Dom Erwin Kräutler:

 “Lula e Dilma passarão para a história como predadores da Amazônia”

 

O lendário bispo do Xingu, ameaçado de morte e sob escolta policial há seis anos, afirma que o PT traiu os povos da Amazônia e a causa ambiental. Afirma também que Belo Monte causará a destruição do Xingu e o genocídio das etnias indígenas que habitam a região há séculos. Há 47 anos no epicentro da guerra cada vez menos silenciosa e invisível travada na Amazônia, Dom Erwin Kräutler encarna um capítulo da história do Brasil

Eliane Brum

Nesta segunda-feira, um homem grande, de sorriso caloroso e cabelos brancos, embarcou em um avião para o Brasil. Para o Brasil apenas, não. Para a Amazônia. Depois de 40 dias na Áustria, a terra onde nasceu, ele sente falta da geografia que escolheu para ser sua desde o momento em que, ainda jovem e tropeçando no português, descobriu maravilhado que o Reno é “um igarapé comparado ao Xingu”. Dom Erwin suspira de saudades do rio, das gentes, dos cheiros e até do clima da cidade paraense de Altamira, com temperaturas e humores tão intratáveis que só agrada aos mais fortes. Este homem, que circulava livremente por ruas imaculadas na primavera austríaca, onde foi garimpar recursos para projetos sociais na Amazônia, volta agora para sua rotina de prisioneiro. Há seis anos, Dom Erwin Kräutler, bispo do Xingu, não dá um passo no Brasil sem estar sob a escolta dos quatro policiais que se alternam para proteger sua vida.

Perto de completar 73 anos, Dom Erwin, que acolheu e depois enterrou a missionária assassinada Dorothy Stang, vive na mira de pistoleiros. Homens contratados por gente graúda para calar uma voz que há quase meio século eleva o tom na defesa dos mais pobres e dos mais frágeis, dos indígenas, dos ribeirinhos e dos extrativistas da Amazônia. Dom Erwin tem escrito, com rara coerência, um capítulo crucial de uma história pouco contada no Brasil: o papel da Igreja Católica, especialmente a dos religiosos ligados à Teologia da Libertação e às comunidades eclesiais de base, na proteção dos povos da floresta – e da própria Amazônia – a partir da segunda metade do século XX.

A maioria das etnias indígenas e das comunidades amazônicas que conquistaram direitos e terras nas últimas décadas deve parte de sua organização aos setores mais progressistas da Igreja Católica. Assim como parte das lideranças políticas que hoje influenciam os rumos do país surgiu na atuação de base da Igreja. Isso vai muito além da religião – é História. E uma história cujo sentido as alas mais conservadoras da própria Igreja preferem enfraquecer. Neste capítulo, Dom Erwin, capaz de falar tão bem o grego clássico quanto a língua dos Kayapó, é um dos protagonistas mais fascinantes.

E resistente. A cada ano, apesar da idade avançada e das dores na coluna, ele visita 15 paróquias do Xingu. Ao alcançá-las, peregrina pelas comunidades dos cafundós. Dorme no barco, dorme em rede. Acostumou-se tanto à dieta local, que fica feliz por comer peixe no almoço e no jantar, de segunda a segunda. É adorado pelo povo mais pobre – e odiado sem reservas por parte da elite paraense, que o ataca também pela imprensa de Belém do Pará.

Desde a decisão de Lula, e agora de Dilma Rousseff, de arrancar Belo Monte do papel, o quase lendário bispo do Xingu tem feito uma oposição incansável contra a hidrelétrica que provoca controvérsia dentro e fora do Brasil. Por causa dela, tornou-se uma presença incômoda para setores do governo e do PT que um dia apoiou – inclusive com o seu voto. Incômoda, especialmente, porque é difícil destruir a reputação de um bispo que mantém a coerência desde a ditadura militar em uma das regiões mais conflagradas do país, ajudou a escrever os artigos da Constituição de 1988 que garantem os direitos indígenas e não recuou nem mesmo diante da ameaça de perder a própria vida.

Nesta entrevista, Dom Erwin diz o que pensa contra antigos aliados com o mesmo desassombro com que denunciou grileiros e estupradores no passado recente. Acusa o PT de “traidor” – e diz que alguns petistas são “fanáticos religiosos”. Afirma que Lula e Dilma implantaram uma “ditadura civil” ao “desrespeitar os direitos indígenas assegurados na Constituição”. E afirma que Lula passará para a História como “o presidente que destruiu a Amazônia e deu o golpe nos povos indígenas”.

Às vésperas da Rio + 20, o depoimento de Dom Erwin Kräutler abre uma janela para a compreensão da história contemporânea. A entrevista a seguir foi feita na casa do bispo, em Altamira, com os policiais militares que o protegem do lado de fora da porta, mas atentos. Os quatro policiais demonstram uma preocupação que transcende o dever: adoram Dom Erwin, que conhece suas mulheres e filhos e escuta suas aflições de cada dia.

Em três horas de conversa, Dom Erwin não evitou nenhuma pergunta. Vale a pena abrir um espaço para escutar com atenção um homem capaz de apontar as contradições e ampliar a complexidade do momento estratégico vivido pelo Brasil, no qual as escolhas tomadas hoje determinarão o que seremos amanhã.

“QUANDO EU VI O XINGU, PERDI O FÔLEGO”

– O que o senhor faz quando está na Áustria e qual é a sensação de viver sem escolta, sem policiais ao redor?

Dom Erwin Kräutler – É necessário que eu passe todos os anos pelo menos um mês na Áustria, com a finalidade de conseguir recursos para manter e sustentar as obras sociais e pastorais do Xingu. Tenho, além disso, muitos convites de universidades e organizações que defendem os Direitos Humanos e o Meio Ambiente. Quando é possível, eu me hospedo na minha casa materna/paterna e vivo, fora dos compromissos, uma vida de “eremita”. Isso me faz um bem enorme. Ando livremente pelos bosques da terra onde nasci. Admiro a natureza, as flores, os campos, as árvores que na primavera se revestem de sua folhagem de tons tão diversos. Levanto antes das 5 horas para poder “ouvir o silêncio” matutino e ver os primeiros raios do sol. É maravilhoso. É uma sensação de liberdade total que faz bem à alma e ao coração.

– Como um austríaco escuta pela primeira vez a palavra Xingu e acaba se mudando para o Brasil e fazendo do Xingu a sua casa?

Dom Erwin – Ouvi a palavra Xingu pela primeira vez aos 4 ou 5 anos, durante a Segunda Guerra Mundial. A minha mãe sempre falava do irmão dela, Dom Eurico Kräutler, na época Padre Eurico, que estava no Brasil desde 1934. Uma vez ele mandou, junto com a carta, algumas fotos. Eu lembro perfeitamente das casas de palha – ele na frente, naquele tempo de batina, com uma criança, um indiozinho, mostrando a câmara com o dedo. Como a gente diz: Olha o passarinho! Foi a primeira foto do Xingu que vi na minha vida.

– O que o senhor sentiu?

Dom Erwin – (rindo) Senti uma profunda simpatia por aquela criança, que era diferente, que estava pintada. Desde então, nós sempre perguntávamos à minha mãe sobre os índios. Meu tio mandava as cartas, que eram lidas em casa pela minha mãe, depois passavam para a minha tia, e então para a minha madrinha, iam passando por todos os parentes. Tínhamos a foto de um índio na parede. Eu lembro até o nome dele: “Patoit”. Significa “braço forte”. Temos a foto dele lá em casa (na Áustria), com a mulher e o filho.

– Essa foto ainda existe?

Dom Erwin – Sem dúvida. No meu quarto, na casa de meus pais, ela foi substituída por uma foto mais recente, de uma índia Araweté com seu neném. Para nós, os Kayapó eram pessoas distantes, diferentes, mas pareciam parentes. Porque quando a gente falava do tio Eurico falava também dos indígenas do Xingu. Meu tio só pôde voltar para a Áustria depois do fim da guerra, em 1948. Eu tinha 9 anos e era coroinha, então eu lembro muito bem quando ele chegou. Meu tio fazia palestras, sabe, com slides. E ele mostrou muito sol nascendo, pôr do sol… Mas meu tio tinha a sua ideia a respeito dos índios, com as quais eu não compartilharia hoje. Eu tive outra visão.

– Qual era a ideia dele?

Dom Erwin – A ideia dele, e é preciso entender que ele era filho do tempo dele, era a de “civilizar”, “apaziguar”, palavras que não me passam pelos lábios. Não é por aí.

– É por onde?

Dom Erwin – São povos diferentes. E nós os respeitamos na sua alteridade. E não apenas os respeitamos, precisamos dar um passo a mais. Nós os amamos. Eu fiz essa experiência. Lembro quando fui para uma aldeia aqui, dos Kayapó, e eu não falava uma palavra em kayapó. Nada. Eu disse: “Nunca mais eu piso nessa aldeia sem saber kayapó”. E aprendi. Não vou dizer que falo do mesmo jeito que eu falo português, mas aprendi. E, na segunda vez em que fui lá, você não imagina. Meu Deus! O sorriso mais largo e mais amigo, mais íntimo, eu diria: “Agora ele é nosso, ele fala a nossa língua”. Eles sabem que a gente se esforça e, através da comunicação por palavras, compreendemos o mundo deles.

– Quando o senhor estava em Koblach, sua cidade natal na Áustria, que movimento interno fez com que o senhor atravessasse o oceano e ficasse aqui por quase meio século, já? O que o levou a fazer um movimento tão largo, tão radical?

Dom Erwin – Eu era um jovem como qualquer outro. Estudei, fiz faculdade de Filosofia, tocava violão, fazia teatro. Tenho uma juventude muito bonita, com muitos amigos e amigas. Depois veio o pessoal de outras províncias, que não falavam a nossa língua, o nosso dialeto. E eram colocados à margem. E isso me doía. Mas por quê? Simplesmente porque são diferentes, porque falam outra língua, são excluídos? Nós começamos, então, na juventude, a criar nossos movimentos e a buscar essa gente que ficava na margem. Nós conseguimos integrá-los. Foi nesse momento, ao me confrontar com a exclusão pela diferença, que surgiu a ideia de ser padre. Estudei Teologia, me ordenei. Era da mesma congregação do meu tio, dos Missionários do Sangue de Cristo. Naquele tempo, meus superiores queriam que eu continuasse os estudos de filologia antiga: grego e latim. Eu gosto disso até hoje. Leio a Bíblia em grego, o Novo Testamento…. Mas, de repente caiu a ficha: “Eu vou para o Xingu”. Quer dizer, a gente não dizia: “Eu vou para o Brasil”. A gente dizia: “Eu vou para o Xingu”.

– Por que “eu vou para o Xingu”?

Dom Erwin Acho que aí tem também toda a história da criança, que eu nunca esqueci. O Xingu era exatamente onde estão os Kayapó. E não apenas os Kayapó, mas seringueiros, pescadores, e uma cidadezinha miúda, pequenininha, que era Altamira. Altamira em 1950 tinha 1.800 habitantes. E eu então sonhei com isso. E disse para os superiores que queria ir para o Xingu: era 12 de janeiro de 1965. Ordenei-me padre em julho de 1965. Despedi-me de casa no dia 2 de novembro, aniversário do meu pai. Fui para Hamburgo, no norte da Alemanha, e vim com um cargueiro. Eram só dois passageiros, fora a tripulação. Eu nunca tinha visto mar, esse tipo de coisa. Era um rapaz novo, 26 anos. E atravessei o Atlântico.

– Quantos dias, naquela época?

Dom Erwin – Nós saímos no dia 4, à noite, e depois atracamos em Tenerife, nas Ilhas Canárias, no dia 11 de novembro. Passamos lá um dia, zarpamos de novo e chegamos no dia 18. Eram 4h da tarde quando pisei pela primeira vez em terra brasileira, em São Luís do Maranhão, onde fiquei quatro dias, antes de seguir viagem, ainda de navio, para Belém. Lá em São Luís dormi no convento dos franciscanos e comecei a aprender português.

– Não sabia nada?

Dom Erwin – Nada.

– O que tinha na sua mala?

Dom Erwin – Eu não trouxe lembranças da minha terra, não trouxe nada. Uma ou outra foto da família. O que eu trouxe eram coisas que eu queria dar para as crianças daqui. Porque o pessoal de lá me encheu de mil e uma coisas pra trazer. Veio tanta criança aqui nesta casa: “Quem é o padre que trouxe boneca?”. Fiquei feliz da vida. Boneca pra cá e pra lá. Depois surgiu um problema, porque alguém disse: “Mas o senhor deu boneca até para crente, e nós não ganhamos ainda nada”. E eu respondi: “Vou perguntar se era crente ou católico? Para mim se tratava de uma boneca – e boneca bonita!”. De coisas pessoais eu só trouxe os cadernos do tempo da universidade, tanto da faculdade de Filosofia quanto da de Teologia. Tenho até hoje! Fora isso, um crucifixo que ganhei e um cobertor. Até hoje eu tenho esse cobertor. Está na minha cama.

– Qual a diferença que o senhor sentiu entre o Xingu mítico, do seu imaginário, e o Xingu real, daquele primeiro olhar?

Dom Erwin – O Xingu me impressionou de uma maneira que eu nunca tinha sentido. Porque lá na Áustria nós temos o rio Reno, mas é um igarapé, em comparação com isso aqui. Então, na primeira vez que vi, em 21 de dezembro de 1965, a bordo de um avião DC3 da Cruzeiro, vindo de Belém, Nossa Senhora, que maravilha! Eu fiquei tão encantado com essa terra, e até hoje estou. E essa é uma das razões de ter reservas muito grandes quanto à destruição que está pairando sobre o Xingu e sobre todos nós. Eu fiquei tão impressionado, que faltaram palavras. Acho que perdi o fôlego. Não era um chorar… Era uma alegria. Uma mistura de alegria e de se maravilhar por alguma coisa. Você fica olhando e olhando… Você não precisa falar, você assimila, por assim dizer, essa maravilha toda. E fica encantado. Utiliza-se no português a palavra “encantado”. O Xingu encanta.

– Por quê?

Dom Erwin – O Xingu é diferente de todos os outros rios do mundo, ao menos daqueles que eu conheço. Talvez algo mítico, também, por causa dos povos indígenas que há milhares de anos vivem aqui. Então, eu vejo como os índios veem. Os Kayapó não chamam de Xingu, chamam de Bytire. “Tire” significa grande, majestoso. O “by”, segundo a explicação de um velho kayapó, quer dizer algo muito misterioso, inexprimível. E, por isso, sagrado, intocável, inviolável. Eu disse: “Aqui eu vou viver”. Eu nunca pensei em voltar, sabia? Nunca.

– O senhor sente que esta é a sua terra?

Dom Erwin – Eu não vou negar as raízes, claro… O mundo de lá agora é diferente, e eu me sinto um peixe fora d’água. Passo um mês na Áustria, mas depois volto para cá. A minha vida é viver aqui.

– No Brasil inteiro, e especialmente no Norte, existe o uso político de um sentimento que pode ser resumido pela seguinte frase: “Os gringos estão invadindo a Amazônia”. O senhor é tratado como um gringo?

Dom Erwin – Não. Nunca fui. Também o pessoal raramente me pergunta onde eu nasci. Naturalizei-me brasileiro. Tenho passaporte brasileiro, carteira de identidade, título de eleitor, tudo.

– O senhor é brasileiro?

Dom Erwin – Sou.

– Um brasileiro que nasceu na Áustria… Eu já vi o senhor dizendo isso.

Dom Erwin – Sempre digo isso: um brasileiro nascido na Áustria. Não fui mandado para cá. Foi uma decisão minha. Eu me identifiquei com o Xingu, com o Brasil. Claro que não nasci aqui, meus pais e meus antepassados são de outro país. Meus ancestrais já moravam lá em 1400 e pouco. Trata-se de uma família muito tradicional. Mas cada um faz a sua escolha. Quando cheguei aqui, eu sabia que ia ficar. Eu podia ter voltado no dia seguinte, se eu não me agradasse. Tem muito trabalho em qualquer canto do mundo. Mas nem por um segundo isso me passou pela cabeça.

“EU NUNCA PENSEI QUE O LULA PUDESSE MENTIR NA MINHA CARA”

– O senhor é uma das vozes mais críticas contra Belo Monte. Por que o senhor não quer uma hidrelétrica no Xingu?

Dom Erwin – Altamira sofreu o primeiro “choque” com a construção da Transamazônica. Eu me lembro de quando chegou aqui o presidente Médici (Emílio Garrastazu Médici, general que foi presidente do Brasil no período mais violento da ditadura militar, de 1969 a 1974). Ele deu início às obras, no lugar chamado “Pau do Presidente”. Você foi lá ver (o “pau do Presidente”)?

– Ainda não…

Dom Erwin – Não perde nada. Só ficou aquele tronco da castanheira, a placa roubaram… Eliane, você naturalmente sabe que aqui se usa essa expressão “pau do presidente” com certa malícia!

– Posso imaginar… O senhor presenciou a derrubada da castanheira?

Dom Erwin – Sim. Todo o pessoal delirando no palanque… delirando mesmo! Batendo palmas! Gente, derrubando uma árvore daquelas! E dizendo que era o progresso que estava chegando. Cortou-me o coração… Como é que pode? Aplaudir que a rainha das árvores do Pará ou da Amazônia tomba, e com um estrooondo tremendo. Como é possível? Está escrito na placa que roubaram: “O presidente da República dá início à conquista deste gigantesco mundo verde”. E havia uma placa em uma das três colunas feias, bem feias que fizeram: “Depois de XX meses o presidente voltará para inaugurar, dando mais um passo para integrar…”. Era essa a época: “Integrar para não entregar” e “Brasil, ame-o ou deixe-o”… Coisas desse tipo. Eu vi.

– Isso tudo o senhor estava assistindo de onde?

Dom Erwin – No meio do povo que foi lá ver o presidente. Tinha dois bispos, vestidos com trajes episcopais, que pensavam que seriam chamados a subir no palanque: o bispo daqui, que era meu tio, e o bispo de Marabá. Não os chamaram lá para cima porque o de Marabá não era amigo dos militares. Ele tinha denunciado um monte de coisas. Naquele tempo era a guerrilha do Araguaia, então não chamaram os bispos para subir no palanque… Eu pensei: “Bem feito!”. Mas eu não tinha coragem de dar minha opinião, porque era menino recém-chegado. Mas os bispos também achavam que o progresso estava chegando… Altamira era uma cidade esquecida, no meio da mata.

– É muito simbólico derrubar uma castanheira, uma árvore gigante, como símbolo da chegada do progresso e do desenvolvimento, não?

Dom Erwin – Depois se falava em “benefício”. Tem que “beneficiar” a terra para você encaminhar, por exemplo, um crédito bancário. Então tinha que derrubar.

– O que era Altamira antes da Transamazônica?

Dom Erwin – Era uma cidadezinha esquecida. De dia faltava água, de noite faltava luz. Tinha um motor da prefeitura que tinha funcionado pela última vez nos 15 anos da filha do prefeito. Nos anos 60 queriam fazer uma picada para Santarém para ligá-la ao mundo e mataram não sei quantos índios. Depois veio a Transamazônica. Um compadre meu, que trabalhava como telegrafista naquele tempo, disse: “Olha, compadre, agora vem o progresso. Tinha um telegrama de um tal de Incra dizendo que vão construir uma estrada. Estão dizendo que vai chover dinheiro”.

– Um discurso muito parecido com o de agora, não? Vai “chover dinheiro”, o progresso vai chegar…

Dom Erwin – Essa é a ideia: o “progresso” vai desbravar toda essa região. Então, de fato, começou no quilômetro 5, com a derrubada daquela árvore, onde tudo era mato. E hoje você vê tudo descampado. O traçado da Transamazônica já foi feito assim porque se pensou em futuras hidrelétricas, como Belo Monte. Nos anos 70 já fizeram toda a pesquisa. Em 1950, Altamira tinha 1.200 habitantes. Em 1960, 2.800. E depois, acho que de 1965 em diante, uns 4 mil, 5 mil. Mas depois veio o boom… o pessoal veio do Nordeste, primeiro, depois do Sul. Aí Altamira ganhou outras feições. E com a Transamazônica, em 1975, se falava numa possível hidrelétrica, mas era uma coisa muito distante. Nos anos 80, então, a coisa já pegou mais vulto, até que, em fevereiro de 1989, vieram os índios…

– O senhor estava presente no I Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, em 1989? (Na ocasião, Tuíra, índia kayapó, encostou a lâmina do seu facão no rosto de Antonio Carlos Muniz Lopes, da Eletronorte, para expressar sua indignação contra o projeto de Belo Monte, naquela época chamado de Kararaô. A foto da cena correu o mundo).

Dom Erwin – Não. Eu estava na Suíça… Os índios vieram falar comigo. Queriam marcar o I Encontro dos Povos Indígenas do Xingu. Então eu encontrei, naquele tempo, não vou dizer o primeiro escalão, mas o segundo escalão do Banco Mundial, em Berna. E me avisaram: o Banco Mundial só vai fornecer o crédito (para a obra) se a cláusula indígena e a cláusula ambiental forem observadas e cumpridas. Isso, para mim, foi o sinal de arquivamento. Pensei: esse perigo já passou. Enquanto eu estava lá, ocorreu o episódio com a Tuíra, aqui. Eu conheço muito bem esse Antonio Carlos Muniz…

– Como o senhor o conheceu?

Dom Erwin – Ele me convidou, quando estive em Brasília, nos anos 90, para o gabinete dele, e me mostrou todas as coisas. Ele queria cativar-me, conquistar-me para o projeto. Fui muito bem tratado, sabia? Mas quando a gente é tratado tão bem, com beijinho etc, é preciso ficar cismado. Quando é assim, tem boi na linha. Não é porque te querem bem, mas eles querem te preparar, querem aproveitar que você está sozinho e te convencer.

– Brasília o assusta, nesse sentido?

Dom Erwin – Sim, me assusta. Meu Deus! Estive duas vezes com o Lula, também, e com outras pessoas. Eu tinha contatos bons, gente boa em Brasília que estava no nosso lado. Agora, ultimamente, estamos num certo isolamento. Porque aquele povo que antigamente lutava conosco, que estava do nosso lado, que defendia a mesma coisa, que lutou pela mesma causa, agora defende o contrário.

– Quando o Lula foi eleito, o movimento social da Amazônia tinha certeza de que Belo Monte estava definitivamente sepultada. Como foram seus encontros com o Lula?

Dom Erwin – A primeira vez foi em 19 de março de 2009. Fui com um advogado do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), amigo meu de longa data, e com um assessor político do CIMI, que agora foi conquistado para ser membro do gabinete da presidente. Fiquei com o Lula uns 20 minutos, talvez meia-hora. Apresentei as nossas angústias e as nossas preocupações, e ele foi o primeiro a insistir que houvesse um diálogo construtivo, que se avaliasse os prós e os contras. Eu disse: “Olha, eu queria que o senhor ouvisse o povo”. Ele perguntou: “Que povo?”. Eu disse: “O povo do Xingu, os representantes do povo do Xingu”. Ele disse (Dom Erwin imita a voz e o jeito de Lula): “Manda chamar!”. Acertamos então uma segunda visita. Lembro que, ao final desse primeiro encontro, eu disse: “Lembranças para Marisa, sua esposa”. O Lula ficou até assustado, porque não estava acostumado a receber saudações para sua esposa. Quando alguém se encontra com o presidente, não lembra que ele é casado. Senti o Lula como alguém muito amigo, simpático.

– Foi a primeira vez que o senhor o viu?

Dom Erwin – Não, já tinha visto em campanha.

– Como o senhor percebeu o Lula?

Dom Erwin – Ele era aquele trator, falava pra cá e pra lá. A gente via que ele estava em campanha, que a gente era uma peça lá daquela campanha. Dá a mão, tira foto… Mas, em 2009, foi um encontro… muito amistoso. Eu ainda esperava que ele fosse se convencer de que não era por aí. Até escrevi: “Graças a Deus, Lula entendeu”. E nós marcamos outra audiência, em 22 de julho do mesmo ano. Foi muito interessante. Levamos dois índios, dois ribeirinhos, a Antonia Melo (uma das principais lideranças do Xingu), dois procuradores da República e o professor Célio Bermann (do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP). Mas o Gilberto Carvalho (chefe de gabinete do então presidente Lula, hoje ministro da Secretaria Geral da Presidência da República no governo Dilma) queria que só eu falasse em nome de todos. Do outro lado havia o setor energético do governo, todos os figurões… Nós, de um lado, humiiildes, coitados, nos sentindo como um peixe fora d’água e, do lado de lá, essa gente que mandava e até hoje está mandando… Mas a gente tinha segurança daquilo que nós queríamos. E, quando o Lula chegou, ele sentou-se ao meu lado. Eu disse: “Presidente, o senhor vai ter que ouvir esse povo. Esse povo veio de longe, quer falar com o senhor. Não pode pegar só dois que representem os outros, porque eles vão sair com uma frustração que não tem tamanho!”. O Lula então disse (e Dom Erwin imita o vozeirão do então presidente): “Deixa comigo! Vamos fazer!”. Então, de fato, ele deu a palavra a todos.

– O que eles disseram?

Dom Erwin – O povo falou de sua angústia, de que não podiam deixar a sua terra. Depois, os procuradores da República falaram das inconstitucionalidades do projeto de Belo Monte, de que os índios não tinham sido ouvidos. O Célio Bermann colocou então os pontos técnicos e financeiros que tornavam o projeto inviável. E aí é que eu vi o Lula levando susto. Ele olhou para a turma dele, dizendo: “Vocês vão ter que dar uma resposta imediata para o professor”. Mas esta resposta não veio até hoje.

– O senhor acha que o Lula estava sendo sincero ou era teatro político?

Dom Erwin – Era teatro, jogo político… Depois ele me segurou no braço e disse (imitando a voz): “Dom Erwin, nós não vamos empurrar esse projeto goela abaixo de quem quer que seja. Conte comigo. O diálogo tem que continuar. Segundo: o Brasil tem uma grande dívida com os atingidos por barragens, e essa dívida, até hoje, não foi sanada. Tem muita gente perambulando por aí que não recebeu a indenização, e a vida praticamente foi cortada para eles. Terceiro: Nós não vamos repetir (a hidrelétrica de) Balbina. Balbina é um monumento à insanidade. E quarto: o projeto só vai sair se for vantagem para todos”.

– O Lula disse isso?

Dom Erwin – Disse! Textualmente, sentado ao meu lado, me segurando nesse braço (mostra o braço esquerdo). Eu pensei, bom… o presidente não iria falar isso se não fosse verdade. Mas, as mulheres têm mais sensibilidade, têm mais intuição. A comadre Antonia Melo não quis nem tirar retrato. Os outros todos bateram foto com o Lula. Eu fiquei até estranhando, mas ela sentiu, naquele tempo, que era apenas um show. Engraçado, as mulheres, neste ponto, têm uma intuição que os homens não têm. Eu pensei: “Não, o Lula não vai mentir na minha cara!”. E ainda por cima segurando no meu braço… (Imita novamente a voz de Lula): “Dom Erwiiiin….”.

– O senhor imita bem a voz do Lula… O senhor saiu aliviado?

Dom Erwin – Aliviado não vou dizer, mas muito esperançoso, porque no final ele ainda disse: “O diálogo vai continuar, nós vamos nos encontrar de novo”. E aí, de repente, eu me dei conta de que não houve diálogo nenhum. Porque ele falou, mas não perguntou quais eram as nossas ideias, não perguntou o que nós achávamos, nem como pensávamos que seria possível resolver certos impasses.

– Como foi o clima dessa reunião?

Dom Erwin – A primeira parte da audiência com o Lula foi sem ele. Só com o setor energético, Funai e outras instâncias do governo. Esse pessoal do governo xingou os procuradores da República, dizendo que eles não entendiam nada, que não era do ramo deles, que estavam se metendo em assunto que não dizia respeito a eles. E até foram alteando a voz, viu? Fiquei até assustado, pensando que a educação tinha passado muito longe daqueles senhores. Lembrei-me de que quem grita revela que não tem argumentos para convencer o interlocutor. No fundo, essa turma tinha que admitir que a razão e o bom senso estavam do nosso lado. Assim, optaram por atitudes autoritárias e de prepotência, querendo nos intimidar, dizendo que não entendíamos nada do assunto. Do nosso lado, ninguém perdeu em nenhum momento a compostura. Não respondemos aos gritos. Os berros saíram da goela deles. Neste exato momento, o Lula entrou “em cena”, perguntando: “Vocês estão vivos?”. Porque era um berreiro, não era diálogo. A entrada do Lula na sala parecia uma ducha de água fria em cima da turma dele. De repente, eles se recompuseram. Achei ridículo! Pareciam meninos briguentos na sala de aula que, quando o professor entra de repente, ficam com medo de algum castigo ou de nota baixa e então se ajeitam. Aí o Lula me cumprimentou efusivamente, como se fôssemos amigos de longa data, “companheiros” de luta desde a primeira hora. E, não nego, me senti bem à vontade e agradeci a ele por ter nos recebido, elogiando esse gesto aberto de busca de “diálogo”. Pois naquele momento acreditei realmente no diálogo.

– E não foi?

Dom Erwin – Só caí na real quando, em outubro do mesmo ano, passei uma semana em Brasília esperando a continuação desse diálogo. A audiência foi adiada de uma manhã para a tarde, de um dia para o outro, até que, finalmente, recebi um telefonema na sexta-feira à noite em que Gilberto Carvalho me pedia desculpas, dizendo que não era mais possível ser recebido pelo presidente, pois ele tinha precisado viajar para a Venezuela. Essa viagem certamente já estava programada no início daquela semana e servia de pretexto para evitar o constrangimento de ser obrigado a me dizer que o presidente e seu staff não estavam mais interessados na continuação do “diálogo”. Em 23 de setembro de 2009 eu tinha escrito uma carta ao Lula, tratando-o ainda de “meu presidente”. Nunca recebi resposta.

– O senhor tinha acreditado na promessa de diálogo feita pelo Lula?

Dom Erwin – Eu acreditei. Havíamos dado um passo importante, porque havíamos chegado até lá. E agora, aquele setor do governo, embora tenha gritado antes, teria que dar resposta por ordem do presidente. Mas nunca houve diálogo. Naquele encontro nós mostramos o que ia acontecer, o absurdo dessa obra em todos os sentidos, inclusive em sua viabilidade financeira. E ninguém nunca nos respondeu nos provando que estávamos errados. O Célio Bermann falou, e eu entreguei para o Lula um resumo da posição do Oswaldo Sevá Filho (professor e pesquisador de Engenharia Mecânica da Unicamp), que não pôde nos acompanhar porque estava doente, assim como a posição de outros grandes professores e pesquisadores dessa área no Brasil. E todos mostravam a inviabilidade de Belo Monte, assim como a destruição que ela vai provocar. Por que esse povo não recebeu uma resposta?

– Por quê?

Dom Erwin – Porque não há resposta. Os argumentos são imbatíveis. Tem que desmontar a opinião das maiores cabeças dessa área no Brasil, tem que ter argumentos fundamentados na realidade, mas o governo não tem. E, se não tem, precisaria assumir: “Nós temos que fazer isso. É uma decisão política, e não técnica”. Se a decisão fosse técnica, Belo Monte jamais seria feita. Por isso, o diálogo foi abortado desde o início. Aquilo que Lula fez era só um show para agradar ao bispo.

“HÁ GENTE DO PT QUE PARECE FANÁTICO RELIGIOSO”

– No caso de Belo Monte, o governo defende que os índios não serão atingidos. Mas muitos ambientalistas e pesquisadores refutam essa afirmação, mostrando que não é possível barrar um rio sem que isso afete as comunidades que vivem em torno dele. Como o senhor vê essa questão?

Dom Erwin – Se o projeto de Belo Monte se concretizar, esses povos que moram na Volta Grande do Xingu serão atingidos. O governo nega, porque, para o governo, atingir o povo indígena é só quando se inunda, alaga a aldeia. A inundação, de fato, não vai acontecer. Mas o contrário acontece: corta-se a água. Se você observar o mapa, vai perceber que, nos 100 quilômetros da Volta Grande do Xingu, vai se chegar a um mínimo de água. Tenho absoluta certeza de que não haverá mais condição de pescar e de abastecer esses povos. Depois, será prejudicada a agricultura. E, por fim, eles não terão como se locomover. Ficarão barrados. Um povo submetido a uma vida nessas condições não sobrevive. Ou sobrevive por um tempo, depois acaba. Vão se esfacelar. Talvez se tornem índios citadinos. Perderão a cultura, perderão a língua. Estarão aqui, em algum subúrbio de Altamira. Não vou dizer que deixarão de serem índios, mas já não serão mais indígenas que vivem dentro de seu próprio contexto, com suas organizações e com a sua língua.

– É uma cultura que morre, um jeito de estar no mundo que morre, é isso?

Dom Erwin – Temos que fazer uma distinção: existe a morte física e existe a morte cultural. E aqui no Xingu, por causa de Belo Monte, poderão acontecer as duas coisas. A morte cultural, porque arrancarão deles a possibilidade de sobreviver em determinado espaço que, para eles, é muito significativo, porque é o chão de seus mitos, de seus ritos, é onde enterraram seus antepassados. Se você arranca isso dos indígenas, você corta o cordão umbilical deles com a terra. Precisamos compreender que eles têm outro relacionamento com a terra, diferente do nosso. Para nós, a terra é coisa que se compra e se vende. Para eles, não. Além da morte cultural, é provável que também aconteça a morte física, porque eles não estão preparados para viver na cidade. Os Arara, por exemplo, foram dizimados por doenças depois de serem contatados. Essa história nunca foi bem contada.

– O senhor afirma que Belo Monte é só a primeira de muitas barragens, uma forma de vencer a resistência para impor um projeto que é muito maior e que vai destruir o Xingu por completo. Como o senhor tem tanta certeza disso?

Dom Erwin – Todos os argumentos científicos sérios mostram que essa hidrelétrica não vai funcionar durante o ano todo. No verão, o Xingu baixa muito de nível e não existirá volume de água suficiente para fazer funcionar as turbinas. Portanto, vão investir bilhões e bilhões de reais em uma hidrelétrica que durante meses não funciona. Isso é um absurdo. E o governo sabe perfeitamente que é um absurdo. Então, é lógico que Belo Monte será só a primeira barragem. É preciso fazer tudo para que a população aceite essa primeira barragem, depois de décadas de resistência. Para, então, virem as outras. Porque só com as outras Belo Monte será um bom negócio. A segunda, a terceira e a quarta vão barrar o rio até lá em cima, em São Félix do Xingu. E aí, todas essas áreas que estão nas margens esquerda e direita do Xingu, que são áreas indígenas já homologadas, vão sofrer. E aí, os Assurini, os Araweté, os Paracanã, os Arara, e os Kayapó vão ser atingidos. É por isso que os Kayapó lá de cima, até mesmo os do Parque Nacional do Xingu, estão contra, embora estejam a mil quilômetros de distância. Eles já conhecem essa história. Depois de construir a primeira barragem, a tempestade passa, a resistência diminui – e aí completar a obra fica mais fácil. Esta é a estratégia do Governo. E aí eu afirmo: é o golpe fatal. Vão matar os índios, cultural e fisicamente.

– Parte da população brasileira acredita que os índios têm terra demais e há, inclusive, aqueles que acreditam que os indígenas são um entrave para o desenvolvimento. Por que parte dos brasileiros pensa assim?

Dom Erwin – Bom, primeiro precisamos entender que, para os índios, a terra não é uma mercadoria. Vou contar uma história real para que as pessoas entendam melhor essa relação totalmente diversa que o índio tem com a terra. Um branco mostrou um papel em que estava escrito: “República Federativa do Brasil, Título Definitivo de Terras, deste igarapé até o outro, fazendo frente com o rio Xingu e de fundos 2, 3, 5, 10 quilômetros”. Então, o índio perguntou: “Como você pode, com esse papel, dizer que é dono? Como? É um papel. Você fez a mata? Não. E a caça que está dentro da mata? Não. Você fez o rio e os peixes que estão no rio? Não. Você faz chover? Não. Você faz o sol brilhar? Não. Então, como você pode me mostrar um pedaço de papel e dizer que é dono?”.

– São formas de ver o mundo totalmente opostas, né? Só que uma delas tem o poder de impor sua visão de mundo como verdade única…

Dom Erwin – Essa cultura se choca com a cultura da sociedade majoritária, que trata a terra como mercadoria. E como mercadoria a terra tem de ser aproveitada, porque ela só faz sentido se for exaurida. Então, “aproveita” até arrasar a terra. Enquanto não tiver tirado a última gota de sangue, isto é, enquanto não tiver arrancado o minério e todas as riquezas do solo e do subsolo, o homem forjado nessa mentalidade não estará satisfeito. É claro, portanto, que as pessoas que veem a terra como mercadoria, num sistema de livre mercado, vão achar que o índio tem terra demais. O interessante é que essas mesmas pessoas nunca disseram: “Tal fazendeiro tem terra demais”. Não, isso não. Quando um fazendeiro bota uma placa e diz que a terra é dele – e aqui a grilagem de terra, como se sabe, é enorme, essas mesmas pessoas não reclamam. Mas, quando se faz a demarcação de uma área indígena, todo mundo grita. E, o mais curioso, há cidadãos que de repente aprendem geografia: “Eles têm uma terra do tamanho da Bélgica! Têm uma terra do tamanho de Portugal, uma terra do tamanho da Suíça!”.

– O que é terra, para os índios?

Dom Erwin – Para os índios, terra é vida. E, para o sistema da maioria dos brasileiros, terra é mercadoria. Talvez se consiga ainda fazer com que uns e outros entendam, pelo menos, que, ao demarcarmos as áreas indígenas na Amazônia, nós salvamos um pedaço da Amazônia.

– O senhor acredita que parte da Amazônia ainda está preservada por causa desse embate de visões de mundo?

Dom Erwin – Sim. E as pessoas precisam lembrar que a Amazônia tem uma função reguladora do clima mundial. Quer dizer: se a Amazônia acaba, o gaúcho lá embaixo, o mineiro, o capixaba vão sofrer as consequências. E nós ainda não sabemos qual é o alcance real dessas consequências. Se a temperatura aumentar três ou quatro graus, só para ficar num exemplo, será terrível! A verdade é que as consequências da destruição da Amazônia não cessarão nas fronteiras nem do Norte, nem do Brasil. Assim, os brasileiros de todas as regiões deveriam agradecer que há áreas de preservação indígena, há reservas extrativistas e há parques nacionais. É só porque existem essas reservas que há uma parte da Amazônia ainda preservada. Mas, infelizmente, as pessoas não percebem que a destruição da Amazônia também atingirá a sua vida.

– É curioso como as pessoas se sentem a salvo, não?

Dom Erwin – Pelas informações que recebi, estão planejadas 61 hidrelétricas para o Brasil, a maioria delas aqui na Amazônia. E mesmo a EPE (Empresa de Pesquisa Energética) não nega que serão atingidas diretamente áreas indígenas e também parques nacionais. Falam na maior cara de pau. Então, eu gostaria de saber o que vai sobrar.

– A maioria dos setores da sociedade, inclusive o governo, fala em “desenvolvimento sustentável”. Ninguém diz que não quer o desenvolvimento sustentável. Mas, na prática, o discurso que atravessa a sociedade é o de uma oposição entre desenvolvimento e meio ambiente. Por que o senhor acha que essa visão ainda persiste com tanta força?

Dom Erwin – É um mito. Que desenvolvimento é esse? Quem vai ser beneficiado com esse desenvolvimento? Basta ver hoje a situação em que está Altamira. E a obra está só no começo. Das condicionantes prometidas, nada. De 40 condicionantes colocadas pelo próprio Ibama, e outras 24 da Funai, quase nada. Não tem infraestrutura, nem habitação, nem saúde, nem educação. Para mim, desenvolvimento é dar à população a possibilidade de viver com dignidade. Ou seja: vamos aplicar em saúde, em educação, em transporte, em habitação, em saneamento básico e em segurança. Mas, aqui, desenvolvimento é fazer dinheiro, é garantir energia para as grandes multinacionais e exportar matérias-primas. Vai beneficiar a quem esse desenvolvimento? O pessoal ainda não acordou. E esses grupos, a favor de Belo Monte e dos grandes projetos para a Amazônia, disseminam a falsa ideia de que a gente é contra o desenvolvimento, contra o progresso. Mas nós sempre lutamos pela saúde nessa cidade, pela educação, pelo saneamento básico. Esse desenvolvimento que pregam é para uns poucos, não é para o povo.

– A população tem medo de um “apagão”…

Dom Erwin – Sim. Esses grupos, favoráveis às grandes obras na Amazônia, ficam também operando com o fantasma do blecaute, do apagão. Ficam dizendo: “Olhe, os gaúchos que se cuidem, porque no inverno gaúcho não terá mais chuveiro elétrico, e depois não vão mais poder ver a novela das oito”. Mentira! Essa energia será exportada em forma de lingotes de alumínio. E ela não é nada limpa… E muito menos barata. Nós não temos excelentes universidades, cientistas de primeira classe, tecnologia de ponta? Por que não se investe agora para procurar fontes alternativas de energia? Aqui, nós temos sol das seis da manhã às sete da noite. No sul da Alemanha, por exemplo, não há mais uma casa que não tenha placa solar. E olha que eles têm um inverno comprido. Lá, em dezembro, o sol nasce às 9h, 10h, e às 5h da tarde já está escuro. E nós, aqui, às 6h já assistimos ao sol nascer. Temos sol até às 7h da noite. Por que não aproveitamos essa dádiva divina? E depois existe o litoral… O Brasil tem um litoral enorme, que não tem fim. Por que não aproveita um pedaço, pelo menos, onde não há turismo, para investir mais em energia eólica? E, ainda, grande parte dos linhões de transmissão está obsoleta. Perde-se uma enormidade de energia por causa dessa deterioração. Por que não investir no reparo e no restauro dos linhões de transmissão?

– Por que o senhor acha que o governo quer tanto fazer Belo Monte?

Dom Erwin – Esta é minha grande pergunta. Eu não tenho resposta. Apenas vou adivinhando. Por que o Lula era contra e de repente está a favor? Por que o PT era contra Belo Monte e depois de chegar ao governo passou a defender exatamente aquilo que antes combatia? Por que os deputados que nós elegemos aqui hoje são a favor e não sabem nem por quê? O que há por trás? Por que essa metamorfose camaleônica? Na campanha era contra, como é o caso do deputado Zé Geraldo (PT-PA), que andava aqui embaixo, na beira do rio, dando as mãos e rezando, de camisa branca, participando de místicas. E agora, meu Deus! Ele defende exatamente o contrário: “Belo Monte tem que sair, a gente não pode colocar a Amazônia debaixo de uma redoma”. Ninguém está propondo uma Amazônia intocável. O que nós que nos unimos na posição contra Belo Monte defendemos é que as riquezas da Amazônia sejam usufruídas de uma maneira inteligente – e não de uma maneira burra.

– Historicamente, o movimento de resistência à Belo Monte sempre apoiou o Lula. O que aconteceu?

Dom Erwin – Aqui, a resistência contra Belo Monte se identificou com o PT, ou o PT se identificou com a resistência contra Belo Monte. Isso até o Lula tomar posse. Quando descobrimos que o Lula tinha mudado de ideia, caímos das nuvens. Meu Deus, como é que pode? E então os petistas daqui também mudaram de lado. Começaram, inclusive, a hostilizar as pessoas que ainda defendiam o Xingu contra esse monstro. Há gente que antigamente sentava aqui nesta sala e que hoje não aparece mais, porque sabe que o bispo permanece na sua posição contra Belo Monte. Há gente do PT que parece fanático religioso. Fanático religioso é terrível, né?

– Por quê?

Dom Erwin – Porque não tem discussão, não tem diálogo. Com fanático você nunca vai entabular um diálogo que preste, ele já se julga dono da verdade, tem a sua certeza. Então, o PT diz: “As razões defendidas pelo partido têm que estar acima da própria consciência dos partidários”. E muita gente reza pela cartilha do PT porque acha que aí está tudo resolvido. Na realidade eu não posso, por causa da minha filiação partidária, ter opinião própria, ou opinião divergente. Aqui, quem tinha opinião própria e não quis trair a sua consciência, como Antonia Melo, se desfiliou do partido.

– Foi um golpe muito grande essa mudança de posição com relação à Belo Monte?

Dom Erwin – Foi uma traição, um golpe tremendo. É muito duro você ser traído por pessoas a quem você deu as mãos. Inclusive foram perguntar, à boca pequena: (fala baixinho): “Bispo, em quem vai votar? O senhor não pode falar isso no sermão, mas em quem o senhor vai votar?”. Eu disse: “Eu vou votar no Lula. Afinal de contas, é o partido que nasceu e surgiu das bases, etc. Temos que lutar por outro Brasil, gente”. Tempos depois o povo passou a dizer: “Agora o bispo está engolindo…”.

– Está sendo difícil engolir o que o senhor chama de “traição”?

Dom Erwin – Eu nunca falei em público sobre o meu voto, mas todo mundo sabia que nós queríamos um Brasil diferente, um Brasil justo, fraterno, sem corrupção, um Brasil com ética e com todos esses ideais que nós tínhamos e ainda defendemos. Mas os caciques do PT da primeira hora foram embora. Quem está aí dos antigos? Se afastaram. Notaram que foram traídos também. Eu me sinto traído. Agora dizem: “O bispo era a favor dessa petezada”. E agora eu tenho que engolir os sapos…

“HOJE VIVEMOS EM UMA DITADURA CIVIL”

– O senhor acha que a construção de Belo Monte marcará negativamente a biografia de Lula e de Dilma Rousseff?

Dom Erwin – Se Belo Monte se concretizar, o Lula será lembrado como aquele que destruiu a Amazônia, e deu o golpe nos povos indígenas. É a expressão mais macabra de seu orgulho: fazer um monumento para si à custa de povos que, através do mesmo monumento, condenou à morte. E, no fundo, no fundo, este monumento irá ajudar mais o Exterior do que o Brasil. O Lula vai entrar para a História como aquele que arrasou o Xingu. Não apenas com o rio, mas também com os povos do Xingu. E eu não gostaria de carregar uma fama como essa nas minhas costas, até morrer – e ainda para além da minha vida neste mundo.

O que o senhor quer dizer com “monumento”?

Dom Erwin – O Lula quer ter esse monumento no nome dele. O Lula não tem ideia de desenvolvimento. Desenvolvimento para ele é ter mais dinheiro à disposição e exportar, exportar, exportar, aumentar o PIB. Só que essa obra não terá ressonância na melhoria da vida do povo. Pelo contrário.

– O senhor acredita, então, que o Lula não entende a Amazônia?

Dom Erwin – Nunca entendeu. E muito menos entende de índio. Ele nunca se deu ao luxo de se aprofundar nisso. Para a Amazônia, ele só veio em campanha. Mas ele não tem ideia da complexidade da Amazônia e também nunca perguntou… Você não pode comparar o Rio Grande do Sul com o Pará. Quando visito o Sul, me dizem: “Mas onde o senhor mora?”. Eu respondo: “Altamira”. Eles então dizem: “Ah, é, Altamira? Nós também temos uma tia no Recife”. Recife. As pessoas nem sabem direito onde fica o Norte. Confundem com o Nordeste. As culturas aborígenes aqui, as culturas autóctones, são diferentes. E tem que viver aqui para compreender isso. O Lula nunca entendeu – e nunca achou que era preciso entender. E, no final do mandato, ele entrou em delírio.

– Delírio?

Dom Erwin – Delírio. Poder. Ele se deleitava com as cifras, com as estatísticas. Aqui mesmo ele falou lorota.

– Lorota?

Dom Erwin – Disse que o pessoal que é contra Belo Monte são uns “meninos e umas meninas que não compreendem”. Disse que ele também, quando era mais novo, era contra Itaipu, porque diziam, naquele tempo, que ia alagar a Argentina. Ele zombou da dor e das reivindicações legítimas das pessoas de Altamira com ideias e vivências diferentes das dele. Eu disse, ao ouvir o seu discurso: “Meu Deus, e isso na boca do presidente!”.

– Desqualificou quem protestava?

Dom Erwin – Desqualificou. Em 2006, num banquete oferecido pelo então governador do Mato Grosso, Blairo Maggi, ganhador do troféu “motosserra de ouro” por sua contribuição ao desmatamento do país, Lula também havia se deixado levar a uma declaração comprometedora. Identificou os índios, os quilombolas, os ambientalistas e até o Ministério Público como “entraves” para o progresso. Considerou ainda “penduricalhos” os artigos da legislação ambiental, pois estes parâmetros legais estariam travando o desenvolvimento do país. Por isso a ordem é de desconsiderar ou, pelo menos, não dar tanta importância a impactos sociais e ambientais. Caso contrário o país, na opinião de Lula, estaria condenado à estagnação. Pode até ser que o presidente posteriormente tenha se arrependido do que falou de improviso, mas a mídia já havia divulgado a gafe.

– Como o senhor vê o discurso do “A Amazônia é nossa!”, que parece servir para tudo, inclusive para destruí-la?

Dom Erwin – A Amazônia é nossa… (ri) Ninguém nunca duvidou da soberania do Brasil sobre a Amazônia. Quem vai duvidar? Quem vai acreditar em algo como: “Agora vêm uns americanos apoderar-se daqui….” Não faz nenhum sentido. Isso não vai acontecer. Quem vê, em sã consciência, a configuração do mundo de hoje sabe que isso não vai acontecer nunca. Agora, o mesmo Lula e presidentes anteriores que disseram “A Amazônia é nossa” entregaram parte dela para as multinacionais que mandam aqui. De onde vêm essas firmas todas? São todas multinacionais. Têm a sua parte brasileira, sem dúvida. É preciso ter nome brasileiro, mas o capital…

– Mas esse discurso xenófobo costuma funcionar, né? Ele transforma um outro hipotético em inimigo maior e tira o foco do que realmente está em jogo… A gente vê isso em toda parte, inclusive com nossos vizinhos…

Dom Erwin – Sim, é um nacionalismo besta, nós já o conhecemos da História. E em que deu? Nacionalismo é ruim, sempre traz ao povo a aversão contra o que vem de fora. Deteriora todo o relacionamento, porque o recado é: “Nós somos os tais, os outros não são nada!”. Inclusive reclamam disso, às vezes, quando a gente anda lá fora, em outros países latino-americanos. Eu me lembro de um encontro do qual participei e todos tinham de se apresentar. Então eu disse: “Soy el obispo de la circunscripción eclesiástica más grande de Brasil”. O Xingu é a maior prelazia do Brasil e eu achei que era importante dizer, para que entendessem de onde eu vinha. Mas me olharam com certo desdém e disseram: “En Brasil, todo es lo más grande”. Os países latino-americanos têm uma aversão muito forte ao imperialismo brasileiro.

– É como se o Brasil fosse “os Estados Unidos da América do Sul”, né? Ouço essa expressão por onde ando…

Dom Erwin – Eu me calei e não disse mais nada. Então, se nós, dentro do Brasil, criamos esse tipo de xenofobia, precisamos nos dar conta de que isso é do tempo do onça, pertence a uma época histórica ultrapassada. Temos de mudar a nossa cabeça para estarmos à altura desse novo momento histórico. Num mundo chamado globalizado não podemos viver desse jeito. Por que não nos irmanamos realmente? Aqui no Brasil nós gritamos nossa aversão contra o estrangeiro e, quando o brasileiro vai lá fora, ele sente o mesmo na pele.

– O senhor viveu na Amazônia o projeto da ditadura militar, a mentalidade do “Brasil Grande”. O senhor encontra semelhanças entre o projeto de desenvolvimento para a Amazônia da ditadura e o projeto de desenvolvimento para a Amazônia dos governos democráticos de Lula e de Dilma?

Dom Erwin – Sim. Para mim, a única diferença é esta: hoje, temos uma ditadura civil… eleita.

– Por que uma ditadura?

Dom Erwin – Ditadura é quando alguém manda sem respeitar a Constituição: “Quem manda sou eu”. O paradigma é Belo Monte. Ao contrário do que o Lula afirmou, é um projeto imposto. As audiências públicas, previstas em lei, foram meros rituais para inglês ver. Montaram um enorme aparato policial para intimidar quem é contra Belo Monte. Os que serão realmente atingidos pela barragem não tiveram oportunidade de se manifestar. A maioria deles nem conseguiu se fazer presente, porque não mora na cidade em que a tal de audiência aconteceu. Sustento até hoje a convicção de que as licenças concedidas para o início da obra são inconstitucionais. As condicionantes previamente estabelecidas pelo próprio governo através do Ibama, como já falei, não foram cumpridas. O caos em Altamira é a prova mais eloquente de que o governo desrespeitou uma cidade com mais de 100 mil habitantes, tratando-a como o lixo do mundo. Os parâmetros constitucionais que amparam os cidadãos em termos de saúde, educação, habitação, saneamento básico, segurança, transporte simplesmente não foram e não estão sendo respeitados. E o governo faz vistas grossas. Não está nem aí. E ainda há político que, com a maior cara de pau, afirma que se trata do preço a ser pago pelo progresso. Verdade é que nem ele mesmo e nem a sua família o pagam. É o Pará que continua sendo tratado como “colônia”, explorado e aviltado, condenado a pagar, em termos ambientais e de prejuízos para seu povo, um preço exorbitante pelo “progresso” do resto do Brasil.

– De que forma os presidentes Lula e Dilma teriam desrespeitado a Constituição?

Dom Erwin – Os artigos 231 e 232, que na Carta Magna do Brasil tratam dos indígenas, estão sendo desrespeitados. As oitivas indígenas previstas em lei não aconteceram. Podemos inclusive provar que os índios foram enganados. Prometeram-se oitivas a eles e, depois, maquiaram de “oitiva” um simples encontro informal em que os índios foram meros ouvintes e em nenhum momento lhes foi perguntada a sua opinião. Má fé! Enganação! Pouca vergonha! Se o governo toma posições que não se coadunam com a Constituição Federal, então o Brasil, como Estado democrático de Direito, corre sério risco. O governo não está acima da Constituição. Se o governo se comporta de modo inconstitucional, então vivemos novamente numa ditadura.

– O Edison Lobão, ministro de Minas e Energia, falava em “forças demoníacas contra as hidrelétricas”. E o senhor já se referiu à Belo Monte como “monstruosidade apocalíptica”. Quando o senhor fala em “monstruosidade apocalíptica”, o senhor está dizendo exatamente o quê?

Dom Erwin – Demoníacas são as forças que o Lobão emprega para arrasar o Xingu. A destruição não vem de Deus. E o Lobão fala sem conhecer nada daqui. Nunca o vi por aqui. De lá, da altura do Planalto, são decididas as coisas. Aliás, é essa a nossa triste sina aqui na Amazônia. As decisões são sempre tomadas alhures, sem conhecer a nossa realidade, sem perguntar nada a ninguém. O nosso Pará e a Amazônia continuam sendo tratados como província. Antigamente o Brasil era uma “colônia”. A metrópole era Lisboa. Hoje a metrópole pode ser São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre. Nós aqui somos tratados como colônia. Uma colônia é onde a gente vai buscar as coisas. É por isso que a Amazônia é apelidada de “província mineral”, “província madeireira”, “província energética” e “última fronteira agrícola”. O pessoal vem, tira o que tem, e não sente nenhum remorso, ou o dever de pagar a conta. Carajás é o caso mais emblemático: arranca-se o minério, o que sobra é uma paisagem de crateras lunares. Quando a referência é a riqueza natural, se afirma em alto e bom som: “A Amazônia é nossa”. Por outro lado, quando a Amazônia necessita realmente de colaboração efetiva, de solidariedade concreta, tem-se a impressão de que nem pertence ao Brasil, é outro país. São dois discursos conflitantes. “A Amazônia é nossa”, mas na prática ela não é nossa – ou só é nossa quando precisamos dos recursos dela. De resto, está lá longe, que ela mesma se vire.

– Por que o senhor acha que essa relação colonial de exploração se perpetua na Amazônia até hoje?

Dom Erwin – É uma relação histórica. Vale inclusive lembrar que o Pará só aderiu à independência um ano depois do assim chamado “Grito do Ipiranga”. A Amazônia sempre pareceu outro mundo. E esta realidade se perpetuou até os dias de hoje. A Amazônia é “outro Brasil”, é “colônia” para o resto do Brasil, é a “província” prenhe de riquezas naturais para os outros, não para o uso e benefício próprio. Creio que o estado do Pará seja o mais rico em recursos naturais. No entanto, continua um dos mais pobres do Brasil.

“NÃO HÁ PALAVRAS PARA O QUE SENTI DIANTE DO CAIXÃO DA DOROTHY”

– O senhor acha que a luta contra Belo Monte é perdida?

Dom Erwin – Não, não acho. Eu não sou o tipo que pendura as chuteiras logo.

– A resistência parece estar diminuindo, agora que as obras já começaram e comunidades inteiras foram retiradas. Qual é a sua percepção?

Dom Erwin – Parece que a resistência está diminuindo. Mas as aparências enganam. Tem menos palanque, menos passeatas, menos manifestações públicas. Mas tem mais imprensa. Belo Monte, nos meios de comunicação nacional e internacional, continua sendo manchete, até de forma mais intensiva. De onde não se esperava nenhum apoio, surgem hoje vozes bem críticas e questionadoras. Há gente que anos ou até meses atrás defendeu Belo Monte e que hoje se manifesta contra. Logicamente, o caos que se instalou em Altamira ajuda o povo refletir. Foi isso que nós esperávamos? É esse o progresso tão sonhado? É esse o desenvolvimento prometido pelo governo e cantado e decantado em verso e prosa pelos políticos como “salvação do oeste paraense”?

– Como é a convivência em Altamira, entre opositores de Belo Monte e o pessoal do Consórcio Norte Energia, que executa obra? Afinal, Altamira é uma cidade não muito grande…

Dom Erwin – Nós sempre usamos meios pacíficos para expressar e manifestar nossa posição. Quem reage de modo agressivo é o governo e seu Consórcio Norte Energia S.A., que lapida e viola direitos, fere a própria Constituição Federal e chega ao absurdo de interditar a presença de representantes do Movimento Xingu Vivo para Sempre nas proximidades do canteiro de obras. Eu sou e sempre fui contra qualquer emprego de violência. Eu sou pela não violência, mas uma não violência ativa. Vamos usar de todos os meios não violentos para conseguir derrubar essa obra monstruosa. A prova que a violência está do outro lado é que estou há seis anos completos sob proteção policial. Por que teriam decidido me colocar sob a tutela da Polícia militar, se não estivessem com medo de alguma agressão que poderia ser fatal? Quem matou a Irmã Dorothy? Quem matou o Dema (Ademir Alceu Federicci, líder comunitário assassinado em 2001 no Pará)? Quem mandou matar tantos outros na Amazônia? Será que foram os engajados na defesa dos Direitos Humanos e do Meio Ambiente na Amazônia contra as investidas inescrupulosas dos facínoras de paletó e gravata em todos os níveis da política e da economia, das grandes empresas e dos grileiros de plantão?

Como o senhor lida com a necessidade de escolta 24 horas por dia, todos os dias? Imagino que seja bem difícil…

Dom Erwin – A gente não se acostuma. O relacionamento com os militares é muito bom, eles são muito respeitosos, são discretos. Agora, por exemplo, como você está aqui, eles não vão ficar na porta para ouvir o que você está falando, porque você havia telefonado, e o nosso encontro estava combinado. Mas eles são muito sensíveis quando desconfiam. É uma vida complicada para mim. Ao atravessar a praça para rezar a missa, ou para almoçar, ou para qualquer movimento meu, tenho que levar os policiais comigo. Ao ser convidado para um aniversário, para um batizado, tenho que dizer: “Vão dois ou três policiais comigo”. Se você me convida, vamos supor, para jantar hoje à noite, na beira do cais, comer um peixe, tenho que avisá-la: “Aceito, mas eu vou com dois homens”. Assim, geralmente declino de qualquer convite social.

O senhor não tem mais privacidade…

Dom Erwin – Não. Desde 29 de junho de 2006, às 22h. Nesta data, neste horário, apareceu o comandante com dois policiais aqui e, desde então, estou sob escolta. Para mim, a vida mudou muito desde então. Proibiram-me tudo. Em vez de andar às 5 horas da manhã na beira do Xingu, é aqui nesse corredor que eu ando: 65 passos para frente, 65 para trás.

– E vai ser assim para sempre?

Dom Erwin – Pelo que eu vejo… Em 26 de janeiro de 2009, o superintendente regional da Polícia Federal no Estado do Pará, Manoel Fernando Abbadi, me recebeu em audiência. Foi muito gentil e compreensivo. Naquela ocasião, ele me aconselhou seriamente a não solicitar a saída do programa de proteção. Ao me desligar do programa, eu me tornaria alvo fácil dos que querem me eliminar e poderiam fazê-lo sem maiores obstáculos, já que viajo muito pelo interior.

Por que o senhor está ameaçado de morte?

Dom Erwin – Acho que há quatro motivos. O primeiro é a Dorothy (Stang). Esse pessoal que a matou, que mandou matá-la, sabe que tenho as informações. Eles não me veem com bons olhos.

– Informações?

Dom Erwin – Eu sempre tomei partido em favor dela. Disseram que a Dorothy estava armando o povo e não sei mais o quê… Eu, que aceitei essa mulher aqui, sempre a defendi. Tinha falado para ela: “Cuidado, Dorothy”. Alguém até fretou um avião aqui em Altamira para me encontrar em São Félix do Xingu. Pediram que eu tirasse a Dorothy “de circulação” e a mandasse de volta para os Estados Unidos. Fretaram, sim, um avião! Uma hora e meia de voo. Eram 9 horas da manhã. Eu rezava o breviário na casa paroquial, pouco antes de ir para uma comunidade. De repente, bateram na porta, e eu abri: “O que vocês fazem aqui?”. Eram fazendeiros. “Temos que falar urgente com o senhor, fretamos um avião para encontrar o senhor. O senhor vai ter que tirar essa mulher de Altamira”.

– E o senhor já disse isso para a polícia?

Dom Erwin – Polícia? Naquele tempo eu não falei com a polícia. Não falei porque não confiei, mas aguardei ser chamado em juízo para contar o que sei. Isso nunca aconteceu. Não se lembraram de que fui eu que a admiti em 1982 na prelazia do Xingu e sugeri a ela que fosse para a Transamazônica-Leste, para a área que hoje corresponde ao município de Anapu. Em 15 de fevereiro de 2005 enterrei a Dorothy. Enterrei. Você não imagina o que passa no coração de uma pessoa quando está diante de alguém que durante tantos e tantos anos trabalhou e que deu o melhor que podia dar. Que pediu para mim para trabalhar entre os pobres mais pobres. E eu disse: “Mulher, tu não vais aguentar isso. Tu vens lá dos Estados Unidos, com conforto e tudo, tu não vais aguentar”. E ela: “Mas me deixe”. Deixei, e ela ficou até o dia em que foi assassinada. De repente, no aeroporto de Belém, quando estou voltando para cá, recebo um telefonema: “Mataram a Dorothy”. E aí foi aquela confusão toda, e finalmente a enterrei, lá em Anapu.

– O que o senhor sentiu?

Dom Erwin – É uma experiência terrível! Terrível! Impossível de descrever. Vieram senadores, deputados, representante do Lula, vieram tantos políticos para o enterro. Ficamos lá, diante do caixão, bandeira brasileira por cima do caixão…. Eu posso lhe dar todos as homilias que eu fiz nos aniversários de morte da Dorothy. A cada ano que passa celebramos a morte dela, e eu faço um homilia especial. Mas o que eu senti lá naquele momento, diante do caixão, não tenho palavras para expressar, não há palavras para mim. (Faz um longo silêncio). Mataram a Dorothy. Não morreu de morte morrida, como se diz, mas de morte matada. E por quê? Porque se colocou do lado de pobres coitados que não têm onde cair morto. E o fato de ela se colocar ao lado dos pobres coitados fez com que a ganância e a ambição desses insaciáveis fosse colocada em xeque.

– O que mudou depois da morte dela?

Dom Erwin – É até constrangedor para mim responder a esta pergunta. Houve avanços, sim, na gestão e na administração dos PDS (Projetos de Desenvolvimento Sustentável). O povo simples até hoje se sente respaldado pela morte da Irmã na luta pelos seus direitos à terra e à sobrevivência naquela terra. A Romaria da Terra, que se realiza em Anapu todos os anos, no mês de julho, é prova de que o povo daquela área rural continua firme e decidido na defesa do que é dele. Mas há o outro lado, que é muito triste. Por isso digo que é constrangedor responder. Há gente que hoje ocupa cargos políticos e melhorou de condições de vida que antes andava de braços dados com a Irmã Dorothy e conosco. Hoje está do outro lado e defende o que antes condenou. Chamo esse tipo de gente de traidor, como também chamo o partido que incorpora hoje essas pessoas de traidor. Venderam a mãe, traíram os ideais, perderam a ética.

– E quais foram as outras razões, além da morte da Irmã Dorothy, para a sua escolta permanente?

Dom Erwin – A segunda razão para a proteção é que eu sou presidente do CIMI (Conselho Indigenista Missionário) e me empenho em favor dos povos indígenas. Sempre lutei ao lado deles. Sei que a Igreja cometeu muitos erros ao longo da sua história, mas não adianta lamentar o passado e condenar o que aconteceu. O importante é fazer diferente. Como o nosso papel foi fundamental na inserção dos direitos indígenas na Constituição Brasileira, foi neste contexto que eu sofri um acidente em 1987.

– Um acidente ou uma tentativa de homicídio?

Dom Erwin – Até hoje nunca investigaram. Eu fiquei seis semanas no hospital. Quebrei a cara, literalmente. Mas me consertaram. Um padre morreu, com apenas 31 anos. Os primeiros dias foram terríveis. Eu aprendi o que era dor no hospital, sem poder dormir. A noite não passa, e você começa a avaliar também a sua vida. Pensei muito na família do padre que morreu, único filho homem daqueles pais. Foi terrível.

– Como foi esse acidente?

Dom Erwin – Em agosto de 1987, durante cinco dias, um dos jornais de maior circulação no país publicou matérias horríveis contra o CIMI. Acusaram-nos de tudo. E eu era presidente do CIMI. Foi constituída uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito. Você ouviu falar em Márcio Thomaz Bastos, né? Naquele tempo ele era presidente da OAB. Encontrei-me com ele na sede da CNBB. Dom Luciano Mendes era o presidente da CNBB e meu grande amigo, defensor intransigente dos povos indígenas e de seus direitos. Considero-o um santo! Pois bem, Márcio Thomaz Bastos me disse: “Dom Erwin, não se preocupe. Essas acusações não têm nenhum fundamento, são grosseiras e de baixo nível. Vamos elaborar um dossiê completo e responder a cada calúnia”. Os advogados do CIMI me pediram que eu não saísse de Altamira, ou pelo menos que não fosse distante. Brasil Novo fica a cerca de 45 quilômetros de distância. E as comunidades da Transamazônica estavam reunidas lá para exigir do governo o conserto das estradas. O inverno, período das chuvas, estava chegando, e as estradas estavam intrafegáveis. Não tinha acesso para hospital, para médico e até uma dor de dente podia ser fatal. Eu então fui me solidarizar com esse povo no dia 15 de outubro de 1987. Rezamos missa, cantamos. E aí me perguntaram se eu não poderia voltar no outro dia, porque seria o encerramento da manifestação deles. Mas caíram na besteira de avisar pelo alto-falante: “Olha, nosso bispo vai voltar amanhã, e às 3h da tarde vamos celebrar a missa. Depois a gente encerra a nossa manifestação lendo a carta de nossas reivindicações”. Aí eu fui lá. Exatamente no meio do caminho, o acidente aconteceu. No topo da ladeira, eu vi um carro de cor clara. E pensei que esse carro viesse ao meu encontro. Mas ele não veio até hoje. Dizem que estava lá apenas para dar o sinal. Bem no topo da ladeira, que abre para uma reta, veio um caminhão e abalroou o nosso Gol. Mesmo gravemente ferido, eu não perdi a consciência em nenhum momento e vi ainda dois homens descerem do caminhão e empreenderem a fuga. Bati no ombro do padre ao meu lado e chamei o seu nome. Não respondeu mais. Estava morto.

– Foi uma tentativa de homicídio?

Dom Erwin – Era o que se dizia. Mas até hoje não foi feita nenhuma investigação. O motorista desapareceu. No carro que estava lá no topo da ladeira para dar o sinal de que estávamos vindo estava o delegado de Brasil Novo. Ele foi morto poucos meses depois, quando assistia à televisão, na sua casa. Queima de arquivo? Não sei. Só sei que eu fiquei fora de combate e até hoje não fui chamado à Brasília para depor e tomar posição frente às calúnias e difamações criminosas. O processo foi arquivado. Um desconhecido foi ver o padre falecido no necrotério do hospital em que me internaram para os primeiros socorros. Afastou o lençol da cabeça do falecido e declarou: “Foi o errado que morreu!”. Coisa macabra! Até hoje há pessoas que não admitem o meu trabalho junto aos índios. E xingam: “Esse bispo não tem o que fazer, fica defendendo esses caboclos”. A defesa dos índios, então, é a segunda razão para que minha vida seja protegida. A terceira razão é Belo Monte. No jornal O Liberal estava escrito: “Esse religioso que está em Altamira tem que ser eliminado”.

– Mas quem disse isso?

Dom Erwin – Em 2006, empresários e políticos declararam guerra contra o bispo do Xingu e os movimentos sociais. Gritaram do alto de seus palanques: “Vamos para a guerra!“. E prometeram “descer o cacete“, numa explícita incitação à violência. Alicerçaram essa sórdida investida em um artigo publicado na página 11 do jornal “O Liberal”, de Belém do Pará, de 5 de junho de 2006. O artigo era assinado pelo economista Armando Soares e intitulado: “Reagir é a palavra de ordem”. Até a própria CNBB moveu um processo. Então, entre outras coisas, sempre gritavam: “Enquanto esse bispo existir, Belo Monte não vai sair”. Uns meses atrás, um cara ainda gritou na frente de uma funcionária nossa: “Mataram a Dorothy, que não tinha nada a ver. Quem tinha de estar morto era esse bispo”. É com toda essa hostilidade que alguns me tratam. É uma minoria, eu diria até insignificante, mas muito barulhenta. Uma máfia. O povo não está contra o bispo, disso tenho certeza. Pelo contrário, nunca recebi tanta declaração de amor como a partir desses episódios. Na igreja, botaram faixas: “Nós te amamos”. Uma mulher veio ao altar, pegou o microfone, chorou e disse: “Dom Erwin, eu sei o que o senhor está passando. Mas, olhe, não entregue os pontos, pelo amor de Deus. Nós estamos ao seu lado! Nós te amamos…”. E a quarta e última razão, que pode até ser a gota d’água, o que fez a coisa transbordar, foram os abusos sexuais de meninas. Outro capítulo terrível que vivi. Nós já lutamos naquele tempo dos emasculados (uma série de meninos castrados e assassinados na região de Altamira), não sei se já ouviu falar…

– Sim.

Dom Erwin – Aconteceu de 1989 a 1993. A prelazia assumiu a defesa dessas famílias e até hoje nós movemos os processos. Ninguém fez nada, até que a prelazia assumiu a causa. E fomos gritar pelo Brasil e pelo mundo afora. E, de repente, em março de 2006, vieram as mães e as professoras dizendo: “Bispo, a coisa está ruim mesmo. Tem uns absurdos acontecendo aqui. O pessoal foi na delegacia dar parte, mas chamaram as nossas filhas de ‘putinhas’”. Pegavam as meninas aqui no colégio, na sexta-feira à tarde. Meninas de 12, 13 anos, bonitinhas, em um carrão, dizendo: “Vamos dar uma volta!”. Levaram-nas para uma chácara e fizeram sexo com elas. Rolou álcool e drogas. Verdadeiras orgias. E, como se isso não bastasse, filmaram tudo. Podia pegar um DVD aqui, em qualquer canto, com as mocinhas do colégio daquele jeito. Aí vieram falar comigo. Aí assumi essa causa. Fiz logo uma carta para o secretário Paulo Vannuchi (secretário nacional de Direitos Humanos no governo Lula), e depois para o ministro da Justiça, para o secretário de Estado de Segurança Pública, e para tudo quanto era gente grande. E, de fato, houve uma repercussão. Mandaram uma delegada, e ela me pediu que falasse o que sabia. Convidou-me para um encontro na Delegacia da Mulher. Aí contei tudo. Mas disse: “Olhe, a única coisa que não vou lhe dizer são os nomes, porque as pessoas que me confidenciaram isso podem correr riscos”. Ela concordou. Então assinei o depoimento. E quando eu saí daquele gabinete já vi um daqueles caras sentado. Ele me reconheceu, e eu também o reconheci. E aí logo correu a notícia pelas ruas da cidade de que o bispo tinha denunciado aquela quadrilha. Depois os canais de TV vieram entrevistar-me e eu, naturalmente, não tive mais papas na língua. Na hora da entrevista eu disse, diante da televisão: “Esses caras são todos uns monstros, que têm de ser presos e trancafiados. Eles não merecem viver no meio da sociedade!”. Aí houve uma virulenta, uma forte campanha contra mim, inclusive com faixas.

– Como o senhor lida com a impotência, no sentido de que, apesar de todos os seus esforços, são muitas as derrotas e, como o senhor contou, muitas as traições?

Dom Erwin – Precisamos entender que nem tudo é derrota ou fracasso. Se eu comparar a época de 1965 e o tempo atual, vejo que o povo também se tornou mais maduro. O povo não engole mais qualquer sapo. Antigamente, o político vinha aqui, comprava uma grade de cachaça, embriagava todo mundo, mandava matar um porco e saía eleito. Hoje, não. O pessoal simples do povo ganhou maturidade política. E nós formamos as comunidades desde a construção da Transamazônica, lideranças que estão na frente até hoje. Quando vejo, também, os direitos indígenas na Constituição, os artigos 231 e 232, sei que fiz a minha parte. Eu não posso dizer que sou um frustrado, de jeito nenhum.

– Me chama atenção o número de mulheres à frente da luta contra Belo Monte. Fora um ou outro homem, são as mulheres que estão liderando a resistência. Como o senhor vê esse fenômeno?

Dom Erwin – Para mim se trata de uma predisposição psicológica que as mulheres tem. Os homens são imediatistas. A gente escuta isso: “Vai ter dinheiro na praça!”. Digo até que os homens são ingênuos. Havia comerciante que pensou que iria “enricar” por conta de Belo Monte. Mas uns já começaram a ficar com o pé atrás, porque estão notando que o dinheiro não chegou até agora. Mas a mulher está ligada, pelo seu ser, por seu coração e por sua psique à geração que vem. A mulher coloca gente no mundo, dá à luz, e está quase que instintivamente preocupada com o futuro da prole. Essa tese se sustenta pela antropologia e pela psicologia. Eu tenho percebido nesses anos todos que as mulheres sempre têm muito mais visão para o futuro porque se trata do filho, da filha, do neto, da neta, cujas vidas estão em jogo. E o homem pensa no dinheiro, no imediato. Não digo todos os homens, mas uma grande parte. Políticos também. Políticos falam na salvação e redenção do oeste do Pará. Com raras exceções não têm visão que ultrapassa a ambição de ganhar votos e manter-se no cargo. E mais uma vez eu volto para o índio. Em 2007, no final de uma reunião, um índio subiu na carroceria do caminhão, pegou o microfone e disse: “Olhem para o Xingu e pensem o que será de nossas crianças. Nós não vamos permitir que a cultura dos nossos antepassados vá para o fundo do rio”. Ele fez a ponte entre o futuro e o passado.

– Mas há notícias de que a maior parte das etnias indígenas abriu mão da resistência em troca de “benefícios”, de cestas básicas a voadeiras e televisões. Qual é a sua percepção?

Dom Erwin – Há uma nova maneira de acabar com os povos indígenas, o “auricídio”, além do genocídio e do etnocídio. Mata-se a cultura e a organização comunitária indígena com o dinheiro. E esta agressão talvez seja pior e mais sutil e desavergonhada, pois mata a cultura e as organizações sociais dos povos indígenas sob a aparência de solidariedade – e sob o manto da indenização para mitigar impactos e efeitos negativos de Belo Monte. Nunca digo que o índio está a favor de Belo Monte. Depois de viver séculos à margem da sociedade, passando necessidades e rejeitado pela sociedade majoritária, de repente está na berlinda e é brindado com todo o tipo de presente e benefício. Quem vai aconselhá-lo a não receber tais benefícios? Só que atrás desses presentes existe um sistema, uma estratégia de quebrar a resistência dos povos indígenas.

– Quando o senhor fala da liderança das mulheres, na luta contra Belo Monte, atribui sua motivação à preocupação com as gerações futuras. Como o senhor enquadraria a presidente Dilma Rousseff nessa visão?

Dom Erwin – É, a Dilma, não sei o que dizer…

– Ela é a primeira mulher na presidência do país…

Dom Erwin – Eu gosto de uma mulher na presidência, mas eu pensei que, como mulher, ela ficaria mais sensível à nossa situação. Mas foi a Dilma quem pariu o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento). Então, politicamente, ela nunca vai se afastar disso. A gente pode fazer a manifestação que fizer. Mas ela corta qualquer diálogo, já na raiz. Belo Monte não é tema para discutir. Ela é muito dura, intransigente, não aceita opinião divergente. Parece estar obcecada pela ideia de ser a construtora da terceira maior hidrelétrica do mundo e, talvez, ser a presidente que fará funcionar as primeiras turbinas. Meio ambiente, índio, ribeirinho, povo de Altamira, para a Dilma nada disso importa. Construir Belo Monte não foi uma decisão técnica, mas sim política, tomada contra as advertências de cientistas e professores de nossas melhores universidades. A história da Amazônia, do Brasil e da Terra julgarão logo mais o Lula e a Dilma, de modo muito severo, como depredadores inescrupulosos e causadores de impactos que alteraram irreversivelmente o clima do planeta. Todos nós sabemos da função reguladora do clima que a Amazônia exerce. Belo Monte surtirá um efeito dominó. Com Belo Monte se dá luz verde a dezenas de outras hidrelétricas já projetadas para a Amazônia. Belo Monte é o punhal empunhado por Lula e Dilma et caterva para ferir mortalmente o coração da Amazônia.

– Como é o seu Xingu hoje? O senhor teve o Xingu mítico da sua infância e depois o Xingu de quando chegou aqui… Mas como é o Xingu de quem está com quase 73 anos de idade e 47 anos de Xingu?

Dom Erwin – Para mim, o Xingu simboliza a resistência desse povo e dos povos que estão aqui. Antigamente nem sonhei que precisava resistir, era óbvio. Mas, hoje, o Xingu conta a história dos povos daqui e também dos massacres dos séculos passados. E massacres que não estão tão distantes assim, no tempo, quando arrasaram aldeias inteiras. O Xingu tem história de sangue derramado, mas hoje tem também a história da resistência de um povo. Por isso a gente fala do Xingu Vivo para Sempre (movimento contra Belo Monte que reúne várias organizações sociais). Porque não podemos acreditar que será dado o ultimato para o Xingu, que esse rio grandioso vai virar simplesmente uma cloaca.

– Qual é o tamanho dessa perda, para o senhor?

Dom Erwin – Para mim é sempre o último pedaço do paraíso que Deus criou. Esse impacto… Não posso concordar com isso. Não é por sentimentalismo. Mas o Xingu não é só o rio, a água, as praias, é também os povos daqui, que viviam desde tempos que se perdem na História, e depois os ribeirinhos que vieram nos séculos 18, 19, início do século 20. E depois os imigrantes que também vieram nos anos 70. Eles hoje já se identificaram com o Xingu, já pertencem ao Xingu. Têm olhos azuis e cabelo loiro, mas são daqui. Esse povo todo, misturado, para mim é o Xingu.

– O senhor lutou tantas décadas contra Belo Monte. O senhor acha que há alguma chance de vencer essa luta, com a construção já em andamento e com tanta gente desistindo dela? Qual é o cenário hoje e quais são as suas expectativas?

Dom Erwin – Posso ser considerado ingênuo, mas eu ainda não acredito que estejamos na “casa do sem jeito”. Tenho até a sensação de que o próprio rio Xingu não vai ficar “quieto” enquanto querem matá-lo. Os geólogos e gente que entende do assunto falam no Xingu como rio que ainda está “in statu fieri”. Quer dizer: ainda não está pronto, ainda se constitui, se constrói, se mexe, se impõe. O Xingu é um rio “vivo”. Não confio, em absoluto, nos estudos dos que defendem Belo Monte. Os estudos foram feitos simplesmente para corroborar uma decisão política já tomada – e estudos desse tipo para mim carecem de seriedade. O Xingu é enigmático e imprevisível em sua maneira de reagir. Mas penso também que os homens e mulheres que até agora defenderam Belo Monte um dia vão cair na real. Espero apenas que, quando caiam na real, o estrago já não seja total.

– O Brasil vai sediar, nos próximos dias, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio + 20, duas décadas depois da Rio 92. O senhor tem alguma esperança nessa conferência?

Dom Erwin – Sim, tenho esperança. Não tanto nas discussões oficiais, mas sim naquilo que acontecerá na margem ou ao redor da Rio + 20. Eu sei que gente de toda parte vai aproveitar os espaços e não vai se calar. E também o Xingu e Belo Monte e a Amazônia serão temas discutidos por pessoas de ponta, tanto em nível do Brasil como do mundo todo. E tem mais. Enquanto acontece a Rio + 20, no Xingu acontecerá a Xingu + 23, lembrando nossa luta contra Belo Monte, que já dura 23 anos e seguramente não será uma luta perdida.

Reportagem publicada na Revista Época

A imprensa que estupra

A repórter que condenou e humilhou um suspeito não é exceção. O episódio mostra a conivência histórica entre parte da imprensa, da polícia e do sistema penitenciário na violação dos direitos de presos pobres (ou presos e pobres)

– Não estuprou, mas queria estuprar!

A frase foi dita pela repórter Mirella Cunha, no programa “Brasil Urgente”, da Band da Bahia, a um jovem de 18 anos, preso em uma delegacia desde 31 de março. Algemado, ele diz que arrancou o celular e a corrente de ouro de uma mulher, mas repete que não a estuprou. Na reportagem, a jornalista o chama de “estuprador”. Pergunta se a marca que ele tem no rosto é resultado de um tiro. Ele responde que foi espancado. A repórter não estranha que um homem detido, sob responsabilidade do Estado, tenha marcas de tortura. O suspeito diz que fará todos os exames necessários para que seja provado que ele não estuprou a mulher. Ele não sabe o nome do exame, não sabe o que é “corpo de delito” e pronuncia uma palavra inexistente. Ela debocha e repete a pergunta para expô-lo ao ridículo. Ele então pronuncia uma palavra semelhante à “próstata”. A jornalista o faz repetir várias vezes o nome do exame para que ela e os telespectadores possam rir. Depois, pergunta se ele gosta de fazer exame de próstata. No estúdio, o apresentador Uziel Bueno diz: “Tá chorando? Você não fez o exame de próstata. Senão, meu irmão, você ia chorar. É metido a estuprador, é? É metido a estuprador? É o seguinte. Nas horas vagas eu sou urologista…”.

A chamada da reportagem era: “Chororô na delegacia: acusado de estupro alega inocência”. A certa altura, a jornalista olha para a câmera e diz ao apresentador, rindo:

– Depois, Uziel, você não quer que o vídeo vá pro YouTube…

Ela tinha razão: o vídeo foi postado no YouTube. A versão mais curta dele já foi vista por quase 1 milhão de pessoas. Aqui neste link, se quiser, você pode assistir a uma versão um pouco mais longa, de quase cinco minutos.

O vídeo foi divulgado nas redes sociais, na semana passada, com grande repercussão e forte pressão por providências. Um grupo de jornalistas fez uma carta aberta: “A reportagem de Mirella Cunha, no interior da 12ª Delegacia de Itapoã, e os comentários do apresentador Uziel Bueno, no estúdio da Band, afrontam o artigo 5º da Constituição Federal: ‘É assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral’. E não faz mal reafirmar que a República Federativa do Brasil tem entre seus fundamentos ‘a dignidade da pessoa humana’. Apesar do clima de barbárie num conjunto apodrecido de programas policialescos, na Bahia e no Brasil, os direitos constitucionais são aplicáveis, inclusive aos suspeitos de crimes tipificados pelo Código Penal”.

E, mais adiante: “É importante ressaltar que a responsabilidade dos abusos não é apenas dos repórteres, mas também dos produtores do programa, da direção da emissora e de seus anunciantes – e nesta última categoria se encontra o governo do Estado que, desta maneira, se torna patrocinador das arbitrariedades praticadas nestes programas”. Em 23/5, o Ministério Público Federal abriu representação contra a jornalista. Em nota, a Band afirmou que tomaria “todas as medidas disciplinares necessárias” e que “a postura da repórter fere o código de ética do jornalismo da emissora”.

Em visita ao suspeito, a Defensoria Pública assim o descreveu: “É réu primário, vive nas ruas desde criança, apesar de ter residência em Cajazeiras 11. Tem seis irmãos, é analfabeto e já vendeu doces e balas dentro de ônibus. Ao ser questionado sobre como se sentiu durante a entrevista, ele diz: ‘Eu me senti humilhado, porque ela ficou rindo de mim o tempo todo. Eu chorei porque sabia que eu iria pagar por algo que não fiz, e que minha mãe, meus parentes e amigos iriam me ver na TV como estuprador, e eu sou inocente’”.

A reportagem é um exemplo de mau jornalismo do começo ao fim. E, para completar, ainda presta um desserviço à saúde pública, ao reforçar todos os clichês e preconceitos relacionados ao exame de próstata. Por causa dessa mistura de ignorância e machismo, homens demais morrem de câncer de próstata no país. Os abusos cometidos pela repórter e pelo apresentador foram tantos, porém, que esse prejuízo passou quase despercebido.

Por que vale a pena refletir sobre esse episódio? Primeiro, porque ele está longe de ser uma exceção. Se fosse, estaríamos vivendo em um país muito melhor. O microfone (e a caneta) tem sido usado no Brasil, assim como em outros países, também para cometer violências. Nestas imagens, se observarmos bem, a repórter manipula o microfone como uma arma. (Outras interpretações, vou reservar para os psicanalistas.)

Muitos passam mal ao assistir ao vídeo porque o que se assiste é uma violência sem contato físico, sem marcas visíveis. Uma violação cometida com o microfone e uma câmera, exibida para milhões de pessoas, contra um homem algemado (e, portanto, indefeso), sob a responsabilidade do Estado, que, em vez de garantir os direitos do suspeito, o expõe à violência.

O suspeito é humilhado por algo que deveria ser uma vergonha para o Estado e para todos nós: a péssima qualidade da educação. E, no caso dele, o analfabetismo de um jovem de 18 anos no ano de 2012, na “sexta economia do mundo”. Ao afirmar que o rapaz era um estuprador, a repórter colocou em risco também a vida do suspeito, já que todos sabem – e muitos toleram – o que acontece dentro das cadeias e prisões com quem comete um estupro.

A repórter e o apresentador, porém, são apenas a parte mais visível da rede de violações. Estão longe de serem os únicos responsáveis. Para que esse caso se torne emblemático e para que a Justiça valha é preciso que todas as responsabilidades sejam apuradas, a começar pela do Estado. Tanto em permitir que alguém sob sua custódia fosse exibido dessa maneira, e possivelmente contra a sua vontade, numa rede de TV, quanto nas marcas de tortura no seu rosto. As marcas e o relato de espancamento, aliás, seriam objeto da apuração de qualquer bom jornalista. No caso, não suscitaram nenhuma surpresa.

Basta ligar a televisão para ter certeza de que nem essa jornalista, nem esse apresentador, nem essa rede de TV são os únicos a violar direitos previstos em lei, especialmente contra presos e contra favelados e moradores das periferias do Brasil. Especialmente, portanto, contra os mais frágeis e com menos acesso à Justiça. Vale a pena lembrar que o número de defensores públicos no Brasil é insuficiente – em São Paulo, por exemplo, segundo relatório feito pela Pastoral Carcerária Nacional e pelo Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, há apenas 500 defensores públicos para prestar assistência jurídica à população carente. E quase 60 mil presos que nunca foram julgados.

Como também sabemos, nenhum jornalista publica ou veicula o que quer. Para que reportagens como esta tenham espaço é preciso que exista antes uma estrutura disposta a permitir que os maus profissionais violem as leis. Em última instância, também quem anuncia seus produtos em programas que exibem esse tipo de reportagem está sendo conivente e estimulando a violação de direitos.

A responsabilidade não acaba aí. Nos blogs, onde o vídeo foi denunciado como uma violação de Direitos Humanos, parte dos comentários dos leitores pode ser assim resumida: “Ah, mas ele não é nenhum inocente”. Ou: “Queria ver se fosse você que ele tivesse assaltado”. São afirmações estúpidas, mas elas ajudam a explicar por que esse tipo de abordagem tem audiência. Persiste ainda no Brasil uma ideia de condenação sem julgamento – e o linchamento público, via TV, é uma das formas mais apreciadas de exercer a barbárie. Até porque, dessa forma, ninguém precisa sujar as mãos de sangue.

É preciso, porém, lembrar o óbvio: até ser julgado, um suspeito é um suspeito. E só o ritual da Justiça poderá dizer se ele é culpado ou inocente. E, mesmo culpado, ele vai cumprir a pena determinada pela lei, mas continuará a ter direitos. E esta é uma conquista da civilização – contra a barbárie.

É também por causa da vontade de fazer “justiça” com as próprias mãos de parte da população que o mau jornalista se sente “autorizado” a se colocar no lugar de juiz e condenar um suspeito no tribunal midiático. Quem o legitima não são as leis tão duramente conquistadas no processo democrático, mas a audiência. Quem legitima o mau jornalismo é justamente esse tipo de comentário: “Ah, mas ele não é nenhum inocente” ou “Queria ver se fosse você que ele tivesse assaltado”.

“Queria ver se fosse você que ele tivesse assaltado”.

Para esse tipo de raciocínio valer e o mau jornalismo continuar tendo espaço é preciso que a sociedade decida que não existem leis no Brasil e que os suspeitos perdem todos os direitos e devem ser linchados sem julgamento, nas ruas ou na TV. E isso vale para todos – e também para aqueles que gostam de expressar sua sanha porque pensam estar a salvo da sanha alheia.

Por sorte, não chegamos a esse ponto. Mas, para que violências como a que assistimos não se repitam, não basta punir quem as comete, é preciso que cada um saiba que, ao dar audiência para o mau jornalismo, está escolhendo a barbárie. O telespectador também tem responsabilidade. Cada um de nós tem responsabilidade. É assim numa democracia: a responsabilidade é compartilhada. Quem escolhe, se posiciona e se responsabiliza. E quem se omite também escolhe e se responsabiliza.

Este episódio, que, repito, está longe de ser exceção, poderia ser usado para iluminar capítulos não contados, ou pouco contados, ou ainda mal contados da imprensa. É importante compreender que, historicamente, parte do jornalismo policial tem uma relação promíscua com a polícia. Desde sempre. Parte porque há grandes e decentes repórteres na história da crônica policial brasileira. Mas, arrisco-me a dizer, não representam a maioria.

Na ditadura, parte dos jornalistas policiais foi conivente com a tortura dos presos políticos, da mesma maneira que já era conivente, antes, com a tortura dos presos comuns. E que, depois do fim da ditadura, continuou a ser conivente com a tortura largamente praticada até hoje nas cadeias e presídios do país. Há histórias escabrosas e ainda não bem contadas de repórteres que, inclusive, assistiam às sessões de tortura e até ajudavam a torturar. Estas só tomei conhecimento pela narrativa de colegas mais velhos – obviamente, nunca presenciei.

Na transição democrática, nos anos 80, eu cheguei a conviver com jornalistas da editoria de polícia que andavam armados e achavam não só natural, mas desejável, a tortura de presos. Outros se limitavam a não denunciá-las. Era comum o repórter chegar à delegacia e ouvir a seguinte frase: “Espera um pouquinho, que estamos maquiando o elemento”.

“Maquiar” o preso significava que estavam apagando as marcas de tortura, para que ele pudesse ser fotografado ou filmado. Algumas marcas, claro, restavam. E ninguém – nem repórter, nem fotógrafo, nem mesmo os leitores – achava estranho.

É por causa dessa mentalidade, ainda hoje largamente disseminada entre a população brasileira, que as denúncias das torturas praticadas nas cadeias e prisões não causam revolta – para além das organizações de direitos humanos e alguns segmentos restritos da sociedade. Como se, ao ser condenado ou apenas suspeito de um crime, as pessoas perdessem todos os seus direitos, inclusive os fundamentais.

Se a tortura de presos políticos durante a ditadura tem grande repercussão na classe média, a tortura contumaz dos presos comuns, praticada antes, durante e depois do regime militar, é tolerada por parte da população – até hoje. Sobre a tortura disseminada nas cadeias e prisões brasileiras, aliás, aguarda-se a divulgação do relatório da ONU, cujos resultados e recomendações estão nas mãos do governo federal desde fevereiro.

Se no passado alguém estranhasse as marcas dos presos, bastava alegar “resistência à prisão” – “explicação” até hoje amplamente usada pelas polícias para justificar a morte de suspeitos. É assim que a pena de morte – punição inexistente na legislação brasileira – tem vigorado na prática no país. Suspeitos são executados pela polícia – e a justificativa é “morto ao resistir à prisão” ou “morto em confronto” ou “morto durante troca de tiros”.

Ontem – como hoje –, na prática, o preso não tinha nenhum direito a não querer dar entrevista ou ser fotografado ou filmado. Estava implícito que, se tentasse protestar, seria agredido. Era comum os policiais levantarem a cabeça do preso para as câmeras. Tanto daqueles que não queriam ter seu rosto exposto quanto daqueles que tinham sido tão torturados que não conseguiam manter a cabeça ereta sobre o pescoço.

Esta era a cultura que imperava – e em geral as redações não estranhavam, ou quem estranhava preferia deixar por isso mesmo para não ter de se confrontar com a “naturalidade” reinante. Não me parece – pelo que assistimos nesse vídeo – que hoje a situação seja muito diferente.

No início dos anos 90, um colega de jornal, Solano Nascimento (hoje professor do curso de jornalismo da UnB), que raramente cobria a área policial, presenciou um agente dar um tapa em um preso. Vários jornalistas, de outros veículos, testemunharam a cena. Mas só ele estranhou e denunciou a violência na sua matéria. O fato – o de um jornalista ter denunciado algo que para muitos era corriqueiro – causou espanto nas redações. Ainda assim, a polícia foi obrigada a abrir uma sindicância.

Uma pesquisa realizada em 2009 por Marcos Rolim, Luiz Eduardo Soares e Silvia Ramos com profissionais de segurança pública mostrou que 20,5% dos quase 65 mil policiais que responderam ao questionário – 1 em cada 5 – afirmaram ter sofrido torturas em seu processo de formação. O curioso é que a cultura de violência também se fazia presente na formação dos repórteres de polícia, ainda que em proporções mais amenas. Uma espécie de “batismo de sangue” (no caso, sangue alheio) era motivo de orgulho e até de certa superioridade diante dos “frouxos” de outras editorias. Posso afirmar que isso persistiu até pelo menos a década de 90 – mas há motivos para supor que ainda exista em algumas regiões do país.

Entre os jornalistas, a iniciação era feita de várias maneiras. Uma repórter contou que, em seu primeiro dia de trabalho, foi escoltada das 7h às 21h por um jornalista veterano, com um revólver calibre 38 na cintura (era a década de 80 e o “três-oitão” ainda vivia momentos de glória). Nestas 14 horas ininterruptas, eles acompanharam todas as mortes ocorridas na cidade – não só os assassinatos, mas também os suicídios. O veterano obrigou a “foca” a examinar os cadáveres, verificar o que havia nos bolsos, apalpar os “presuntos”, como ele chamava. Ao final do processo de violação dos corpos, ela tinha de relatar o número de buracos de bala e de perfurações de faca, sob os olhos cúmplices dos policiais responsáveis pela investigação.

Nos deslocamentos entre um morto e outro, o veterano contava sobre como gostava de torturar “vagabundos” e lamentava o fim da ditadura. Quando a noite chegou, ele a levou ao plantão de polícia do pronto-socorro público. Lá ela viu uma mulher chegar gritando e chorando, com o corpo todo esfaqueado e o sangue saindo por todos os furos. Pela mão, a mulher levava um menino com cerca de cinco ou seis anos. Quando a jovem repórter viu os olhos do menino, deu alguns passos e desmaiou no corredor do hospital. Quando acordou, descobriu que tinha urinado na roupa durante o desmaio.

O veterano a levou para casa no carro do jornal e, ao descobrir que ela morava sozinha, impôs sua autoridade para deixá-lo entrar, com a justificativa de que era sua responsabilidade profissional ter certeza de que ela, uma subordinada, ficaria bem. Enquanto a jornalista tomava banho, ele revistou a sua casa. Nada pior aconteceu porque ela arranjou um jeito de dizer que o sogro era professor universitário e a família do namorado deveria estar preocupada com o seu atraso. Por muitos meses ela sentiu-se violentada e não conseguia dormir sozinha em casa. Trocou as fechaduras da porta, lavou todas as suas roupas, porque o veterano repórter de polícia as tinha tocado, e botou fora tudo aquilo que não era documento, inclusive seus bichos de pelúcia.

Assim eram as coisas há não tanto tempo atrás. E acredito que ainda sejam em algumas redações do país. A reportagem que gerou a polêmica não é um episódio isolado. Assim como a teia de responsáveis é ampla e não se restringe à repórter e ao apresentador. E, por fim, a realidade a que assistimos hoje é parte de um processo histórico da imprensa brasileira, com capítulos ainda obscuros. Basta lembrar que conhecemos os nomes dos torturadores e dos legistas que assinavam os laudos falsos da ditadura, mas desconhecemos o nome dos jornalistas que foram cúmplices do regime também nos porões da repressão.

Uma linha de investigação interessante para um livro ou uma pesquisa acadêmica seria entender como a cultura da violência e a relação de promiscuidade de parte dos jornalistas de polícia com os aparatos de repressão da ditadura manteve-se e encontrou novas expressões a partir da retomada da democracia. Uma dessas expressões são os programas considerados sensacionalistas, mas com grande audiência, com reportagens como a que agora discutimos.

Estabelece-se no país a tolerância à violação dos direitos dos presos e dos pobres, mesmo na democracia – bastando apenas fazer uma careta e dizer que os programas são “sensacionalistas”. Os “esclarecidos” dizem que não assistem “a esse lixo” – e isso seria suficiente. O “jornalismo sério” considera-se separado da ralé – e isso seria suficiente. Na prática, sabemos que, na guerra pela audiência, cada vez mais acirrada, a contaminação entre o jornalismo “sério” e o “sensacionalista” é crescente e estimulada. E, mesmo na imprensa considerada séria, parte dos jornalistas que cobrem a área, como se diz no jargão, continua “comendo na mão da polícia”. E não é uma parte tão pequena assim.

Qual é a novidade? A grande – e boa – novidade é a capacidade de mobilização e de pressão pelas redes sociais. Até não muito tempo atrás, duvido que a apuração da responsabilidade de jornalistas como os do vídeo fosse sequer cogitada. Alertado por Fabrício Ramos, pelo Facebook, o vídeo foi postado em 21/5 no blog de Renato Roval. Em menos de 24 horas foi replicado em centenas de blogs e disseminado pelo Twitter, ganhando repercussão nacional.

Se estamos discutindo esse episódio aqui é porque as pessoas estão usando a internet para exercer sua cidadania e se responsabilizar pela democracia, que vai muito além do voto. Usando os instrumentos da internet para exercer pressão legítima, forçando a quebra do corporativismo, o funcionamento das instituições e o cumprimento das leis. Não me parece que nos faltem leis – o que nos falta é justiça. E, para a parte mais frágil da população, acesso à Justiça.

Na semana passada, os responsáveis pela condenação e humilhação públicas de um suspeito negro, pobre e analfabeto descobriram que os jornalistas não estão acima da lei. Enfim, uma boa notícia.

Basta ligar a televisão para ter certeza de que nem essa jornalista, nem esse apresentador, nem essa rede de TV são os únicos a violar direitos previstos em lei, especialmente contra presos e contra favelados e moradores das periferias do Brasil. Especialmente, portanto, contra os mais frágeis e com menos acesso à Justiça. Vale a pena lembrar que o número de defensores públicos no Brasil é insuficiente – em São Paulo, por exemplo, segundo relatório feito pela Pastoral Carcerária Nacional e pelo Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, há apenas 500 defensores públicos para prestar assistência jurídica à população carente. E quase 60 mil presos que nunca foram julgados.

Como também sabemos, nenhum jornalista publica ou veicula o que quer. Para que reportagens como esta tenham espaço é preciso que exista antes uma estrutura disposta a permitir que os maus profissionais violem as leis. Em última instância, também quem anuncia seus produtos em programas que exibem esse tipo de reportagem está sendo conivente e estimulando a violação de direitos.

A responsabilidade não acaba aí. Nos blogs, onde o vídeo foi denunciado como uma violação de Direitos Humanos, parte dos comentários dos leitores pode ser assim resumida: “Ah, mas ele não é nenhum inocente”. Ou: “Queria ver se fosse você que ele tivesse assaltado”. São afirmações estúpidas, mas elas ajudam a explicar por que esse tipo de abordagem tem audiência. Persiste ainda no Brasil uma ideia de condenação sem julgamento – e o linchamento público, via TV, é uma das formas mais apreciadas de exercer a barbárie. Até porque, dessa forma, ninguém precisa sujar as mãos de sangue.

É preciso, porém, lembrar o óbvio: até ser julgado, um suspeito é um suspeito. E só o ritual da Justiça poderá dizer se ele é culpado ou inocente. E, mesmo culpado, ele vai cumprir a pena determinada pela lei, mas continuará a ter direitos. E esta é uma conquista da civilização – contra a barbárie.

É também por causa da vontade de fazer “justiça” com as próprias mãos de parte da população que o mau jornalista se sente “autorizado” a se colocar no lugar de juiz e condenar um suspeito no tribunal midiático. Quem o legitima não são as leis tão duramente conquistadas no processo democrático, mas a audiência. Quem legitima o mau jornalismo é justamente esse tipo de comentário: “Ah, mas ele não é nenhum inocente” ou “Queria ver se fosse você que ele tivesse assaltado”.

“Queria ver se fosse você que ele tivesse assaltado”.

Para esse tipo de raciocínio valer e o mau jornalismo continuar tendo espaço é preciso que a sociedade decida que não existem leis no Brasil e que os suspeitos perdem todos os direitos e devem ser linchados sem julgamento, nas ruas ou na TV. E isso vale para todos – e também para aqueles que gostam de expressar sua sanha porque pensam estar a salvo da sanha alheia.

Por sorte, não chegamos a esse ponto. Mas, para que violências como a que assistimos não se repitam, não basta punir quem as comete, é preciso que cada um saiba que, ao dar audiência para o mau jornalismo, está escolhendo a barbárie. O telespectador também tem responsabilidade. Cada um de nós tem responsabilidade. É assim numa democracia: a responsabilidade é compartilhada. Quem escolhe, se posiciona e se responsabiliza. E quem se omite também escolhe e se responsabiliza.

Este episódio, que, repito, está longe de ser exceção, poderia ser usado para iluminar capítulos não contados, ou pouco contados, ou ainda mal contados da imprensa. É importante compreender que, historicamente, parte do jornalismo policial tem uma relação promíscua com a polícia. Desde sempre. Parte porque há grandes e decentes repórteres na história da crônica policial brasileira. Mas, arrisco-me a dizer, não representam a maioria.

Na ditadura, parte dos jornalistas policiais foi conivente com a tortura dos presos políticos, da mesma maneira que já era conivente, antes, com a tortura dos presos comuns. E que, depois do fim da ditadura, continuou a ser conivente com a tortura largamente praticada até hoje nas cadeias e presídios do país. Há histórias escabrosas e ainda não bem contadas de repórteres que, inclusive, assistiam às sessões de tortura e até ajudavam a torturar. Estas só tomei conhecimento pela narrativa de colegas mais velhos – obviamente, nunca presenciei.

Na transição democrática, nos anos 80, eu cheguei a conviver com jornalistas da editoria de polícia que andavam armados e achavam não só natural, mas desejável, a tortura de presos. Outros se limitavam a não denunciá-las. Era comum o repórter chegar à delegacia e ouvir a seguinte frase: “Espera um pouquinho, que estamos maquiando o elemento”.

“Maquiar” o preso significava que estavam apagando as marcas de tortura, para que ele pudesse ser fotografado ou filmado. Algumas marcas, claro, restavam. E ninguém – nem repórter, nem fotógrafo, nem mesmo os leitores – achava estranho.

É por causa dessa mentalidade, ainda hoje largamente disseminada entre a população brasileira, que as denúncias das torturas praticadas nas cadeias e prisões não causam revolta – para além das organizações de direitos humanos e alguns segmentos restritos da sociedade. Como se, ao ser condenado ou apenas suspeito de um crime, as pessoas perdessem todos os seus direitos, inclusive os fundamentais.

Se a tortura de presos políticos durante a ditadura tem grande repercussão na classe média, a tortura contumaz dos presos comuns, praticada antes, durante e depois do regime militar, é tolerada por parte da população – até hoje. Sobre a tortura disseminada nas cadeias e prisões brasileiras, aliás, aguarda-se a divulgação do relatório da ONU, cujos resultados e recomendações estão nas mãos do governo federal desde fevereiro.

Se no passado alguém estranhasse as marcas dos presos, bastava alegar “resistência à prisão” – “explicação” até hoje amplamente usada pelas polícias para justificar a morte de suspeitos. É assim que a pena de morte – punição inexistente na legislação brasileira – tem vigorado na prática no país. Suspeitos são executados pela polícia – e a justificativa é “morto ao resistir à prisão” ou “morto em confronto” ou “morto durante troca de tiros”.

Ontem – como hoje –, na prática, o preso não tinha nenhum direito a não querer dar entrevista ou ser fotografado ou filmado. Estava implícito que, se tentasse protestar, seria agredido. Era comum os policiais levantarem a cabeça do preso para as câmeras. Tanto daqueles que não queriam ter seu rosto exposto quanto daqueles que tinham sido tão torturados que não conseguiam manter a cabeça ereta sobre o pescoço.

Esta era a cultura que imperava – e em geral as redações não estranhavam, ou quem estranhava preferia deixar por isso mesmo para não ter de se confrontar com a “naturalidade” reinante. Não me parece – pelo que assistimos nesse vídeo – que hoje a situação seja muito diferente.

No início dos anos 90, um colega de jornal, Solano Nascimento (hoje professor do curso de jornalismo da UnB), que raramente cobria a área policial, presenciou um agente dar um tapa em um preso. Vários jornalistas, de outros veículos, testemunharam a cena. Mas só ele estranhou e denunciou a violência na sua matéria. O fato – o de um jornalista ter denunciado algo que para muitos era corriqueiro – causou espanto nas redações. Ainda assim, a polícia foi obrigada a abrir uma sindicância.

Uma pesquisa realizada em 2009 por Marcos Rolim, Luiz Eduardo Soares e Silvia Ramos com profissionais de segurança pública mostrou que 20,5% dos quase 65 mil policiais que responderam ao questionário – 1 em cada 5 – afirmaram ter sofrido torturas em seu processo de formação. O curioso é que a cultura de violência também se fazia presente na formação dos repórteres de polícia, ainda que em proporções mais amenas. Uma espécie de “batismo de sangue” (no caso, sangue alheio) era motivo de orgulho e até de certa superioridade diante dos “frouxos” de outras editorias. Posso afirmar que isso persistiu até pelo menos a década de 90 – mas há motivos para supor que ainda exista em algumas regiões do país.

Entre os jornalistas, a iniciação era feita de várias maneiras. Uma repórter contou que, em seu primeiro dia de trabalho, foi escoltada das 7h às 21h por um jornalista veterano, com um revólver calibre 38 na cintura (era a década de 80 e o “três-oitão” ainda vivia momentos de glória). Nestas 14 horas ininterruptas, eles acompanharam todas as mortes ocorridas na cidade – não só os assassinatos, mas também os suicídios. O veterano obrigou a “foca” a examinar os cadáveres, verificar o que havia nos bolsos, apalpar os “presuntos”, como ele chamava. Ao final do processo de violação dos corpos, ela tinha de relatar o número de buracos de bala e de perfurações de faca, sob os olhos cúmplices dos policiais responsáveis pela investigação.

Nos deslocamentos entre um morto e outro, o veterano contava sobre como gostava de torturar “vagabundos” e lamentava o fim da ditadura. Quando a noite chegou, ele a levou ao plantão de polícia do pronto-socorro público. Lá ela viu uma mulher chegar gritando e chorando, com o corpo todo esfaqueado e o sangue saindo por todos os furos. Pela mão, a mulher levava um menino com cerca de cinco ou seis anos. Quando a jovem repórter viu os olhos do menino, deu alguns passos e desmaiou no corredor do hospital. Quando acordou, descobriu que tinha urinado na roupa durante o desmaio.

O veterano a levou para casa no carro do jornal e, ao descobrir que ela morava sozinha, impôs sua autoridade para deixá-lo entrar, com a justificativa de que era sua responsabilidade profissional ter certeza de que ela, uma subordinada, ficaria bem. Enquanto a jornalista tomava banho, ele revistou a sua casa. Nada pior aconteceu porque ela arranjou um jeito de dizer que o sogro era professor universitário e a família do namorado deveria estar preocupada com o seu atraso. Por muitos meses ela sentiu-se violentada e não conseguia dormir sozinha em casa. Trocou as fechaduras da porta, lavou todas as suas roupas, porque o veterano repórter de polícia as tinha tocado, e botou fora tudo aquilo que não era documento, inclusive seus bichos de pelúcia.

Assim eram as coisas há não tanto tempo atrás. E acredito que ainda sejam em algumas redações do país. A reportagem que gerou a polêmica não é um episódio isolado. Assim como a teia de responsáveis é ampla e não se restringe à repórter e ao apresentador. E, por fim, a realidade a que assistimos hoje é parte de um processo histórico da imprensa brasileira, com capítulos ainda obscuros. Basta lembrar que conhecemos os nomes dos torturadores e dos legistas que assinavam os laudos falsos da ditadura, mas desconhecemos o nome dos jornalistas que foram cúmplices do regime também nos porões da repressão.

Uma linha de investigação interessante para um livro ou uma pesquisa acadêmica seria entender como a cultura da violência e a relação de promiscuidade de parte dos jornalistas de polícia com os aparatos de repressão da ditadura manteve-se e encontrou novas expressões a partir da retomada da democracia. Uma dessas expressões são os programas considerados sensacionalistas, mas com grande audiência, com reportagens como a que agora discutimos.

Estabelece-se no país a tolerância à violação dos direitos dos presos e dos pobres, mesmo na democracia – bastando apenas fazer uma careta e dizer que os programas são “sensacionalistas”. Os “esclarecidos” dizem que não assistem “a esse lixo” – e isso seria suficiente. O “jornalismo sério” considera-se separado da ralé – e isso seria suficiente. Na prática, sabemos que, na guerra pela audiência, cada vez mais acirrada, a contaminação entre o jornalismo “sério” e o “sensacionalista” é crescente e estimulada. E, mesmo na imprensa considerada séria, parte dos jornalistas que cobrem a área, como se diz no jargão, continua “comendo na mão da polícia”. E não é uma parte tão pequena assim.

Qual é a novidade? A grande – e boa – novidade é a capacidade de mobilização e de pressão pelas redes sociais. Até não muito tempo atrás, duvido que a apuração da responsabilidade de jornalistas como os do vídeo fosse sequer cogitada. Alertado por Fabrício Ramos, pelo Facebook, o vídeo foi postado em 21/5 no blog de Renato Roval. Em menos de 24 horas foi replicado em centenas de blogs e disseminado pelo Twitter, ganhando repercussão nacional.

Se estamos discutindo esse episódio aqui é porque as pessoas estão usando a internet para exercer sua cidadania e se responsabilizar pela democracia, que vai muito além do voto. Usando os instrumentos da internet para exercer pressão legítima, forçando a quebra do corporativismo, o funcionamento das instituições e o cumprimento das leis. Não me parece que nos faltem leis – o que nos falta é justiça. E, para a parte mais frágil da população, acesso à Justiça.

Na semana passada, os responsáveis pela condenação e humilhação públicas de um suspeito negro, pobre e analfabeto descobriram que os jornalistas não estão acima da lei. Enfim, uma boa notícia.

(Publicado na Revista Época em 28/05/2012)

 

Um GPS chamado Sophia Loren

Ou como descobri que meu destino era um ovo de cristal azul

Eu nunca tinha usado um GPS até minha última viagem, neste mês de maio. Antes, tudo o que eu sabia desse aparelho é que eles tinham arruinado meus deslocamentos de táxi, com aquela voz, em geral feminina e rouca, ordenando que o motorista dobre à esquerda ou à direita ou siga em frente ou dê a volta de imediato. Eu, que sempre gostei de me perder, era instada a me achar, mesmo sem dirigir. Desta vez, porém, a viagem de trabalho exigia muitos endereços em país estrangeiro. E alugamos uma dessas bússolas guiadas por satélite para orientar-nos pelas ruas da Itália onde, como disse uma amiga, “as regras de trânsito são uma questão de opinião”.

Mantive a voz feminina programada por um viajante anterior porque a achei parecida com a da Sophia Loren dos filmes. E, por muito tempo, considerei Sophia Loren “la donna più bella del mundo”. De súbito, porém, me tornei dependente da minha Sophia de ângulos retos e fabricação chinesa. Sentia-me incapaz de rodar um quilômetro sem que ela me dissesse para onde ir. Logo, tive ganas de andar com ela no bolso para me carregar também quando caminhava a pé. Era tranquilizador alguém com uma voz tão bem modulada me dizer para onde ir… Até então, mesmo na infância, raramente eu desfrutara das alegrias da obediência.

Passei a conversar com Sophia como se fosse uma amiga de confidências com quem desenvolvi uma gratidão desmedida e até mesmo um certo afeto. Nós, brasileiros, com a cordialidade de que falava Sérgio Buarque de Holanda, queremos ser amados mesmo em breves encontros, uma cultura que se confronta com quase todas as outras, muito mais pragmáticas e menos dependentes do olhar alheio – ou, ao menos, dependentes de outra forma.

Sophia deixava-me defronte ao endereço, com sua precisão de computador, e avisava-me de que havia chegado ao meu destino. Esta frase – “depois de dez metros, você alcançará o seu destino” – até o fim de nossa breve, mas intensa relação, produziu um triplo mortal carpado no meu peito, seguido por uma sensação um tanto aflitiva. Afinal, não é pouca coisa chegar ao próprio destino. Algo como: “Então, depois de tanta luta, era isso? Rua marquês de fulano, número tal”?

Como Sophia conhecia todos os mapas, todos os entroncamentos, todos os códigos de trânsito, ela me localizava, mas eu jamais sabia onde estava. Eu atingia o objetivo sem ter a menor ideia de como, já que ouvia e obedecia mais do que olhava. Nunca tive tão pouca noção do meu paradeiro, porque não precisava procurar por nada. Desde criança ensinada a não confiar em estranhos, entreguei-me por completo à voz desconhecida. Se um dia os computadores dominarem o mundo, como nos filmes de ficção científica, descobri que estarei rendida. De mim, não esperem resistência.

Sophia acabou me levando a lugares onde fui obrigada a pensar muito sobre o destino – o meu e o dos outros. Em um deles, penetrei em um edifício antigo e encontrei-me no apartamento térreo mais estranho que já vi. De fato, ele ficava nos fundos do prédio, aberto para as janelas bisbilhoteiras dos vizinhos e para um quintal com árvores. O apartamento era como se fosse uma casa. E, como casa, era mais parecido com uma caverna com diferentes câmaras e níveis, onde toda a vida de seu enigmático morador se desenrolava pelos quadros e fotografias que cobriam as paredes e pelas recordações de viagens que se acumulavam sobre móveis que fariam bonito em qualquer antiquário de respeito. A melhor forma de descrever essa casa é dizendo que ela se parecia com a de Bilbo Bolseiro, na versão para o cinema da obra fantástica de Tolkien, “O Senhor dos Anéis”.

Para ir ao banheiro, eu descobriria logo em seguida, era preciso abrir a porta de um armário, decorada a mão em delicada marchetaria. Dentro do armário, depois de uma passagem secreta, havia um vaso, uma banheira, uma pia e até algumas cuecas recém lavadas do vetusto senhor que me esperava do lado de fora.

Meu entrevistado e dono da casa era um cientista um tanto lendário por seus feitos em determinada área, que ali vivia sozinho com seu cachorro Jack desde a morte da mulher, anos atrás. Passado dos 80 anos, ele sentia saudade daquela mulher bonita que nos espiava dos retratos, mas não sentia-se sozinho, como me garantiu, porque tinha uma vida plena de memórias e de fatos presentes. Jack, ao contrário, chegara à casa poucos dias antes da doença de sua dona e, sem atenção ou GPS, desenvolvera uma neurose que o fazia buscar, com sofreguidão e de forma ininterrupta, o próprio rabo. Só interrompia sua trajetória circular quando eu lhe coçava a barriga, entre uma pergunta e outra.

Entre mim e meu entrevistado estabeleceu-se, de pronto, uma empatia profunda. E logo ficou claro que poderíamos conversar por dias inteiros sem nos cansarmos um do outro. Mas eu tinha outra entrevista marcada para o final daquela tarde e fui obrigada a deixar ele e Jack, assim como a caverna de maravilhas habitada com alegre desmazelo por aquele par de solteiros de idade avançada. Antes de minha partida, porém, o cientista pescou de uma das prateleiras um ovo de cristal azulado, decorado com elaborados desenhos em dourado, e me alcançou como um presente: “Para você, Eliane (ele pronunciava “Elein”), uma recordação da minha mulher”.

A mulher do cientista tinha um nome de joia. E o presente era também uma joia inspirada em um daqueles famosos ovos que, de 1885 a 1917, o joalheiro Peter Carl Fabergé criou para os czares da Rússia. Até a revolução, quando os bolcheviques nacionalizaram a “Casa Fabergé”, e a família fugiu para a Suíça, onde um dos mais célebres joalheiros do mundo acabou morrendo.

Os ovos imperiais eram feitos com uma combinação de esmalte, ouro, platina e pedras preciosas. Ao serem abertos, revelavam uma surpresa, como a miniatura da coroa imperial ou da carruagem de Catarina, a Grande. Deram grandes alegrias aos czares da Rússia antes de o último Románov ser executado com a família. Muitos ovos acabaram mais tarde sendo vendidos por Stálin para obter moeda estrangeira. E, hoje, os que restaram em museus e coleções particulares valem milhões.

O meu ovo é uma réplica em cristal azul. E não há como abri-lo. O cristal é tão fino que, de cada ângulo, sou capaz de enxergar todos os outros. Portanto, não há nada escondido ali. Mas, desde que o segurei com mãos trêmulas e indagando muitas vezes se o cientista tinha mesmo certeza de querer me dar algo tão precioso – e precioso de tantas maneiras diferentes –, não consigo parar de pensar no destino intrincado traçado pelo ovo. E também passei a ser assediada pela ideia inquietante de que, apesar da sua fragilidade de cristal, o ovo sobreviverá a mim, como sobreviveu à antiga dona.

Quem era o ourives que o criou? Teria ele um capote para o gélido inverno russo ou seria como o personagem de Gógol? Por que a mulher bonita com nome de joia o escolheu entre tantos outros? Que momentos da vida dessa mulher ele testemunhou naquelas décadas todas? O que observou no parapeito daquela casa de hobbit onde tanto aconteceu? E a pergunta que ecoava sem parar entre as paredes castigadas do meu crânio: por que caminhos invisíveis esse ovo de cristal azul acabou na minha escrivaninha-xerife?

Olho para ele neste exato momento, enquanto escrevo, e me parece que vive. Tento imaginar o que o ovo pensa da mudança de geografia, tão repentina quanto drástica. E da companhia tão pouco convencional. Ele, que testemunhava a passagem da vida humana entre obras de arte, agora é obrigado a conviver, entre outros companheiros, com uma réplica de Scratch, o esquilo da animação “A Era do Gelo”, uma estatueta africana em bronze, um Obelix de ossos largos carregando seu menir, outra estatueta africana, esta de madeira, uma miniatura do King Kong, uma carranca do São Francisco, um miniglobo, uma peteca e minha coleção de insetos de borracha. Penso que meu ovo deve estar querendo muito um GPS nesse momento. Mas não tem. É, a vida não é fácil, digo a ele, porque nada mais filosófico me ocorre.

Do ovo sei muito pouco. Apenas que foi comprado pela mulher bonita com nome de joia em uma viagem solitária a São Petersburgo. E quero interpretar como um chamado para que eu parta de imediato para São Petersburgo, uma cidade que me fascina desde sempre, mas que, nos últimos tempos, tem me acenado com insistência de vários modos. E, agora, esse ovo misterioso, com sua procedência gravada na parte inferior. Fosse hoje, ele seria um ovo de São Petersburgo da China, feito em série por operários semiescravos. Como é antigo, é um ovo de São Petersburgo da Rússia, feito a mão por um ourives, em uma joalheria. Lá fora, fantasio, caía neve enquanto o homem, corcunda pela posição ingrata, criava algo que o superasse.

Se São Petersburgo é uma das cidades mais belas do mundo, é também uma com origem das mais trágicas. Em 1703, Pedro, o Grande, decidiu que teria uma nova capital imperial. Por razões estratégicas, escolheu como berço uma região recém tomada do rei sueco, um de seus muitos inimigos. De fato, a escolha revelava bastante da personalidade desse imperador mítico, porque o lugar era pouco mais do que um charco que permanecia congelado por cinco meses do ano e ameaçado por inundações no restante do tempo.

Mas Pedro era Pedro – e era grande. E queria provar que um homem realmente grande era capaz de dominar a natureza – assim como seus inimigos. Para cumprir essa profecia humana, centenas de milhares de servos russos e de prisioneiros de guerra suecos foram condenados a derrubar florestas, nivelar montanhas, drenar pântanos. Sem pás, muitos deles cavavam com as próprias mãos e carregavam a terra na camisa.
Historiadores russos costumam dizer que nenhuma batalha travada no mundo matou mais homens do que a construção de São Petersburgo – um belíssimo cemitério. E, mais de dois séculos depois, a cidade sepultaria outras centenas de milhares de pessoas ao ficar sob cerco nazista por 900 dias na II Guerra Mundial, quando era chamada de Leningrado, em homenagem a Lênin.

Aleksandr Púchkin, o pai da literatura russa moderna, fez para ela um poema no qual transforma a épica enchente que cobriu São Petersburgo em 1824 numa vingança da natureza contra a pretensão do czar de arrancar uma cidade do mar. Na história de Púchkin há um escrevente chamado Evguéni que amaldiçoa o desejo do imperador. Assim que o faz, passa a ser perseguido pelo Cavaleiro de Bronze – estátua de Pedro, o Grande, que até hoje domina a cidade. O cavaleiro salta de seu pedestal e persegue o pobre homem pelas ruas de São Petersburgo até levá-lo à loucura.

Tudo isso, de certa forma, o ovo me contou, sob a indiferença entediada de seu companheiro da direita, um boneco do Alien, aquele que no cinema já foi “o oitavo passageiro”, e com certeza protagonizou massacres mais ferozes, com seus temíveis dentes e sua saliva ácida, em sistemas solares ainda desconhecidos. Boa parte do poder letal do Alien mal-humorado que mora no meu escritório deve-se ao fato de que ele é um grande babão. Mas, aqui, mantenho-o de boca fechada.

À esquerda, a narrativa do ovo é acompanhada pelo olhar meio abobalhado de um inocente pássaro Dodô, das Ilhas Maurício, no leste da África, que mantenho vivo em minha escrivaninha apesar de sua extinção, em 1681. Dizimados por culpa de sua boa índole, os pássaros dodôs e sua falta tanto de medo quanto de competência para voar, uma combinação catastrófica, me comovem às lágrimas. E lembram-me de que devo ser mais atenta à natureza pragmática dos humanos próximos, se não quiser ter minha alma cozida e extinta.

As viagens, como sabemos, começam muito antes de embarcarmos. Às vezes, inclusive, a melhor parte delas se passa antes. E a minha a São Petersburgo iniciou-se ainda no último verão, culminando agora com esse ovo azulado que deu uma distinção aristocrática à minha escrivaninha. E, como os leitores mais fiéis podem ter notado, alterou um pouco o estilo da minha escrita. Não se pode colocar um ovo dessa envergadura moral no parapeito do nosso mundo e seguir escrevendo da mesma maneira.

Este não foi, porém, o meu único contato com os russos nessa viagem de trabalho para a Itália. Depois que meu GPS me deixou no aeroporto, os russos estavam por todos os lados. Não exatamente os russos, mas um certo tipo, que pode ser chamado de “homens russos com enfeites de ouro”. É um tipo característico, que se encontra nos aeroportos da Europa, e corresponde ao brasileiro que fala alto, demasiado alto, não respeita filas nem o próximo e grita a todo momento: “Não aguento mais ver museus e coisas velhas”!

Digo isso porque sou brasileira e não me comporto assim, do mesmo modo que vários outros brasileiros, e seria injusto concluir que todos os russos são “homens russos com enfeites de ouro”. Mas estes são os russos que, digamos, despontam. Caracterizam-se pelas muitas correntes, pulseiras e anéis de ouro; por carregarem sacolas, muitas sacolas de lojas das grandes grifes do free shop; e por falarem ainda mais alto que os italianos e os brasileiros, o que até conhecê-los eu considerava uma façanha impossível. Alguns deles têm a cabeça raspada e sempre me levam a fantasias pouco tranquilizadoras com a máfia russa.

Por causa delas, eu, que nem sempre sou uma flor, evito atritos com eles, mesmo quando recebo os perdigotos russos de seus gritos na minha cara. E não soltei nem mesmo um “Excuse me, sir, come on!” quando um grupo deles trancou o trem que levava ao portão de embarque por quase cinco minutos, apenas porque aguardavam o restante da trupe que devia estar comprando algo de ouro em alguma loja cara e não queriam esperar o próximo carro.

Entre as mãos, eu carregava meu ovo de cristal azul, com mais cuidado do que teria com um bebê. E ele me provava que há russos bem educados, com pensamentos refinados e vozes moduladas me esperando em São Petersburgo. Algumas horas antes eu havia me despedido da minha Sophia Loren – e ela de mim – de uma forma bastante perturbadora.

Sophia, com sua precisão de máquina, havia me deixado em todos os meus destinos sem sobressaltos. E eu já passara a acreditar que a vida era docemente controlável, mesmo em terra estrangeira. Mas, no último endereço, Sophia se perdeu. Sim, Sophia, a exata e previsível Sophia, não se achou. De repente, me descobri sem bússola e, porque não tinha prestado atenção em nenhum dos caminhos anteriores, sem referências.

Encontrava-me nos arredores rurais de uma pequena cidade e, atrasada por causa da falha de Sophia, que costumava calcular até mesmo os minutos entre o deslocamento de um ponto a outro, eu perguntava com sofreguidão a toda pessoa que encontrava. Perguntava pelo meu destino. E ninguém o conhecia. Nem mesmo tinham ouvido falar. Meu destino, ao que parecia, era lugar nenhum.

Finalmente, decidi que, naquela situação, só me restava pedir socorro à Cruz Vermelha. No escritório da organização humanitária, ao informar o nome da pessoa que procurava, pensando que talvez pudessem conhecê-la, deparei-me com sinais de entendimento. Uma moça simpática me levou até a calçada e apontou para o belo prédio antigo e restaurado em frente, cercado por um jardim de luxúria e silêncios. E lá me esperava uma mulher loira e pequena, com olhos de um verde aquoso que se confundia com as árvores.
Ela tinha marcado a entrevista em um “hospice”. Para quem não conhece, hospice é um lugar onde aqueles que têm uma doença além da possibilidade de cura são acolhidos para serem cuidados sem a obstinação dos exames e das intervenções desnecessárias, que apenas encolhem a qualidade de vida – e sem a arrogância dos profissionais de saúde com dificuldades para aceitar que nem sempre podem curar.

Hospice é um lugar muito difundido na Europa – e quase nada aqui – onde se compreende que a vida é vida – até o fim. Ou, como li em um caderno logo na entrada, na frase deixada por alguém que lá esteve: “Aqui eu descobri que não é possível controlar o rumo dos ventos, mas encontrei pessoas que me ensinaram a mover as velas”. Li e de imediato pensei no meu GPS.

A pequena mulher com olhos de árvore complementou, para que eu entendesse bem onde estava. “Aqui compreendemos que não podemos dar dias à vida, mas podemos dar vida aos dias”. Ao falhar, Sophia, meu GPS alugado, havia me ensinado mais sobre destinos do que em todos os seus acertos anteriores.

Deixei o norte da Itália um dia antes do terremoto. De novo sem GPS, mais uma vez perdida, eu contemplo o ovo de cristal azul que agora é meu e me pergunto: “Quem será a próxima mulher que vai segurá-lo entre as mãos, indagando-se por onde andou e que desejos carregou”?

Espero que seja cedo para respostas. Planejo viajar pelas ruas de São Petersburgo, onde meu ovo azul nasceu sem partir-se, antes que a resposta me alcance. Sem nenhum GPS, para não correr o risco de que se chame Anna Kariênina. Já conheço o único destino que importa. E não tenho pressa em alcançá-lo.

(Publicado na Revista Época em 21/05/2012)

Quanto tempo permanecerão os hieróglifos de Steve Jobs?

Reflexões entre múmias e estátuas de um museu egípcio

No sábado, eu caminhava embasbacada pelo Museu Egípcio de Turim, entre sarcófagos, múmias e estátuas milenares. Estava na cidade para um debate sobre a edição italiana do “Dignidade”, obra que marca os 40 anos da organização humanitária Médicos Sem Fronteiras, e escapei do Salão Internacional do Livro para dar uma espiada no museu. O prédio abriga uma das maiores coleções de arte egípcia do mundo e é difícil não se emocionar diante de algumas peças que nos contêm antes mesmo de existirmos. Mas, diante dos hieróglifos, alguns gravados mais de 3 mil anos antes de Cristo, fiquei pensando se algo de nós sobreviverá tanto quanto aquelas pedras onde a história foi inscrita para permanecer.

Em nenhum ponto da aventura humana nos contamos tanto quanto hoje. Cada um de nós pode escrever sobre si mesmo dezenas de tuites em um só dia ou postar no Facebook cada um de seus desejos ou percalços. Somos milhões registrando, dia após dia, nossa trajetória individual. E, ao contrário dos egípcios da Antiguidade, desta vez não é apenas a história dos faraós que é contada, mas a do homem e da mulher comum, a minha e a sua.

A tragédia, porém, é a mesma. Quando olho para a arte, de qualquer período, me emociona o gênio humano que transcendeu a miséria cotidiana para criar algo além. Por outro lado, enxergo nela a solidão abissal diante da finitude da vida, seja em uma estátua de Osíris ou em uma pintura de Picasso, em um romance de Tolstói ou em uma sinfonia de Beethoven. De certo modo, toda arte é um monumento ao nosso desespero diante da morte. Como se tudo o que foi criado até hoje documentasse, no fundo, sempre o mesmo desejo impossível de permanência. E como se todo museu ou biblioteca fosse, na verdade, uma prova pungente e grandiosa de nosso fracasso.

Quando nos contamos nas redes sociais, nos detalhes mais mínimos, somos movidos por esse mesmo anseio. Primeiro, que nos reconheçam. Segundo, que nos amem, o que supostamente seria dado pelo número de seguidores no Twitter ou de amigos no Facebook. Ou que ao menos nos achem importantes o suficiente para nos odiarem. Há quem fique irritado com aqueles que anunciam ao mundo que vão lavar o cabelo ou que estão com sono ou que sentem fome. Eu, às vezes, me enterneço. Parece tão espantosamente banal, mas naquele tuite prosaico berra o medo da morte. Ela avisa que precisa lavar o cabelo, mas, de fato, está pedindo um olhar que lhe garanta a existência. E se alguém responde ou comenta, ainda que seja para xingar, está salva por um momento.

A internet nos deu essa chance, a de nos contarmos todos. Como se os escravos que ergueram as pirâmides e os escribas que registraram a vida dos faraós, assim como as transações comerciais e as leis do Egito Antigo, tivessem sido autorizados a documentar também suas tristezas e suas epifanias, assim como seus nadas. Mas, é irônico. Porque nós, os humanos pós-internet, não nos narramos em pedras, nem em papiros, nem em papel. Contamo-nos em lugar nenhum.

Tudo é memória – e, ao mesmo tempo, nada é ou está. O registro de nossa passagem pelo mundo é guardado na nuvem, essa figura enigmática que ninguém consegue apalpar com as mãos. E, embora nada possa ser esquecido, ao mesmo tempo podemos queimar mais rápido do que a Biblioteca de Alexandria. E, se tudo pode ser contado, a maioria de nós escolhe o que deixará documentado, como editores – e censores rigorosos – da própria história. Se fôssemos todos tão felizes como nas fotos do Facebook, os fabricantes de antidepressivos, ansiolíticos e hipnóticos teriam mudado de ramo. Se fôssemos tão belos e tivéssemos o rosto tão liso, a indústria de cosméticos e os cirurgiões plásticos já teriam falido.

Alcanço uma das peças mais acachapantes deste museu egípcio de Turim: a estátua do faraó Tuthmosis III (1479-1425 a.C). E percebo que, na base da estátua, o francês que a “descobriu” gravou seu nome, no ano de 1818, na esperança de garantir também para ele um naco de eternidade. E eu, que em maio de 2012 a admiro, nada sou além de um olhar anônimo entre centenas por dia.

Mas, ali, entre turmas de crianças de escola e turistas de nacionalidades variadas, me sinto semelhante ao faraó e ao francês. Porque aquilo que ficou do faraó, por monumental que seja, assim como a tentativa do francês de imortalizar-se, por patética que seja, não é nem um, nem é outro. O faraó e o francês são como eu, um mistério efêmero. Eles, com tudo o que foram, estão mortos. Como eu, entre hoje e algumas décadas, também estarei.
O que sou eu? Talvez o olhar terno para as duas escovas de dentes que repousam num copo de plástico na pia do hotel. Ou a revolta com a espinha que irrompeu no lábio superior bem no dia de minha apresentação pública. Ou o que escapa de mim nas histórias dos outros que conto. Sou muito mais o que não está contado de mim, o que escoa com as horas sem deixar rastro, do que aquilo que se sabe de mim.

E talvez essa seja a grandeza do momento histórico que vivemos, em que todos se narram por segundo. Se os hieróglifos do mundo antigo revelavam o mesmo desejo de permanência que a polifonia sem hierarquia das redes sociais de hoje, penso que agora estamos mais perto de nossa verdade mais profunda. Essa memória na nuvem, ainda mais imaterial do que nosso corpo condenado a desaparecer, esse nada que resta de nossa passagem fugaz pelo mundo, é apenas isso: a nossa tragédia sem museu. Finalmente, sem museu.

(Publicado na Revista Época em 14/05/2012)

É possível obrigar um pai a ser pai?

A “filha abandonada” encarna a época dos adultos infantilizados – e dos cidadãos-filhos diante do Estado-pai

Na semana passada, o Superior Tribunal de Justiça tomou uma decisão inédita no Brasil: determinou a um pai o pagamento de R$ 200 mil por “abandono afetivo”. Antonio Carlos Jamas dos Santos, empresário do ramo de combustíveis de Sorocaba, no interior de São Paulo, terá de pagar à sua filha, Luciane Nunes de Oliveira Souza, professora da rede municipal da mesma cidade, por sua ausência como pai. Na sentença, manchete da maioria dos jornais brasileiros de quinta-feira (3/5), a frase lapidar da ministra-relatora do caso, Nancy Andrigui: “Amar é faculdade, cuidar é dever”. Nos dias posteriores, Luciane deu entrevistas, em que chorou muito pelo abandono, assim como comemorou a vitória dos filhos abandonados do Brasil, representada pelo seu triunfo no tribunal. Minha pergunta: é possível – e desejável – que um pai seja condenado por falta de afeto?

Apesar da frase de efeito da ministra, é disso que se trata. Este pai, agora condenado, pagou uma pensão para a filha até os 18 anos. Portanto, deu as condições materiais para o seu sustento, o que é garantido pela legislação brasileira há muito e não está em discussão. Se o valor era abaixo das necessidades concretas da filha e abaixo das possibilidades concretas do pai, esta é uma falha de quem arbitrou a pensão – uma falha da Justiça, portanto.

Estou rodeada de pessoas que acreditam que seus pais não lhes deram o afeto que mereciam. Acho mesmo que boa parte das pessoas acha que seus pais são deficitários no quesito afeto e no quesito presença. Da mesma maneira que, se fôssemos perguntar aos pais – e também às mães –, boa parte deles compartilha da convicção de que são abandonados pelos filhos. Mas esta, decididamente, não é a hora dos pais. Os filhos reinam absolutos nesse momento histórico, com o apoio irrestrito do Estado.

Se os pais derem uma palmada em uma criança, logo estarão cometendo uma infração. O Congresso prepara-se para determinar que palmadas são inaceitáveis como método educativo. Se a conclusão for a de que os pais não amaram bem, a Justiça pode obrigar os pais a indenizar os filhos com o valor equivalente ao de um apartamento. Em breve, suponho, teremos mais novidades na vigilância dos pais pelo Estado. E não estou sendo irônica. É para esse mundo que temos caminhado. E é preciso perceber que temos dado sempre um passo além. Em minha opinião, além do bom senso.

Se um pai espanca um filho ou qualquer pessoa espanca uma criança, já existe lei para punir esse ato bárbaro. Mas, não, em vez de aprimorar as ações de prevenção e tornar mais eficiente a repressão, considera-se necessário criar mais uma lei e punir também a palmada. Se um pai não garante as condições materiais para assegurar educação, alimentação e casa para um filho, também já existe lei para obrigá-lo a cumprir o seu dever. Mas agora é preciso ir mais adiante, é necessário punir também a falta de afeto.

Coloco essas duas questões – a da “palmada” e a do “abandono afetivo” – no mesmo texto, porque, ainda que venham de instâncias diferentes do Estado, elas me parecem emblemáticas dos novos tempos que vivemos. E tenho dúvidas se refletimos o suficiente sobre o que estamos fazendo ao achar aceitável que o Estado entre na casa das pessoas e julgue o subjetivo. Tudo isso vem embalado “em nome do bem”. Mas me parece que “o bem”, assim como “as boas intenções”, tem trilhado caminhos estranhos.

Como um juiz pode determinar o que é “abandono afetivo” em uma relação complexa como a de pais e filhos? E por que o Estado deveria fazer isso? E por que deveríamos achar legítimo que o faça?

Não tenho dúvidas de que Luciane sofreu. E desconfio que seu pai também pode ter sofrido. E gostaria que o sofrimento de ambos jamais tivesse se tornado público, porque acho que isso deveria seguir sendo tema do privado – longe da mão do Estado e longe dos holofotes. Mas, como abri a porta do meu apartamento na semana passada e me deparei com o rosto de Luciane no jornal, é preciso pensar sobre isso.

As imagens de Luciane, com sua expressão sofrida e chorosa, mesmo quando sorridente, provocam-me aflição. Porque é uma mulher de 38 anos, mãe e professora, dizendo coisas como: “Desde que eu nasci, meu pai nunca me quis!”. Eu facilmente poderia ver essa frase na boca de uma adolescente falando com as amigas num bar ou no pátio da escola. Mas, em uma mulher adulta, essa queixa – e uma queixa pública, com acolhimento público – me causa estranheza. Como se estivesse fora de lugar, deslocada no tempo de uma vida.

Luciane se coloca numa posição infantilizada. E me parece que ela encarna a posição infantilizada na qual todos nós nos colocamos ao permitir que o Estado legisle e arbitre sobre como devemos amar ou como devemos educar um filho. Como se jamais nos tornássemos adultos, na medida em que precisamos de um Estado-pai para nos dizer o que fazer. Um Estado que cada vez mais se arma do direito de entrar dentro das nossas casas e determinar como devemos viver.

São tempos curiosos. E o mais curioso é que a tese do “abandono afetivo” seja acolhida na mesma época em que a família já não é mais aquela. Nem sempre o pai biológico é aquele que assume a função paterna. Ou a mãe biológica é aquela que desempenha a função materna. As combinações, hoje, são as mais variadas. E nem sempre o pai que paga as contas é o pai que busca na escola, coloca a criança no colo, conta histórias antes de dormir, repreende um deslize ou conversa sobre a iniciação sexual da filha ou do filho. Pode ser – e pode não ser.

A função paterna pode ser assumida pelo padrasto, por um tio, por um irmão mais velho, pelo avô ou mesmo por uma mulher, em um casamento gay. E o mesmo acontece com a função materna. Para ser pai ou mãe, não basta gerar uma criança, é preciso “adotá-la”. E isso vale também para os pais biológicos. E nem todos conseguem ou desejam fazê-lo. Quem desempenha a função paterna ou a função materna é aquele que gerou uma criança e “adotou-a”. Ou aquele que adotou uma criança e “adotou-a”. São dois atos – e não um. E o segundo é mais difícil, demorado e cheio de percalços.

Que o pai biológico de Luciane se responsabilize ou seja responsabilizado pelo sustento material da filha ninguém discute. Mas não é possível obrigá-lo a ocupar a função paterna no sentido mais amplo e subjetivo. Não há como obrigar ninguém a ser pai ou mãe no sentido pleno. Se o Superior Tribunal de Justiça acredita ter esse poder e, para exercê-lo, bastaria obrigar um pai a pagar um valor em dinheiro, está completamente equivocado.

Todos nós temos de lidar com o que consideramos ausência ou falta de afeto, em várias medidas ao longo da vida. Faz parte da complexidade das relações humanas. E faz parte do humano do nosso tempo acreditar que nunca é amado o suficiente – não só pelos pais, mas pelos filhos, pelos namorados, pelos maridos e pelas esposas, pelos amigos, pelo mundo inteiro.

Temos de lidar com as faltas inerentes a qualquer vida da melhor forma que conseguirmos – e lidar com isso significa crescer. E crescer significa parar de choramingar e seguir adiante. Acho grave que a Justiça considere legítimo cristalizar essa mulher adulta no lugar de vítima e de menina abandonada. E congelar esse homem no lugar de pai ausente e de algoz. A vida é mais complicada do que isso. E um juiz tem o dever de compreender isso. As implicações públicas da decisão do STJ, na minha opinião uma decisão desvairada, ecoarão na vida de todos nós.

Em entrevista à rádio CBN, a ministra Nancy Andrighi afirmou que a decisão do STJ “analisa os sentimentos das pessoas”. Se analisa, ministra, errou. Não cabe ao STJ ou qualquer tribunal analisar “sentimentos” e desferir punições pela ausência ou excesso de “sentimentos”. Isso colocaria os juízes em lugar bastante indevido.

A ministra também disse: “Não se pode negar que tenha havido sofrimento, mágoa e tristeza, e que esses sentimentos ainda persistam, por ser considerada filha de segunda classe”. Alguém conhece uma vida ou mesmo uma relação entre pais e filhos que não tenha sofrimento, mágoa ou tristeza mútuas? Como é que uma juíza pode comprar a versão de filha de “segunda classe” de uma forma tão barata?

A ministra ainda disse mais: “Todo esse contexto resume-se apenas em uma palavra: a humanização da Justiça”. Pelo contrário, me parece que a decisão ignora justamente a complexidade e a ambivalência das relações humanas. E desumaniza, ao compensar afeto com dinheiro – o que também é mais um dado interessantíssimo da nossa época de relações monetarizadas.

Luciane, por sua vez, afirma que não sente “raiva ou mágoa” do pai. Só quer “justiça”. Se colocar o pai no banco dos réus e dizer ao país inteiro que ele é um pai ausente, relatando suas desventuras nos mínimos detalhes, não é uma vingança monumental, eu não sei o que é. Mas que Luciane busque isso, podemos até compreender. Que um tribunal legitime a vingança é que é surpreendente. O que poderíamos estar nos perguntando, neste momento, é: como a gente faz para alertar um juiz por “abandono da razão”?

Na Folha de S. Paulo do último sábado (5/5), há duas fotos de Luciane: uma segurando um retrato dela quando bebê, no colo da mãe; a outra vestida de caipira na escola. São fotos comoventes e também são fotos escolhidas para comover – o que me faz ficar ainda mais aflita por ela. As duas fotos, assim como seu discurso, parecem dizer: “Pai, veja como sou ‘amável’”. Ou: “Brasil, veja como sou ‘amável’. Por que este homem mau não quis me amar?”. Parece que é isso que Luciane foi buscar na Justiça: a comprovação, pelo Estado, de que ela é ‘amável’, o pai é que falha. E continua, tristemente, tentando chamar a atenção do pai.

O problema é que dificilmente Luciane conseguirá seguir adiante, paralisada como parece estar no mesmo lugar simbólico. E mais difícil será agora que o tribunal a acompanha na ilusão de que é possível obrigar um pai a ser pai. Ou obrigar um pai a amá-la. E não há dúvida de que ela sofre muito com tudo isso. Tornar-se adulto, porém, é descobrir que o baralho nunca estará completo, que nem mesmo existe um baralho completo. Temos de jogar com as cartas que temos. E tentar recuperar cartas que jamais existiram, como se elas estivessem apenas perdidas, não nos ajuda a viver melhor. Apenas nos congela em um lugar infantil.

É um caso fascinante pelo que revela sobre o nosso tempo. E há bem mais ainda para se ver nele. Por enquanto, ainda queria lembrar que, às vezes, o melhor que pode acontecer a um filho é que certos pais e mães fiquem bem longe.

(Publicado na Revista Época em 07/05/2012)

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