda, em 1994, se estendeu para dentro da fronteira leste do Congo, para onde hutus fugiram em massa depois da recomposição do país. (Se você não conhece essa história, pegue na locadora um filme chamado “Hotel Ruanda”.)

Militares e guerrilheiros igualam-se na capacidade de cometer atrocidades em massa, deixando a população desamparada, sem ter para quem pedir proteção. Quase 2 milhões de pessoas, segundo a ONU, vivem hoje longe de suas aldeias – em fuga, mas sem conseguir escapar.“O povo do meu país está sempre fugindo”, diz Marie. “Foge de tudo, porque sabe que está sendo exterminado.” Foge em círculos.

Mulheres como Marie vivem a demência de ter seus filhos recrutados à força pelas milícias, quando ainda são crianças, e suas filhas, assim como mães e irmãs, estupradas muitas vezes, por muitos homens alternando-se sobre os seus corpos. É prática comum, além de violentar, arrancar os mamilos e o clitóris à faca, e furar os pés para que não possam fugir e sangrem até a morte. É uma guerra sem fim, alimentada pelo mercado internacional de diamantes, e talvez o Congo seja, há mais tempo, o pior lugar do planeta para uma mulher nascer.

A única saída para Marie é inventar vida no território da morte. Com outras 17 mulheres, ela criou, em 1983, uma organização chamada Coperma para reagir à violência contra seus filhos. Hoje, somam quase oito mil pessoas. Marie trabalha com vítimas de estupro. Mulheres de todas as idades que, além de serem estupradas, muitas vezes ficam com fístulas porque a violência transformou o canal do ânus e da vagina, ou da bexiga e da vagina, em uma coisa só. O rasgo é produzido pela quantidade de homens que se alternam sobre cada mulher, mas também é feito à faca ou com revólver ou fuzil. E, por terem sido estupradas, elas são discriminadas na comunidade.

No Congo, Marie é uma mulher de classe média. Perguntei o que isso significa. Ela explicou: “Eu como todo dia”. Marie nunca ouvira falar do Brasil. Nem mesmo do clássico futebol, favela e carnaval. Ela chegou aqui ao aceitar o convite da jornalista Ana Paula Padrão para participar de um fórum de debates chamado “Mulheres reais que inspiram”, promovido pelo site “Tempo de Mulher”, em 2 de julho. Quando recebeu o convite, foi correndo procurar o Brasil no mapa. Marie estava feliz, porque há muito sonhava em vencer as fronteiras do Congo para pedir socorro ao mundo.

Nos quatro dias em que permaneceu na capital paulista, Marie repetia: “Como o Brasil é rico, como as casas são bonitas, como a população vive bem aqui!”. Sua tradutora, Ilka Camarotti, retrucava: “Não é todo o Brasil que é assim”. Quando perguntei a Marie do que sentiria saudades, quando voltasse ao Congo, ela disse algo impensável para qualquer brasileiro: “Da limpeza do aeroporto”.

Além do aeroporto, o hotel foi todo o Brasil que Marie conheceu. Nele, ela teve várias primeiras vezes: o banho de chuveiro, vinho branco argentino (ela nunca tinha provado nenhuma bebida alcoólica), algumas frutas, como coco, a escada rolante, o cartão para abrir o quarto, a TV (ela nunca tinha visto) e o controle remoto. Um arrepio de prazer ao receber nas axilas o jato de desodorante do patrocinador do evento.

Mas nada impressionou Marie mais do que o elevador. No último dia, ela já apertava os botões sozinha, com um dedo trêmulo, como se estivesse prestes a acessar algum tipo de magia. E nunca sabia qual era a hora de dar o passo para fora, o momento em que o chão, sem sair do seus pés, chegava ao chão de fato.

Várias vezes, ao longo desta entrevista, Marie divagou. Enquanto a tradutora passava as respostas do francês para o português, ela espiava um prédio em construção, onde um elevador subia e descia. Alto, mas para si mesma, Marie espantava-se com o mundo: “La technologie…” E ria sozinha, em abissal perplexidade. Depois, voltava a contar sobre os estupros.

Perguntei a Marie o que gostaria de dizer aos brasileiros. Ela disse: “Agora que eu vim e dividi a minha história, esse combate não pode ser apenas meu. Essa luta tem de ser também do Brasil. Vocês precisam ajudar as mulheres do Congo.”Marie acredita que o que faltava para que os brasileiros se importassem era que alguém conseguisse chegar até aqui para contar o que está acontecendo lá. Para ela, é difícil compreender que alguém saiba – e nada faça.

Esta é a história de Marie Nzoli – cujo último nome significa “sonho”.

O pai expulsou a mãe porque ela só paria meninas

“Meu pai era professor na escola da prefeitura. E minha mãe, agricultora e dona de casa. Minha mãe teve quatro meninas. E porque minha mãe só tinha meninas, meu pai a escorraçou de casa junto com as filhas. Minha mãe fugiu para a casa do sogro. Eu tinha 8 anos.

Meu avô fez a reaproximação: por um lado, tentou convencer meu pai a aceitar minha mãe de volta, por outro, precisou convencer minha mãe a voltar para casa. Ela voltou. E então fez oito meninos, e meu pai ficou feliz. Mas, nós, meninas, continuamos sem existir.

Era meu pai quem dava dinheiro para a minha mãe. Mas o dinheiro era só para a escola dos meninos. Meu pai achava que menina não precisava estudar. Então, minha mãe roubou dinheiro dele. Eu não tenho o direito de dizer ‘roubar’, mas, na realidade, foi isso o que aconteceu. Minha mãe roubava dinheiro do meu pai para pagar o estudo das filhas.”

Marie “só” foi estuprada pelo marido

“Eu fui estuprada pelo meu marido. Muitas vezes. Eu estava fazendo comida e não queria. Mas, ele dizia: ‘Vem cá’. Eu não queria, mas ele dizia: ‘Eu tenho o direito. É o direito do homem’. Ele me pegava mesmo diante dos meus três filhos. E, se eu me recusasse, ele me batia na frente das crianças. Até hoje eu não suporto escutar meus filhos chamando ele de ‘papai’.”(A tradutora diz: “é um monstro”. E Marie repete: “É um monstro”.)

“Em 1997, depois de seis anos de casamento, meu marido deixou um bilhete, dizendo que partiria para libertar o Congo.”(Neste ano,o guerrilheiro Laurent-Désiré Kabila depôs o ditador Mobutu, no poder desde 1965). “Nunca mais vi meu marido. Eu tenho medo de que ele volte. Se ele voltar, vou dizer para ele que, como ficou muito tempo fora, só posso aceitá-lo se ele fizer um exame de HIV. Como nenhum homem quer fazer o exame de HIV, ele vai recusar. Porque os homens dizem: ‘Eu não vou fazer o teste, você tem de me aceitar como eu sou’.

Como ele vai se recusar a fazer o teste, eu posso dizer que então não posso aceitá-lo. Vou dizer a mesma coisa à família dele. Mas, talvez, eles exijam que eu devolva o dote de 10 cabras. Agora, não sou apenas eu que tenho de devolver, mas também os meus filhos. Sinceramente, eu não sei se eles vão querer.”

(Pergunto a Marie se ela já teve prazer sexual alguma vez.)

“Vários homens quiseram fazer sexo comigo depois que meu marido foi embora, mas eu não quis. Eu não quero mais pensar nisso. Eu não quero isso pra mim.”

Imaculada é o nome da irmã violada

“Minha irmã mais nova, de 14 anos, estava saindo da escola. E encontrou uma milícia. Eles viraram a cabeça da minha irmã para trás. Giraram tanto a cabeça que ela passou dois anos sem se mexer. Ficou também com os olhos doentes. Minha irmã ficava de olhos fechados, sem conseguir caminhar ou comer. Ela não se movia. Eu dava banho nela e também lhe dava comida. Naquele dia, minha irmã se debateu, mas dois deles a estupraram. Minha irmã se chama Immaculé.”

Mulheres contaminadas: a nova arma biológica

“Há estupros todo dia. Meninas e também mulheres mais velhas estão plantando. Os militares passam e as estupram na frente de todo mundo. Vi meninas de 10, as mais velhas com 15 anos, serem estupradas. Os mais pobres precisam andar até 30 quilômetros para encontrar água para beber. As meninas vão buscar água e, quando voltam, os militares as violentam. Depois, elas geram bebês.

Pouco importa se é milícia ou exército.Guerrilheiros e militares são todos selvagens. Se as mulheres resistem, eles cortam os seios e o clitóris. Uma vez jogaram vários militares que já estavam doentes de Aids na nossa cidade e contaminaram muitas mulheres. Existe lá um hospital só para cuidar das mulheres infectadas.

Os ruandeses e também os ugandenses, mas mais os ruandeses, querem exterminar a população do Kivu do Norte, onde eu vivo, para ocupar o nosso território. Antes, a guerra era com faca, com fuzil. Mas, hoje, além da faca e do fuzil, existe a doença. Eles estupram as mulheres, transmitem a Aids e assim vão nos matando. É um genocídio. E é um genocídio há muito tempo.”

Marie fez o parto nua, com dinheiro escondido no ânus e na mira de fuzis: se fosse menino, seria poupada; se fosse menina, fuzilada

“Na primeira vez em que fui de Butembo à cidade de Goma (capital da província de Kivu do Norte, na fronteira com Ruanda) para vender batatas, nosso ônibus foi parado por militares de Ruanda. Esses militares têm autorização para trabalhar e para matar. Nesta estrada, a cada dia dez pessoas são estupradas e mortas. Eles pegam a mala dos passageiros, tomam o dinheiro, tiram as roupas, estupram as mulheres e matam todos. Eu precisava vender batatas e levei dinheiro comigo para a viagem.”(Marie não lembra se eram 10, 15 ou 20 dólares.)

“Quando esses militares de Ruanda pararam nosso ônibus, mandaram todo mundo tirar a roupa, inclusive o motorista. Havia pastores evangélicos no nosso ônibus, e eles também tiveram de tirar a roupa. Eu enrolei o dinheiro, bem enroladinho, e enfiei no ânus para que não me roubassem.

Eu sentia medo e raiva. Quando nos mandam tirar a roupa, a gente precisa dizer ‘obrigada’. Eles ordenam: ‘Agora, digam obrigada porque a gente ainda não matou vocês’. Mas, desta vez, não nos mataram. Como eu fazia acompanhamento psicológico na Coperma, um pastor disse aos militares que eu era enfermeira. A mulher de um deles estava grávida, e eles precisavam que alguém ajudasse no parto. Me deram um pano para cobrir o sexo, e eu fui ajudar a mulher. O militar disse que, se nascesse um menino, seríamos poupados. Mas, se fosse uma menina, estaríamos mortos.

Eu tremia muito. Pensei que estava no final da minha vida. Mas, quando nasceu o menino, os militares ficaram numa felicidade enorme. Saíram para comprar cerveja e comemorar. E, quando voltaram, celebraram fuzilando todos os passageiros de um ônibus que estava atrás do nosso. E depois botaram fogo no ônibus e nas pessoas. Dezoito mortos.

Então, nos mandaram sumir. E voltamos para o nosso ônibus nus. Eu tirei o dinheiro do ânus e, com ele, comprei lençóis e cortinas na feira, para todo mundo se cobrir.”

(É comum as mulheres congolesas esconderem dinheiro no ânus e também na vagina, na tentativa de salvar o pouco que têm, caso sobrevivam à violência. Quando são estupradas, o dinheiro é de tal forma introjetado no corpo que é preciso uma cirurgia para retirá-lo.)

Só a mãe faz Marie chorar

(Pergunto a Marie se este foi o pior momento da vida dela. Ela me diz que não. Parece surpresa por eu cogitar que seja.)

“O pior momento da minha vida foi a morte da minha mãe, um ano atrás. Muitas emoções explodiram dentro de mim. Minha mãe morreu nos meus braços. Dizem que foi por causa de uma intoxicação, que destruiu o fígado. Era como se ela dormisse. Minha mãe, que me fez estudar. Que se esqueceu dela mesma. Eu sou velha, mas sinto muita falta do amor da minha mãe. Fiz tudo para curá-la, mas não foi possível. Com a morte, não há cooperação.”

(Então Marie, que narrou todas as violências com os olhos secos, como se contasse o seu cotidiano – e é o seu cotidiano – começa a chorar. E chora por um longo tempo. A mulher violentada de várias maneiras, que já testemunhou todas as formas de violência, chora apenas de saudades da mãe.)

(Publicado na Revista Época em 09/07/2012)

 

Os olhos de Marie

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Marie era um daqueles bebês que já nasceram bonitos. Aqueles que as pessoas dizem: “Nossa, parece que já tem um mês”. Marie não tinha cara de joelho, não tinha cabeça de ovo. Marie tinha cara de Marie. Parecia uma francesinha, porque já nasceu de cabelo Chanel. E por isso a mãe não pôde colocar Maria, simplesmente Maria, porque ela nasceu Marie. Ridículo, nome francês, dizia o pai. As pessoas aqui no Brasil não vão saber pronunciar. Mas a mãe olhou para ela e sabia que aquela ali já nascera com nome próprio. Em Botucatu, mas parisiense. E assim foi registrada Marie da Silva Santos.

Não era um bebê como os outros em mais de um sentido. Para começar, Marie não chorava. Nunca. Em vez disso, abria uns olhos de bolinha de gude e observava o mundo. De uma forma tão adulta, com um olhar tão conhecedor, que começou a perturbar a mãe. Marie mamava olhando fundo nos olhos da mãe. “Olha como ela me olha”, disse a mãe na primeira vez. E nisso também Marie era diferente, porque não teve nenhuma hesitação. Simplesmente pegou o peito e mamou. Olhando.

A mãe se extasiou com aquela filha especial. Mas depois o olhar de Marie começou a incomodá-la. “Essa criança não é normal”, dizia ao marido. O pai, ao contrário, estava muito satisfeito porque não tinha noites em claro, não era incomodado por choros esganiçados e chegava ao trabalho com pele de pêssego. Em casa, a mãe não via a hora de acabar a licença-maternidade, porque não tinha nada a fazer com aquela filha que não chorava, mas ficava olhando-a dia após dia. “Você está pensando que é a Mona Lisa para ficar me seguindo com os olhos pela casa?” E sentia um tremendo alívio quando os olhos de Marie finalmente se fechavam para as oito horas ininterruptas de sono, nas quais ela nem mesmo sujava as fraldas.

A mulher começou a deixar Marie trancada no quarto, tentando ignorar seu olhar. Mas quando finamente abria a porta, Marie apenas a olhava. E a mãe chorava, primeiro de arrependimento, depois de raiva. Tentou deixá-la com fome, para ver se ela esboçava alguma reação de bebê normal, como gritar por três horas seguidas. Marie apenas olhava. “Esta menina não é normal”, repetiu ao pai quando ele chegou do trabalho. “Você tem um bebê perfeito, que não chora nem acorda à noite, e você está achando ruim. Quem não é normal é você”, ele respondeu. “Você não entende. Esta menina me olha o dia inteiro.” Mas ele, que não olhava, também não escutou. “E isso é ruim?”

Era ruim. A mãe não sabia por que, mas era muito ruim. Ela só queria um bebê que chorasse e que permitisse a ela comentar com as amigas que tinha passado noites em claro e precisava com urgência de receitas caseiras para cólicas. Mas Marie mamava por conta própria de três em três horas, com a delicadeza de não morder o bico com as gengivas e nem mesmo se lambuzava. Marie não era deste mundo. E foi com essa ideia que a mãe achou que aquela menina exemplar não era sua filha, mas algum tipo de bebê de Rosemary.

Interrompeu a licença-maternidade, tomou remédio para secar o leite e entregou Marie nas mãos de uma babá, que ficou feliz da vida por arranjar um emprego em que não precisava fazer nada. Marie não reclamou da mamadeira e seguiu sua vida de olhadeira. Quando chegava do trabalho, meio a contragosto, a mãe dava uma espiada na filha e só via aqueles grandes olhos seguindo-a pela casa. Dizia então para a babá botá-la no berço e fechar a porta antes de sair do serviço.

E assim os dias e depois os meses foram passando. E, quando Marie completou nove meses, a mãe ouviu um barulho na porta do quarto da filha ao acordar numa manhã. Quase imperceptível, mas um barulho. Abriu a porta temerosa de que Marie finalmente tivesse se transformado num daqueles demônios alados, com rabo e chifres, além de asas. Deparou-se com Marie perfeitamente em pé, um longo pescoço de bailarina e uma postura de Audrey Hepburn. Teve um ataque de choro porque agora, sobre as próprias pernas, aqueles olhos a perseguiriam pela casa. Começou então a voltar cada vez mais tarde do trabalho, o que levou a um protesto do pai, que pela primeira vez sentia uma mudança na vida familiar.

Então, numa noite, Marie bateu na porta do próprio quarto com suas mãozinhas. Toc toc toc. O coração da mãe gelou, porque era a primeira reação fora de horário de Marie. Sacudiu o pai dizendo que fosse lá ver o que era, mas ele apenas resmungou e continuou dormindo. A mãe levantou com os pelos do braço eriçados de pavor. Ficou parada diante da porta do quarto de Marie. Toc Toc Toc. Acendeu a luz do corredor. E abriu a porta tremendo, bem devagar. Marie estava bem atrás, com os dois olhos ainda mais escancarados, olhando para dentro dos olhos da mãe. Ficaram assim, olhando uma para a outra. Até que Marie abriu a boca e disse:

— Mamãe.

A mãe deu um grito de pavor, que também não acordou o pai. Agarrou Marie com violência, arrastou-a até a geladeira, de onde pegou uma superbonder, e colou os olhos de Marie.

Foi esta a história que o professor de Braille ouviu da menina cega.

Matando por terras

Pouco antes de morrer, o cineasta Adrian Cowell liberou um documentário com cenas brutais da guerra travada na Amazônia brasileira. Filmada nos anos 80, a obra manteve-se inédita no Brasil por mais de duas décadas para proteger as testemunhas de assassinatos. Nesta semana, o filme será exibido pela primeira vez – e poderemos constatar que o passado continua dolorosamente presente

Cena 1 – Os homens andam pela floresta. Eles têm pés de andar, machucados pelas raízes, pelo sol, pela chuva, pelo caminho. E velhas espingardas nas mãos. No rosto, a expressão dos que foram lançados uma curva além. São homens desesperados – e homens desesperados não têm nada a perder. Exceto a vida, mas esta eles vão perder de qualquer jeito. Em busca de terra, já não há para onde ir. Exceto mais e mais para dentro. “A gente vai ficar. Se for, a gente só morre mais depressa”, diz um. Ali, eles já morrem depressa demais. É o corpo de um companheiro que vão buscar. Raimundo Piauí, posseiro como eles, sem-terra em busca de terra, apodrece há sete dias na mata. Assassinado por pistoleiros a mando de fazendeiros na guerra cotidiana travada na Amazônia.

Cena 2 – Ele é só um velho caçador, com uma espingarda de caça quase tão velha quanto ele. Os pistoleiros sabem disso. Mas não importa. Ele está ali, fácil e frágil. E é preciso dar um aviso aos posseiros que lutam pela terra. Os pistoleiros exigem a espingarda. Ele não entrega. Não entrega porque não pode entregar. Sem ela, morrerá de fome no meio da mata. É morrer de um jeito – ou de outro. Ele se vira. Os pistoleiros o abatem pelas costas. Um tiro atinge a sua boca, os dentes se espalham. Ele cai. João Ventinho era o seu nome. Mais um, só mais um ninguém cuja vida jamais será paga na Justiça.

Cena 3 – O homem corre. Os pistoleiros o perseguem atirando. O homem carrega uma criança nas costas. O menino grita primeiro. As últimas palavras do homem são: “Ô malvadeza”. Os dois corpos tombados na terra. O do posseiro Sebastião Pereira, liderança rural. E o de Clésio, de três anos. Um corpo de menino na mesa do necrotério, vítima de uma guerra que o matou antes que pudesse entendê-la. Uma guerra onde as crianças recebem balas de chumbo.

Estas cenas reais fazem parte do documentário Matando por terras (52 minutos), que será exibido pela primeira vez no Brasil nesta quinta-feira (5/7), no CineSesc, em São Paulo. Filmado nos anos 80, ele não pôde ser mostrado aqui por mais de duas décadas para não expor as testemunhas dos crimes – e condená-las também à morte.

A guerra da Amazônia: Depois de ter suas casas queimadas, um grupo de sem-terra se arma para se proteger dos pistoleiros, nesta imagem do filme Matando por terras (Foto: Divulgação)

A guerra da Amazônia: Depois de ter suas casas queimadas, um grupo de sem-terra se arma para se proteger dos pistoleiros, nesta imagem do filme Matando por terras (Foto: Divulgação)

O filme revela, de forma crua e persistente, como possivelmente nenhum outro documentário sobre o tema, a guerra travada na Amazônia. Uma guerra que, antes como agora, a maioria finge desconhecer. Rodado ao longo da rodovia Belém-Brasília, documenta o conflito entre fazendeiros – temerosos de perder os privilégios garantidos pela ditadura militar – e sem-terra. Mais de 100 pessoas foram mortas na região neste período.

A versão brasileira de Matando por terras foi o último trabalho do cineasta britânico Adrian Cowell. Ele se preparava para viajar ao Brasil para concluí-la quando morreu de ataque cardíaco, em Londres, no último 10 de outubro. Tinha 77 anos – 50 deles filmando a Amazônia. É pelo olhar de Adrian, um homem nascido na China e criado na Inglaterra, que uma parte da memória brasileira foi preservada. Não tivesse ele desembarcado no Brasil em 1957, aos 23 anos, para filmar o Monte Roraima, e uma parte crucial da saga amazônica teria permanecido invisível, sepultada em sangue e silêncio. Este testemunho único será exibido de 5 a 12 de julho, numa mostra em sua homenagem, promovida pelo CineSesc.

Morrendo por terras: Posseiros enterram um companheiro assassinado por pistoleiros, em uma cena filmada por Adrian Cowell (Foto: Divulgação)

Morrendo por terras: Posseiros enterram um companheiro assassinado por pistoleiros, em uma cena filmada por Adrian Cowell (Foto: Divulgação)

Adrian Cowell produziu o maior registro audiovisual da Amazônia. Todo o seu acervo foi doado à PUC de Goiás e está disponível para ser acessado: quase 900 mil metros de filme, sete toneladas que se transformaram em 30 documentários. Neste percurso, Adrian conviveu com Orlando Villas-Boas antes mesmo da criação do Parque Indígena do Xingu. Trabalhou também com Apoena Meireles, outro grande sertanista, assassinado em 2004 durante um assalto em Porto Velho (Rondônia). Em meio século, ele filmou um Chico Mendes ainda desconhecido do próprio Brasil – e o seu trabalho ajudou a projetar o líder seringueiro no mundo.

Adrian filmou tribos isoladas e filmou a destruição. Enquanto ele capturava a vida em um embate de morte, seus personagens tombavam junto com a floresta. Às vezes, antes mesmo do final do filme. Adrian começou a filmar Chico Mendes porque o personagem cuja história planejara contar, Padre Josimo, um religioso negro da Comissão Pastoral da Terra, foi assassinado no Tocantins pouco antes do início das filmagens. E Chico Mendes foi executado ao longo das gravações da série mais famosa de Adrian, A década da destruição, que será exibida na mostra.

O cineasta acreditava que um dia documentaria “A década do meio ambiente”, com o fim da devastação da Amazônia. Morreu com seu sonho – mas sua obra teve uma importância crucial para que a preservação da floresta e dos povos da floresta deixasse de ser uma questão de ecologistas para se tornar um problema do mundo.

Em 1980, Adrian conheceu o cinegrafista brasileiro Vicente Rios e, juntos, filmaram pelos 30 anos seguintes. “Rios e Cowell formaram uma poderosa dupla, como aquelas de pistoleiros do Velho Oeste, retratadas pelos filmes de Sergio Leone”, escreveu o jornalista Felipe Milanez, idealizador e curador da mostra. “Por vezes, andaram literalmente armados de revólver, para o caso de precisarem se defender, como em Serra Pelada, ou então portando uma arma muito mais poderosa: a câmera.”

Quem quiser conhecer as aventuras vividas pela dupla poderá ouvir da boca do próprio Vicente, na abertura da mostra e em algumas sessões apresentadas por ele. Vicente Rios também exibirá um documentário inédito – Visões da Amazônia. A obra apresenta cenas de bastidores das filmagens e coloca Adrian diante das câmeras, fazendo uma reflexão sobre suas memórias e sua paixão pela floresta.

Adrian apaixonou-se tanto pela Amazônia e pelo seu povo que deu ao filho um nome que junta mundos: Xingu Cowell. O menino morreu em um acidente de caiaque, aos 18 anos, no mesmo ano em que Adrian começou a filmar Matando por terras, no sul do Pará. O próprio Adrian participaria da mostra de cinema em homenagem à sua obra, mas tombou no meio do gesto. Até o fim, ele acreditou que a floresta poderia ser salva. E lutou por isso.

Em 6 de junho de 2011, Adrian escreveu para o jornalista Felipe Milanez. O cineasta acabara de saber do assassinato de José Cláudio Ribeiro e Maria do Espírito Santo. O casal foi executado a tiros nas proximidades do assentamento onde viviam, em Nova Ipixuna, no sul do Pará. Adrian dizia, com o português que aprendeu enquanto se embrenhava na selva, que o filme Matando por terras, ainda inédito, mostraria que os assassinatos registrados por ele, 25 anos atrás, continuavam se repetindo no Brasil de hoje. Foi assim, porque o filme é presente tanto quanto passado, que a versão brasileira foi feita.

Na Amazônia, o século 20 invadiu o século 21, a violência tolerada (e muitas vezes patrocinada) pela ditadura persistiu na democracia. E os mesmos de sempre seguem tombando a tiros. Adrian Cowell poderia ter filmado cada uma das cenas a seguir. Todas elas – e muitas outras – aconteceram há pouco. E continuam se desenrolando neste exato momento.

Cena 1 – Zé Cláudio e Maria, lideranças que vivem da extração de castanha, estão perto do assentamento onde vivem. Zé dirige, Maria se agarra a ele na garupa. Assim que Zé diminui a velocidade da moto para passar sobre a ponte que cobre um igarapé, são atacados pela dupla de pistoleiros. O primeiro tiro de escopeta atravessa a mão direita de Maria e atinge o lado esquerdo do abdômen de Zé. Em seguida, mais tiros de escopeta e de um revólver calibre 38. Um dos assassinos puxa a faca, caminha até Zé Cláudio e corta um pedaço de sua orelha direita. Uma prova do serviço feito para entregar ao mandante. É 24 de maio de 2011. Hoje, é Laísa Santos Sampaio, irmã de Maria, que vive sob ameaça de morte. (Assista aqui ao depoimento de Zé Cláudio.)

Cena 2 – João Chupel Primo, mais conhecido como João da Gaita, trabalha na sua oficina mecânica, em Itaituba, no oeste do Pará. Um minuto depois está morto, com uma bala na cabeça. É 22 de outubro de 2011. Caçado por pistoleiros, seu amigo Júnior José Guerra começa a fugir. Os dois haviam denunciado a quatro órgãos federais e dois estaduais uma milionária operação criminosa de roubo de ipê do interior de áreas de preservação. Toda a madeira passava – e continua passando – por um assentamento do Incra, entre os municípios de Itaituba e Trairão. João e Júnior denunciaram também 15 assassinatos consumados nos últimos dois anos na região por causa da posse da terra e do controle da madeira. Denunciaram às autoridades – e não foram protegidos. (Leia aqui.)

Cena 3 – Em 2010, a líder rural Nilcilene Miguel de Lima foi espancada e teve sua casa queimada, no município de Lábrea, no Amazonas, depois de denunciar a grilagem e o roubo de madeira em seu assentamento. Em maio de 2011, fugiu enrolada em um lençol do pistoleiro atocaiado perto da sua casa. Só voltaria em outubro, protegida por uma escolta da Força Nacional. Em 30 de março de 2012, sua amiga Dinhana Nink, de 27 anos, foi a sétima pessoa assassinada na região nos últimos cinco anos por denunciar madeireiros e pistoleiros. Ela tinha fugido para Rondônia para escapar da morte, mas a alcançaram. Mataram-na com um tiro no peito diante do mais jovem de seus três filhos, Tiago, de 6 anos. Quando o pai de Dinhana encontrou o corpo, Tiago limpava o sangue do rosto da mãe. No último 19 de maio, a Força Nacional interrompeu a proteção a Nilcilene, e ela teve de deixar sua casa e a colheita para trás para se esconder mais uma vez. É nesse desamparo que se encontra agora. (Leia aqui.)

A guerra na Amazônia continua, como Adrian Cowell apontou pouco antes de morrer. Em Matando por terras, ele registra a campanha presidencial de 1989. Nela estão Lula, Fernando Collor e Ronaldo Caiado. Lula nos históricos comícios bordados de bandeiras vermelhas do PT, ao som do povo cantando “Lula-lá” com esperança e orgulho na voz. Collor fazendo promessas no tom histriônico de “caçador de marajás”, e Caiado incitando os fazendeiros a reagir contra os “invasores”. Em certo momento do filme, ainda aparece Paulo Brossard, então ministro da Justiça, reagindo com veemência às denúncias de assassinatos na Amazônia, feitas pela Anistia Internacional, com uma frase que já era popular naquela época: “É uma fantasia!”.

O Lula de 1989 diz: “A única forma de acabar com a violência é punindo. E fazendo a reforma agrária”. Collor foi eleito e depois deposto por impeachment. Fernando Henrique governaria por dois mandatos. Só então Lula se elegeria por duas vezes e ainda faria a sucessora. Mais de duas décadas depois, a realidade mostra que o mesmo filme poderia ter sido feito hoje – apenas com novos cadáveres.

Antes, os mortos eram chamados de sem-terra ou posseiros. Hoje, a maioria é “assentado”. No papel, conquistou-se assentamentos do Incra, reservas extrativistas, florestas nacionais. Mas as conquistas dos anos de democracia não alcançaram o concreto dos dias: o Estado que está no papel não está na vida. Há vastas porções da Amazônia sob o controle do crime organizado – cada vez mais sofisticado e com braços mais longos. Sem o apoio do Estado, quem denuncia o “malfeito” assina sua sentença de morte. E vive seus últimos dias na insanidade: quem morre hoje estava marcado para morrer, avisou às autoridades que morreria, documentou as ameaças e os pedidos de socorro, às vezes em vídeo – e morreu.

Adrian Cowell emprestou seus olhos e arriscou sua vida por meio século para mostrar o que muitos brasileiros não queriam ver. Conhecer sua obra é um bom começo para mudar esse filme.

(Publicado na Revista Época em 02/07/2012)

 

 

Página 2 de 212