Nhec nhec nhec

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

O barulho continuava, mas ela parecia não perceber. Comentava animadamente sobre a revanche de Nina contra Carminha na novela das oito, satisfeita com a aparência do almoço caprichado que preparava desde a noite anterior para um grupo de amigos que tinham vindo conhecer o apartamento novo.

Nhec nhec nhec.

Que barulho é este?, perguntou um, com uma ponta de irritação no “este”.

“É a máquina de lavar roupa”, ela esclareceu, continuando a descrever o último capítulo para os que tinham perdido. Jura?, insistiu uma amiga, interrompendo. “Sim, a Nina humilhou a Carminha desse jeito que estou contando.” Não!, voltou a amiga. Jura que esse barulho chato é da máquina de lavar? Ela bufou um pouco, mas controlou-se a tempo. “É que vocês chegaram no molho prolongado, por isso não tinham escutado ainda.”

Mas você precisa mesmo lavar roupa agora?, um outro inquiriu, deixando o garfo cair no prato, um cogumelo empalado na transversal. “Sim, eu preciso”, respondeu ela, um pouco ofendida. Mas não dá pra deixar pra depois da sobremesa?, tentou o marido, tremendo ligeiramente os lábios. “Não, não dá, se deixar vou perder o sol da tarde.”

Nhec nhec nhec… A máquina parecia gargalhar da área de serviço, quase na sala por conta dos 50 metros quadrados de área total que eles pagariam por 25 anos. De fato, naquele momento eram donos de no máximo um metro quadrado, talvez o da máquina de lavar roupa.

“Eu me sinto segura quando estou lavando roupa”, explicou ela, enquanto colocava uma cereja para finalizar a mousse. Como?, perguntou o amigo de infância do marido, ameaçando um riso, mas imediatamente recolhendo os dentes ao perceber que ela falava sério. “A vida é esta merda que a gente não controla, coisas ruins acontecem o tempo todo, as pessoas morrem de repente ou nem tão de repente, meu imposto caiu na malha fina, a gente mal se mudou e o vizinho já tá reclamando de vazamento no banheiro…”

Enquanto falava, uma cereja escorregou da mesa e esborrachou-se, sujando o taco encerado. “É isso… Tudo fora de controle. A máquina, não. Eu programo e tudo acontece exatamente como o planejado. Eu aperto os botões, eu ligo, desligo, centrifugo, deixo de molho, enxáguo.” A voz dela tornava-se estridente quando ficava nervosa. “Se não fosse a máquina de lavar roupa, eu nem conseguiria sair de casa!”

Ao dizer isso, percebeu que a carne da cereja morta respingara no seu sapato novo. Desandou a chorar, desandando a mousse, o almoço e a maquiagem, tudo ao mesmo tempo. Correu para o quarto e bateu a porta como uma adolescente mimada, deixando o marido a torcer as mãos na sala. E o Neymar? Vocês viram o passe de calcanhar na Olimpíada de Londres?

Um por um, os convidados inventaram uma desculpa e, em 10 minutos, o marido estava sozinho na sala. Esgueirou-se até a porta fechada do quarto. Mas, quando se preparava para bater, acabou encolhendo a mão e andando de volta até a sala, na ponta dos pés.

Ficou um tempo ali, deitado no sofá de dois lugares que só acolhia metade dele. De repente, levantou-se num salto. Caminhou resoluto até o cesto de roupa suja. Lá de dentro espiavam-no duas camisetas, uma calça de abrigo, um jeans, uma saia, dois pares de meia e uma cueca. O suficiente para uma lavada em nível médio. Abriu um sorriso que ainda guardava um pouco do menino.

Nhec nhec nhec.

Não atirem no Coringa

A ficção não é culpada pelos crimes da vida real, como o do matador do cinema do Colorado. Pelo contrário: desde a infância, ela nos ajuda a lidar com as sombras que habitam o mundo de fora – assim como o mundo de dentro. O mal permanente e cotidiano não é praticado pelos loucos que confundem fantasia com realidade, mas por homens e mulheres bem racionais, que sabem o que fazem

Quando eu tinha 8 anos, minha mãe fez uma oferta inédita. Ela tinha ganhado um dinheiro extra em algum trabalho como professora, talvez corrigindo redações de vestibular, e me levou a uma loja dizendo: “Escolha o que você quiser”. Fiquei extasiada. Na minha infância, ao contrário de hoje, se você pertencia a uma classe média remediada, só ganhava presentes no Natal e no aniversário – e eram limitados. Assim, a oferta da minha mãe equivalia à abertura da caverna de Ali Babá de repente, sem aviso e num dia de semana. Olhei para um lado, olhei para o outro, e fui atraída por um objeto reluzente, a réplica exata de um revólver calibre 38, tão fiel que muitas vezes depois seria confundido com um de verdade. “Quero o revólver”, eu disse, para espanto geral da minha mãe, da vendedora da loja e, depois, do restante da família. Você não quer uma boneca? “Não, eu quero o revólver.”

Eu não era estranha às armas de mentira. Passara os últimos anos matando ou sendo morta pelo meu irmão do meio, assim como pelos amigos. Morria ora como cowboy, ora como índio. Por influência ideológica, lá em casa os índios tinham seus dias de glória ao vencer a cavalaria americana. Mas também fui assassinada pelo martelo do Thor, asfixiada pela teia do Homem Aranha e trespassada pela espada do Zorro. Morri dezenas, talvez centenas de vezes, antes de completar 10 anos. E comandei massacres quando ainda era menor de idade. Alguns dos melhores momentos da minha infância foram vividos quando matava ou morria alegremente nas brincadeiras, ressuscitando a tempo de comer o bolinho de chuva da minha mãe.

Mas nunca matei um único passarinho real na minha infância, em uma época na qual isso era comum. Aprendi a pegar os insetos que apareciam em casa pelas asas ou pelas patas e devolvê-los ao lado de fora sem lhe causar danos, exceto baratas e pernilongos. No dia em que matei um filhote de barata, porém, fiquei tão culpada que tentei imortalizá-lo em uma pobre novela escrita em um caderno decorado. Jamais tive ou teria uma arma de verdade, inclusive porque jamais conseguiria usá-la. Votei pela proibição do comércio de armas de fogo e munição no plebiscito de 2005. E, como jornalista, dediquei uma parte significativa da minha vida a denunciar a violência contra os mais fracos e os invisíveis. O que não me impede de ainda hoje explodir cabeças no videogame sempre que possível.

Se fosse eu – e não o americano James Holmes – a entrar no cinema da cidade de Aurora, no Colorado, em 20 de julho, com um arsenal de armas de verdade, e assassinar 12 pessoas e ferir 58, algum jornalista apressado possivelmente investigaria a minha infância e encontraria mais indícios de um futuro violento do que foram encontrados na vida do matador. O massacre na estreia de Batman, o Cavaleiro das Trevas Ressurge, protagonizado por uma pessoa que teria se apresentado como o “Coringa”, um dos vilões mais perturbadores da ficção, poderia se esclarecer, por exemplo, a partir da compra do revólver de brinquedo aos 8 anos de idade. Dá até para imaginar a chamada: “Em vez de uma boneca, a assassina pediu um revólver”. Ou: “O hobby da matadora era explodir cabeças de zumbi no videogame”. Ou: “Desde pequena, ela vivia me assassinando”, diz o irmão. “Quando brincávamos de polícia e ladrão, ela sempre queria ser o ladrão”, revela uma colega de primário.

Logo, descobririam minha fixação no Alien, um dos monstros mais violentos da história do cinema, tão profunda que tenho um boneco na escrivaninha onde escrevo essa coluna. Sem contar meus estudos sobre vampirismo e um interesse já superado por psicopatas. Para piorar, não tive cabelo laranja – mas roxo, verde, azul e rosa. O que quero dizer é que, sabendo o que procurar, numa interpretação ligeira dos fatos, é possível encontrar prenúncios de um futuro serial killer ou matador de cinema na vida pregressa de cada um de nós.

Digo isso porque, sempre que alguém entra em um cinema matando gente, aparece muitos alguéns para culpar a ficção. Desta vez, não foi diferente. Em vez de Batman ressurgir das trevas, como o título do filme promete, o que ressurgiu foi a entrevada tese de que o “excesso” de violência no cinema (e na TV, games etc etc ) é o culpado pela tragédia. Essa tese recorrente, que faz ninho inclusive na cabeça de pessoas bem inteligentes, serve para muitas coisas, especialmente explicar o (quase) inexplicável (e assim dormir tranquilo) – e reivindicar interferência e controle sobre o conteúdo das obras de ficção. Quando não, sua proibição.

O efeito imediato desse tipo de tese é a redução de cada um de nós a alguns estágios anteriores da evolução. Seríamos adultos tão estúpidos e incapazes que, se alguém – um “tio” ou o Estado – não cuidar do que estamos assistindo, lendo ou jogando, não saberemos distinguir a realidade da fantasia. Impressionado com alguns textos que lera sobre a relação entre a violência da ficção no cinema e a violência do matador do cinema da vida real, um amigo que assistia comigo a um seriado policial na TV, comentou: “Olha só, o cara matou cinco pessoas só ao arrombar a porta, e a gente não sentiu nada”.

O que isso prova? Nada, me parece. Respondi ao meu amigo: “Sim, mas isso faz com que você saia da minha casa e assassine cinco dos meus vizinhos com uma faca de pão ou pegue teu carro e atropele todos que estiverem na faixa de segurança? Se você visse alguém matando cinco pessoas na vida real, bem aqui na rua, agora, você não sentiria nada? Ou isso marcaria a tua vida para sempre?”. Poderia ter dito também que, se o diretor do filme tivesse contado a história de cada um dos mortos, ele estaria soluçando diante da TV.

A maioria dos adultos e também das crianças sabe distinguir muito bem o que é realidade, o que é fantasia. E, os que não sabem, não se tornarão mais violentos por conta da violência a que assistiram no cinema, que praticaram nos videogames e nas fantasias de infância, ou que leram nos livros e nas HQs. Quem não sabe, não sabe. Nestes casos, a questão é de outra ordem.

O perigo maior é partir do princípio de que as pessoas, crianças ou adultos, são incapazes de diferenciar a fantasia da realidade. E, em nome disso, interferir na ficção, “purificando-a”. Como sabemos, dos contos de fadas a Harry Potter, a ficção cumpre a função importantíssima de nos ajudar a lidar tanto com aquilo que nos aterroriza quanto com as pulsões de morte que nos habitam. É no ambiente controlado das histórias, no qual podemos ter certeza do enredo, que vamos aprendendo a conviver com a realidade interna e externa, com nossas contradições e sentimentos mais obscuros. É pelo ódio à madrasta da Branca de Neve que uma criança pode lidar com a raiva que muitas vezes sente pela mãe na vida real. É também matando e morrendo em embates de brincadeira que escapamos de aniquilar e sermos aniquilados no mundo concreto. E isso até a vida adulta, de várias maneiras.

O problema começa quando não há espaço para lidar com aquilo que é do humano. Tenho grandes dúvidas se é realmente educativo, numa sociedade armada como a nossa na vida real, reprimir armas de brinquedo, por exemplo, eliminando a possibilidade de lidar, pela fabulação, com um elemento presente no cotidiano. Já cansei de ouvir pedagogas em matérias na imprensa afirmando coisas como esta aqui: “Mesmo uma aparentemente inofensiva pistola de bolhas de sabão incentiva a violência e poderá alterar a personalidade na vida adulta”. Hoje, o pai ou mãe que aparecer em casa com uma metralhadora de brinquedo para presentear o filho será condenado sem julgamento pela opinião pública. Mas, sempre que o bom senso é esquecido, novas brechas são encontradas porque é preciso lidar com a vida como ela é: ou o que é a varinha mágica do Harry Potter, a do livro e as vendidas nas lojas, além de uma arma com potencial letal? (Assim como sabres luminosos e armas estrambóticas de super-heróis…?)

E se J. K. Rowling tivesse botado uma metralhadora na mão de Harry, em vez de uma varinha, para que pudesse lidar com as infindáveis ameaças mortais que rondam seu destino, graças à ambição dos adultos? A escritora jamais teria saído daquele café onde escreveu o primeiro livro, aproveitando a calefação que não tinha em casa. Mas a varinha de Harry Potter e de seus amigos paralisa, deforma, queima e pulveriza seus inimigos, mais potente do que qualquer metralhadora real. E Harry Potter só se tornou o sucesso que é porque o personagem é tratado com respeito pela autora: Harry é um menino sensível e bondoso, mas também inteligente, autônomo e capaz de defender-se das ameaças vindas do mundo dos adultos. E não um tolinho choraminguento agarrado à barra da saia da mãe, exigindo um videogame de última geração.

Há duas crenças perigosas em jogo quando se culpa a ficção pelas atrocidades da vida cotidiana. A primeira é a de que a fantasia poderia invadir a realidade de uma forma literal. É claro que a fantasia invade a realidade (e vice-versa) – sempre –, mas pelo simbólico. E é por sermos capazes de simbolizar que não cometemos atrocidades na vida real. A segunda crença é a de que aniquilar os “maus” sentimentos e impulsos na ficção seria suficiente para eliminá-los na realidade. Como se negar o “mal” fosse o suficiente para fazê-lo desaparecer. Isto sim é confundir fantasia com realidade.

Arrisco-me a acreditar que tem mais chance de se tornar um adulto decente aquela criança que matou e morreu muitas vezes nas brincadeiras de infância do que aquela que foi obrigada a reprimir todos os seus “maus” instintos na fabulação cotidiana. Como não é possível eliminar nossos sentimentos e pulsões mais sombrios por decreto, de algum modo esse caldeirão vai transbordar, mais cedo do que tarde.

De fato, as crianças acabam dando um jeito de sobreviver – também subjetivamente – às sandices dos adultos. Dias atrás, uma conversa no pátio do prédio de classe média de uma amiga nos chamou a atenção. “Agora, você é o traficante”, disse uma menina de mais ou menos 10 anos para o companheiro da mesma idade. Ela, como explicou, seria a viciada em crack. Ficamos ali, na janela, ouvindo e imaginando o que aconteceria se os respectivos pais estivessem no nosso lugar.

O que as crianças faziam era tentar lidar, pela brincadeira e pela fantasia, com as notícias que vinham do mundo real pelo noticiário e pelas conversas, já que o crack é a droga mais falada do momento no mundo que elas também habitam. Ao tentar fabular sobre o que as impactava, estavam fazendo algo bastante saudável. Mas seria muito provável que parte dos pais e professores interpretasse a brincadeira como o prenúncio de um futuro de delinquência ou drogadição. Ao reprimir o que era natural como se fosse um problema, confundindo, agora sim, fantasia com realidade, poderiam causar um problema de verdade.

Para terminar, o que me parece arriscado não é quando a ficção espetaculariza a realidade. Esta é, com mais ou menos talento, uma das funções da ficção. O problema é quando a realidade é tratada não como a realidade que é, mas como espetáculo. Isto, sim, banaliza a vida humana. E temos convivido o tempo todo com a espetacularização da realidade em programas sensacionalistas travestidos de jornalísticos, em coberturas de ocupação de favelas em que repórteres e comentaristas comemoram a morte de supostos traficantes, como se suspeitos fossem culpados e culpados não fossem pessoas.

A espetacularização da realidade acontece sempre que a imprensa, responsável por documentar a vida cotidiana de homens e mulheres reais, anula a história que faz cada um ser o que é – e transforma gente encarnada em números sem carne. Mas a crescente espetacularização da realidade só vinga porque rende muita audiência – ou seja, porque recebe o aplauso de boa parte dos ditos “cidadãos de bem”, de muitos de nós.

Nestas últimas semanas, em minha opinião, a notícia mais chocante não foi a do matador do cinema do Colorado. Eu sei que há poucos James Holmes por aí. E que a maioria de nós, aqui ou nos Estados Unidos, vai continuar entrando e saindo vivo do cinema. Para mim, é muito mais chocante constatar, mais uma vez, que homens, mulheres e crianças estão sendo assassinados em conflitos nos lugares mais pobres, sofridos e violentos do mundo, neste momento e dia após dia, com armas fabricadas e vendidas pelo Brasil, como mostrou o jornalista Rubens Valente, na Folha de S. Paulo de 22 de julho.

Em 2001, o Brasil vendeu US$ 5,8 milhões em bombas de fragmentação e incendiárias para o ditador do Zimbábue, Roberto Mugabe. Cada uma delas pode espalhar, ao ser detonada, até 120 mil esferas de aço por uma área equivalente a sete campos de futebol, matando indiscriminadamente combatentes e civis. Na lista de compradores das empresas brasileiras de armamento já estiveram Muammar Khadafi e Saddam Hussein. Em 2011, cartuchos de bombas de gás lacrimogêneo fabricados no Brasil foram usados pela polícia turca em campos de refugiados sírios.

O aumento das exportações de material bélico é um dos objetivos do governo brasileiro, que criou para as empresas um programa de incentivos fiscais e condições especiais de financiamento. Na semana passada, fracassaram as negociações para um tratado internacional da ONU que obrigaria os países exportadores de armas a manter um registro das transações e avaliar se o material bélico vendido poderia ser usado para violar direitos humanos, cometer atentados ou alimentar o crime organizado. O Brasil foi um dos países que se manifestaram contra a “transparência absoluta”.

No início de julho, eu contei nesta coluna a história brutal da congolesa Marie Nzoli (leia aqui), com grande mobilização de leitores perguntando o que é possível fazer para “ajudar as mulheres do Congo”, vítimas de uma guerra complexa, prolongada e com múltiplas causas que já matou 5 milhões de pessoas. Para começar, é possível ligar os pontos. Já sabemos que os assassinatos, as torturas e os estupros que massacram o povo congolês foram – e talvez ainda sejam – praticados também com armas fabricadas e vendidas pelo Brasil. Afinal, ao comprar as bombas de fragmentação brasileiras, em 2001, o ditador Mugabe tinha como passatempo manter tropas do Zimbábue atuando na República Democrática do Congo. Esta é uma das realidades que podemos mudar – e que merece toda a nossa atenção.

É importante pensar em assassinos como James Holmes. Não porque a ficção supostamente teria influenciado suas ações e portanto seria preciso controlar a ficção – mas porque ele diz da realidade de nosso mundo. O caminho mais fácil é acreditar que o maluco não tem nada a dizer – e, assim, podemos fingir que basta removê-lo para que o mundo fique bom de novo. Mas o louco é aquele que diz explicitamente do mundo em que vive. E, ao dizê-lo, sacrifica várias vidas, mas também a sua. A tragédia do louco é que, ao denunciar a insanidade do mundo, colabora para manter tudo como está.

O mal cotidiano, permanente e insidioso, porém, é praticado por homens e mulheres que não cometem loucuras. Talvez os donos e executivos e funcionários das fábricas de armamentos do Brasil, que produzem as bombas que explodem crianças nos rincões esquecidos do planeta, proíbam seus próprios filhos de brincar com armas de brinquedo e assistir a filmes violentos na TV ou no cinema. É com a realidade – e não com a ficção – que temos de nos preocupar.

(Publicado na Revista Época em 30/07/2012)

 

“Silmara, você está dando de graça!”

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Silmara, nós precisamos conversar. Bem que ela deveria ter desconfiado daquele jantar só para mulheres, em pleno sábado à noite. Seis pares de olhos estavam fincados nela, entre o amor e a preocupação. Silmara encolheu-se. O que foi? Não gostaram do meu esmalte amarelo-canário?, brincou, na tentativa de desarmar o ataque. Silêncio. Betina, que era a amiga-bem-resolvida-que-diz-as-verdades-todas, avançou. É o seguinte. Nós estamos preocupadas com você. Por quê?, Silmara retrucou, assustada. Reviu mentalmente sua vida atual e, com sinceridade, achava que estava tudo bem. Não estou entendendo… Betina pegou na sua mão, rosto contrito. Acredite, vai doer mais em mim do que em você, mas amigas de verdade dizem a verdade. Silmara agora estava assustada. Betina não fez pausa:

— Querida, é o seguinte. Você está dando de graça.

A visão de Silmara escureceu na hora. Como elas descobriram? Ela tinha sido tão discreta.

Nós sabemos, adiantou-se Joana. Você sabe, os homens falam. E nossos amigos estão chocados com a sua falta de amor próprio. Por que, Silmara, você está fazendo isso com você mesma?, gritou Naiara, meio descontrolada. Ela babava um pouco no canto direito da boca quando ficava nervosa. Silmara agora torcia as mãos, sem saber o que dizer. Como poderia explicar? Me deu vontade, só isso. Aconteceu.

Como assim, ACONTECEU?!, atacou Renata. Por que você está desrespeitando o seu corpo? Silmara, o corpo é seu, não pertence a homem algum, a mulher alguma, por mais sensacional que seja. Silmara, como você pode desrespeitar o seu corpo dessa maneira, abrindo as pernas apenas por prazer, ou mesmo sem prazer, mas por amor? Silmara, o corpo a gente não dá, a gente vende!

Todas as seis começaram a falar ao mesmo tempo. E Silmara, acuada, começou a chorar. Ela estava morta de vergonha. Sabia que não havia perdão para o que tinha feito. Aconteceu, balbuciou mais uma vez. Eu gosto do Volnei, ele tem aqueles cachinhos ao redor do pinto, me lembram do meu irmão quando era bebê. Me envolvi com os cachinhos e acabei esquecendo de cobrar. Ele não falou nada e, na vez seguinte, eu esqueci de cobrar de novo — e ele de pagar. Foi meio que por acaso… Mas tenho certeza de que ele não queria me humilhar. O Volnei me respeita!

E Silmara começou a sentir coceira nas mãos, um tique nervoso que tinha desde a infância.

Valei-me, Nossa Senhora da Periquita!, berrou Verônica. É muito pior do que a gente pensava. Ela está dando de graça. E só pra um!

Silmara agora soluçava e começava a sentir ânsia de vômito.

Mas as amigas não se apiedaram. Por que, Silmara? Você teve uma infância feliz! Começou a dar desde cedo, sempre ganhou bem, tem filhos saudáveis, sua filha já está dando e ganhando seu dinheirinho honesto. Betina pegou nas suas duas mãos. Silmara, há algo do seu passado que a gente não sabe? Você foi abusada na infância?

Betina, interrompeu Renata. Você sabe que o pai da Silmara era um homem honesto, que sempre pagou direito pelo sexo, pra todas as mulheres, não só pra mãe dela. E a mãe da Silmara sempre cobrou um preço justo e, quando um mané não quis pagar pelo boquete, botou o cara na cadeia. Não é por aí!

Betina não gostou de ser questionada. Ora, Renata, eu não estou dizendo nenhum absurdo. Você sabe muito bem que é comum mulheres que foram abusadas na infância apresentarem esse comportamento autodestrutivo. Você não viu aquela reportagem no Fantástico sobre abuso sexual? As vítimas são exatamente como a Silmara. Ficam com nojo do corpo e começam a dar de graça pra um homem só. É a tal, como é o nome mesmo?

Síndrome de Estocolmo, esclareceu Naiara. Ficam obcecadas pelo abusador — e transferem essa obsessão para um estropício qualquer. E, você sabe, homem imprestável tem por toda parte. Sem tratamento, algumas mulheres acabam indo morar com um traste destes. Se acomodam, não cobram mais, abrem mão de ter outras experiências sexuais, viram uma pantufa pra ser calçada de vez em quando apenas porque é mais confortável.

Que horror!, gritou Joana, que era a mais sensível das seis e não lidava bem com catástrofes humanitárias.

Mas é assim que algumas mulheres ainda vivem, como se estivessem na Idade Média, insistiu Betina. Ela tinha gostado mesmo daquela matéria do Fantástico. Ficam vivendo uma vida sem sentido e sem dinheiro nem para comprar um sapatinho! Como não transam com outros nem cobram, acabam dependendo do aproveitador para tudo. Uma delas ficou 25 anos com um infeliz desses, até ter a coragem de denunciar na Delegacia da Mulher. Foi então abrigada num puteiro, para um programa de recuperação do sexo gratuito e monogâmico, e hoje está feliz, rodando uma Louis Vuitton na Augusta.

Ahhh, ufa, recuperou-se Joana. Satisfeita com o final feliz.

Silmara se encolheu toda. Ela e Volnei tinham pensado em morar juntos. Mas ela não confessaria isso por nada. Não nesta vida, pelo menos. Eu ganho um bom salário no meu emprego, tentou se defender. Não faz falta esse dinheiro do sexo. E o Volnei está desempregado…

Os seis pares de olhos agora lacrimejavam por ela. As amigas estavam penalizadas. Silmara, meu amor, disse Verônica. Não se trata apenas de dinheiro, mas de respeito pelo seu corpo, pela sua autonomia, pelo feminino. Se você dá seu corpo de graça, como se tivesse achado a buceta no lixo, como você vai se olhar no espelho todos os dias?

E não é só isso, meteu-se Naiara. Você está dando pra um cara só! Isso é altamente autodestrutivo, Silmara. Logo esse cara vai pensar que é seu dono. Primeiro ele não paga, depois vai começar a achar que você tem de transar com ele sem vontade, daqui a pouco vai ficar com ciúmes se você quiser se divertir com outro, como qualquer mulher bem resolvida faz desde que as feministas queimaram o sutiã em praça pública e cobraram ingresso pra quem quisesse ver seus peitos. Silmara, você precisa compreender que não se trata só de você, mas de todo um movimento, que, ao longo de séculos, lutou para que mulheres como você pudessem ter o direito de vender o corpo para quem quisessem. Silmara, você está descendo ladeira abaixo. Vai acabar casada!

Neste momento, todas fizeram o sinal da cruz. Silmara também. Deus nos livre!

Silmara caiu em si. O que há de errado comigo?, pensou. Como eu fui perder tanto o rumo da minha vida? Eu, que tinha uma carreira tão promissora, que era uma mulher feliz… Como é possível, de repente, eu ter descido tanto? Não, chega de autocomiseração! Silmara levantou o queixo, como sinal de autoestima, e berrou: Mulheres, unidas, sigam-me!

Deixaram o risoto trufado pela metade nos pratos, um resto de Barolo ainda na garrafa e partiram, determinadas. Silmara entrou na delegacia da esquina, agarrou o investigador pela gola rolê com suas unhas amarelo-canário e intimou: “Você precisa prender um abusador”.

Depois, separaram-se. Naquele dia, dobraram o preço da trepada para comemorar a emancipação de Silmara.

Chester prefere pagar pelo sexo

Premiado autor de histórias em quadrinhos só transa com prostitutas há mais de uma década. Em um livro inteligente e engraçado, ele critica o amor romântico e defende a normalidade da prostituição

Em junho de 1996, o canadense Chester Brown desenhava histórias em quadrinhos no apartamento que dividia com a namorada, em Toronto, quando ela anunciou: “Te amo como sempre amei e sei que sempre vou te amar, mas…. acho que me apaixonei por outra pessoa”. Chester percebeu que não estava abalado – nem se abalou quando o novo namorado passou a dormir com a recentíssima ex no quarto ao lado. Uma passagem tão tranquila que os dois decidiram continuar dividindo o mesmo apartamento, o que fizeram por muito tempo. Um ano depois, aos 37 anos, Chester chegou a uma conclusão que mudaria a sua vida: “Tenho dois desejos contraditórios: o de transar e o de não ter namorada”.

Chester acabou descobrindo que, pelo menos para ele, não havia contradição alguma. Depois de uma fase de celibato, ele deu início a uma vida sexual com prostitutas que, em geral, era bastante prazerosa. Quando as descrições dos anúncios não correspondiam aos fatos, ele podia inventar uma desculpa e cair fora – ou acabar constatando que, apesar de a mulher não ser tão gostosa quanto dizia que era, tinha outros talentos ou simplesmente era divertida.

Descobriu que, para ele, o “amor romântico” não fazia sentido algum. “Nossa cultura impõe a ideia de que o amor romântico é mais importante que as outras formas de amor”, diz ele um dia à ex-namorada. “Já não acredito nisso. O amor dos amigos e o da família podem ser tão satisfatórios quanto o amor romântico. A longo prazo, provavelmente são mais satisfatórios.”

Mais tarde, explica sua tese a uma prostituta, durante uma conversa na cama. “O amor é doação, partilha e carinho. O amor romântico é possessividade, mesquinhez e ciúme”, diz à moça. “A mãe que tem vários filhos ama todos eles. Quem tem vários amigos pode amar todos eles. Mas não se acha correto que se sinta amor romântico por mais de uma pessoa por vez. Acho que é a natureza excludente do amor romântico que o torna diferente de outros tipos de amor.”

As aventuras de Chester Brown e sua escolha pelo sexo pago são contadas por ele em uma deliciosa graphic novel (novela em quadrinhos), que acabou de chegar às livrarias do Brasil. Pagando por sexo (WMF Martins Fontes) é o relato confessional do quadrinista, escrito com rigor jornalístico. Inclusive trocando o nome das prostitutas, para não identificá-las, assim como jamais desenhando seu rosto ou suas marcas pessoais, para que não sejam reconhecidas – mas buscando ser fiel à forma de seus corpos.

Ao longo das 284 páginas, Chester vai narrando seus dilemas, seus encontros com prostitutas e suas discussões com amigos. Especialmente com os quadrinistas Joe Matt e Seth, com quem formava “os três mosqueteiros” no mundo das HQs. Estas conversas, geralmente em um bar ou café, são as partes mais interessantes do livro, já que os amigos têm dificuldade de aceitar a escolha de Chester – tanto pelo enorme preconceito existente ainda hoje com relação à prostituição, quanto pelo que essa alternativa pouco convencional produz de incômodo com relação à vida amorosa-sexual de cada um deles.

Ao final do livro, temos vontade (eu, pelo menos) de ser amiga do Chester que vai se mostrando com abissal honestidade a cada página. Sem esquecer, é claro, que, como qualquer relato autobiográfico, as verdades sobre quem escreve sobre si mesmo são filtradas por um olhar amoroso e, às vezes, complacente. Mas Chester consegue rir de si mesmo – e duvidar de si mesmo – vezes o suficiente para a história nos envolver e convencer. A certa altura, por exemplo, uma das prostitutas explica a ele por que prefere trabalhar à tarde em vez de à noite. Ela diz: “Quando a gente trabalha à noite, muitos caras chegam bêbados. Os piores clientes são os bêbados e os que têm pênis grande”. E acrescenta: “Quem dera todos os meus clientes fossem como você”.

As aventuras de Chester, porém, não são apenas deliciosas. Seu maior mérito é nos confrontar com uma visão sobre o amor, o sexo e a prostituição que contraria o senso comum. Mesmo para pessoas consideradas de “mente aberta”, a prostituição ainda é um tabu. Ainda hoje, as prostitutas são reduzidas ou a “vagabundas” ou a “vítimas da sociedade, do machismo e do patriarcado” – visões pobres e autoritárias sobre uma identidade complexa. De certa forma, sobre a prostituição há quase uma unanimidade negativa unindo setores da sociedade que discordam em quase todo o resto.

Chester incomoda também por não caber no estereótipo do que se imagina como um cliente do sexo pago. Ele não é o sinhozinho do passado, que mantinha em casa a mulher “honesta” e “mãe dos filhos”, mas divertia-se mesmo era no puteiro da cidade. Tampouco é o explorador de mulheres violento, tarado e com “vícios” inconfessáveis das histórias que viram notícia. Muito menos é o loser infeliz, desajustado e solitário que busca o prazer nos becos escuros, esgueirando-se pelo submundo.

Chester usa seu nome verdadeiro, não esconde de ninguém que transa com prostitutas e trata sua escolha com tanta naturalidade como se estivesse falando de um casamento convencional. Ao colocar um tema historicamente relegado à sombra – e ao assombro – debaixo do sol, ele torna-se algo novo. Especialmente porque tem a inteligência de não escorregar para o lado oposto – o do glamour –, o que seria desastroso.

Para Chester, transar com prostitutas é tão comezinho quanto namorar, morar junto ou casar. Como um homem da era digital, ele escolhe as mulheres pelos anúncios e avalia as “resenhas” deixadas por outros clientes em sites na internet. Paga o preço combinado e respeita os limites estipulados, porque é uma pessoa decente, e dá gorjetas até quando não gosta muito, porque talvez seja bom moço demais.

Por conta da reação persistente e quase ofendida que sua escolha causou, Chester acabou por tornar-se um defensor público da legalidade da prostituição – ainda proibida em vários países, mesmo ocidentais. Embora defenda a legalização da prostituição, porém, é contra a regulamentação da profissão, por considerar que o Estado deve ficar fora da cama dos cidadãos – qualquer que seja a relação estabelecida entre as partes. É contra também porque acredita que a partir dela se criaria uma nova distinção entre as prostitutas, que deixaria as não regulamentadas desprotegidas.

Mas Chester é, principalmente, um defensor da “normalidade” do sexo pago. Em nome dessa militância, ele faz um longo apêndice ao final do livro, dividido em 23 itens – o mesmo número de prostitutas com quem teve relações sexuais – para rebater os argumentos contrários à prostituição, que chama de “namoro pago”. Em geral, rebate os argumentos usados por uma parcela do movimento feminista, que coloca a prostituição como uma exploração da mulher – e a prostituta como uma vítima.

A seguir, alguns dos itens elencados por Chester Brown:

1) Você é dono do seu corpo. Dizer “Quero transar com você porque você vai me dar dinheiro” é tão moral quanto dizer “Quero transar com você porque eu o amo”. E isso tanto para homens quanto para mulheres.

2) Os clientes não compram as prostitutas. Quando alguém compra um livro, leva-o para casa e faz o que quiser com ele, por quanto tempo quiser. Com uma prostituta, você paga para transar durante um tempo determinado, limitado por aquilo que é combinado, e depois se separa dela. Nenhum cliente faz o que quiser com uma prostituta – nem é dono dela.

3) A violência, minoritária, é tão presente no sexo pago como no sexo não pago. Existem clientes cretinos na mesma proporção que existem maridos e namorados cretinos, que ignoram os pedidos e os limites estabelecidos pelas mulheres. Assim como há aqueles que extrapolam e as espancam. Para reprimir esse comportamento, há leis. Mas, se concluirmos que devemos criminalizar ou condenar o sexo pago porque alguns homens são cretinos e outros são violentos, então é preciso criminalizar ou condenar também o casamento e o sexo não pago. Da mesma forma, com relação ao tipo de trabalho, qualquer um acharia descabido terminar com a profissão de taxista porque alguns são assaltados, feridos e até mortos por assaltantes travestidos de clientes.

4) Não são apenas as prostitutas que muitas vezes transam sem desejo. Muitas pessoas, em relacionamentos amorosos, também transam sem vontade. A frase “Não quero transar com esse cara, mas vou transar porque preciso de dinheiro” é tão moral quanto “Não quero transar agora, mas vou transar porque ele é meu namorado e eu o amo” ou “Não sinto mais desejo pelo meu marido, mas vou transar pelo bem do nosso casamento”.

5) A prostituição não destrói a dignidade das prostitutas. A vergonha que algumas prostitutas sentem por conta da profissão é provocada pela interiorização do preconceito enfrentado na sociedade – e não pela venda do sexo em si. Assim como no passado (e ainda hoje, em alguns casos) os homossexuais sentiam vergonha, depressão, culpa e repulsa por sua orientação sexual. Isso não significava que ser gay era errado – e sim que muitos homossexuais interiorizavam os valores da cultura em que viviam, assumindo o preconceito da sociedade como vergonha e como culpa.

6) A diferença com que a sociedade trata a prostituição masculina mostra que o preconceito, como sempre, é com relação à autonomia das mulheres. Em geral, os adversários da prostituição feminina ignoram a masculina. A razão é que os argumentos usados para condenar a prostituição feminina soariam ridículos se aplicados à masculina. Nossa cultura acredita que os homens controlam a própria sexualidade. E, se um homem se coloca em uma situação potencialmente arriscada, a sociedade compreende como um comportamento inerente à natureza masculina. Já, com relação às mulheres, não. Elas são sempre vítimas, e há sempre alguém – mesmo que outras mulheres – apto a determinar o que é melhor para elas.

7) A prostituição é uma escolha. Setores contrários à prostituição afirmam que não há escolha real se a mulher tem de eleger entre ganhar um salário baixo em um emprego pouco valorizado ou se prostituir, assim como não haveria escolha se a mulher se prostitui supostamente porque foi abusada na infância, caso de parte das prostitutas (como de parte das mulheres). Mas uma escolha é uma escolha, ainda que seja uma escolha difícil. Dizer que adultos não teriam o direito de escolha porque tiveram uma infância difícil é um terreno perigoso. Estas mulheres que não poderiam escolher pelo sexo pago não estariam, então, aptas a fazer qualquer escolha sexual, mesmo amorosa, por causa do seu passado. Da mesma forma que a realidade impõe escolhas difíceis para ganhar a vida o tempo todo, tanto para homens como para mulheres. E do mesmo modo como há quem gosta do que faz e há quem não gosta em qualquer profissão. Todas as pessoas – e não só as prostitutas – são fruto de suas circunstâncias e do sentido que conseguiram dar ao vivido. Alguém tem o direito de determinar quais adultos estão aptos e quais não estão aptos a fazer escolhas sobre a sua própria vida, ainda que sejam escolhas que não agradem aos outros?

Estes são alguns dos argumentos que Chester Brown propõe ao leitor, construídos a partir de pesquisa e leituras, mas principalmente a partir da sua própria experiência no mundo do sexo pago. Na novela da vida real que ele conta em quadrinhos, cada prostituta entende sua escolha de forma diversa. Quando não contam para a família e para os amigos sobre sua profissão, em geral é por temer o preconceito – e não por desprezar o que fazem.

Por características de sua personalidade, um pouco obsessiva, Chester esmiúça o sexo pago e suas implicações com algo próximo do método científico. Meticuloso, ele escuta e duvida tanto dos outros quanto de si mesmo, o que o torna digno de ser escutado naquilo que diz. Ao terminar o livro, Chester parece ter achado o melhor para ele, pelo menos naquele momento: estava há seis anos transando com uma única prostituta, que, por sua vez, só transava com ele, numa curiosa relação monogâmica sem compromisso. Chester acredita que ela não transaria com ele se não pagasse – e acha ótimo que seja assim.

No último apêndice do livro, seu amigo Seth comenta com ironia amorosa: “A verdade é que, se no passado o envolvimento de Chet com prostitutas me incomodava, hoje eu superei isso. A prostituição pode não funcionar para todos, mas funciona para ele. O gozado em Chester é que, de todos os homens que conheço, ele talvez seja o que daria o melhor marido ou namorado para qualquer mulher… e, no entanto, foi ele que escolheu a prostituição. O mundo é muito engraçado”.

Mas Chester escorrega em pelo menos um ponto, o que é uma pena. Ao escolher transar apenas com prostitutas, por achar que o amor romântico não serve para ele, Chester é atacado por muitos – e também pelos amigos mais queridos. Afinal, manter uma relação amorosa romântica com alguém parece ser a busca maior e a redenção de boa parte das pessoas em nossa época. Para Chester, o amor romântico é apenas um mito no qual as insatisfações mútuas são mascaradas para não comprometer a sua idealização, tão cara à nossa cultura.

O problema é que Chester trata o amor romântico – e o casamento – com preconceito semelhante ao reservado à prostituição pelos seus opositores. Quando o melhor, me parece, seria não substituir um dogma pelo outro. Assim como pagar para transar pode ser a melhor solução para Chester e para muitos, o sexo não pago pode ser a melhor solução para outros. Há um zilhão de pactos diferentes que um homem e uma mulher – ou um homem e um homem, uma mulher e uma mulher – podem fazer entre si e que só diz respeito a eles. Seria melhor ter ficado por aí, mas Chester Brown, como muitos que defendem uma bandeira na contramão, acaba tornando-se dogmático pelo avesso.

Esse escorregão, porém, não tira o brilho de sua obra e da sua reflexão. É importante quando alguém nos arranca do senso comum e nos lança diante de novas perguntas – não para concordar com ele, mas para pensar com ele. E mais ainda em uma época na qual o politicamente correto tem reprimido a liberdade das ideias. Chester não provoca polêmica pela polêmica, como muitos em busca de audiência e leitores. Estuda, pesquisa, experimenta e conta. E é sua honestidade moral e intelectual que torna Pagando por sexo tão instigante.

O livro me lembrou de um evento, ocorrido há quatro anos em Porto Alegre, chamado “Um puta sarau”. Na ocasião, um folhetim escrito por um grupo de prostitutas e intitulado “Uma puta história” foi lido para o público. A certa altura, uma feminista não se conteve e disse: “Espero que um dia as mulheres não precisem mais vender o seu corpo para sobreviver”. Janete, a prostituta que estava no palco, retrucou na hora:

– Mas eu não vendo o meu corpo, eu alugo. E só um pedacinho dele. A senhora não aluga o seu cérebro para o seu patrão?

Como se vê, há muito para refletir.

(Publicado na Revista Época em 23/07/2012)

 

Não fale com as plantas! (ela gostaria de ter escrito, em sua lápide)

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Tudo ia muito bem, tudo ia muito bom. Eu acordava pela manhã, espichava meus braços sedosos ao sol em movimentos lentos. Devotava meus dias a essa carícia repetitiva e sem pressa. E, menina de apartamento, sem saber de florestas, eu não me incomodava em vez por outra bater o rosto na janela. A água chegava em dias certos, duas vezes por semana, suficiente porque eu nunca fui desperdicenta. Limitava-me a sugar o suco da terra com deleite e me distraía com uma ou outra abelha se estatelando no vidro sem poder entrar na minha concha de donzela. Ignorante dos prazeres do sexo, eu apenas me divertia com a ansiedade rústica de meus pretendentes. Uma vez por ano, ou até duas, dependendo do meu humor, eu fazia uma flor rosada que enlouquecia a vizinhança por algumas semanas. E, depois, voltava à nudez habitual em meu reino pequeno e circular, mas todo meu.

Assim foram passando os dias, ao que parecia para sempre, quando dei um salto. Em pensamento, porque meus movimentos são tão lentos que alguns acreditam que nem me movo. Estava eu fazendo uma fotossíntese relaxante quando ouvi um som que congelou minha seiva. “Queriiiiiiiiiida, como está você neste dia ensolarado?”

Olhei para um lado, olhei para o outro. Meus vizinhos se faziam de mortos. Uma violeta, que parecia uma viúva de velório, e uma comigo-ninguém-pode com complexo de capitão Nascimento. De novo olhei para um lado, olhei para o outro. Era comigo.

E a voz de serra elétrica continuava. Foquei meus olhos estrábicos num ângulo totalmente novo, já que eu sempre olhava para fora, jamais para dentro. E lá estava um ser estranhíssimo, com um chumaço de um vermelho berrante no topo, parecendo uma flor de cardo, e dois galhos compridos que se mexiam sem parar e terminavam em pontas de um cor-de-rosa que eu nunca havia visto nas redondezas. Mas o mais assustador era um buraco cheio de espinhos brancos pelo qual saía uma voz que agora me dizia: “Óin óin óin como a minha queridinha está linda toda florida”.

Oi?

E foi assim, senhoras e senhores, que minha vida começou a murchar. A tudo a gente se acostuma quando não dispõe de muita mobilidade. Mas vocês não queiram saber o que é uma voz falando e falando e falando sem que você possa empreender uma retirada leão da montanha. Ou simplesmente sair sapateando para a esquerda até estar a uns 100 quilômetros de distância. Mentalmente eu imaginava torturas terríveis para calar aquela voz. Desejava enfiar um saco de minhocas frescas naquela boca até que ela se engasgasse e morresse. Mas, impotente, eu nada podia fazer.

“É a nossa dona”, sussurrou a comigo-ninguém-pode uma manhã, em que eu estava particularmente desesperada. Que dona, meu amigo? Pirou? Eu só sou uma flor num vaso. Quem tem dono é cachorro!

O ser aparentemente concordava comigo, já que dizia: “Dá um sorriso pra mamãe, sua fofolete!”. Mas eu não poderia compreender o conceito de mãe. Mesmo assim, descobri depois, era bastante precoce neste aspecto, porque imediatamente eu quis matá-la. Mas, pobre de mim, com que braços? Eu havia sido feita para beber água, fazer a minha fotossíntese, abrir uma flor de tempos em tempos. Tinha vindo ao mundo que nem o poeta, distraída.

Logo, ela não apenas falava comigo, como começou a me contar a sua vida. Lembro bem. Era um dia chuvoso, e eu não gosto muito de dias chuvosos, porque quando você mora dentro de um apartamento, é possível sentir o sol, mas não a chuva. Então, dias chuvosos podem ser tediosos. Aquele não foi, e eu desejei que tivesse sido. A vida é assim, a gente nunca sabe que era feliz até ela piorar. Ops, tô repetindo uma das frases dela. Ahhhhhhhhh!

O fato é que lá estava eu, curtindo uma melancolia básica, quando, não mais que de repente, estremeci:

— Meu amor, eu vou te contar que tipo de pessoa eu sou…

De novo, olho para um lado, olho para o outro, a violeta de defunto até tinha virado de costas. Era comigo. Por que eu, meu deus do céu? Eu por acaso tinha sido um gafanhoto em outra vida pra merecer esse carma? A voz continuava…. estridente.

— Eu sou uma pessoa…

E assim foi, dia após dia. O ser me contava seus almoços na firma, como a vagabunda que trabalhava ao lado dela mostrava os peitos pro chefe pra sair mais cedo, o que o fulano-disse-e-ela-que-não-levava-desaforo-pra-casa-retrucou, e até, não sou capaz de reproduzir aqui, a não vida sexual dela. Nunca mais pude olhar para aquela abelha operária que batia no vidro do mesmo jeito. Então é isso que você quer de mim, sua pervertida?

O fato é que meu mundo caiu, mas eu não conseguia me derrubar da janela por mais esforço que fizesse. Bem que tentei me jogar lá do oitavo andar, me deslocando toda para fora de modo a desequilibrar o vaso, que agora tinha se transformado em prisão. Mas acabei descobrindo que levaria um milhão de anos. Então, tentei o sentido contrário. Passei a fugir do sol, na esperança de não conseguir mais fazer a fotossíntese.

O imprestável do meu organismo, porém, foi treinado ao longo de milhões de anos de evolução para funcionar contra a minha vontade. Bastava eu dormitar um pouco e quando despertava, de susto, lá estava eu sugando a terra e o sol à revelia de mim. Um paradoxo filosófico, você poderia pensar, mas de nada vale a filosofia quando você não tem nenhuma dúvida, nada, apenas a certeza de que a única saída é o suicídio. Mas como?

E assim foi se arrastando o tempo, com a coisa me torturando dia após dia.

— Olha, só, pitoquinha, troquei o esmalte! Esse aqui se chama Paixão Selvagem.

Grata pela informação.

Me enche de bala, seu capitão Nascimento de araque, eu gritava para a comigo-ninguém-pode. Em vão. Xingava a coisa, mas ela não me enxergava. Vá comprar o dicionário do Werneck, sua clichê ambulante!, eu gritava. Mas tudo o que interessava a ela era a minha imobilidade.

Uma tarde a ouvi dizer para uma outra coisa, fora do meu campo de visão.

— Não vê como ela está bonita? Eu comecei a conversar com ela, e ela desabrochou. Essa aqui, se você quer saber, é a minha melhor amiga. Não tem inveja, não trai, não cheira mal, não exige nada a não ser esse carinho que eu dou pra ela. Comece a falar com as suas plantas, você vai ver… é uma terapia.

Não!!!!! Eu gritei de novo, mas ninguém me ouviu. Ninguém nunca me ouviu. Eu estou péssima, dona coisa, mal paro em pé. Sou só caule e olheiras. Perdi todas as folhas e faz meses que não abro uma flor, você não vê? Tudo o que eu espero é que um fungo acabe de vez com minha existência miserável.

Mas a morte pode levar tempo demais se você continua sendo alimentada — e suas raízes o traem. Então, um dia, quando ela abriu a boca para me contar sobre o joanete da vizinha, aconteceu. Alho, ela comeu uma pizza de alho.

Foi meu último pensamento neste mundo.

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