Com a vênia, Seu Manoelzinho

O dia em que matei o Mensalão e fui ao cinema

Ao contrário de Lula, eu concluí que não tinha nada melhor para fazer do que assistir ao julgamento do Mensalão. Parei tudo e me postei diante do aparelho, ligado na TV Justiça. Na sexta-feira, segundo dia de julgamento, depois de mais de duas horas de explanação do procurador-geral da República, Roberto Gurgel, o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Ayres Britto, interrompeu-o para sugerir que se fizesse um intervalo. Gurgel retrucou que ainda não havia chegado à metade e precisaria de pelo menos mais uns 15 minutos. O procurador se preparava para continuar, quando se ouviu no plenário a voz inconfundível do ministro Marco Aurélio Mello. “Talvez não tenhamos fôlego fisiológico…” O argumento mostrou-se de pronto incontestável. O presidente anunciou o intervalo, “com a devida vênia”.

Do meu sofá azul, eu quase aplaudi. Jamais tinha visto alguém avisar que precisava urinar com tanta finesse. Aqui em casa agora não se usa outra coisa. Só mesmo um ministro do Supremo seria capaz de botar toga no xixi. Ouso especular que nem Elizabeth II, das altitudes do seu jubileu, seria capaz de ser tão majestosa. E lá se foi Marco Aurélio para o reservado – ou pelo menos espero que tenha ido, já que eu não estava lá para comprovar o lícito.

O fato é que, desde aquele momento, não fui mais capaz de concentrar-me no julgamento. De repente, me senti asfixiada por tantas vênias. Fui tomada por uma vontade irrevogável de ir às ruas. Eu precisava da vida como ela é para a maior parte das pessoas. E aqui não há nenhum desmerecimento ao Supremo, porque acho que a vida também é como é por lá, à sua própria maneira – e tão, às vezes até mais, como no caso em questão, fervilhante de paixões quanto. Mas eu precisava com uma urgência quase química me misturar à gente que fazia xixi.

Ainda sem entender bem essa necessidade meio tresloucada, mas obedecendo aos instintos, um par de horas mais tarde eu estava enfiada em uma sala escura. Havia passado horas assistindo ao espetáculo que ocupa o palco central do país – e intuí que precisava correr para as margens para resgatar eu não sabia bem o quê. Por razões que nem é preciso de Freud para explicar, acabei escolhendo, entre as tantas possibilidades da programação, um evento gratuito chamado “Cinema de Bordas”, promovido pelo Itaú Cultural. De bordas porque reúne aqueles cineastas que estão fora do centro. Aqueles que, sem recursos financeiros e técnicos, bem longe dos circuitos comerciais, fazem cinema improvisando o que falta – porque não concebem uma vida em que falte o cinema.

Sentei-me ao acaso. Mas não era um dia de acasos. De repente passou por mim um homem de metro e meio de altura, no máximo, bem magrinho, vestindo uma camiseta listrada de branco e verde que parecia nova, calça jeans e uma sandália preta. Pelo jeito que andava e mais ainda pelo que olhava, tentando não olhar, mas espiando se estava sendo olhado, dava para ver que o sujeito era tímido. Foi sentar-se à minha esquerda, um corredor entre nós. Percebi que já tinha visto aquele rosto em algum lugar. Alguém chamou: “Seu Manoelzinho”!

Tive um sobressalto. Era ele, o cineasta que eu já vira uma vez na TV, mas nunca antes em carne e lenda. Um homem que havia feito quase meia centena de filmes na pequena cidade de Mantenópolis, perto da divisa do Espírito Santo com Minas Gerais, sem cruzeiro, cruzado, cruzado novo, real, já que ele fazia cinema há tempo suficiente para ter vivido a carência de todas as moedas da República pós-ditadura. Seu Manoelzinho tinha feito toda uma obra cinematográfica apenas com uma câmera velha e um gravador ainda mais alquebrado, tendo por atores homens, mulheres e crianças da roça, ou vizinhos da periferia da cidade.

A partir daquele instante, a vida para mim estava tanto na tela quanto fora dela. Logo na exibição do primeiro da sequência de quatro filmes, ouvi uma risada como há muito tempo eu não ouvia. Era uma risada que eu dava quando criança – e que fui perdendo com as contenções do protocolo adulto. As tais das vênias. Era uma risada desassombrada, que dava vontade de rir com ela. Era a risada do Seu Manoelzinho, que se divertia com os zumbis que claudicavam na tela. Conheci o encantamento de Seu Manoelzinho pelo cinema antes de conhecer o cinema do Seu Manoelzinho. E soltei eu uma risada de criança, porque é também um encantamento com o mundo que o cinema resgata no coração da gente. A vida humana é um absurdo a maior parte do tempo, e os zumbis estavam ali para nos lembrar disso.

O filme do Seu Manoelzinho era o último dos quatro. Chamava-se “A Maudição da Casa de Vanirim” – e “maldição” estava escrito para além da norma culta, com “u” em vez de “l”. Mas, ali, o que seria um erro deixava de ser para se transformar em uma informação a mais. Seu Manoelzinho vinha de “Uóshinton” para alugar uma casa em “Maiamis” – e aqui, de novo, não era a língua de Muçum, o comediante dos Trapalhões, mas a língua mesmo, fiel à verdade dali. E Maiamis era a zona rural de Mantenópolis, com estradas de terra, morros e uma vegetação de roça, onde ele alugara uma casinha caiada de branco onde o maior luxo era um telefone visivelmente deslocado.

Acompanhado por uma família numerosa, Seu Manoelzinho logo via-se às voltas com uma assombração mascarada, que depois de matar uns quantos filhos e turistas durante uma noite que era sempre dia, porque para gravar à noite é preciso mais recursos, era despachada para o além a tiros. Por Seu Manoelzinho, que, como eu descobriria mais tarde, é sempre o herói e ator principal de todos os seus filmes.

Fui tomada pelo filme, mas também por um dilema. Era uma história de assombração, e eu imaginava que Seu Manoelzinho, logo ali ao meu lado, tinha planejado medo e susto, mas o filme era uma das obras mais engraçadas que eu vira em toda a minha vida. Se eu risse, como toda a plateia fazia, estaria ofendendo Seu Manoelzinho? Percebi então que Seu Manoelzinho era um dos que mais ria. E que eu não estaria rindo dele, mas com ele, o que fazia toda a diferença. No dia seguinte ele me contaria que sabia se o filme era bom pelo riso da plateia. Porque, como cineasta, para Seu Manoelzinho o importante era divertir as pessoas. E aí não importava se era arrepio ou gargalhada, mas sim provocar algo que não havia antes. Alterar a vida pelo momento de um filme, o enorme poder da arte que Seu Manoelzinho havia intuído com uma liberdade que eu só alcançava agora, a partir do olhar dele.

Seu Manoelzinho dava no cinema o que o cinema sempre dera a ele – e por isso também parecia se divertir tanto quanto diretor-roteirista-produtor-e-ator principal quanto como plateia. Ele tinha 2 anos quando a família foi abandonada pelo pai, e a mãe, dona Fernandina, teve de se virar para criar três meninos, com uma vida de roçar a roça dos outros. Manoelzinho até foi para escola, como ele me contaria no dia seguinte, em uma conversa prolongada, na qual se sentou de lado, e não de frente para mim, envergonhado de falar com uma desconhecida. “A gente só ia pra escola pra comer, com tanta fome que ficava louco pra ouvir a sineta da merenda”, explicou. Por causa do tamanho da fome, não conseguia se concentrar no “quadro-verde” e, assim, não pôde aprender a ler nem escrever. Passava os dias oferecendo o pão que compravam numa padaria para revender ao povo da roça, precisado de sustância para aguentar o peso da enxada.

Até que, aos 8 anos, descobriu o cinema no salão paroquial da cidade, ao assistir a um filme marcado na sua memória como “O roubo do trem-correio”. O apaixonamento ganhou eternidades com “Django”, “Sabata”, “Keoma” – e com todos os Mazzaropis. Para ganhar a entrada do cinema, já que só comia pão porque também vendia, passou a fazer a propaganda dos filmes desfilando com cartaz pela cidade. E, mais tarde, quando abriu um outro cinema, com o luxo de um alto-falante, Manoelzinho também anunciava os filmes pelas ruas: “Atenção, senhor e senhora, hoje não perca o sensacional filme que tem por título Portada do Inferno…”

Eram filmes de faroeste, ou pelo menos foram estes que capturaram o menino Manoelzinho. E até hoje ele se espanta: “Era como nos antigamentes lá em Mantenópolis, em que havia muito homem valentão na cidade, que andava armado e botava bronca no lugar. Esses homens nunca tinham visto um filme de faroeste, mas mesmo assim já viviam no estilo do faroeste.” Como era possível?

Para Seu Manoelzinho, era portanto a vida que imitava a arte, o faroeste da realidade copiando o bangue-bangue do cinema. Fiquei especulando se era por essa percepção às avessas que ele quis tanto não só assistir à cinema, mas fazer cinema, algo que deveria soar bastante estapafúrdio na roça de Mantenópolis, ainda mais vindo da boca de um analfabeto. Se a vida imitava o cinema, então bastava fazer cinema para mudar a vida, ele pode ter intuído. De fato, o que aconteceu é que, no final dos anos 80, um conhecido do então jovem Manoelzinho voltou dos Estados Unidos com uma velha câmera VHS. E ouviu possivelmente a proposta mais inusitada da sua vida: “Rapaz, tô doido pra fazer um faroeste. Você filma pra mim”?

E assim surgiu “A Vingança de Loreno”. E descobrimos aqui que Manoel Loreno é o nome do Seu Manoelzinho. Para fazer o filme, veio homem a cavalo de tudo quanto é canto da região, até de 90 quilômetros de lonjura veio um a galope. Ele chama e não importa quantos aparecem, dá um jeito “de arrumar cena pra todo mundo”. E assim Seu Manoelzinho sentou-se pela primeira vez embaixo de uma árvore para fazer o que faria em todos os seus filmes dali em diante: desenhar cena por cena. Em dois dias o filme estava pronto. O povo da roça tinha virado ator de faroeste, e Seu Manoelzinho cineasta. Agora era seu o filme que um menino gritava pelas ruas, montado numa bicicleta: “Não percam logo mais um sensacional filme de Manoel Loreno”!

“A Vingança de Loreno” foi exibido pela primeira vez numa quadra de esportes de Mantenópolis para umas 2 mil pessoas, calcula ele. Sem telão, passaram em duas televisões de 20 polegadas, postadas uma de cada lado. “E o povo se apaixonou tanto pelo meu filme que pediu pra repetir”, conta. A estreia foi tão estrepidosa que acabou virando uma sessão dupla do mesmo filme. Mais tarde, Seu Manoelzinho se tomaria de amores pela mulher, “que era muito bonitinha”, ao vê-la morrer dentro de um córrego pelas mãos do “Espantalho assassino”. Os dois filhos que fizeram no casamento seriam seus filhos também no cinema dali em diante. E a praça da cidade viraria um cinema a céu aberto só para exibir os filmes de Seu Manoelzinho.

Só gosta de faroeste, de causos de trapaça e de assombração, Seu Manoelzinho? Não é bem assim, explica. Ele mesmo já abriu uma exceção para colocar entre suas preferências a adaptação para o cinema de “Romeu e Julieta”. O fato é que, quando Seu Manoelzinho enveredou para o romance, o povo desgostou do seu cinema. Ele mesmo esclarece: “Amor o pessoal não gosta muito. O povo gosta mais de dar risada. Romance é muita conversa”.

Alguém pode pensar que o cinema do Seu Manoelzinho só tem valor por causa da vida do Seu Manoelzinho. Engana-se. Filmados em sequência, seus filmes de ficção expõe o absurdo da realidade com uma verdade que jamais vi em qualquer documentário. Nos filmes de Seu Manoelzinho a ilusão do cinema é desfeita o tempo todo, já que ele não esconde os artifícios usados para criar a história. E o que se conta, para além do enredo em primeiro plano, é o improviso que a vida nos exige, obrigando-nos a uma constante reinvenção do roteiro previsto e sempre fadado ao fracasso.

O telefone que toca na casa de Maiamis só toca porque ao lado dele foi colocado um despertador. A música de fundo só existe porque há um gravador esbodegado tocando a fita no momento da filmagem – e a fita se enrola a certa altura. O sangue é “quissuqui de groselha”, e os tiros são bombinhas que os atores acendem com o cigarro, “porque todo mundo fuma por lá”. Os atores passam na frente da câmera mesmo quando não deveriam estar ali, e houve uma personagem que voltou na pele de outra atriz, sem nenhuma explicação. Já aconteceu até de se ouvir a voz do Seu Manoelzinho, saindo do papel de ator principal para assumir o de diretor, ao gritar: “Fala mais alto”!

Em um texto sobre o cinema do Seu Manoelzinho, a professora Bernadette Lyra, uma das curadoras da mostra, diz: “Neles (os filmes), tudo se passa sem truques e sem outra mediação que aquela da câmera mesma confrontada com os percalços da realidade do tempo/espaço e das necessidades alternativas em que as filmagens se produzem e se realizam”. E, em outro ponto: “É lembrete e testemunha de que no cinema tudo não passa de um grande artifício, mesmo quando um filme quer se fazer passar por documentário fiel da realidade”. E ainda: “A reação dos espectadores (…) é imediata, corporal e participativa. O público ri. Ri diante do desmascaramento daquele artifício com que o cinema de origem realista costuma fazer passar a ficção pela realidade. Ainda que o fenômeno seja involuntário por parte de um realizador como Seu Manoelzinho”. E conclui, lindamente: “Acontece que não é o movimento coerente da história que interessa a Seu Manoelzinho, mas sim o movimento da vida”.

É em um momento no qual a vida toma, mais uma vez, rumos inesperados por causa da arte, que me encontro com Seu Manoelzinho. Desde que apareceu pela primeira vez na TV, ele se vê às voltas com os atrapalhos da fama. “Tô muito famoso demais, mais conhecido que prato de 10 centavos”, diz. Não é que não goste da fama, como me explica, o problema é que a fama veio desacompanhada do dinheiro. Ao verem Seu Manoelzinho na televisão, o povo de Mantenópolis, que sempre atuou de graça nos filmes – ou só pela graça de virar ator –, agora exige cachê. Quem antes lhe dava trabalho como servente de pedreiro, já não lhe oferece mais porque pensa que enricou. Fora aqueles que carregam Seu Manoelzinho para cursos de produção, roteiro e direção, de onde ele volta dizendo: “Eles não entendem o meu cinema”.

Aos 53 anos de uma vida de cinema, Seu Manoelzinho descobre que não tem dinheiro nem para os filmes, que antes nunca precisaram de dinheiro para serem feitos – nem para a vida, já que hoje sobrevive de pequenos cachês em eventos, como este último, e da venda de cópias de seus filmes nas feiras de Mantenópolis e da região. Sobrevive também de Bolsa Família.

Resvalar das bordas ao centro, em efêmeros instantes, colocou Seu Manoelzinho numa encruzilhada. Preocupado com o dinheiro que não tem, ele teme ser obrigado a encerrar a carreira, justamente agora, quando sonha filmar “A Vingança de Loreno 2”. Precisa de quanto, Seu Manoelzinho? “Uns 20 mil.” E acrescenta, todo expectante: “Será que a TV Cultura não me ajuda a fazer o filme”? Não tenho resposta.

Despeço-me de Seu Manoelzinho, que se prepara para enfrentar quase um dia e uma noite inteiras de ônibus, na viagem de São Paulo a Mantenópolis. (Ele já experimentou voar, mas me garante que nem as aeromoças têm confiança “naquele trem”.) E retorno hoje ao julgamento, pensando em como se ligam os milhões de dinheiro público, supostamente usados para pagar deputados, com os 20 mil de que precisa Seu Manoelzinho, para levar cinema ao seu povo. A realidade só ganha sentido quando conseguimos fazer as conexões.

Antes de partir, Seu Manoelzinho explica por que se recusa a fazer papel de vilão no cinema. “Os vilões eu mato tudo. Só o herói faz a fita inteira. Eu não ia pelejar tanto pra fazer um filme pra morrer antes do fim.” São frases precisas para o momento. De certo modo, o que todos tentam enquanto se desenrola o espetáculo, também ali, no plenário do Supremo, é não morrer antes do fim. Alguns agarrados ao personagem, outros tentando um twist (virada) no roteiro para redefinir o papel.

“Nos filmes, eu sou herói”, diz Seu Manoelzinho. E na vida? “Na vida tô sendo também.” Seu Manoelzinho é, porém, algo muito maior do que um herói. Como seu cinema nos mostra, a vida dá um jeito de desarranjar o artifício. Para além da tela, seja a do cinema ou a da TV Justiça, sempre podemos contar com Seu Manoelzinho para nos lembrar que nosso desejo sobrevive tanto aos heróis quantos aos vilões. A vida será sempre nosso melhor espetáculo.

(Publicado na Revista Época em 06/08/2012)

 

Nhec nhec nhec

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

O barulho continuava, mas ela parecia não perceber. Comentava animadamente sobre a revanche de Nina contra Carminha na novela das oito, satisfeita com a aparência do almoço caprichado que preparava desde a noite anterior para um grupo de amigos que tinham vindo conhecer o apartamento novo.

Nhec nhec nhec.

Que barulho é este?, perguntou um, com uma ponta de irritação no “este”.

“É a máquina de lavar roupa”, ela esclareceu, continuando a descrever o último capítulo para os que tinham perdido. Jura?, insistiu uma amiga, interrompendo. “Sim, a Nina humilhou a Carminha desse jeito que estou contando.” Não!, voltou a amiga. Jura que esse barulho chato é da máquina de lavar? Ela bufou um pouco, mas controlou-se a tempo. “É que vocês chegaram no molho prolongado, por isso não tinham escutado ainda.”

Mas você precisa mesmo lavar roupa agora?, um outro inquiriu, deixando o garfo cair no prato, um cogumelo empalado na transversal. “Sim, eu preciso”, respondeu ela, um pouco ofendida. Mas não dá pra deixar pra depois da sobremesa?, tentou o marido, tremendo ligeiramente os lábios. “Não, não dá, se deixar vou perder o sol da tarde.”

Nhec nhec nhec… A máquina parecia gargalhar da área de serviço, quase na sala por conta dos 50 metros quadrados de área total que eles pagariam por 25 anos. De fato, naquele momento eram donos de no máximo um metro quadrado, talvez o da máquina de lavar roupa.

“Eu me sinto segura quando estou lavando roupa”, explicou ela, enquanto colocava uma cereja para finalizar a mousse. Como?, perguntou o amigo de infância do marido, ameaçando um riso, mas imediatamente recolhendo os dentes ao perceber que ela falava sério. “A vida é esta merda que a gente não controla, coisas ruins acontecem o tempo todo, as pessoas morrem de repente ou nem tão de repente, meu imposto caiu na malha fina, a gente mal se mudou e o vizinho já tá reclamando de vazamento no banheiro…”

Enquanto falava, uma cereja escorregou da mesa e esborrachou-se, sujando o taco encerado. “É isso… Tudo fora de controle. A máquina, não. Eu programo e tudo acontece exatamente como o planejado. Eu aperto os botões, eu ligo, desligo, centrifugo, deixo de molho, enxáguo.” A voz dela tornava-se estridente quando ficava nervosa. “Se não fosse a máquina de lavar roupa, eu nem conseguiria sair de casa!”

Ao dizer isso, percebeu que a carne da cereja morta respingara no seu sapato novo. Desandou a chorar, desandando a mousse, o almoço e a maquiagem, tudo ao mesmo tempo. Correu para o quarto e bateu a porta como uma adolescente mimada, deixando o marido a torcer as mãos na sala. E o Neymar? Vocês viram o passe de calcanhar na Olimpíada de Londres?

Um por um, os convidados inventaram uma desculpa e, em 10 minutos, o marido estava sozinho na sala. Esgueirou-se até a porta fechada do quarto. Mas, quando se preparava para bater, acabou encolhendo a mão e andando de volta até a sala, na ponta dos pés.

Ficou um tempo ali, deitado no sofá de dois lugares que só acolhia metade dele. De repente, levantou-se num salto. Caminhou resoluto até o cesto de roupa suja. Lá de dentro espiavam-no duas camisetas, uma calça de abrigo, um jeans, uma saia, dois pares de meia e uma cueca. O suficiente para uma lavada em nível médio. Abriu um sorriso que ainda guardava um pouco do menino.

Nhec nhec nhec.

Não atirem no Coringa

A ficção não é culpada pelos crimes da vida real, como o do matador do cinema do Colorado. Pelo contrário: desde a infância, ela nos ajuda a lidar com as sombras que habitam o mundo de fora – assim como o mundo de dentro. O mal permanente e cotidiano não é praticado pelos loucos que confundem fantasia com realidade, mas por homens e mulheres bem racionais, que sabem o que fazem

Quando eu tinha 8 anos, minha mãe fez uma oferta inédita. Ela tinha ganhado um dinheiro extra em algum trabalho como professora, talvez corrigindo redações de vestibular, e me levou a uma loja dizendo: “Escolha o que você quiser”. Fiquei extasiada. Na minha infância, ao contrário de hoje, se você pertencia a uma classe média remediada, só ganhava presentes no Natal e no aniversário – e eram limitados. Assim, a oferta da minha mãe equivalia à abertura da caverna de Ali Babá de repente, sem aviso e num dia de semana. Olhei para um lado, olhei para o outro, e fui atraída por um objeto reluzente, a réplica exata de um revólver calibre 38, tão fiel que muitas vezes depois seria confundido com um de verdade. “Quero o revólver”, eu disse, para espanto geral da minha mãe, da vendedora da loja e, depois, do restante da família. Você não quer uma boneca? “Não, eu quero o revólver.”

Eu não era estranha às armas de mentira. Passara os últimos anos matando ou sendo morta pelo meu irmão do meio, assim como pelos amigos. Morria ora como cowboy, ora como índio. Por influência ideológica, lá em casa os índios tinham seus dias de glória ao vencer a cavalaria americana. Mas também fui assassinada pelo martelo do Thor, asfixiada pela teia do Homem Aranha e trespassada pela espada do Zorro. Morri dezenas, talvez centenas de vezes, antes de completar 10 anos. E comandei massacres quando ainda era menor de idade. Alguns dos melhores momentos da minha infância foram vividos quando matava ou morria alegremente nas brincadeiras, ressuscitando a tempo de comer o bolinho de chuva da minha mãe.

Mas nunca matei um único passarinho real na minha infância, em uma época na qual isso era comum. Aprendi a pegar os insetos que apareciam em casa pelas asas ou pelas patas e devolvê-los ao lado de fora sem lhe causar danos, exceto baratas e pernilongos. No dia em que matei um filhote de barata, porém, fiquei tão culpada que tentei imortalizá-lo em uma pobre novela escrita em um caderno decorado. Jamais tive ou teria uma arma de verdade, inclusive porque jamais conseguiria usá-la. Votei pela proibição do comércio de armas de fogo e munição no plebiscito de 2005. E, como jornalista, dediquei uma parte significativa da minha vida a denunciar a violência contra os mais fracos e os invisíveis. O que não me impede de ainda hoje explodir cabeças no videogame sempre que possível.

Se fosse eu – e não o americano James Holmes – a entrar no cinema da cidade de Aurora, no Colorado, em 20 de julho, com um arsenal de armas de verdade, e assassinar 12 pessoas e ferir 58, algum jornalista apressado possivelmente investigaria a minha infância e encontraria mais indícios de um futuro violento do que foram encontrados na vida do matador. O massacre na estreia de Batman, o Cavaleiro das Trevas Ressurge, protagonizado por uma pessoa que teria se apresentado como o “Coringa”, um dos vilões mais perturbadores da ficção, poderia se esclarecer, por exemplo, a partir da compra do revólver de brinquedo aos 8 anos de idade. Dá até para imaginar a chamada: “Em vez de uma boneca, a assassina pediu um revólver”. Ou: “O hobby da matadora era explodir cabeças de zumbi no videogame”. Ou: “Desde pequena, ela vivia me assassinando”, diz o irmão. “Quando brincávamos de polícia e ladrão, ela sempre queria ser o ladrão”, revela uma colega de primário.

Logo, descobririam minha fixação no Alien, um dos monstros mais violentos da história do cinema, tão profunda que tenho um boneco na escrivaninha onde escrevo essa coluna. Sem contar meus estudos sobre vampirismo e um interesse já superado por psicopatas. Para piorar, não tive cabelo laranja – mas roxo, verde, azul e rosa. O que quero dizer é que, sabendo o que procurar, numa interpretação ligeira dos fatos, é possível encontrar prenúncios de um futuro serial killer ou matador de cinema na vida pregressa de cada um de nós.

Digo isso porque, sempre que alguém entra em um cinema matando gente, aparece muitos alguéns para culpar a ficção. Desta vez, não foi diferente. Em vez de Batman ressurgir das trevas, como o título do filme promete, o que ressurgiu foi a entrevada tese de que o “excesso” de violência no cinema (e na TV, games etc etc ) é o culpado pela tragédia. Essa tese recorrente, que faz ninho inclusive na cabeça de pessoas bem inteligentes, serve para muitas coisas, especialmente explicar o (quase) inexplicável (e assim dormir tranquilo) – e reivindicar interferência e controle sobre o conteúdo das obras de ficção. Quando não, sua proibição.

O efeito imediato desse tipo de tese é a redução de cada um de nós a alguns estágios anteriores da evolução. Seríamos adultos tão estúpidos e incapazes que, se alguém – um “tio” ou o Estado – não cuidar do que estamos assistindo, lendo ou jogando, não saberemos distinguir a realidade da fantasia. Impressionado com alguns textos que lera sobre a relação entre a violência da ficção no cinema e a violência do matador do cinema da vida real, um amigo que assistia comigo a um seriado policial na TV, comentou: “Olha só, o cara matou cinco pessoas só ao arrombar a porta, e a gente não sentiu nada”.

O que isso prova? Nada, me parece. Respondi ao meu amigo: “Sim, mas isso faz com que você saia da minha casa e assassine cinco dos meus vizinhos com uma faca de pão ou pegue teu carro e atropele todos que estiverem na faixa de segurança? Se você visse alguém matando cinco pessoas na vida real, bem aqui na rua, agora, você não sentiria nada? Ou isso marcaria a tua vida para sempre?”. Poderia ter dito também que, se o diretor do filme tivesse contado a história de cada um dos mortos, ele estaria soluçando diante da TV.

A maioria dos adultos e também das crianças sabe distinguir muito bem o que é realidade, o que é fantasia. E, os que não sabem, não se tornarão mais violentos por conta da violência a que assistiram no cinema, que praticaram nos videogames e nas fantasias de infância, ou que leram nos livros e nas HQs. Quem não sabe, não sabe. Nestes casos, a questão é de outra ordem.

O perigo maior é partir do princípio de que as pessoas, crianças ou adultos, são incapazes de diferenciar a fantasia da realidade. E, em nome disso, interferir na ficção, “purificando-a”. Como sabemos, dos contos de fadas a Harry Potter, a ficção cumpre a função importantíssima de nos ajudar a lidar tanto com aquilo que nos aterroriza quanto com as pulsões de morte que nos habitam. É no ambiente controlado das histórias, no qual podemos ter certeza do enredo, que vamos aprendendo a conviver com a realidade interna e externa, com nossas contradições e sentimentos mais obscuros. É pelo ódio à madrasta da Branca de Neve que uma criança pode lidar com a raiva que muitas vezes sente pela mãe na vida real. É também matando e morrendo em embates de brincadeira que escapamos de aniquilar e sermos aniquilados no mundo concreto. E isso até a vida adulta, de várias maneiras.

O problema começa quando não há espaço para lidar com aquilo que é do humano. Tenho grandes dúvidas se é realmente educativo, numa sociedade armada como a nossa na vida real, reprimir armas de brinquedo, por exemplo, eliminando a possibilidade de lidar, pela fabulação, com um elemento presente no cotidiano. Já cansei de ouvir pedagogas em matérias na imprensa afirmando coisas como esta aqui: “Mesmo uma aparentemente inofensiva pistola de bolhas de sabão incentiva a violência e poderá alterar a personalidade na vida adulta”. Hoje, o pai ou mãe que aparecer em casa com uma metralhadora de brinquedo para presentear o filho será condenado sem julgamento pela opinião pública. Mas, sempre que o bom senso é esquecido, novas brechas são encontradas porque é preciso lidar com a vida como ela é: ou o que é a varinha mágica do Harry Potter, a do livro e as vendidas nas lojas, além de uma arma com potencial letal? (Assim como sabres luminosos e armas estrambóticas de super-heróis…?)

E se J. K. Rowling tivesse botado uma metralhadora na mão de Harry, em vez de uma varinha, para que pudesse lidar com as infindáveis ameaças mortais que rondam seu destino, graças à ambição dos adultos? A escritora jamais teria saído daquele café onde escreveu o primeiro livro, aproveitando a calefação que não tinha em casa. Mas a varinha de Harry Potter e de seus amigos paralisa, deforma, queima e pulveriza seus inimigos, mais potente do que qualquer metralhadora real. E Harry Potter só se tornou o sucesso que é porque o personagem é tratado com respeito pela autora: Harry é um menino sensível e bondoso, mas também inteligente, autônomo e capaz de defender-se das ameaças vindas do mundo dos adultos. E não um tolinho choraminguento agarrado à barra da saia da mãe, exigindo um videogame de última geração.

Há duas crenças perigosas em jogo quando se culpa a ficção pelas atrocidades da vida cotidiana. A primeira é a de que a fantasia poderia invadir a realidade de uma forma literal. É claro que a fantasia invade a realidade (e vice-versa) – sempre –, mas pelo simbólico. E é por sermos capazes de simbolizar que não cometemos atrocidades na vida real. A segunda crença é a de que aniquilar os “maus” sentimentos e impulsos na ficção seria suficiente para eliminá-los na realidade. Como se negar o “mal” fosse o suficiente para fazê-lo desaparecer. Isto sim é confundir fantasia com realidade.

Arrisco-me a acreditar que tem mais chance de se tornar um adulto decente aquela criança que matou e morreu muitas vezes nas brincadeiras de infância do que aquela que foi obrigada a reprimir todos os seus “maus” instintos na fabulação cotidiana. Como não é possível eliminar nossos sentimentos e pulsões mais sombrios por decreto, de algum modo esse caldeirão vai transbordar, mais cedo do que tarde.

De fato, as crianças acabam dando um jeito de sobreviver – também subjetivamente – às sandices dos adultos. Dias atrás, uma conversa no pátio do prédio de classe média de uma amiga nos chamou a atenção. “Agora, você é o traficante”, disse uma menina de mais ou menos 10 anos para o companheiro da mesma idade. Ela, como explicou, seria a viciada em crack. Ficamos ali, na janela, ouvindo e imaginando o que aconteceria se os respectivos pais estivessem no nosso lugar.

O que as crianças faziam era tentar lidar, pela brincadeira e pela fantasia, com as notícias que vinham do mundo real pelo noticiário e pelas conversas, já que o crack é a droga mais falada do momento no mundo que elas também habitam. Ao tentar fabular sobre o que as impactava, estavam fazendo algo bastante saudável. Mas seria muito provável que parte dos pais e professores interpretasse a brincadeira como o prenúncio de um futuro de delinquência ou drogadição. Ao reprimir o que era natural como se fosse um problema, confundindo, agora sim, fantasia com realidade, poderiam causar um problema de verdade.

Para terminar, o que me parece arriscado não é quando a ficção espetaculariza a realidade. Esta é, com mais ou menos talento, uma das funções da ficção. O problema é quando a realidade é tratada não como a realidade que é, mas como espetáculo. Isto, sim, banaliza a vida humana. E temos convivido o tempo todo com a espetacularização da realidade em programas sensacionalistas travestidos de jornalísticos, em coberturas de ocupação de favelas em que repórteres e comentaristas comemoram a morte de supostos traficantes, como se suspeitos fossem culpados e culpados não fossem pessoas.

A espetacularização da realidade acontece sempre que a imprensa, responsável por documentar a vida cotidiana de homens e mulheres reais, anula a história que faz cada um ser o que é – e transforma gente encarnada em números sem carne. Mas a crescente espetacularização da realidade só vinga porque rende muita audiência – ou seja, porque recebe o aplauso de boa parte dos ditos “cidadãos de bem”, de muitos de nós.

Nestas últimas semanas, em minha opinião, a notícia mais chocante não foi a do matador do cinema do Colorado. Eu sei que há poucos James Holmes por aí. E que a maioria de nós, aqui ou nos Estados Unidos, vai continuar entrando e saindo vivo do cinema. Para mim, é muito mais chocante constatar, mais uma vez, que homens, mulheres e crianças estão sendo assassinados em conflitos nos lugares mais pobres, sofridos e violentos do mundo, neste momento e dia após dia, com armas fabricadas e vendidas pelo Brasil, como mostrou o jornalista Rubens Valente, na Folha de S. Paulo de 22 de julho.

Em 2001, o Brasil vendeu US$ 5,8 milhões em bombas de fragmentação e incendiárias para o ditador do Zimbábue, Roberto Mugabe. Cada uma delas pode espalhar, ao ser detonada, até 120 mil esferas de aço por uma área equivalente a sete campos de futebol, matando indiscriminadamente combatentes e civis. Na lista de compradores das empresas brasileiras de armamento já estiveram Muammar Khadafi e Saddam Hussein. Em 2011, cartuchos de bombas de gás lacrimogêneo fabricados no Brasil foram usados pela polícia turca em campos de refugiados sírios.

O aumento das exportações de material bélico é um dos objetivos do governo brasileiro, que criou para as empresas um programa de incentivos fiscais e condições especiais de financiamento. Na semana passada, fracassaram as negociações para um tratado internacional da ONU que obrigaria os países exportadores de armas a manter um registro das transações e avaliar se o material bélico vendido poderia ser usado para violar direitos humanos, cometer atentados ou alimentar o crime organizado. O Brasil foi um dos países que se manifestaram contra a “transparência absoluta”.

No início de julho, eu contei nesta coluna a história brutal da congolesa Marie Nzoli (leia aqui), com grande mobilização de leitores perguntando o que é possível fazer para “ajudar as mulheres do Congo”, vítimas de uma guerra complexa, prolongada e com múltiplas causas que já matou 5 milhões de pessoas. Para começar, é possível ligar os pontos. Já sabemos que os assassinatos, as torturas e os estupros que massacram o povo congolês foram – e talvez ainda sejam – praticados também com armas fabricadas e vendidas pelo Brasil. Afinal, ao comprar as bombas de fragmentação brasileiras, em 2001, o ditador Mugabe tinha como passatempo manter tropas do Zimbábue atuando na República Democrática do Congo. Esta é uma das realidades que podemos mudar – e que merece toda a nossa atenção.

É importante pensar em assassinos como James Holmes. Não porque a ficção supostamente teria influenciado suas ações e portanto seria preciso controlar a ficção – mas porque ele diz da realidade de nosso mundo. O caminho mais fácil é acreditar que o maluco não tem nada a dizer – e, assim, podemos fingir que basta removê-lo para que o mundo fique bom de novo. Mas o louco é aquele que diz explicitamente do mundo em que vive. E, ao dizê-lo, sacrifica várias vidas, mas também a sua. A tragédia do louco é que, ao denunciar a insanidade do mundo, colabora para manter tudo como está.

O mal cotidiano, permanente e insidioso, porém, é praticado por homens e mulheres que não cometem loucuras. Talvez os donos e executivos e funcionários das fábricas de armamentos do Brasil, que produzem as bombas que explodem crianças nos rincões esquecidos do planeta, proíbam seus próprios filhos de brincar com armas de brinquedo e assistir a filmes violentos na TV ou no cinema. É com a realidade – e não com a ficção – que temos de nos preocupar.

(Publicado na Revista Época em 30/07/2012)

 

“Silmara, você está dando de graça!”

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Silmara, nós precisamos conversar. Bem que ela deveria ter desconfiado daquele jantar só para mulheres, em pleno sábado à noite. Seis pares de olhos estavam fincados nela, entre o amor e a preocupação. Silmara encolheu-se. O que foi? Não gostaram do meu esmalte amarelo-canário?, brincou, na tentativa de desarmar o ataque. Silêncio. Betina, que era a amiga-bem-resolvida-que-diz-as-verdades-todas, avançou. É o seguinte. Nós estamos preocupadas com você. Por quê?, Silmara retrucou, assustada. Reviu mentalmente sua vida atual e, com sinceridade, achava que estava tudo bem. Não estou entendendo… Betina pegou na sua mão, rosto contrito. Acredite, vai doer mais em mim do que em você, mas amigas de verdade dizem a verdade. Silmara agora estava assustada. Betina não fez pausa:

— Querida, é o seguinte. Você está dando de graça.

A visão de Silmara escureceu na hora. Como elas descobriram? Ela tinha sido tão discreta.

Nós sabemos, adiantou-se Joana. Você sabe, os homens falam. E nossos amigos estão chocados com a sua falta de amor próprio. Por que, Silmara, você está fazendo isso com você mesma?, gritou Naiara, meio descontrolada. Ela babava um pouco no canto direito da boca quando ficava nervosa. Silmara agora torcia as mãos, sem saber o que dizer. Como poderia explicar? Me deu vontade, só isso. Aconteceu.

Como assim, ACONTECEU?!, atacou Renata. Por que você está desrespeitando o seu corpo? Silmara, o corpo é seu, não pertence a homem algum, a mulher alguma, por mais sensacional que seja. Silmara, como você pode desrespeitar o seu corpo dessa maneira, abrindo as pernas apenas por prazer, ou mesmo sem prazer, mas por amor? Silmara, o corpo a gente não dá, a gente vende!

Todas as seis começaram a falar ao mesmo tempo. E Silmara, acuada, começou a chorar. Ela estava morta de vergonha. Sabia que não havia perdão para o que tinha feito. Aconteceu, balbuciou mais uma vez. Eu gosto do Volnei, ele tem aqueles cachinhos ao redor do pinto, me lembram do meu irmão quando era bebê. Me envolvi com os cachinhos e acabei esquecendo de cobrar. Ele não falou nada e, na vez seguinte, eu esqueci de cobrar de novo — e ele de pagar. Foi meio que por acaso… Mas tenho certeza de que ele não queria me humilhar. O Volnei me respeita!

E Silmara começou a sentir coceira nas mãos, um tique nervoso que tinha desde a infância.

Valei-me, Nossa Senhora da Periquita!, berrou Verônica. É muito pior do que a gente pensava. Ela está dando de graça. E só pra um!

Silmara agora soluçava e começava a sentir ânsia de vômito.

Mas as amigas não se apiedaram. Por que, Silmara? Você teve uma infância feliz! Começou a dar desde cedo, sempre ganhou bem, tem filhos saudáveis, sua filha já está dando e ganhando seu dinheirinho honesto. Betina pegou nas suas duas mãos. Silmara, há algo do seu passado que a gente não sabe? Você foi abusada na infância?

Betina, interrompeu Renata. Você sabe que o pai da Silmara era um homem honesto, que sempre pagou direito pelo sexo, pra todas as mulheres, não só pra mãe dela. E a mãe da Silmara sempre cobrou um preço justo e, quando um mané não quis pagar pelo boquete, botou o cara na cadeia. Não é por aí!

Betina não gostou de ser questionada. Ora, Renata, eu não estou dizendo nenhum absurdo. Você sabe muito bem que é comum mulheres que foram abusadas na infância apresentarem esse comportamento autodestrutivo. Você não viu aquela reportagem no Fantástico sobre abuso sexual? As vítimas são exatamente como a Silmara. Ficam com nojo do corpo e começam a dar de graça pra um homem só. É a tal, como é o nome mesmo?

Síndrome de Estocolmo, esclareceu Naiara. Ficam obcecadas pelo abusador — e transferem essa obsessão para um estropício qualquer. E, você sabe, homem imprestável tem por toda parte. Sem tratamento, algumas mulheres acabam indo morar com um traste destes. Se acomodam, não cobram mais, abrem mão de ter outras experiências sexuais, viram uma pantufa pra ser calçada de vez em quando apenas porque é mais confortável.

Que horror!, gritou Joana, que era a mais sensível das seis e não lidava bem com catástrofes humanitárias.

Mas é assim que algumas mulheres ainda vivem, como se estivessem na Idade Média, insistiu Betina. Ela tinha gostado mesmo daquela matéria do Fantástico. Ficam vivendo uma vida sem sentido e sem dinheiro nem para comprar um sapatinho! Como não transam com outros nem cobram, acabam dependendo do aproveitador para tudo. Uma delas ficou 25 anos com um infeliz desses, até ter a coragem de denunciar na Delegacia da Mulher. Foi então abrigada num puteiro, para um programa de recuperação do sexo gratuito e monogâmico, e hoje está feliz, rodando uma Louis Vuitton na Augusta.

Ahhh, ufa, recuperou-se Joana. Satisfeita com o final feliz.

Silmara se encolheu toda. Ela e Volnei tinham pensado em morar juntos. Mas ela não confessaria isso por nada. Não nesta vida, pelo menos. Eu ganho um bom salário no meu emprego, tentou se defender. Não faz falta esse dinheiro do sexo. E o Volnei está desempregado…

Os seis pares de olhos agora lacrimejavam por ela. As amigas estavam penalizadas. Silmara, meu amor, disse Verônica. Não se trata apenas de dinheiro, mas de respeito pelo seu corpo, pela sua autonomia, pelo feminino. Se você dá seu corpo de graça, como se tivesse achado a buceta no lixo, como você vai se olhar no espelho todos os dias?

E não é só isso, meteu-se Naiara. Você está dando pra um cara só! Isso é altamente autodestrutivo, Silmara. Logo esse cara vai pensar que é seu dono. Primeiro ele não paga, depois vai começar a achar que você tem de transar com ele sem vontade, daqui a pouco vai ficar com ciúmes se você quiser se divertir com outro, como qualquer mulher bem resolvida faz desde que as feministas queimaram o sutiã em praça pública e cobraram ingresso pra quem quisesse ver seus peitos. Silmara, você precisa compreender que não se trata só de você, mas de todo um movimento, que, ao longo de séculos, lutou para que mulheres como você pudessem ter o direito de vender o corpo para quem quisessem. Silmara, você está descendo ladeira abaixo. Vai acabar casada!

Neste momento, todas fizeram o sinal da cruz. Silmara também. Deus nos livre!

Silmara caiu em si. O que há de errado comigo?, pensou. Como eu fui perder tanto o rumo da minha vida? Eu, que tinha uma carreira tão promissora, que era uma mulher feliz… Como é possível, de repente, eu ter descido tanto? Não, chega de autocomiseração! Silmara levantou o queixo, como sinal de autoestima, e berrou: Mulheres, unidas, sigam-me!

Deixaram o risoto trufado pela metade nos pratos, um resto de Barolo ainda na garrafa e partiram, determinadas. Silmara entrou na delegacia da esquina, agarrou o investigador pela gola rolê com suas unhas amarelo-canário e intimou: “Você precisa prender um abusador”.

Depois, separaram-se. Naquele dia, dobraram o preço da trepada para comemorar a emancipação de Silmara.

Chester prefere pagar pelo sexo

Premiado autor de histórias em quadrinhos só transa com prostitutas há mais de uma década. Em um livro inteligente e engraçado, ele critica o amor romântico e defende a normalidade da prostituição

Em junho de 1996, o canadense Chester Brown desenhava histórias em quadrinhos no apartamento que dividia com a namorada, em Toronto, quando ela anunciou: “Te amo como sempre amei e sei que sempre vou te amar, mas…. acho que me apaixonei por outra pessoa”. Chester percebeu que não estava abalado – nem se abalou quando o novo namorado passou a dormir com a recentíssima ex no quarto ao lado. Uma passagem tão tranquila que os dois decidiram continuar dividindo o mesmo apartamento, o que fizeram por muito tempo. Um ano depois, aos 37 anos, Chester chegou a uma conclusão que mudaria a sua vida: “Tenho dois desejos contraditórios: o de transar e o de não ter namorada”.

Chester acabou descobrindo que, pelo menos para ele, não havia contradição alguma. Depois de uma fase de celibato, ele deu início a uma vida sexual com prostitutas que, em geral, era bastante prazerosa. Quando as descrições dos anúncios não correspondiam aos fatos, ele podia inventar uma desculpa e cair fora – ou acabar constatando que, apesar de a mulher não ser tão gostosa quanto dizia que era, tinha outros talentos ou simplesmente era divertida.

Descobriu que, para ele, o “amor romântico” não fazia sentido algum. “Nossa cultura impõe a ideia de que o amor romântico é mais importante que as outras formas de amor”, diz ele um dia à ex-namorada. “Já não acredito nisso. O amor dos amigos e o da família podem ser tão satisfatórios quanto o amor romântico. A longo prazo, provavelmente são mais satisfatórios.”

Mais tarde, explica sua tese a uma prostituta, durante uma conversa na cama. “O amor é doação, partilha e carinho. O amor romântico é possessividade, mesquinhez e ciúme”, diz à moça. “A mãe que tem vários filhos ama todos eles. Quem tem vários amigos pode amar todos eles. Mas não se acha correto que se sinta amor romântico por mais de uma pessoa por vez. Acho que é a natureza excludente do amor romântico que o torna diferente de outros tipos de amor.”

As aventuras de Chester Brown e sua escolha pelo sexo pago são contadas por ele em uma deliciosa graphic novel (novela em quadrinhos), que acabou de chegar às livrarias do Brasil. Pagando por sexo (WMF Martins Fontes) é o relato confessional do quadrinista, escrito com rigor jornalístico. Inclusive trocando o nome das prostitutas, para não identificá-las, assim como jamais desenhando seu rosto ou suas marcas pessoais, para que não sejam reconhecidas – mas buscando ser fiel à forma de seus corpos.

Ao longo das 284 páginas, Chester vai narrando seus dilemas, seus encontros com prostitutas e suas discussões com amigos. Especialmente com os quadrinistas Joe Matt e Seth, com quem formava “os três mosqueteiros” no mundo das HQs. Estas conversas, geralmente em um bar ou café, são as partes mais interessantes do livro, já que os amigos têm dificuldade de aceitar a escolha de Chester – tanto pelo enorme preconceito existente ainda hoje com relação à prostituição, quanto pelo que essa alternativa pouco convencional produz de incômodo com relação à vida amorosa-sexual de cada um deles.

Ao final do livro, temos vontade (eu, pelo menos) de ser amiga do Chester que vai se mostrando com abissal honestidade a cada página. Sem esquecer, é claro, que, como qualquer relato autobiográfico, as verdades sobre quem escreve sobre si mesmo são filtradas por um olhar amoroso e, às vezes, complacente. Mas Chester consegue rir de si mesmo – e duvidar de si mesmo – vezes o suficiente para a história nos envolver e convencer. A certa altura, por exemplo, uma das prostitutas explica a ele por que prefere trabalhar à tarde em vez de à noite. Ela diz: “Quando a gente trabalha à noite, muitos caras chegam bêbados. Os piores clientes são os bêbados e os que têm pênis grande”. E acrescenta: “Quem dera todos os meus clientes fossem como você”.

As aventuras de Chester, porém, não são apenas deliciosas. Seu maior mérito é nos confrontar com uma visão sobre o amor, o sexo e a prostituição que contraria o senso comum. Mesmo para pessoas consideradas de “mente aberta”, a prostituição ainda é um tabu. Ainda hoje, as prostitutas são reduzidas ou a “vagabundas” ou a “vítimas da sociedade, do machismo e do patriarcado” – visões pobres e autoritárias sobre uma identidade complexa. De certa forma, sobre a prostituição há quase uma unanimidade negativa unindo setores da sociedade que discordam em quase todo o resto.

Chester incomoda também por não caber no estereótipo do que se imagina como um cliente do sexo pago. Ele não é o sinhozinho do passado, que mantinha em casa a mulher “honesta” e “mãe dos filhos”, mas divertia-se mesmo era no puteiro da cidade. Tampouco é o explorador de mulheres violento, tarado e com “vícios” inconfessáveis das histórias que viram notícia. Muito menos é o loser infeliz, desajustado e solitário que busca o prazer nos becos escuros, esgueirando-se pelo submundo.

Chester usa seu nome verdadeiro, não esconde de ninguém que transa com prostitutas e trata sua escolha com tanta naturalidade como se estivesse falando de um casamento convencional. Ao colocar um tema historicamente relegado à sombra – e ao assombro – debaixo do sol, ele torna-se algo novo. Especialmente porque tem a inteligência de não escorregar para o lado oposto – o do glamour –, o que seria desastroso.

Para Chester, transar com prostitutas é tão comezinho quanto namorar, morar junto ou casar. Como um homem da era digital, ele escolhe as mulheres pelos anúncios e avalia as “resenhas” deixadas por outros clientes em sites na internet. Paga o preço combinado e respeita os limites estipulados, porque é uma pessoa decente, e dá gorjetas até quando não gosta muito, porque talvez seja bom moço demais.

Por conta da reação persistente e quase ofendida que sua escolha causou, Chester acabou por tornar-se um defensor público da legalidade da prostituição – ainda proibida em vários países, mesmo ocidentais. Embora defenda a legalização da prostituição, porém, é contra a regulamentação da profissão, por considerar que o Estado deve ficar fora da cama dos cidadãos – qualquer que seja a relação estabelecida entre as partes. É contra também porque acredita que a partir dela se criaria uma nova distinção entre as prostitutas, que deixaria as não regulamentadas desprotegidas.

Mas Chester é, principalmente, um defensor da “normalidade” do sexo pago. Em nome dessa militância, ele faz um longo apêndice ao final do livro, dividido em 23 itens – o mesmo número de prostitutas com quem teve relações sexuais – para rebater os argumentos contrários à prostituição, que chama de “namoro pago”. Em geral, rebate os argumentos usados por uma parcela do movimento feminista, que coloca a prostituição como uma exploração da mulher – e a prostituta como uma vítima.

A seguir, alguns dos itens elencados por Chester Brown:

1) Você é dono do seu corpo. Dizer “Quero transar com você porque você vai me dar dinheiro” é tão moral quanto dizer “Quero transar com você porque eu o amo”. E isso tanto para homens quanto para mulheres.

2) Os clientes não compram as prostitutas. Quando alguém compra um livro, leva-o para casa e faz o que quiser com ele, por quanto tempo quiser. Com uma prostituta, você paga para transar durante um tempo determinado, limitado por aquilo que é combinado, e depois se separa dela. Nenhum cliente faz o que quiser com uma prostituta – nem é dono dela.

3) A violência, minoritária, é tão presente no sexo pago como no sexo não pago. Existem clientes cretinos na mesma proporção que existem maridos e namorados cretinos, que ignoram os pedidos e os limites estabelecidos pelas mulheres. Assim como há aqueles que extrapolam e as espancam. Para reprimir esse comportamento, há leis. Mas, se concluirmos que devemos criminalizar ou condenar o sexo pago porque alguns homens são cretinos e outros são violentos, então é preciso criminalizar ou condenar também o casamento e o sexo não pago. Da mesma forma, com relação ao tipo de trabalho, qualquer um acharia descabido terminar com a profissão de taxista porque alguns são assaltados, feridos e até mortos por assaltantes travestidos de clientes.

4) Não são apenas as prostitutas que muitas vezes transam sem desejo. Muitas pessoas, em relacionamentos amorosos, também transam sem vontade. A frase “Não quero transar com esse cara, mas vou transar porque preciso de dinheiro” é tão moral quanto “Não quero transar agora, mas vou transar porque ele é meu namorado e eu o amo” ou “Não sinto mais desejo pelo meu marido, mas vou transar pelo bem do nosso casamento”.

5) A prostituição não destrói a dignidade das prostitutas. A vergonha que algumas prostitutas sentem por conta da profissão é provocada pela interiorização do preconceito enfrentado na sociedade – e não pela venda do sexo em si. Assim como no passado (e ainda hoje, em alguns casos) os homossexuais sentiam vergonha, depressão, culpa e repulsa por sua orientação sexual. Isso não significava que ser gay era errado – e sim que muitos homossexuais interiorizavam os valores da cultura em que viviam, assumindo o preconceito da sociedade como vergonha e como culpa.

6) A diferença com que a sociedade trata a prostituição masculina mostra que o preconceito, como sempre, é com relação à autonomia das mulheres. Em geral, os adversários da prostituição feminina ignoram a masculina. A razão é que os argumentos usados para condenar a prostituição feminina soariam ridículos se aplicados à masculina. Nossa cultura acredita que os homens controlam a própria sexualidade. E, se um homem se coloca em uma situação potencialmente arriscada, a sociedade compreende como um comportamento inerente à natureza masculina. Já, com relação às mulheres, não. Elas são sempre vítimas, e há sempre alguém – mesmo que outras mulheres – apto a determinar o que é melhor para elas.

7) A prostituição é uma escolha. Setores contrários à prostituição afirmam que não há escolha real se a mulher tem de eleger entre ganhar um salário baixo em um emprego pouco valorizado ou se prostituir, assim como não haveria escolha se a mulher se prostitui supostamente porque foi abusada na infância, caso de parte das prostitutas (como de parte das mulheres). Mas uma escolha é uma escolha, ainda que seja uma escolha difícil. Dizer que adultos não teriam o direito de escolha porque tiveram uma infância difícil é um terreno perigoso. Estas mulheres que não poderiam escolher pelo sexo pago não estariam, então, aptas a fazer qualquer escolha sexual, mesmo amorosa, por causa do seu passado. Da mesma forma que a realidade impõe escolhas difíceis para ganhar a vida o tempo todo, tanto para homens como para mulheres. E do mesmo modo como há quem gosta do que faz e há quem não gosta em qualquer profissão. Todas as pessoas – e não só as prostitutas – são fruto de suas circunstâncias e do sentido que conseguiram dar ao vivido. Alguém tem o direito de determinar quais adultos estão aptos e quais não estão aptos a fazer escolhas sobre a sua própria vida, ainda que sejam escolhas que não agradem aos outros?

Estes são alguns dos argumentos que Chester Brown propõe ao leitor, construídos a partir de pesquisa e leituras, mas principalmente a partir da sua própria experiência no mundo do sexo pago. Na novela da vida real que ele conta em quadrinhos, cada prostituta entende sua escolha de forma diversa. Quando não contam para a família e para os amigos sobre sua profissão, em geral é por temer o preconceito – e não por desprezar o que fazem.

Por características de sua personalidade, um pouco obsessiva, Chester esmiúça o sexo pago e suas implicações com algo próximo do método científico. Meticuloso, ele escuta e duvida tanto dos outros quanto de si mesmo, o que o torna digno de ser escutado naquilo que diz. Ao terminar o livro, Chester parece ter achado o melhor para ele, pelo menos naquele momento: estava há seis anos transando com uma única prostituta, que, por sua vez, só transava com ele, numa curiosa relação monogâmica sem compromisso. Chester acredita que ela não transaria com ele se não pagasse – e acha ótimo que seja assim.

No último apêndice do livro, seu amigo Seth comenta com ironia amorosa: “A verdade é que, se no passado o envolvimento de Chet com prostitutas me incomodava, hoje eu superei isso. A prostituição pode não funcionar para todos, mas funciona para ele. O gozado em Chester é que, de todos os homens que conheço, ele talvez seja o que daria o melhor marido ou namorado para qualquer mulher… e, no entanto, foi ele que escolheu a prostituição. O mundo é muito engraçado”.

Mas Chester escorrega em pelo menos um ponto, o que é uma pena. Ao escolher transar apenas com prostitutas, por achar que o amor romântico não serve para ele, Chester é atacado por muitos – e também pelos amigos mais queridos. Afinal, manter uma relação amorosa romântica com alguém parece ser a busca maior e a redenção de boa parte das pessoas em nossa época. Para Chester, o amor romântico é apenas um mito no qual as insatisfações mútuas são mascaradas para não comprometer a sua idealização, tão cara à nossa cultura.

O problema é que Chester trata o amor romântico – e o casamento – com preconceito semelhante ao reservado à prostituição pelos seus opositores. Quando o melhor, me parece, seria não substituir um dogma pelo outro. Assim como pagar para transar pode ser a melhor solução para Chester e para muitos, o sexo não pago pode ser a melhor solução para outros. Há um zilhão de pactos diferentes que um homem e uma mulher – ou um homem e um homem, uma mulher e uma mulher – podem fazer entre si e que só diz respeito a eles. Seria melhor ter ficado por aí, mas Chester Brown, como muitos que defendem uma bandeira na contramão, acaba tornando-se dogmático pelo avesso.

Esse escorregão, porém, não tira o brilho de sua obra e da sua reflexão. É importante quando alguém nos arranca do senso comum e nos lança diante de novas perguntas – não para concordar com ele, mas para pensar com ele. E mais ainda em uma época na qual o politicamente correto tem reprimido a liberdade das ideias. Chester não provoca polêmica pela polêmica, como muitos em busca de audiência e leitores. Estuda, pesquisa, experimenta e conta. E é sua honestidade moral e intelectual que torna Pagando por sexo tão instigante.

O livro me lembrou de um evento, ocorrido há quatro anos em Porto Alegre, chamado “Um puta sarau”. Na ocasião, um folhetim escrito por um grupo de prostitutas e intitulado “Uma puta história” foi lido para o público. A certa altura, uma feminista não se conteve e disse: “Espero que um dia as mulheres não precisem mais vender o seu corpo para sobreviver”. Janete, a prostituta que estava no palco, retrucou na hora:

– Mas eu não vendo o meu corpo, eu alugo. E só um pedacinho dele. A senhora não aluga o seu cérebro para o seu patrão?

Como se vê, há muito para refletir.

(Publicado na Revista Época em 23/07/2012)

 

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