O silêncio não existe

Ser surdo a si mesmo não é uma deficiência auditiva, mas causa deformação

Uma amiga me emprestou sua casa no meio do mato para eu escrever uma história. Eu andava acuada na cidade, atordoada com o excesso de barulho dentro e fora de mim. Às vezes tenho essa sensação, a de que a barreira do dentro e do fora se rompe e já não consigo distinguir se o ônibus cheio de som, fúria e fumaça preta sobe a Teodoro Sampaio ou sobe alguma rua que passa raspando pelo meu pulmão direito. Viro eu mesma um pedaço maltratado de São Paulo e preciso partir em busca de outras geografias que me curem o corpo. Eu pensava buscar silêncio, só para descobrir mais uma vez que o silêncio não existe.

É curiosa essa ilusão que compartilhamos de que o campo, o mato, a praia escondida, a natureza menos tocada são paisagens de silêncio. Nem o deserto é silencioso, descobri anos atrás, ao passar 20 dias na Mauritânia, acompanhando Toco Lenzi, um aventureiro que atravessava o Saara sozinho e a pé, puxando um riquixá. Ali descobri que o próprio silêncio não é silencioso. Ao contrário, a ausência de som rugia no meu ouvido num tom desconhecido.

Perturbada por essa voz sem voz, eu lia sem parar à noite na minha barraca, quando lá fora a temperatura despencara dos mais de 40 graus do meio-dia para abaixo de zero. Lia histórias sobre as grandes expedições do passado porque a minha pequena aventura estava me assombrando. Eu não temia os beduínos que às vezes surgiam como que materializados da areia, nem os animais que deixavam marcas no acampamento pela manhã. Eu temia esse som que eu não decifrava, mas que falava com partes de mim que eu também não sabia onde moravam.

Dois anos depois dessa experiência, passei dez dias num retiro de meditação vipássana, no interior do Rio de Janeiro, em que era proibido falar e até mesmo olhar para as outras pessoas. Aprendi a ouvir o meu lado de dentro e descobri que eu era tão silenciosa quanto uma lagoa habitada pela família inteira do Monstro do Lago Ness, incluindo primos distantes. Dias depois de ter voltado, eu ainda era despertada no meio da noite pelo barulho que continuava ressoando dentro de mim e que agora eu tinha aprendido a escutar. Levantava da cama e ia me postar diante do meu marido, notívago como um vampiro, que lia na poltrona. “Meu corpo não cala a boca”. Depois, com o tempo e o abandono da disciplina de meditação, perdi a capacidade de me ouvir e agora só escuto os roncos do meu estômago sempre esfomeado.

Neste fim de ano, me enfiei no meio do mato em busca de silêncio. De novo. Eu precisava descobrir as palavras que nadavam em mim como peixes não muito dispostos a serem pescados, para contar uma história de ficção com prazo para entregar. Um grande escritor, não lembro qual, disse que as palavras são peixes que nadam no nosso lago inconsciente, mas eu tenho minhas dúvidas. Me parecem mais criaturas não nomeadas que rastejam no lodo de um fundo falso. Mas, seja o que forem as palavras, eu esperava atiçá-las com iscas de silêncio.

Logo ao chegar, experimentei o estranhamento de entrar em qualquer casa que pertença a um outro. É como um mapa que fala de caminhos que só fazem sentido para alguém que não está ali. Não falo apenas dos livros e dos CDs, dos móveis e da disposição dos objetos no banheiro ou da decoração, mas do que restou esquecido. É o esquecimento, mais do que a lembrança, que fala de nós.

De imediato fui registrando as aranhas, muitas aranhas de tipos diferentes, que só extermino se chegarmos ao ponto do ou eu ou ela, o passarinho que fez ninho na janela do banheiro, as formigas carregando um besouro morto. Esse tipo de besouro tem a conformação física de um tanque de guerra e, ao voar, faz o barulho de uma Harley-Davidson. (Ouvi dizer que o ronco das Harleys é patenteado. Se não for mais uma lenda, devem royalties ao “rola-bosta”, o nome popular desse besouro.) Me identifico com ele, que está sempre caindo de costas, pernas pra cima. Me dá a impressão de que gasta a vida tentando virar do lado certo, ficar em pé, como eu também.

E então… o vi. Um confete de carnaval entranhado no piso de cimento queimado. O que ele contava? Me enterneceu mais do que qualquer outra coisa aquele confete esquecido ali. A marca humana. Um carnaval, uma busca de felicidade, teria dado certo, teria sido alegre? E lá estava ele, um bailarino sem pernas. Caído ao final de um movimento.

Quando eu ainda vivia em Porto Alegre, uma leitora me enviou um álbum de fotografias que havia sido encontrado no lixo. Ela não pôde suportar a ideia de uma vida jogada fora, como se fosse uma casca de banana, e despachou o álbum envolto em papel-manteiga, para que eu desse um sentido à memória de um outro. Vi estranhos nascendo, crescendo, sumindo, casando, tendo filhos, envelhecendo. Na última página, a longa saga familiar se encerrava, sem explicação alguma, com a foto de duas coristas em pose sensual. Como a avisar que a vida é desacerto, como se dissesse: “Cuidado, não me entenda rápido demais”. Durante boa parte da minha vida, essa foi a minha frase preferida. Cuidado, não me entenda rápido demais. E era o que o confete parecia dizer, deslocado naquele ambiente. Eu sabia que, se ele falasse, falaria de mim, não de si mesmo, não de como havia restado ali.

Deixei-o e me sentei no lado de fora. Essa casa que falava comigo é quase orgânica, tem a postura de quem pede desculpas por estar ali. Só a enxerga quem chega perto da sua porta, porque tem a cor ocre da terra vermelha e as árvores a apertam. É uma casa quase natureza. Fico sempre tentando me enfiar na pele dos outros, para entender como se sentem e por que dizem o que dizem e fazem o que fazem. Mas desta vez fui compelida a tentar algo novo, ao olhar para as árvores e perceber que elas não estavam ali como um cenário. Aquelas árvores, cuja respiração eu acreditava ouvir, estavam ali possivelmente antes de mim e estarão para além de mim. Se uma delas pudesse me ver, o que veria? Qual seria a sua perspectiva?

Talvez a árvore me percebesse só como um relance, uma cor fugaz, como uma daquelas imagens que a gente faz rodar com muito mais velocidade para adiantar o filme no aparelho de DVD. Para nós ela é uma vida que se inscreve pela imobilidade. Mas não é, seu tempo é que é outro. Ela se move, mas não somos capazes de enxergar. Sem que antes tivéssemos nos encontrado, essa árvore tinha protagonizado um balé que ninguém viu. No meu nascimento seus galhos esboçavam um gesto, agora outro e, quando eu morrer, terão formado um quadro sutilmente diferente. Todo o meu álbum de fotografias cabe em apenas um de seus “pas de valse”. Ela, que é apenas um indivíduo, como eu. E como o besouro que bate a cabeça no tronco e vira de patas pro ar, abreviando suas chances de chegar vivo a 2013. Não há nenhuma hierarquia entre nós. Estamos todos os três apenas vivendo, tentando.

Mas eu escuto o silêncio da árvore e, ao deitar à noite para dormir, sei que a vida do mato é mais barulhenta que a minha esquina em São Paulo. Eu abro os olhos no escuro e há vaga-lumes no quarto. Eu tentando dormir e aqueles moços (ou seriam as moças?) acendendo o traseiro para atrair companhia. “Eu estou aqui!”, aviso, na tentativa de despertar alguma compostura, mas estão acesos. Me ignoram e continuam piscando sobre a minha cabeça: sexo, sexo, sexo. Bem perto, eu tenho certeza, alguma aranha tece a sua teia à espera de presas que serão devoradas lentamente. E logo ali uma fêmea de louva-a-deus pode estar mastigando o pai dos seus filhos e pensando, como no livro de Alessandro Boffa: “Hum… crocante, com fibras”. A sinfonia da natureza de que nos falam os poetas é uma orgia. Às vezes sangrenta.

Talvez eu não seja uma pescadora, afinal, mas uma aranha, tecendo uma armadilha para as palavras e depois mastigando-as com minha boca cheia de dentes. Eu posso ouvir que não há silêncio. O que buscamos, talvez, quando buscamos silêncio, é só a possibilidade de ouvir mais do mundo. Os sons, quando se repetem dia após dia, nos ensurdecem. E a primeira voz que deixamos de escutar é a nossa. Descubro na casa do mato que é da minha voz que tenho saudades na minha esquina de São Paulo, é ela que o ônibus da fumaça preta emudece quando sobe a rua.

Ser surdo a si mesmo é uma surdez sem nenhuma deficiência auditiva, mas muito, muito triste. O que chamamos de silêncio, afinal, talvez seja apenas a nossa voz.

Passo a vassoura sobre o confete. Cutuco um pouco para arrancá-lo dali. Ele não sai.

(Publicado na Revista Época em 31/12/2012)

 

“Malditos maias!”

Uma história real de fim do mundo

– Acabou. Acabou tudo – ela me anunciou, pelo telefone, na fatal sexta-feira, 21 de dezembro de 2012.

– Não acabou. Continua tudo igual. Se quiser ter certeza, vá a um shopping. Tá todo mundo lá, comprando, se empurrando e se xingando – respondi, ranzinza como um duende fazendo hora-extra para terminar uma Barbie Malibu.

Mas para ela tinha acabado. Mesmo. A menstruação atrasara e ela, distraída de si, pensou que era gravidez. Aos 46 anos, e ela acreditou que seria mãe de novo. Um risco, um disparate, uma reviravolta em uma vida tão programada quanto pode ser uma vida. “O que eu vou fazer?”, dramatizara ela durante toda a semana. E se imaginava dando a notícia para a família na ceia de Natal. Tal qual uma Maria, mas desvirginada nos anos 80, numa Brasília verde limão ao som de Legião Urbana. Anunciaria uma nova vida antes de trinchar o peru.

Por que você não faz o exame de farmácia?, nós, as amigas, perguntávamos. Ela não queria. Só tinha conseguido horário com o médico na sexta-feira e tinha decidido que só faria o exame antes de sair de casa para a consulta. Não fazia nenhum sentido e, por isso, entendi que ela desejava aquela expectativa. Mariana (o nome é fictício, a seu pedido) estava gostando de sonhar com uma nova maternidade, fora de hora, imprevista, alterando o curso de uma vida que, eu sabia, ela começava a achar tão suculenta quanto uma uva-passa. Estava gostando de se descabelar diante das amigas, do marido, sobre o “absurdo de ser mãe com quase 47 anos”. E ouvir de algumas – não de mim – uma série de histórias de mulheres que tinham gestações saudáveis e bebês roliços “até com muito mais idade do que você”.

Parei de insistir que fizesse logo o tal do exame lá pela quarta-feira, assim que percebi seu inebriamento com a novidade. Ser uma boa amiga (e uma boa mulher, mãe, filha etc), acho eu, é tanto falar a verdade mais dura, quando necessário, quanto embarcar alegremente nas fantasias de quem amamos e enlouquecer junto. No caso de Mariana, a razão me mostrava que uma gravidez nessa altura da vida, com dois filhos já crescidos e a perspectiva de um cotidiano mais desamarrado de obrigações de todo tipo dali pra frente, podia não ser a melhor ideia. Isso sem falar nos riscos de uma maternidade tardia, já que não sou adepta da falácia de que a medicina resolve tudo e cada uma pode adiar a gravidez o quanto quiser. Fiz um rápido cálculo mental e me arrepiei ao imaginá-la enfrentando uma adolescência com mais de 60. Se a maturidade ajuda, porque, pelo menos na teoria, com a idade a gente fica – ou deveria – ficar mais sábio, minha experiência é a de que, para educar um filho, é necessário também uma boa dose de vitalidade física. Dupla, on the rocks.

Para Mariana, naquele momento, aquele era um cálculo menor. Ela precisava daquele inesperado, acolhia-o por inteiro. Logo, também eu passei a brincar com cenas inusitadas de um bebê fora de estação. Então, a sexta-feira chegou. Trazendo com ela o fim do mundo.

Quando o o telefonema de Mariana me alcançou, eu já empreendia minha tradicional fuga natalina. Alinhada a uma considerável parcela da humanidade, eu tinha certeza de que, como nos dizeres precisos de um cartaz que circulou pelas redes sociais, “o problema não é o mundo acabar, mas continuar do mesmo jeito”. E tratava de desaparecer no meio do mato, colocando uma distância regulamentar entre mim e o shopping center mais próximo. Não sei como é com vocês, mas, nas semanas que antecedem o Natal, eu sofro o maior número de agressões verbais, miradas de ódio e demonstrações de total falta de educação de todo o ano. Por isso, já faz algum tempo que, sempre que possível, escapo do espírito natalino e desapareço até dias de maior civilidade.

A voz de Mariana no telefone era de alguém que estava vendo o gigantesco meteoro do filme de Lars Von Trier se aproximando. Eu até olhei para um lado, olhei para o outro, por um momento dominada pelo medo atávico da voz dela, transmitido pelo sinal do celular. Não, não havia nenhum meteoro no horizonte. Não um visível, pelo menos. O que aconteceu?, finalmente perguntei. “Eu não estou grávida. Eu sou uma idiota. Não enxerguei o óbvio”, ela despejou, agora com a voz molhada. E, numa frase que terminou num soluço arrancado das tripas: “É menopausa”.

Silêncio. Eu sabia que poderia desfiar uma série de lugares comuns sobre a menopausa ser algo natural, que chega para nós todas, e não uma doença ou uma deformação ou mesmo uma maldição. Mas isso seria trair uma dor que eu também era capaz de compreender. Ela mesma continuou a falar, antes que eu balbuciasse qualquer coisa: “Eu estava me sentindo potente, entende. Jovem, até. Eu, tão imperfeita, tão atrapalhada com o dia a dia, tão frustrada em tanta coisa que não cheguei a ser. E, de repente, a possibilidade de um bebê. Eu, essa porcaria, ia gerar uma vida”.

Eu sabia que ela sabia que não era uma porcaria. Mas, naquele momento, Mariana precisava se chicotear. E eu precisava escutar. “E agora é oficial. Envelheci. Meu útero está morto. Nem capim nasce de mim, entende? Acabou.” Sim, eu entendia. Mariana foi lembrada no dia do fim do mundo que, desde que nascemos, há um meteoro vindo em nossa direção. E, um dia, com sorte mais tarde do que cedo, ele nos alcançará.

Liguei há pouco para ela do meu não-Natal. Mariana pintava as unhas de amarelo. Por alguma razão cuja lógica me escapa, ela acreditava que daria um toque de estilo quando trinchasse o peru. “Entrei na menopausa no fim do mundo”, já conseguia rir de si mesma. “Malditos maias!”

Desliguei sabendo que minha amiga seguia, agora com um luto a mais.

Para aqueles que acreditaram no fim do mundo e para aqueles que não acreditaram: nosso mundo acaba várias vezes no espaço de uma vida. Mas sempre temos a chance de recomeçar, dando outros sentidos para as marcas que carregamos, sentidos que nos permitam criar novas versões de nós mesmos ou pelo menos olhar para a atual com mais generosidade. Um dia, porém, o meteoro chega. E chega para todos, sem que nenhum de nossos tremendos esforços e vastas ilusões seja capaz de mudar o final.

São muitos os pequenos fins de mundo – e desconfio que os grandes apocalipses nos distraem dessa verdade, como tantas outras manchetes em neon que nos cegam dia após dia. Enquanto o meteoro se aproxima, vai se distanciando de nós a imagem de nosso retrato de 20 anos, quando ainda nos iludíamos que tudo era possível. É um pequeno mundo que acaba quando já não podemos contar com a ignorância que nos fazia viver como se houvesse sempre amanhã. É um pequeno mundo que acaba no primeiro cabelo branco ou na primeira queda, na primeira ruga ou na primeira dor na coluna, no exame de colesterol que anuncia refeições com menos delícias, na ereção que não vem ou não vem nem tão fácil, nem com o mesmo vigor de antes. É um pequeno mundo que acaba no momento em que percebemos que já não seremos bailarinas clássicas ou jogadores de futebol ou escreveremos o romance que mudará a história da literatura universal ou faremos a descoberta que nos levará ao Nobel – no exato instante em que descobrimos que precisamos adaptar nossos grandes planos.

Também é um pequeno mundo que acaba quando o relógio do avô quebra engolindo um tempo que não volta mais, quando vendemos nossos brinquedos de infância para um colecionador para pagar a conta do colégio do filho ou quando olhamos para aquele grande amor que agora lê jornal no sofá da sala e já não o reconhecemos. Ou quando é o outro que já não nos reconhece e duvidamos da nossa capacidade de continuar acordando e dormindo sem nos enxergarmos refletidos no olhar daquele que partiu para refletir outras faces. Ou quando descobrimos que o pai da infância não é nem um herói, nem um tirano, mas um homem – ou a mãe é menos sagrada do que nos fizeram acreditar, mas uma mulher cheia de contradições como todas as outras. E ainda não sabemos que estas são boas notícias. É um pequeno mundo que acaba quando ouvimos que a empresa já não precisa de nossos serviços porque há alguém com mais MBAs, mais idiomas, mais juventude e que custa mais barato que nós. É ainda um pequeno mundo que acaba a cada morte de quem amamos, nos deixando às tontas por aí, sem saber como se faz para transformar falta em ausência.

A cada um desses pequenos apocalipses temos a chance de recomeçar. Partidos, aos pedaços, às vezes colados como um Frankenstein de filme B. Enquanto o meteoro não chega há sempre um possível que podemos inventar. Se os anúncios de fim do mundo servem para alguma coisa, além de fazer piadas e encher os bolsos de alguns espertos, é para nos lembrar de que o mundo acaba mesmo. Não em apoteose coletiva, com dia e hora determinados, mas na tragédia individual, sem alarde e sem aviso prévio, que desde sempre está marcada na vida de cada um de nós.

Meus votos de Natal e Ano-Novo pós-apocalipse são: não adiem os começos, porque o fim já está dado.

(Publicado na Revista Época em 24/12/2012)

A educação tem sotaque

Ao completar 10 anos, a Olimpíada de Língua Portuguesa mostra que a escola exerce seu papel quando acolhe a diversidade – não só de experiências, mas também da linguagem na qual a vida se expressa

“Ê, Ê, Ê… Morena/ Ô, Ô, Ô… Machada/ Ê, Ê, Ê… Graúno/ Ô, Ô, Ô… Pelada.
O vaqueiro solta a voz/ No oco do mundo,/ Com seu aboio triste,/ Em poucos segundos,/ Encanta gente e gado./ Eita aboio profundo!”

O trecho acima é palavra escrita de um menino chamado Henrique Douglas de Oliveira, de 12 anos. Filho de vaqueiro, ele transcendeu – virou a vida do pai em poesia. Ao fazê-lo, tornou-se um dos 20 vencedores da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro.

Eu só tinha passado pela terra do Henrique, José da Penha, no Rio Grande do Norte, quando acompanhei Gretchen, a rainha do rebolado, em sua peregrinação por circos mambembes do interior nordestino, para fazer um documentário. Gretchen aparece numa cena do filme, falando com a dona do circo, pelo telefone, com o Brasil diante dela feito mapa, óculos se fazendo de equilibrista no nariz: “Zé de José?”. Era José da Penha, menos de 6 mil habitantes, aonde Gretchen vai atrás do povo, ela que vai a Brasis aonde bem poucos vão. Mas, quando estive lá, eu não sabia que José da Penha era também uma terra rica de Henriques. Por não saber, eu era mais pobre e também não sabia disso.

Foi o que eu descobri, quando, semanas atrás, aterrissaram dois calhamaços lá em casa, contendo 152 textos, divididos em quatro categorias: poesia, crônica, memória literária e artigos de opinião. Eram os finalistas da Olimpíada de Língua Portuguesa. Em 2012, esse programa de educação envolveu cerca de 100 mil professores e cerca de 3 milhões de alunos, de 40 mil escolas, em mais de 5 mil municípios brasileiros. Eu tinha aceitado o convite para participar como jurada da comissão julgadora nacional, mas não tinha avaliado bem a trabalheira em curto espaço de tempo. Pensei: “Ai!”. Mas doeu só até começar a ler.

Percebi duas coisas: 1) que falta faz esse Brasil com sotaque não só no falar, mas também na escrita; 2) que falta faz esse contar que não está nos jornais para nos contar de nós. Só então alcancei o privilégio de receber notícias dos tantos Brasis dos quais poucas notícias nos chegam, em várias línguas portuguesas – e não numa só. Os melhores textos eram justamente aqueles como o do Henrique, que não tentaram encaixotar a vida na linguagem dominante (mais ou menos essa que eu uso aqui, disseminada pelo Brasil especialmente pelos telejornais). Os melhores textos eram aqueles que carregaram para a escrita a variação linguística do seu Brasil, com palavras e ritmos nascidos de uma experiência diversa de ser brasileiro.

A Olimpíada de Língua Portuguesa, para quem não conhece, é um concurso de textos entre escolas públicas de todo o país. Mas é muito mais do que isso, porque a ideia é iniciar uma transformação, pela palavra escrita, tanto no modo de ver o mundo, como a si mesmo – um modo de ver por escrito que ultrapasse os limites da escola e contamine a família e a comunidade, transformando-as também. Porque uma palavra só é com relação a um outro – e uma escola só é com relação à sua comunidade. Fora disso ela implode, perde a si mesma, arrastando família, comunidade, professores e alunos nessa perdição, que é o que temos testemunhado nas últimas décadas no país.

Fazendo uma ponte com outros saberes e olhares do Brasil, a Olimpíada retoma a ideia do que um guarani-caiová (“Kaiowá” com “k” e “w” quando eles mesmos escrevem) chamaria de “palavra que age”, como já contei em outra coluna, ou até “palavra-alma”, aquela que circula pelo corpo. E como essa palavra age. Dentro e fora. Os estudantes descobrem que a palavra escrita, quando é escrita não apenas para cumprir tarefa ou para agradar ao professor, não como algo chato ou esvaziado de sentido, mas sim para expressar a experiência, registrar a memória e transcender a vida, mobiliza forças. Ao mobilizar forças, coisas acontecem.

Algumas delas bastante reveladoras, como conta Sônia Madi, coordenadora da Olimpíada. Numa cidade do Mato Grosso, no curso do programa, professora e alunos montaram na escola um painel sobre as graves questões ambientais. Foi destruído. Em outra cidade, uma aluna discutiu em seu texto de opinião a legitimidade ou não da candidatura a prefeito de um homem que havia cometido um assassinato, mas ainda não tinha sido julgado. Ela e a mãe sofreram ameaças. A ponto de a mãe pedir para a filha desistir de continuar na Olimpíada. A garota permaneceu.

Nestes casos, a escola documentou aquilo que acontecia na vida, mas nem sempre era registrado pela imprensa – e provocou reações de quem, escorado no poder, não estava acostumado a ser questionado. Provocou também conhecimento, debate e ação na comunidade. Como a professora Elisângela de Araújo e um grupo de alunos de Cruzeiro do Sul, no Acre. No curso das atividades propostas pela Olimpíada, eles criaram um folheto para os moradores com o objetivo de barrar o que poderia ser chamado de morceguicídio. Como os morcegos eram populosos na região e não são animais simpáticos aos olhos humanos, apesar da recente febre vampirística, eram vítimas de chacinas cotidianas. Ao compartilhar conhecimento com a comunidade, mostrando que os morcegos tinham uma função importante no meio ambiente, inclusive como agente de reflorestamento, esse grupo de professora e alunos cumpriu o papel da escola – fez uma intervenção.

É como palavra que age que os trabalhos são propostos à rede pública do país. Coordenada pelo Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária), com financiamento da Fundação Itaú Social e, desde 2008, também do Ministério da Educação, a Olimpíada completou uma década. Na primeira edição, em 2002, o estudante Ronilson da Silva Procópio desfilou em carro de bombeiro pelas ruas de Benjamin Constant, no Amazonas, por tê-la vencido. Os criadores do programa tiveram certeza de que o projeto tinha dado certo: já não era apenas jogador de futebol que desfilava em carro aberto pelas ruas do Brasil.

Cada edição da Olimpíada dura dois anos – nos pares é realizado o concurso de textos, nos ímpares a formação de professores. Todas as secretarias municipais de educação são convidadas a participar e, as que aderirem, elegem uma pessoa que vai coordenar a campanha no município – integrando tanto escolas municipais quanto estaduais, superando já de início a costumeira e boba rivalidade entre as duas redes. As escolas/professores que aderirem recebem um manual com oficinas de escrita, sempre com a ideia de ampliação de repertório e da construção de uma experiência que vá muito além do concurso e da escola. O tema é o mesmo para os quatro gêneros: “o lugar onde vivo”.

Os alunos que trabalham com poesia, da quinta e sexta séries do ensino fundamental, são estimulados a conhecer os poetas da sua comunidade. Em memória literária, no sétimo e oitavo ano, buscam a história das pessoas mais velhas, rompendo a barreira das gerações e valorizando o conhecimento do outro. Em crônica, gênero do nono ano do ensino fundamental ou do 1o do ensino médio, o desafio é encontrar as marcas da cidade, as frestas nas quais a vida se reedita no cotidiano. Como faz uma das estudantes, ao descobrir que, na sua cidade, onde não tem nenhuma rua plana, os verbos mais conjugados são “descer” e “subir”. Nos textos de opinião, escritos pelos alunos da 2a e 3a séries do ensino médio, devem abordar os vários lados de uma questão que mobiliza – ou deveria mobilizar – a comunidade. E, a partir daí, posicionar-se.

Cada escola elege seus melhores textos, nos diferentes gêneros, e disputa a etapa municipal. E assim por diante, até chegar a nacional. Os selecionados de cada estado participam das oficinas regionais, para as quais viajam com seus professores, o que já é um prêmio. Quem participou da oficina de crônica, entre outras atividades, ganhou uma câmera e entrevistou um fotógrafo sobre a apreensão do momento; quem trabalhou com memória literária ouviu do maestro João Carlos Martins: “No momento em que você usa a memória para aprimorar aquelas qualidades que você recebeu, você realmente está construindo o seu futuro”.

É neste momento que surgem depoimentos como o do menino que explica seu processo criativo: “A pessoa escreve na ponta do lápis, a pessoa vai escrevendo de letra em letra, de pouquinho em pouquinho, e quando vê já tem uma estrofe. Eu gosto de trabalhar com rima porque a rima é divertido, a rima dá um diferente sentido na estrofe”. Ou a menina indígena que conta: “Lá na reserva, o povo diz que é indígena. Mas aqui na cidade não fala que é, por medo de ser… como é que se diz? Rejeitado. Eu falo, pra quem quiser ouvir”.

Ao ler os textos, descobrimos Brasis que a maioria de nós desconhece. Roberta Oliveira Morim, aluna da professora Rosangela Aparecida Morim, da Escola Estadual Anita Ramos, nos conta que, em Douradoquara, no estado de Minas Gerais, “não tem shopping, não tem churrascaria, não tem pizzaria, não tem funerária, não tem feira, não tem zoológico, não tem Pronto-Socorro, não tem espaço cultural, não tem parque, não tem quase nada”. É importante observar com que inteligência ela faz a sua crítica. E com que inteligência ela reconhece uma riqueza que só há lá, na sua aldeia: “Mas aqui tem uma coisa que cidade nenhuma tem. Sabe o que tem aqui? O jumento do tio Joãozinho”. Ficamos sabendo então que, em Douradoquara, a população não acorda nem com despertador, nem com apito de fábrica, nem com galo: acorda com jumento. Quem anuncia o dia por lá, pontualmente, às 6h da manhã, é o zurro do Paioso, um “jumento pega” de pelos acinzentados e metro e trinta de altura.

“Relógio Jumento” foi uma das cinco vencedoras nacionais, na categoria crônica. Desde que li, não tem dia que eu acorde em São Paulo – neste último domingo acordei com o foguetório dos corintianos às 5h30 da manhã – sem que eu lembre do Paioso. Que, graças à Roberta, agora também faz parte do Brasil que me habita.

Em memória literária, um dos cinco textos vencedores foi o extraordinário “O tempo, o chiado e as flechas”. Escrito por Jhonatan Oliveira Kempim, de 13 anos, e orientado pelo professor Alan Francisco Gonçalves de Souza, da Escola Municipal Teobaldo Ferreira, de Espigão d’Oeste, em Rondônia, ele documenta um conflito real, mas o transcende pela literatura. Assumindo a primeira pessoa da narradora, ele conta o encontro entre indígenas e posseiros na derrubada da floresta amazônica nos anos 70. Mas o faz usando o chiado da panela de pressão como metáfora da invasão de um mundo pelo outro.

Ao escutar o chiado da panela, um barulho que não pertencia ao seu universo, um pequeno indígena apavorado disparou uma flecha que alcançou a garganta do filho daquele que derrubava a mata e com ela o território do outro, acreditando nas promessas de progresso do Brasil Grande da ditadura militar. Duas crianças inocentes numa guerra que não lhes pertencia.

Ao transformar memória em palavra, aquela que narra se descobre em terra arrasada, cercada por grades e muros eletrificados. Identificada não mais com o “progresso” que foi buscar, mas com as últimas árvores sobreviventes e com rios que têm sede. Descobre que ela também resta em um mundo no qual até o chiado da panela se calou, porque tanto o indígena quanto o invasor foram sequestrados de si.

Nesta edição de 2012, há muitas pistas para reflexão. Trago algumas delas para cá. No quesito “as notícias que o Brasil nos dá”, destaco que boa parte dos textos de opinião escritos pelos estudantes revela a preocupação das pequenas e médias cidades com o impacto, no meio ambiente e na vida das pessoas, das grandes obras de infraestrutura promovidas pelo Estado e também pela intervenção de grandes empresas em áreas como a mineração. Me chamou a atenção o fato de que essa preocupação não alcança expressão correspondente na imprensa que tem como missão documentar a história cotidiana do país, na qual me incluo.

Um outro ponto importante é perceber a procedência dos trabalhos vencedores na etapa nacional. Entre os 20 vencedores, nas quatro categorias, quatro são de Minas Gerais, três do Paraná, dois do Rio Grande do Norte e dois do Ceará. E cada um dos seguintes estados tiveram um vencedor: Acre, Amapá, Rondônia, Pará, Paraíba, Pernambuco, Sergipe, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Nesta relação chama a atenção pelo menos duas ausências: São Paulo e Rio de Janeiro, sendo que São Paulo participou com o maior número de textos na etapa inicial.

Outro dado revelador é que, entre os 20 vencedores, apenas quatro são estudantes de escolas nas capitais: Natal, Recife, Macapá e Rio Branco. Entre os 152 finalistas, a proporção é semelhante: apenas 24 estudam em capitais – o equivalente a 16%. Olhando apenas para finalistas fora das capitais, 64% vivem em cidades com até 50 mil habitantes.

Vale a pena pensar no que isso significa. E várias hipóteses podem ser levantadas. Sônia Madi, a coordenadora da Olimpíada, acredita que uma das questões decisivas para o resultado é o envolvimento da comunidade em todo o processo, das oficinas aos textos. “Em cidades pequenas, a comunidade adota a ideia e se envolve com as atividades. A Olimpíada é um acontecimento”, diz. “Já nas maiores, especialmente nas capitais, tudo é mais difícil. Em São Paulo, por exemplo, os professores já vivem a dificuldade de ir de uma escola à outra, de dobrar período, tudo é mais complicado.”

Me arrisco a sugerir uma hipótese, entre as tantas que podem ser examinadas. Quem conhece as periferias do Rio e de São Paulo sabe que tanto as experiências quanto as variações linguísticas pelas quais as experiências são expressadas são riquíssimas. Tão ricas quanto diversas entre si – e diversas das realidades dos muitos interiores do Brasil. Só na periferia de São Paulo, que conheço um pouco, a quantidade de palavras que precisaram ser criadas para dar conta da realidade é enorme. Mas talvez a escola não esteja conseguindo acolher essas variações linguísticas, já que elas não apareceram nos textos – pelo menos naqueles que eu li.

Imagino que seja muito difícil para um estudante se expressar com palavras que não sejam as suas – traduzindo uma experiência de periferia com uma linguagem falada nos Jardins. Uma espécie de “preconceito linguístico” que pode ter sido reproduzido em parte das escolas. Isso acontece quando a escola não consegue construir a ponte com a comunidade na qual está – e na qual se realiza como escola.

É apenas uma das hipóteses a ser investigada e posso estar equivocada. O fato é que a riqueza encontrada em manifestações artísticas como o hip-hop ou em eventos literários como a FLUPP (Festival Literário das UPPs, realizado nas comunidades do Rio neste ano) e a Cooperifa (o maior sarau literário do país, reeditado a cada quarta-feira na periferia da Zona Sul de São Paulo) não apareceram na Olimpíada.

Neste sentido, sempre lembro do poeta Sérgio Vaz, da Cooperifa, numa entrevista que fiz com ele anos atrás. Um intelectual reclamou ao poeta: “Na Cooperifa vocês ensinam a escrever errado! Vão acabar deixando recado na porta da geladeira com ‘nóis vai’”. Sérgio Vaz retrucou, com a verve habitual: “Primeiro, que não tem geladeira pra botar recado. Segundo, que quando nóis vai, nóis vai mesmo”.

O que a Olimpíada nos mostra é que, quando a escola pública cumpre o seu papel, o Brasil dialoga. E dialoga pela diversidade – tanto de experiências quanto de variações da língua portuguesa. Quando a escola pública perdeu qualidade e prestígio, a classe média desertou. Mas o que poucos pais percebem é que uma escola não se define apenas pela competência em transmitir conteúdos programáticos, mas também e principalmente pela capacidade de ser um espaço de convivência dos diferentes.

No momento em que a escola privada vira um gueto de classe, cada vez mais fechada em si mesma, ela perde uma das principais razões de ser de uma escola, na medida em que só é possível o convívio entre iguais. É por isso que, na minha opinião muito pessoal, mesmo aquelas que são consideradas as escolas privadas de excelência do país, com aprovações massivas nos vestibulares das melhores universidades, são escolas que falham tremendamente na sua missão de educar.

As consequências dessa deformação naquilo que é a essência da educação a gente percebe nas ruas. Assim, me parece, as lições da Olimpíada de Língua Portuguesa, que bota a dialogar a filha de um plantador de fumo da região sul com o filho de um vaqueiro do Nordeste, dizem algo crucial não só para a escola pública, mas também para a privada. Se quisermos ter educação de qualidade neste país, é preciso derrubar os muros – tanto os reais quanto os simbólicos – e dialogar.

Dialogar a partir da experiência de cada um, com a experiência de todos os outros. Quando a educação se precariza, não é apenas de falta de mão de obra qualificada que o Brasil padece – mas de brasileiros capazes de reconhecer a experiência do diferente e dialogar com ela, em todos os espaços da vida. Porque é neste diálogo que um país cresce – ou se torna.

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P.S. – Recomendo – com muita veemência – que, sobre a língua portuguesa, assistam à conferência do linguista Carlos Alberto Faraco sobre a “senhora dona norma culta” e o “pretoguês” (clique aqui).

(Publicado na Revista Época em 17/12/2012)

Máscara sem rosto

O filme estranho e a mulher que xingava. O que desejamos quando nos sentamos na poltrona do cinema?

– O que faz você continuar?
– A beleza do gesto.

Poderia ser “o que faz você continuar a viver?”. E “a beleza do gesto” é uma bela resposta. Mas o diálogo se passa entre criaturas bizarras, em uma situação bizarra. Dentro de uma limusine branca que percorre as ruas de Paris, um homem tem como trabalho encarnar vários personagens – não num palco, mas na vida real. Logo que entra no carro, ele recebe o script de sua próxima performance. Assim que esta termina, enquanto tira a maquiagem, a peruca, falsas cicatrizes e deformações, ele lê a descrição da próxima cena na qual será protagonista. E assim acontece por nove vezes em apenas um dia, no qual ele se torna, por exemplo, uma velha mendiga, um “monstro” dos esgotos, um assassino, um velho que se despede da sobrinha antes de morrer, um pai que busca a filha adolescente numa festa. Situações totalmente factíveis, às vezes, em outras improváveis (mas não impossíveis).

É este o enredo de um filme estranho – Holy Motors, do francês Leos Carax, que acaba de estrear nos cinemas brasileiros. Tão estranho que até Paris, a cidade mais fotogênica do mundo, a mais palatável, charmant, cheia de joie de vivre, é agora também uma estranha. No Festival de Cannes, quando foi exibido, dizem que o filme chegou a ser aplaudido por 10 minutos. Na sessão em que eu o assisti com amigos, foi linchado.

Uma mulher praticamente gritava, amaldiçoando os jornalistas que, com críticas elogiosas, a teriam induzido a entrar na sala de cinema com parte da família e alguns sacos de pipoca. Ela poderia ter comentado o seu desgosto apenas com os seus, num tom de voz mediano, mas ela tinha desgostado tanto que precisava compartilhar – ela queria apoio, adesão à sua revolta. Então xingou alto. Uma das pessoas que tinha ido ao cinema comigo – e achou o filme pretensioso ao extremo –, me disse: “Você não vai escrever sobre este filme, né?”. Eu perguntei: “Por que não?”. E meu amigo respondeu: “Porque alguém pode assistir por causa da tua coluna e depois vai te odiar”.

A questão, com esse filme, ou pelo menos uma delas, é que não sabemos onde colocá-lo. O que ele está tentando fazer? O que ele quer nos dizer? Como classificá-lo? E quando pensamos que conseguimos entender/definir/ encaixotar, ele desconstrói nossas certezas na cena seguinte. Derruba tudo. E de novo estamos perdidos. E, alguns de nós, bastante incomodados com isso.

Poderia ser uma metáfora sobre a existência de cada um, na medida em que a vida é isso, uma invenção de sentido que perdemos logo adiante – e de novo temos de criar sentido, só para perdê-lo na próxima virada de esquina. E de novo e de novo até sermos o velho que se despede da sobrinha para em seguida morrer.

E ainda assim viver vale a pena, mesmo que marcados por cada máscara colada e depois arrancada de um rosto que nem sabemos se é o nosso. Como não sabemos qual é exatamente a face do homem na parte traseira da limusine, o homem exausto que se transforma tão rapidamente em outros, mas deixando para trás um resto do personagem anterior assinalado no corpo, ainda que seja como uma sobra de maquiagem. Este homem que é, afinal, um ator dentro e fora da tela. E, como ele, também nós podemos dizer que vale a pena continuar a viver por causa da “beleza do gesto”.

Quem é este homem que vive em outros?, nos perguntamos. Qual é a vida “real” deste homem que encena a vida real? A sua vida, não a de suas máscaras? Talvez não haja um rosto, só mais uma máscara. E logo outra mais atrás, mais funda, até o infinito. Talvez o sentido de sua vida seja emprestar sentido às existências que encena. Encena ou vive? Existe alguma diferença, afinal?

Quem somos nós que vivemos como outros?, poderíamos facilmente trocar de sujeito. Qual é a nossa vida “real”? A nossa, não a de nossas máscaras? Será que existe em nós um rosto que não seja uma máscara? Encenamos ou vivemos? Há diferença, afinal?

Somos como a filha que mente? “Você mentiria de novo se soubesse que eu não descobriria?”, pergunta o pai, em um dos poucos diálogos do filme. “Sim”, a menina responde. “Por quê?”, insiste o pai. “Porque agora nós estaríamos mais felizes”. Não é assim tantas vezes, com nossas tantas mentiras, menos para os outros, mais para nós mesmos? E qual é o nosso castigo? À filha, o pai diz: “Seu castigo é que você continuará sendo você”.

Talvez sejamos também como a velha mendiga que diz: “Ninguém gosta de mim. Mesmo assim eu sigo existindo”. Nós também seguimos existindo, mesmo que quase ninguém veja a beleza do nosso gesto.

Talvez este seja um filme sobre a poesia de T.S. Eliot, uma poesia que fala de nós: “Preparar um rosto para encontrar os rostos que encontramos”.

Quando penso/sinto o que acabei de descrever, me emociono na poltrona do cinema. O encenador de vidas tinha acabado de chegar em mais uma casa que não era a dele, onde o esperava uma família que não era a dele. Mas a casa era dele exatamente porque jamais poderia ser, porque não haveria onde se sentir em casa, não haveria um lugar para habitar que lhe pertencesse. Porque sua condição, como também a nossa, era a de estranho, que estranhava e era estranhado. E ali, naquele momento, nós o estranhávamos e nos estranhávamos, ao mesmo tempo.

E agora tudo se inverte: “Quem seríamos se tivéssemos sido outros? Não há mais tempo para recomeçar”.

Eu me emociono, porque tanto a pergunta quanto a resposta me perseguem há bastante tempo. E então a cena seguinte é tão nonsense que desmancha os sentidos que eu havia construído até ali e, de novo, já não posso ter o conforto de um desamparo que mais ou menos conheço e com o qual me identifico. Sim, porque também o desamparo, quando é íntimo, nos conforta. E mais uma vez estou deslocada – estou perdida.

“Em que espelho eu perdi a minha face?”, me indaga de dentro a poesia de Cecília Meireles.

Alguns minutos depois o filme acaba – com talvez um dos piores finais de todos os tempos – e a mulher começa a gritar. Fora da tela, o que ela diz? Ela responsabiliza os críticos, que, na sua opinião, fizeram propaganda enganosa. Se tivesse um posto do Procon na saída, ela faria uma queixa. Tinham prometido a ela uma mercadoria, uma sensação, duas horas de fruição diante da tela – e tudo o que ela teve foi incômodo. E o pior, um incômodo que ela não conseguia definir, nem nomear.

O diretor não havia entregado. Mas será que ele tinha prometido? Esta pergunta ela jamais faria.

Estamos todos – e não só a consumidora do cinema, que acredita ter sido violada em seus direitos – acostumados a nos relacionarmos com tudo ou quase tudo pela lógica do consumo. A mulher apenas explicita isso ao não suportar o incômodo de ter recebido o que acredita ser mercadoria estragada. Se alguém vai ver um filme como os da saga “Crepúsculo”, sabe que terá o que foi buscar – entretenimento, para as adolescentes também enlevo, sonhos e suspiros, o que pode ser bem importante. Mas se vamos ver um filme de David Cronenberg, por exemplo, não é tão diferente . A relação, não a obra.

Também esperamos que Cronenberg nos entregue algo que fomos buscar, mesmo que não seja, obviamente, entretenimento – mesmo que seja desconforto, estranheza, mal estar. Assim como sabemos o que esperar de um filme de Andrei Tarkovsky ou de Lars Von Trier. Mesmo que vamos assistir a um filme destes criadores para sermos desmontados, porque queremos e precisamos ser desmontados, esperamos receber o que fomos buscar. E, quando não nos entregam aquilo que esperamos, nos sentimos traídos. Apenas que alguns de nós demonstram a decepção de forma mais sofisticada que a mulher do cinema.

Mas um filme não é um sapato nem uma TV de tela plana ou uma geladeira daquelas em que o gelo sai na porta. Quando nos sentamos diante da tela do cinema, num ritual que não combina com celulares ligados nem com conversas com a pessoa ao lado, estamos ali para nos entregarmos a uma experiência. É um momento de confiança, no qual nos ofertamos ao desconhecido. Estamos, literal e simbolicamente, no escuro. Durante mais ou menos duas horas algo vai acontecer, em grande medida inesperado. E então seremos novamente devolvidos à sala escura, mas agora transformados por aquilo que experimentamos. Não como a experiência de um sabor novo de sorvete, mas semelhante à experiência de mergulhar em um lago cuja profundidade desconhecemos.

Talvez Holy Motors seja mesmo, como acredita meu amigo, que entende muito mais de cinema do que eu, um dos 10 filmes mais pretensiosos da história. E apenas isso. Mas muito tempo se passou desde a última vez em que me encontrei diante de um filme que me negou qualquer possibilidade de classificá-lo. E demoliu, uma a uma, todas as minhas conclusões. Ao final, eu fui deixada no escuro, grata por me sentir tão perdida.

Não havia um certo ou errado entre a mulher que buscava meu apoio, gritando no corredor – e eu que não podia nem queria dá-lo, ainda sentada na poltrona. A diferença entre mim e a mulher que xingava os críticos e o diretor era a lógica que mediava o gesto de ir ao cinema. Para ela, haviam prometido e não entregaram. Para mim, não havia nada a entregar porque também não havia nenhuma promessa.

Eu queria dizer a ela: “Arte é aquilo que nos trai”. Em vez disso, continuei sentada com a minha máscara comportada.

(Publicado na Revista Época em 03/12/2012)

Sobrenome: “Guarani Kaiowa”

O que move um brasileiro urbano, não índio, a agregar “guarani kaiowa” ao seu nome no Twitter e no Facebook?

No início de outubro, a carta de um grupo de guaranis caiovás de Mato Grosso do Sul provocou uma mobilização, em vários aspectos inédita, na sociedade brasileira. No texto (escrevi sobre isso aqui), os índios, ameaçados de despejo por ordem judicial, declaravam: “Pedimos ao Governo e à Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas decretar nossa morte coletiva e enterrar nós todos aqui”. A carta foi divulgada pelo Twitter e pelo Facebook, gerando uma rede de solidariedade e de denúncia das violências enfrentadas por essa etnia indígena. Desta rede, participaram – e participam – milhares de brasileiros urbanos. Para muitos deles, este foi o primeiro contato com o genocídio guarani caiová, apesar de o processo de extermínio da etnia ter se iniciado muito tempo antes. De repente, pessoas de diferentes idades, profissões e regiões geográficas passaram a falar diretamente com as lideranças indígenas, no espaço das redes sociais, sem precisar de nenhum tipo de mediação. E de imediato passaram a ampliar suas vozes. A partir dessa rede de pressão, as instituições – governo federal, congresso, judiciário etc – foram obrigadas a colocar a questão na pauta. Depois de dias, em alguns casos semanas, a imprensa repercutiu o que ecoava nas redes. Alguns dos grandes jornais enviaram repórteres para a região, colunistas escreveram artigos com diferentes pontos de vista. O movimento de adesão à causa guarani caiová nas redes sociais – sua articulação, significados e consequências – é um fenômeno fascinante. E, por sua força e novidade, traz com ele uma série de questões que possivelmente precisem de muito tempo para serem respondidas – e que não têm uma resposta só.

Esta coluna se propõe a pensar a principal marca desse movimento: a adesão pelas hashtags “#SouGuaraniKaiowa”/“#SomosTodosGuaraniKaiowa” e pelo acréscimo de “Guarani Kaiowa” ao primeiro nome das pessoas no Twitter e no Facebook. Exemplo: “Luísa Molina Guarani Kaiowa”.Hashtag é, na prática, uma espécie de slogan usado para marcar uma posição compartilhada e replicada, indexada pelos mecanismos de busca e medida nos “trending topics” (frases mais publicadas) do Twitter. Sempre começa por “#” e não admite separação das palavras. Nas redes sociais, a grafia de guarani caiová obedece à forma como os indígenas escrevem a sua língua no cone sul – com “k” e “w”, em vez de “c” e “v”.

A frase-conceito “Sou Guarani Kaiowa” se disseminou nas redes sociais e multiplicou-se em vídeos no YouTube. Até mesmo Mia Couto, grande escritor moçambicano, declarou em vídeo, ao passar pelo Brasil semanas atrás: “Venho de muito longe, mas não há longe em uma situação em que um povo está sujeito ao genocídio. Portanto, neste aspecto, eu também sou guarani caiová, sou brasileiro e estou sendo vítima do mesmo genocídio. Não posso ficar calado”.

Algumas pesssoas – tanto públicas quanto anônimas – desqualificaram essa marca como modismo. Consideraram ridículo o fato de brasileiros urbanos e não índios se apresentarem como guaranis caiovás nas redes sociais. Outras querem entender o que isso significa, o porquê de alguém, afinal, passar a dizer que também é índio e colocar o nome da etnia como sobrenome nas redes. Vários leitores têm me indagado neste sentido, com o propósito tanto sincero quanto legítimo de compreender um fenômeno recente do país em que vivem.

A questão é mais complexa do que pode parecer a princípio: afinal, o que é ser ou o que torna alguém um alguém? O que seria, por exemplo, ser brasileiro e o que torna alguém brasileiro? No caso das redes sociais, o que significaria este “Sou Guarani Kaiowa”? Penso que, diante do novo – ou mesmo do velho –, o primeiro movimento para começar a compreender algo é escutar, com muita atenção. Neste caso, o que dizem aqueles que anunciam, de diferentes lugares geográficos e simbólicos: “Sou Guarani Kaiowa”.

Para as primeiras pistas sobre essa questão, convidei pessoas que participaram dessa mobilização nas redes sociais a darem seus depoimentos aqui: Luísa Molina, Eduardo Viveiros de Castro, Marcia Tiburi, Idelber Avelar, Pádua Fernandes, Rita Almeida e Marina Silva. Ou, conforme seus nomes no Twitter: @lupontesmolina, @nemoid321, @marciatiburi, @iavelar, @paduafernandes, @ritacaalmeida e @silva_marina. Eles são alguns entre os milhares que ajudaram a construir os sentidos dessa marca. Sentidos que, claro, seguem em construção.

A seguir, eles respondem a duas perguntas: 1) O que significa dizer nas redes sociais “Sou Guarani Kaiowa”, assim como acrescentar “Guarani Kaiowa” ao próprio nome?; 2) Por que há um movimento tão forte e abrangente nas redes sociais neste momento, quando o processo de genocídio dessa etnia indígena vem ocorrendo há décadas?

Luísa Molina, @lupontesmolina, antropóloga, 24 anos, Brasília:

1) “Tenho 1.352 amigos no Facebook. Quase uma multidão virtual. Se hipoteticamente eu os reunisse na Praça dos Três Poderes, em Brasília, e vestisse uma camisa, carregasse uma bandeira ou mesmo escrevesse no meu rosto ‘Guarani Kaiowa’, haveria tanto estranhamento, tanta reação adversa e alheia ao propósito do meu ato, como há quando mudo o meu nome para ‘Luísa Molina Guarani Kaiowa’ naquela rede social?

Não. E a resposta para isso é muito simples: todos estão acostumados com multidões na Praça dos Três Poderes, camisetas, bandeiras e rostos pintados. Há quantas décadas se vê nas ruas, nas notícias e até nos livros de história manifestações dessa forma? Está nesse caráter ‘costumeiro’, que para mim virou um vício da forma, um dos elementos principais para o estranhamento e as críticas sobre o novo ativismo que têm emergido nos últimos anos, e o lugar das redes no envolvimento de pessoas com ‘causas’ diversas. Mas não se deve concluir daí que uma forma deva ou vá substituir a outra; notemos apenas que algo novo está surgindo – é inegável.

E, felizmente, não é apenas na forma ou nos espaços (praça pública ou rede social) de agir que essa renovação está se dando. Firmar junto ao meu nome e afirmar em meio à multidão virtual ‘Eu sou Guarani Kaiowa’ ou ‘Somos todos Guarani Kaiowa’ é, para mim, a manifestação de uma nova ideia, ainda embrionária, por trás do envolvimento com o que se chama de ‘questões sociais’. Não é uma identidade (eu, branca, agora ‘índia de butique’). É justamente a dissolução de uma barreira velha, produto de outro vício muito arraigado: a redução da reflexão sobre diversidade ao problema da identidade. Este é um ponto crucial para que se entenda o propósito por trás dessas fortes sentenças ‘eu sou’, ‘somos todos’. É com essa força que, com responsabilidade, ‘brincamos’ – para que aqueles que só veem cara, vejam milhares de caras então, como os tantos Guy Fawkes que apareceram em V de Vingança e se proliferaram em grandes manifestações mundo afora. É preciso entender que, neste momento, não é a identidade que importa: os caiovás continuam se entendendo e querendo ser caiovás, e eu continuo sendo branca, sem pretensões de ‘virar índia’, e continuo não tendo pistoleiros à minha porta.

E não preciso ter pistoleiros no quintal para sentir o impacto de saber o que os guaranis caiovás vivem há tanto tempo. Como não preciso ser negra para defender cotas raciais. Equacionar ‘ser’ para ‘poder’, desta forma, além de empobrecer nosso pensamento, nos separa, coloca ‘cada um no quadrado’ de sua identidade e, assim, nos enfraquece. A meu ver, ao afirmar ‘eu sou’, ‘somos todos’, nós conseguimos, em grande medida, inverter essa lógica. E, para mim, usá-la no Facebook é como abordar a política como algo que se faz no cotidiano: pois firmando e afirmando ‘sou Guarani Kaiowa’ eu me posiciono e posso, a partir daí, dialogar com outros. Minha esperança é de que essa nova ideia de ‘somos todos’ derrube de vez o apego aos ícones e às bandeiras – frutos do velho problema da identidade e da separação das causas.”

2) A resposta pode partir do próprio histórico do genocídio: a ação violenta dos brancos do Mato Grosso do Sul, do governo federal (pelo SPI – Serviço de Proteção aos Índios – e mais tarde pela Funai) e do governo local fortaleceram uma postura e um imaginário anti-indígena que vigora até hoje, em maior ou menor grau, a depender da região. E também não é de hoje que o desenvolvimentismo do Brasil atropela o modo de vida de minorias. Além de, na prática, minar e eliminar os indígenas por não vê-los como sujeitos de direitos, e sim como obstáculos para o projeto de nação, o discurso oficial e os seus veículos midiáticos sempre blindaram a possibilidade de se expor de modo democrático e responsável a realidade e o ponto de vista das minorias.

Acredito que essa barreira está sendo furada pelas redes sociais. As múltiplas possibilidades de compartilhar informação permitem, agora, que vozes antes restritas a pequenos grupos circulem amplamente e transponham, inclusive, as fronteiras do país, alcançando outros sujeitos com os quais os indígenas podem dialogar e agir junto. E assim foram realizados dezenas de atos de apoio aos guaranis caiovás, no Brasil e no exterior. Isso não quer dizer, necessariamente, que haja mais consciência hoje sobre a situação dos povos indígenas no Brasil, ou que a população, em geral, esteja mais sensível aos direitos desses sujeitos. Mas acredito que avançamos em termos de possibilidade de informação, apreensão e ação com a participação cada vez mais ampla das pessoas nas redes sociais e das redes sociais na política do dia a dia.”

Marcia Tiburi, @marciatiburi, 42 anos, filósofa e escritora:

1) “Significa, a meu ver, o ato de solidarizar-se com aqueles que são socialmente injustiçados. Os conservadores tratarão isso como ‘modinha’, pois sabem que a solidariedade é perigosa para um sistema baseado na competitividade. A solidariedade não é uma aliança com o simplesmente igual, mas o desejo da diferença, em nome da diferença. Atitudes como essa manifestam um outro desejo, o de fazer comunidade com o diferente. Não com o igual. Em outras palavras, não se trata de defender o próprio direito apenas, mas o direito dos outros com os quais as pessoas se relacionam por ‘não identidade’, mas, ao mesmo tempo, identificando-se com a causa. A meu ver isso é um avanço em nossa sociedade. Assim, as pessoas assumem o nome como quem usa uma tarja, um panfleto de admiração, respeito e de horror à injustiça.”

2) “Somente agora, depois de 30 anos da Abertura política, os brasileiros começam a sentir que podem pensar diferente. Que é possível também dizer o que se pensa quando se faz crítica social. Antes, as condições para a exposição da própria opinião eram ainda mais apavorantes do que hoje. Se hoje há uma ditadura capitalista que se apresenta toda escamoteada, antes havia uma ditadura militar, o que tornava tudo pior. Creio que estejamos entendendo que a liberdade de expressão é para todos. E que, numa democracia, as pessoas podem ficar do lado de quem quiserem.”

Eduardo Viveiros de Castro, @nemoid321, 61 anos, antropólogo, professor do Museu Nacional (UFRJ):

1) “A significação desse gesto é manifestar solidariedade com alguém, pessoa ou comunidade que precisa de apoio e não está tendo seu nome, sua causa ou sua dor devidamente divulgados por quem deveria fazê-lo. É uma forma de protesto, de identificação pública com quem não está sendo ‘publicado’. Um modo de chamar a atenção para uma pessoa, um povo ou uma causa que está sendo deliberadamente calado pela mídia, ou está sendo alvo de uma campanha de difamação. Alguém cujo direito a ser ouvido não está sendo respeitado pelos poderes constituídos.

Pôr o nome dos guaranis caiovás como parte do seu próprio identificador nas redes é como carregar uma faixa. Ou como fazer uma tatuagem. Chamo a atenção para o fato de que a troca de nome entre indivíduos, como modo de instituir uma relação social entre não parentes, marcar a criação de um laço de aliança e amizade, era uma prática comum entre os ancestrais dos caiovás, os povos Tupi-Guarani do século XVI, aqueles que receberam (tão bem, para sua desgraça) os invasores europeus nas praias do Brasil. Uma das etimologias mais prováveis da palavra ‘xará’ é o tupi ichê rera, ‘meu nome’, isto é, diz-se de alguém que tem o mesmo nome que eu, porque eu lhe ‘dei’ meu nome e ele me ‘deu’ o seu.

Compartilhamos nomes porque somos um só, somos a mesma pessoa. O gesto de pôr ‘Guarani Kaiowá’ como parte do próprio nome parece-me assim especialmente significativo, por essa feliz coincidência de que é (ou foi) uma prática especialmente significativa para os próprios índios. Chamar-se ‘Fulano Guarani Kaiowá’ é como pôr os guaranis caiovás como parte da família, ou melhor, ver-se como parte da família dos guaranis caiovás.”

2) “Não é a primeira vez, diga-se, que a causa indígena, a tragédia indígena que é a violação sistemática dos direitos desses povos pelo Estado brasileiro e por seus donos, as elites econômicas e sociais, é encampada pela opinião pública urbana. A criação do Serviço de Proteção aos Índios, em 1910, foi resultado mais ou menos direto da indignação causada por um artigo do diretor do Museu Paulista, Hermann Von Ihering, que pregava a extinção programada dos índios brasileiros. A criação do Parque Indígena do Xingu, em 1961, também teve grande apoio popular. Neste último caso, como aliás no primeiro, o envolvimento positivo da imprensa foi importante.

O caso agora é inverso. O agronegócio, representado no Legislativo pela chamada ‘bancada ruralista’ e nos meios de comunicação por muita gente, é o setor da sociedade brasileira responsável pela campanha negativa contra os indígenas desencadeada nos últimos meses. O que temos hoje, portanto, é o poder das redes sociais: a tomada de novos canais de comunicação, ainda fora do controle imediato do sistema de poder nacional, pelas classes médias urbanas e por frações significativas das classes populares.

Pela primeira vez, esse povo indígena está conseguindo ser visto e ser ouvido diretamente por nós, os distraídos, os transeuntes, os bem-intencionados mas sempre muito ocupados, os cidadãos desse triste Brasil grande e moderno, que ou não sabíamos o que se passava com esses outros brasileiros a quem devemos tanto, ou sabíamos mas fingíamos que não sabíamos, ou sabíamos mas não sabíamos que podíamos fazer alguma coisa a respeito. Agora sabemos.”

Idelber Avelar, @iavelar, 44 anos, professor de literatura na Universidade Tulane, em Nova Orleans, Estados Unidos:

1) “É um gesto bonito, porque pressupõe uma identificação com o outro, uma tentativa, ainda que mínima e simbólica, de colocar-se no lugar do outro. É como se estivessémos dizendo: enquanto estas atrocidades estiverem sendo perpetradas contra os guaranis, todos, inclusive os que lucram com elas, se tornam menos humanos. Lembremos que é um gesto que tem certa tradição na canção brasileira (ver, por exemplo, ‘Tubi Tupy’, de Lenine, ou várias canções de Caetano, entre elas ‘Sou você’, ‘Eu sou neguinha’ e ‘O quereres’). Tem também larga história nos movimentos de solidariedade à Palestina, que foi onde eu o encontrei pela primeira vez. A crítica que normalmente se faz, a de que é uma ‘moda’ que arrasta gente que ‘não sabe nada’ sobre a causa, é tola: o gesto é, também, uma porta de entrada para que muita gente se informe sobre a desesperadora situação no Mato Grosso do Sul.”

2) “É verdade que o genocídio está acontecendo há décadas (há séculos, poderíamos dizer), mas também é verdade que a situação se deteriorou muito nos últimos dois anos, se não no aspecto material – este, para os guaranis, continua tão ruim como antes –, pelo menos nas dimensões política e simbólica. O agronegócio está bem mais ousado em seu ataque aos indígenas. A coalizão que dava sustentação ao lulismo, na qual ainda havia algum espaço para lutar pelos direitos ameríndios, foi substituída por um governo que é claramente hostil aos índios, dado o seu caráter mais tecnocrático e desenvolvimentista. Os casos se acumulam: o ataque da Polícia Federal aos mundurucus; a portaria 303, clara afronta aos povos nativos; a intensificação da obsessão barrageira; a demissão, sem qualquer explicação, do cacique Megaron da Funai; a falta de diálogo com os representantes dos povos indígenas; a completa ausência de consideração pelos seus reclamos no caso da usina de Belo Monte; o visível esforço para se aprovar algo que nem a ditadura conseguiu, mineração em terras indígenas; a troca na direção do Ibama, ocasionada por Belo Monte; entre vários outros exemplos. A solidariedade aos guaranis tem lugar, então, num contexto mais amplo, de recrudescimento da luta.

As redes foram fundamentais neste movimento e têm suprido, já há algum tempo, uma lacuna da imprensa brasileira. Com raríssimas e honrosas exceções, a imprensa tem coberto mal a situação dos guaranis e a realidade dos indígenas brasileiros em geral. As redes possibilitaram, por exemplo, que as próprias lideranças guaranis testemunhassem sobre sua situação e que circulassem notícias, fotos e depoimentos em tempo real, com toda a dramaticidade que isso acrescenta à questão. Como veterano das primeiras gerações de blogueiros, sempre fui entusiasta das possibilidades abertas pela internet, mesmo que o impacto que um dia tiveram os blogues tenha hoje se deslocado para formatos mais instantâneos, como o Twitter e o Facebook. É claro que as redes não substituem a luta presencial, nas ruas, mas não há dúvidas de que oferecem a ela uma ferramenta poderosíssima.”

Pádua Fernandes, @paduafernandes, 41 anos, professor de Direito em São Paulo:

1) “Trata-se de uma atitude de solidariedade e resistência. É certo que a maior parte da população brasileira tem ascendência indígena, como eu mesmo, mas a defesa desta etnia ameaçada não se trata apenas de uma homenagem à nossa formação histórica. Trata-se de uma luta do presente que interessa a todos, pois há um princípio fundamental que está sendo ferido, o da dignidade humana, e há uma enorme riqueza que está sendo destruída em nome do ouro, tantas vezes falso, do agronegócio: a riqueza da diversidade, ambiental e humana. Sem a dignidade e a diversidade, não teremos futuro.
Recentemente, foram veiculados discursos que, contra toda evidência científica, tentam sustentar que os índios não existem mais ou querem deixar a condição indígena, em uma espécie de extermínio simbólico mascarado pela ‘marcha do progresso’, que ocorre paralelamente às mortes no campo. Trata-se de uma propaganda que pressupõe a ideia de que o genocídio dos índios no Brasil já teria se cumprido, numa espécie de gozo perverso pela consumação de um crime contra a humanidade. Afinal, se não houvesse mais índios, já não teria mais sentido a proteção a suas terras dada pela Constituição de 1988, que ficariam livres para a ação de grileiros e empreiteiras. É isso o que se cobiça.

Os ataques às terras indígenas, bem como o alto índice de suicídios nessa população, mostram que continua a ocorrer o crime de genocídio nos termos da Convenção da ONU de 1948 e da lei nº 2889/1956. Lembro aqui que comete esse crime, considerado hediondo pela lei nº 8072/1990, quem, entre outras ações, ‘submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial’. É o que está a ocorrer com a etnia guarani caiová, e é, segundo creio, o que se pretende com Belo Monte.”

2) “A sociedade mudou, o que se deve à ação dos grupos historicamente discriminados. O fato de as ideias eugênicas e racistas, ainda que presentes na sociedade brasileira, não terem mais respeitabilidade intelectual também ajuda. Outro fator positivo é o fato de a esfera pública ser hoje mais livre do que no período da ditadura militar, época em que esses abusos não podiam ser noticiados e a atual mobilização seria considerada um crime contra a segurança nacional.

Devemos lembrar que, durante a ditadura, uma etnia como a uaimiri-atroari foi provavelmente alvo de genocídio, que teria atingido duas mil pessoas do grupo. Devido aos casos de abusos, neste mês de novembro, a Comissão Nacional da Verdade criou um grupo de trabalho, presidido por Maria Rita Kehl, para apurar violações de direitos humanos de pessoas que lutavam pela terra e de grupos indígenas. Essa demanda pela justiça, de que a CNV é um exemplo, é um fator novo e positivo, que denota mudanças na sociedade brasileira.”

Rita de Cássia de Araújo Almeida, @ritacaalmeida, 43 anos, psicanalista, blogueira, trabalhadora da rede CAPS/SUS Saúde Mental, em Juiz de Fora, Minas Gerais:

1) “Decidi mudar meu nome virtual a partir de um convite de mobilização no feicebuque, por meio do qual tomei conhecimento da carta da comunidade guarani caiová para o governo e a justiça do Brasil. O que mais me comoveu na carta foi quando ela diz: ‘Decretem nossa morte coletiva, enterrem-nos aqui’. Sou uma profissional da saúde mental do SUS, lido todos os dias com o sofrimento das pessoas e não é incomum termos que lidar com essa radicalidade que é o desejo ou o ato de uma pessoa de pôr fim à própria vida. E isso sempre acontece quando a pessoa não enxerga nenhum caminho possível para sair do seu tormento. Quando a única saída pensada pelo sujeito é a morte é porque o seu sofrimento é muito, muito intenso, o que torna a nossa intervenção profissional extremamente difícil e delicada, além de nos colocar diante de um enorme sentimento de impotência e desimportância. Então, por me sentir sensibilizada com o sofrimento daquelas pessoas, por pensar que, como profissional da saúde mental, não poderia me silenciar, decidi participar da mobilização que era possível para mim naquele momento: mudar meu sobrenome. A partir desse ato, comecei a me interessar mais pelo tema, discutir e provocar o tema na minha rede de contatos e compartilhar minhas impressões também fora do campo virtual.

Algumas pessoas criticam as relações virtuais porque pensam nelas como uma espécie de fumaça. Como se este tipo de experiência não tocasse nosso corpo, nossa vida, nosso cotidiano, mas que bobagem…. claro que tocam! No ambiente virtual nos apaixonamos, fazemos amizade, criamos conflitos, nos decepcionamos, aprendemos, desaprendemos, no meio virtual podemos ser educados, solidários, perversos, desinteressados, egocêntricos, paranoicos, engraçados… E podemos, sim, fazer manifestações e ativismo. Li, durante as últimas semanas, muitas opiniões, na própria internet, que criticavam essa iniciativa, debochando, menosprezando e até xingando os participantes do que eles chamam ‘ativismo de sofá’ ou ‘ativismo de butique’, como se fosse um ativismo de mentirinha. Já passou da hora de compreendermos que a internet e as redes sociais são formas vivas e legítimas de interação e comunicação, modos de fazermos laço social (como dizemos em linguagem psicanalítica), e, assim como qualquer outra forma de laço, têm suas virtudes e também limitações e mal entendidos. E nesses enlaçamentos podemos, sim, promover, entre tantas outras coisas, mobilizações vivas e potentes, que tanto podem permanecer apenas no campo virtual, quanto transbordar dessa virtualidade e ‘tomar corpo’.

A questão de incluir o sobrenome ‘guarani kaiowa’ não teve pra mim o sentido de identificação. Não sou uma índia, não sou uma guarani caiová, nem saberia ser. Obviamente, tenho consciência disso. Também sei que não sendo um deles não poderia me apropriar do discurso deles. Sendo assim, não me sinto autorizada a discursar por eles, para eles ou sobre eles, mas posso, sim, discursar com eles. Foi por isso que mudei meu nome, para participar da mobilização da maneira que pudesse participar, e porque entendi que, com este ato, poderia estar com eles de alguma maneira, compartilhando seu sofrimento e também sua luta por dias melhores. E afinal, essa também não é a luta de todos nós? Dias melhores?”

2) “Não sei dizer o motivo pelo qual essa mobilização aconteceu agora, talvez seja porque a carta dos guaranis caiovás tenha realmente produzido um impacto, como se ela fosse um grito tão alto que nós não pudéssemos mais fingir que não ouvimos. Isso porque acredito que toda essa mobilização surgiu a partir da divulgação da carta.

Sou militante do movimento anti-manicomial (nascido há mais de 20 anos, quando ainda não havia internet). Durante décadas, os chamados doentes mentais ficaram encarcerados nos hospitais psiquiátricos, sofrendo maus tratos, tratamentos violentos e morrendo de desnutrição e diarreia por não terem direito às condições básicas de alimentação e saneamento. É claro que as críticas e descontentamento com esse modelo de tratamento já existiam, mas, no entanto, foi a partir de um episódio específico que o movimento de luta contra o modelo manicomial tomou corpo. Neste caso, o gatilho disparador foi a divulgação do documentário ‘Em nome da razão’, de Helvécio Ratton, que retratava a tragédia vivida pelos milhares de internos do Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais. O que quero dizer é que, em todo tipo de ativismo e movimento social, pode haver esse momento pontual a partir do qual um gatilho é disparado. Acredito que isso aconteceu também no caso dos guaranis caiovás, a partir da divulgação da carta.”

Marina Silva, @silva_marina, 54 anos, ambientalista, professora de História, ex-ministra do Meio Ambiente, ex-senadora, ex-candidata à presidência da República:

1) “Há poucos dias assinei assim (Marina Silva Guarani Kaiowa) um artigo no qual expliquei o significado que essa ‘identidade’ tem para mim. Comparei com o que fazíamos, nas assembleias do movimento estudantil, nos anos 70, início dos 80, quando respondíamos ‘presente’ sempre que era citado o nome de algum líder assassinado. É uma declaração de que os companheiros permanecem vivos, em nós, que prosseguimos com seu trabalho e sua luta.

São milhares de guaranis caiovás mortos, nos últimos anos, por assassinato ou suicídio. As pessoas estão comovidas com a situação deles, querem declarar que são solidárias, que se ‘identificam’ e se importam com eles. Isso é muito significativo, porque representa uma consciência de que somos um só povo, formado de muita etnias, mas somos todos brasileiros, latino-americanos, humanos, e devemos uma reparação e um desagravo às parcelas que foram historicamente excluídas, oprimidas e humilhadas.

E há mais: essa solidariedade ao povo indígena em situação mais dramática acontece num momento em que mais de 1 milhão de pessoas assinaram o pedido de veto às mudanças no Código Florestal, em que milhares se mobilizaram na defesa da floresta, em defesa das comunidades afetadas pela construção da usina de Belo Monte, além das mobilizações que tivemos durante a Rio+20.

A identidade com os guaranis caiovás, portanto, não é um modismo, é uma demonstração de mudança nos sentimentos e na consciência de uma ampla parcela da população, que está atenta ao que acontece, e se posiciona. Quer dizer que, em situações em que a dignidade humana é ultrajada, a resposta à pergunta ‘por quem dobram os sinos’ continua sendo a mesma dada pelo deão da catedral de Saint Paul: ‘eles dobram por todos nós’.”

2) O que iniciou essa manifestação foi a carta da comunidade de Pyelito Kue/Mbarakay, recusando-se a ser expulsa das margens do rio Hovy, dizendo que ficariam lá até morrer. A carta expõe a situação terrível em que eles se encontram e não é mais alguém falando por eles, um órgão de governo ou uma ONG. São eles mesmos gritando ao mundo por socorro. E o grito deles é comovente, porque vem da alma e do coração, não é um ‘análise’, não é uma política, não é um discurso. É a palavra, ao mesmo tempo sábia e desesperada, de alguém que sabe que vai morrer. ‘Ave Cesar’ foi o que eles nos disseram. E para não ficar no lugar de César, que os condena à morte, queremos ficar ao lado deles.

Por que agora? Porque temos um acúmulo de informação, de consciência. E porque se tornou visível o retrocesso socioambiental promovido pelos setores mais atrasados do ruralismo, com apoio ou conivência do governo. Desfiguraram o Código Florestal, desmontaram programas de controle ambiental, enfraqueceram os órgãos de gestão, negaram os direitos das comunidades tradicionais. Ou seja: estão passando com o trator sobre a floresta e as comunidades que nela vivem. As pesquisas mostram um aumento na consciência e na adesão das pessoas às causas socioambientais. Elas sabem que os grandes desastres que acontecem – as enchentes e secas, furacões e maremotos –são mais frequentes agora por causa do aquecimento global. Sabem também que é preciso prevenir, adaptar-se, socorrer e minimizar as consequências desses desastres. E um número cada vez maior de pessoas passa a compartilhar a ideia de que o desenvolvimento econômico não é um simples ‘crescimento’ – ele pode ser politicamente democrático, economicamente próspero, ambientalmente sustentável, culturalmente diverso e socialmente justo.

O Brasil vive um momento especial, em que o atraso político, com a falência do sistema partidário e a sua corrupção endêmica, torna-se visível para a maioria da população. A internet tem sido importante para que as informações circulem e alcancem um público maior. Então a juventude, sempre querendo dar um passo à frente, usa as redes sociais, blogs, sites e todo o instrumental da internet para focar nas questões que dizem respeito às ameaças que vivemos no presente e ao que podemos fazer para superá-las e garantir que tenhamos um futuro melhor ou, pelo menos, algum futuro.

Como educadora, aprendi uma coisa: só é possível ensinar algo aos jovens se estivermos dispostos a também aprender com eles. O mesmo vale para a sociedade brasileira, que precisa ter humildade para aprender lições essenciais com os povos indígenas. Por isso somos todos guaranis caiovás. Aliás, todos somos, mesmo que alguns não saibam ou não gostem disso.”

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Perguntei ainda ao guarani caiová Tonico Benites, nome indígena “Ava Vera Arandu”, o que significa “ser guarani caiová”. Aos 40 anos, ele é doutorando em antropologia no Museu Nacional (UFRJ) e porta-voz da “Assembleia Geral Aty Guasu Guarani e Kaiowa”. Vive em Dourados, no Mato Grosso do Sul. Tonico Benites/Ava Vera Arandu respondeu: “Ser guarani caiová significa pertencer a determinadas terras específicas e sobretudo ser interlocutor dos guardiões dos recursos naturais, mantendo uma relação de respeito mútuo. Significa ser lutador/guerreiro irrenunciável pelo pedaço de terra antiga em que estão enterrados seus antepassados. E, se for preciso, se sacrificar e morrer com honra pelas terras de seus ancestrais. Ser guarani caiová significa ser um ser insistente que luta pela realização dos sonhos coletivos. Ser guarani caiová significa ser crente e profeta que luta e reza hoje para que o futuro da nova geração seja melhor. Ser guarani caiová significa criar alegria, sorrir muito e se ouvir atentamente. Ser guarani caiová significa se aconselhar de forma repetitiva para não reagir com violência às violências.”

(Publicado na Revista Época em 26/11/2012)

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