Dentro da mãe, um pedaço arrancado de mim

A bela (e dolorosa) regeneração de uma filha pela palavra escrita

Está tudo bem, mamãe está bem. Era só o que Paula Corrêa queria ouvir naquelas horas nebulosas em que despertava na UTI do hospital clamando por água. Ela sentia tanta sede, e as gotas que pingavam em sua boca eram oceanos sobre o deserto que era ela. Paula doía inteira, pedia analgésicos. Estava tudo bem. Havia menos dela agora. Bem mais que a metade do seu fígado fora arrancada para implantar na mãe numa cirurgia de dez horas, numa cirurgia em que Paula tinha um por cento de chance de morrer, um por cento que ficou se repetindo dentro dela nos dias anteriores. E agora o que Paula queria saber é se a parte viva dela estava pulsando dentro da mãe, curando a mãe, reparando a mãe, vivendo a mãe. Estava. Mas não o suficiente. Dias depois, com um dreno cheio de sangue enfiado nas vísceras, Paula caminhou até o corpo da mãe que já não estava.

“E foi no trânsito no meio do caos da cidade que ela se foi. Numa tarde de céu azul qual temperatura não lembro, talvez tivesse um arco-íris no céu que não reparei. Havia um silêncio ensurdecedor naquelas rosas brancas que enrolavam seu corpo, uma névoa deve ter passado sobre a minha cabeça e a única frase que consegui dizer foi: preciso sentar.”

Paula decidiria depois: “Vou chamar de Domingos todas as orações não atendidas por Deus”.

O que você faz depois de ser enterrada viva? Como compreender que um pedaço arrancado de você em vez de salvar, morre com a sua mãe? Como estar fora e dentro de um túmulo, ao mesmo tempo? Como estar viva e morta simultaneamente? Como se carregar pelas ruas, tão menos?

Para Paula, só havia uma regeneração possível. Pela palavra. Escrita.

Tudo o que mãe diz é sagrado (LeYa), lançado na noite de sexta-feira, é um livro. Mas é também um luto – e um renascimento. É o que acontece dentro de Paula Corrêa. No dia seguinte à cirurgia, a enfermeira passava e passava o aparelho do ultrassom, mas não encontrava o que buscava. Havia sobrado tão pouco do fígado de Paula, que ela não achava. Precisou chamar a médica. O livro é a narrativa do que se passa dentro de Paula enquanto seu fígado se regenera. Mas é o que se passa em camadas tão profundas que nenhum ultrassom alcançaria.

Para algo tão literal, tão visceral por definição, só há um jeito de não sucumbir à insanidade. Simbolizando. Ferozmente simbolizando. Só a palavra salva. A palavra humana. Dia após dia, noite após noite, alguns deles sem saber se era dia ou noite, Paula testa a vida. “Eu quase, quase não fiz uma curva hoje.” Ela não está só. São as patas de Astor, seu cachorro, que a acordam avisando que o sol nasceu. É pela fome de Astor, com seu focinho molhado, que ela levanta da cama. É porque ele precisa se exercitar que ela caminha até a praça da cidade gigante. São as lambidas de Astor que a despertam quando ela cai. “Então é ele quem está me educando, ou melhor, adestrando meu ímpeto de nunca ser.”

Alguém vivo ainda precisa dela. Astor e Paula, quem adivinharia o tamanho da tragédia ao ver aquela mulher de olhos extraordinários com seu cachorro grande demais no meio da praça? Que um dia tentou salvar uma borboleta alquebrada na calçada, no meio da fuligem dos ônibus que passavam velozes demais?

“É simples entender que cheguei até aqui sem mim. Nenhuma alma me acompanha desde então. Não diria que esqueci de viver. Apenas não encontrei um conjunto confortável que caiba no meu corpo. É um moribundo que me habita. Um outro, que não está mais aqui.”

Uma vez nos encontramos na padaria do bairro, sob o olhar vigilante, quase hostil de Astor, e Paula contou que estava aprendendo a costurar para terminar a colcha que a mãe deixou pelo meio. “Minha mãe deixou algumas coisas inacabadas. Eu sou uma delas.”

Astor é grande demais, a gente logo vê. Paula não cabe no corpo, a gente não sabe. “Eu não me reconheço quase o tempo todo em que me encontro, é o meu corpo que muda, eu tenho uma corporalidade que nunca me cabe, estou sempre extrapolada pelos meus poros, ou completamente pendurada como se fosse um cabide, ou apenas minguada em exaustão.” Como inventar uma nova corporalidade depois de perder tanta carne? “Acredito que seja consumado o fato de eu não ter cabimento.”

Quem seria ela, ela que falta? Como é que uma ausência tão imensa não aparece no avesso do espelho?

“Eu teria uma senha, um segredo abismal que me separa do mundo. Eu tenho. Eu tenho um segredo. Eu fui enterrada viva, e isso basta para me alavancar soturnamente para outra dimensão. Posso ouvir quantas músicas forem, e elas serão sempre tristes. As bandas que ouço são sempre desafinadas, não acompanham o ritmo do mundo. Eu tenho uma dificuldade extrema em acompanhar o mundo, entender o que as pessoas falam no exato segundo em que elas proferem as palavras. Eu vou entender muito tempo depois, com sorte. No mais, sou inexata e indecisa. Cambaleio sobre verdades, flutuo ao lavar a louça, tomar um banho é sempre um ato poético.”

Toda morte de quem amamos é uma amputação. Todo luto uma regeneração. Para Paula Corrêa, o que é simbólico é também literal. Ela sabe quando acorda que é preciso converter carne em linguagem. O horror sem nome em algo que possa ser nomeado. Só é possível viver com aquilo que podemos dizer. É isso que nos faz humanos. É este o livro de Paula, que antes tinha um corte de 30 centímetros atravessando a barriga, e agora tem uma cicatriz em curva, “montanhosa”.

É um pouco mais. Por um momento, ela havia sido a mãe, a mãe tinha se tornado filha. Ao doar seu próprio fígado para salvar a vida da mãe, não é um renascimento que se busca? Não é um dar à luz? É isso e talvez ainda um pouco mais. Um parto às avessas, mas também uma fecundação. Neste ato de extrema potência, neste ato quase fálico, de repente ela descobre-se radicalmente impotente. Impotente e presa. A filha fecunda com seu fígado são o corpo doente da mãe, mas não consegue sair desse corpo. E permanecer aprisionada no corpo da mãe é o pesadelo de todas as filhas. Que, no caso de Paula, aconteceu.

Tudo o que mãe diz é sagrado é, de fato, uma dessacralização. É só dessacralizando que uma mulher pode existir, para além de uma existência de filha. É só rompendo o território literal e simbólico do corpo da mãe que é possível para uma mulher criar relações com outros corpos. E então saber que existe. E então viver.

Paula Corrêa faz essa retomada do corpo de uma forma magistral. Sem poder salvar a mãe do jeito concreto, ela devolve a vida da mãe pela narrativa. A mãe agora existirá para sempre nas palavras. Para sempre, além dos corpos. E Paula dá a si mesma, pelo parto das palavras, um corpo na vida concreta. Um corpo seu. Um corpo que se sabe faltante não porque perdeu um pedaço do fígado, mas porque é da condição humana ser faltante.

Pela palavra, salva a ambas. E converte o que era horror indizível em obra de arte.

(Publicado na Revista Época em 25/03/2013)

 

“Dom Ciccillo” e o fim do mundo

Tudo indica que isso que estamos vivendo não é a realidade

Quando o sol nasceu com a indiferença de sempre em 22 de dezembro, perguntei a um insistente apocalíptico das minhas relações como ele explicava que o mundo não havia acabado, tal qual ele havia repetido durante o ano inteiro como um mantra. Ele me desferiu um olhar de pena e respondeu, altivo: “E você achou que o mundo acabaria em fogo e fumaça”?

Achei a resposta um tanto 171, mas os primeiros meses deste ano começam a me assombrar. E se ele tinha razão, o mundo acabou, e eu agora me encontro numa espécie de realidade paralela? O primeiro sinal apareceu dias depois do apocalipse que parecia não ter acontecido, quando José Sarney (PMDB) defendeu, numa entrevista publicada na Folha de S. Paulo de 31 de dezembro, que ex-presidente deveria ser proibido de disputar eleição. “Acho que deveríamos ter uma legislação que não permitisse a nenhum ex-presidente da República, deixando o governo, que voltasse a qualquer cargo eletivo”, afirmou o homem que chegou à Câmara dos Deputados em 1955. Depois de deixar a presidência da República, em 1990, foram três mandatos como senador e mais de duas décadas ininterruptas no Congresso. Agora, em vias de aposentamento, defendia que para os outros deveria ser proibido. Estranho, muito estranho, desconfiei. O ano virou, e a realidade continuou ainda mais fantástica do que o habitual. Fantástica demais para ser confiável.

Uma série de acontecimentos tem me feito duvidar da realidade. E, na quarta-feira da semana passada, 13 de março, simplesmente parei de acreditar. Nesta data, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei 6167, de 2009, batizando de “Rodovia Cecílio do Rego Almeida” o trecho da BR-277 localizado entre as cidades de Paranaguá e Curitiba, um dos principais da região sul do país. Ao ler a notícia, puxei da memória: “Cecílio do Rego Almeida, conhecido desde a ditadura militar como ‘Dom Ciccillo’? Aquele que foi chamado pela imprensa de ‘o maior grileiro do mundo’”? Não, claro que não.

Procurei o nome do autor do projeto: deputado André Vargas, atual vice-presidente da Câmara. Não, tive certeza que não. Como um deputado do PT, partido apoiado por boa parte dos movimentos sociais da Amazônia (hoje com bem menos afinco que na década passada), faria uma homenagem póstuma ao homem acusado de grilar uma área quase equivalente à soma dos territórios da Bélgica e da Holanda, na Terra do Meio, no Pará? Um reconhecimento público ao homem que se apossou de terras públicas, terras indígenas e até de assentamentos do Incra? Impossível, eu já concluía, quando vi no Twitter uma manifestação do deputado José Mentor, também do PT, anunciando, aparentemente com orgulho, que havia sido o relator do projeto, aprovado nessa última comissão.

Senti aquela vertigem cada vez mais familiar, sem saber se acreditava na lógica, que me dizia ser impossível, ou no que tentam me fazer acreditar que é a realidade. Entrei no site da Câmara e lá estava o projeto, aprovado em três comissões (a de Educação, a de Viação e Transportes e a CCJC). Fui conferir a justificativa do autor, deputado André Vargas: “A denominação que se pretende conferir ao trecho citado é uma justa homenagem ao Sr. Cecílio do Rego Almeida, empresário fundador e presidente do Conselho de Administração do Grupo CR Almeida, que reúne mais de 30 empresas e atua nas áreas de construção pesada, concessão de rodovias e logística de transporte, química e explosivos”. E, ao final: “Seu trabalho foi perseverante em seu objetivo, e agora, após a sua morte (…), este benemérito cidadão poderá receber a merecida homenagem”.

Me parecia evidente que eu estava sofrendo de alucinações. “Dom Ciccillo” seria homenageado por sua “perseverança”? Qual “perseverança”? Com certeza não a de se se apropriar de cerca de 6 milhões de hectares de floresta amazônica, num reino apelidado como “Ceciliolândia”. Merecida homenagem a “Dom Ciccillo”? O mesmo homem que, numa entrevista à revista Caros Amigos, chamou Marina Silva, então ministra do Meio Ambiente, de “uma indiazinha totalmente analfabeta e doente”?

Assim como definiu o ex-governador do Rio Grande do Sul Olívio Dutra como “um bicha, que é veado”? E se referiu a Chico Mendes como “esse seringueiro que se fodeu”? (Os leitores me perdoem a deselegância, mas as frases são do homenageado e, portanto, se justificam no contexto.) Na mesma entrevista, de 2005, “Dom Ciccillo” assim se refere à ditadura militar, que muitas grandes obras concedeu à sua empreiteira – e também ao partido do autor do projeto de lei, que agora faz a ele uma homenagem póstuma: “Entendo que foi uma ditadura, mas a mais leve das ditaduras. Hoje existe uma ditadura no PT mais forte que a dos militares”.

Não é óbvio, evidente, claríssimo que o projeto de lei não é real? Eu estou com a página da Câmara aberta diante de mim, mas só pode ser uma conspiração. A página verdadeira deve ter sido substituída por esta, falsa. Não acreditei nem por um minuto. “Dom Ciccillo”, homenageado pelos serviços prestados ao Brasil? Fiquei imaginando a cara de Raimundo Belmiro e muitos outros da Terra do Meio, que testemunharam a atuação de “Dom Ciccillo” na Amazônia, ao tomar conhecimento de que essa piada circulava no país como coisa séria. Quem seria o néscio que acreditaria numa coisa dessas? Eu é que não. E acreditei ainda menos quando li na Gazeta do Povo, do Paraná, que, por coincidência, a rodovia batizada com o nome de “Dom Ciccillo” é a mesma em que uma das empresas da CR Almeida administra o pedágio. Não, é claro que isso não está acontecendo.

Já não tinha acreditado no que me garantiam ser a realidade quando o Incra destinou um lote de terra à mulher do homem que será julgado pelo assassinato de José Cláudio Ribeiro e Maria do Espírito Santo. Para quem não lembra, os dois líderes extrativistas foram mortos numa tocaia, em maio de 2011, em Nova Ipixuna, no Pará. Tiveram pulmões e corações perfurados, e uma orelha de José Cláudio foi arrancada para comprovar a execução. O julgamento de José Rodrigues Moreira, acusado como mandante, e dos dois supostos executores do crime está marcado para 3 de abril. Mas no início de março foi divulgado que o Incra havia concedido um lote de terra à mulher de Moreira, a mesma área da qual ele tentou expulsar três famílias e só não conseguiu por causa da resistência de José Cláudio e Maria. Em resumo: o homem acusado de ordenar um duplo homicídio ganhou do Estado a concessão da terra que motivou o conflito. Uma espécie de prêmio.

Alguém acredita que o Incra cometeria uma barbaridade dessas? Eu nunca acreditei. E, como já não acreditava, também não levei a sério quando o Incra afirmou ao Ministério Público Federal que a concessão do lote foi um “equívoco” – e que a área seria retomada pela via jurídica.

Minha resistência em acreditar numa realidade que parece ficção de quinta categoria já havia sido testada antes, quando o deputado Marco Feliciano (PSC), pastor evangélico de sua própria igreja, a “Catedral do Avivamento”, se tornou presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara. Marco Feliciano? Eu só conhecia um. Este, entre outros barbarismos, havia afirmado o seguinte: “Os africanos descendem de ancestral amaldiçoado por Noé”. E ainda diria: “O reto não foi feito para ser penetrado”. Logo, não poderia ser este Marco Feliciano o presidente de uma comissão destinada a zelar pelos direitos de, entre outras minorias, negros e homossexuais. Portanto, é óbvio que eu não podia acreditar. E não acreditei.

Se fosse do tipo crédulo, como tantos por aí, eu acreditaria não só que o deputado Marco Feliciano é presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, mas também que o senador Blairo Maggi (PR), ruralista que chegou a ganhar o “Motosserra de Ouro”, troféu do Greenpeace destinado a quem mais colabora com a devastação, é o presidente da Comissão de Meio Ambiente do Senado. Teria de acreditar inclusive que o deputado João Magalhães (PMDB), que responde a três inquéritos no STF (peculato, tráfico de influência e crime contra o sistema financeiro), é o presidente da Comissão de Finanças e Tributação da Câmara. E teria de acreditar até mesmo que Renan Calheiros (PMDB), que em 2007 renunciou à presidência do Senado por suspeita de corrupção, é hoje de novo o presidente do Senado.

Quem acredita nisso? Eu não.

(Publicado na Revista Época em 18/03/2013)

Eternidade de mercado

A quem pertencem os mortos? Quando Audrey Hepburn ressuscita para vender chocolate

Por um momento, me tornei cúmplice de Victor Frankenstein. Essa foi a sensação quando assisti ao comercial de chocolate estrelado por Audrey Hepburn 20 anos depois de morta. Primeiro, um encantamento. A Audrey viva, a Audrey jovem, se movendo, baixando os cílios, será que ela vai dizer “thank you”? Não há nenhum “thank you” como o da Audrey em A Princesa e o Plebeu. Em seguida, veio um mal-estar, a sensação de que algo ali estava muito errado, mas não do jeito habitual. Era como testemunhar uma profanação. Não era a Audrey, a Audrey morreu. Alguém estava usando a imagem da Audrey para vender chocolate. E eu ali, diante da tela, era quem completava a violação do corpo da mulher que me fez tão feliz no cinema. Não haveria profanação se eu não a estivesse consumando com o meu olhar.

Quem não viu, pode assistir aqui. Audrey Hepburn voltou à vida pelo milagre da computação gráfica. Um ano de trabalho dos realizadores para que uma das atrizes mais míticas da história do cinema pudesse fazer um comercial de chocolate. Audrey está num ônibus, na costa amalfitana, na Itália, quando o trânsito é interrompido por causa de um acidente com uma carroça. Pela janela do ônibus, ela espia o homem charmoso que dirige um conversível. É apenas um baixar de cílios, um flerte como só Audrey é capaz. Ele oferece carona, e ela desembarca linda, num daqueles vestidos acinturados que dançam ao redor de sua silhueta esguia, num caimento impecável. Audrey dá outro desfecho para a história. Seus lábios vermelhos, perfeitos, só querem chocolate.

Não é a primeira vez que um morto é ressuscitado para vender alguma coisa. Fred Astaire já dançou com vassouras e aspiradores de pó quando estava a sete palmos. Mussum, dos Trapalhões, está de volta num comercial de carro: “Cacildis! É o Fusquis!”. A voz do pai morto de Tiger Woods já foi usada numa propaganda. Em 2007, o apresentador e comediante da TV britânica Bob Monkhouse apareceu ao lado do que seria seu próprio túmulo (de fato ele havia sido cremado), numa campanha de prevenção ao câncer de próstata, doença que o matara anos antes. O Bob ressuscitado ao lado do túmulo do Bob ainda morto diz: “O que me matou mata um homem por hora na Inglaterra. Mais do que a comida da minha mulher”.

Mas é Audrey Hepburn, nessa ressurreição por computação gráfica, que talvez explicite melhor o conflito ético não pela sua morte, mas pela sua vida. Ela que seduziu homens e mulheres, mas quase como uma fada. A maioria dos homens que conheço – e algumas mulheres – foi apaixonado por Audrey, teria se casado com Audrey, e emite suspiros de encantamento diante da tela que reprisa seus clássicos. Mas (quase) nenhum deles pensa em sexo com Audrey. Ela é um tanto impenetrável, mesmo quando faz uma prostituta em Bonequinha de Luxo. A gente quer amá-la, cultuá-la, não necessariamente tocá-la. Talvez a criatura mais parecida com Audrey na ficção seja o Bambi.

Essa é uma das explicações possíveis para a sensação de profanação que, como eu, alguns sentiram ao vê-la num comercial. Como alguém ousa não apenas violar, mas recriar o corpo tabu de Audrey Hepburn? Será que se a propaganda fosse com Marilyn Monroe requebrando seus quadris bíblicos em nossa direção, sentiríamos tanto estranhamento? Marilyn cantando “Happy Birthday, Mister President” para Obama, hoje, na Casa Branca? A questão ética é a mesmíssima, mas será que a estranheza se daria? Ou com Marylin tudo é permitido e nada castigado? Ela, que nos provocava a sensação oposta, a de desejar o seu corpo e acreditar que ela desejava que a tocássemos. Talvez logo um desses comerciais de ressuscitação nos obrigue a descobrir.

Vivemos esse dilema ético na literatura e depois no cinema a partir da modernidade, quando a ciência se tornou um protagonista novo e decisivo no nosso cotidiano, alterando o mundo e a nossa relação com o mundo, com os outros e com nós mesmos. Enlouquecidos de dor, muitos foram os personagens da ficção que pagaram um preço alto por tentar devolver a vida a quem amavam, esposas ou filhos. O que retornava nunca era a pessoa amada e perdida, mas um outro monstruoso, na ideia de que o corpo poderia voltar à vida depois depois de algum procedimento proibido, mas jamais a alma ou o espírito. Não me recordo de nenhum filme ou livro em que a ousadia tenha tido um final feliz. Ousar tomar de um suposto deus a prerrogativa da criação ou o retorno do mundo dos mortos sempre foi punido com o pior dos castigos – e em geral com a morte irrevogável do transgressor.

Stephen King foi um dos escritores do século 20 que exploraram a força dessa transgressão. Mas a criatura de Victor Frankenstein, o cientista do século 19 que recriou a vida no clássico livro de Mary Shelley, é quem persiste no imaginário. Diferentemente do monstro, nascido dos pedaços de vários mortos, a Audrey da computação gráfica é quase tão perfeita e bela quanto a nossa lembrança dela. E a amamos pelo que foi, não pelo que será. Mas como no olhar de Frankenstein para a sua criatura, talvez também nesse caso exista um horror para além do encantamento de vê-la mais uma vez.

Pode ser apenas nosso temor atávico, que a literatura e depois o cinema tão bem expressaram, o risco extremo de “mexer com os mortos”, que tenha me feito sentir, como tantos, que estava profanando o corpo/túmulo de Audrey Hepburn. Um temor do qual estamos impregnados também porque a ficção o tornou real e terrorífico de várias maneiras nos últimos séculos. Mas mais do que um dilema da moral religiosa, que me interessa bem menos, a questão ética é legítima e das mais interessantes. Temos esse direito? A quem pertencem os mortos?

Todos nós desejamos a eternidade – ou quase todos. Sonhamos com um reconhecimento que vá além da nossa vida, sempre muito mais curta e limitada do que gostaríamos. Invejamos aqueles que permaneceram com sua obra depois de mortos – pelo menos os que permaneceram pela admiração, não pelo mal que perpetraram. Aliás, como seria ressuscitar Adolf Hitler? Será que alguma agência de publicidade se interessaria? O que Hitler poderia vender? Redenção, talvez? Vingança? Será que seria libertador se vingar de Hitler como fez Tarantino em Bastardos Inglórios, dando um outro desfecho à História, mas não com um ator, mas com o corpo revivido pela tecnologia? Será que seria legítimo julgar e punir pelos seus crimes um Hitler renascido?

Questões que serão cada vez mais presentes na nossa vida – e para as quais não há respostas fáceis. É diferente o ator que interpreta um outro que viveu e a tentativa de recriar a própria pessoa que morreu e botá-la atuando como se viva estivesse. Há um limiar transposto neste ato. Ou não? É ético ultrapassá-lo? Como seria Marlon Brando, para mim o melhor de todos em qualquer tempo, renascido de um computador? Este outro seria capaz de gritar por Stella em Um bonde chamado desejo e nos prostrar para sempre? O que é ser um ator, afinal? Ou, um pouco mais complicado, o que é ser? Hollywood tem projetos para reviver grandes atores mortos e colocá-los atuando em filmes atuais. Assim como recriar atores vivos, mas muitas décadas mais jovens. Neste caso, talvez a diferença fique mais clara: um ator vivo pode escolher se quer aparecer ou não como uma versão de computador, o morto não.

Desejamos a eternidade. Mas talvez tenhamos de começar a temê-la. Mais do que todos, aqueles que por alguma razão se tornaram célebres. Conhecemos o mal que parte dos herdeiros, em geral ávidos por dinheiro, faz à obra de seus pais, tios e avós famosos. A exploração da imagem pode atingir agora proporções inusitadas. Para os filhos de Audrey Hepburn, a mãe ficaria “orgulhosa” por esse novo papel. “Ela costumava falar sobre seu amor por chocolate e como ele elevava seu espírito”, disseram à imprensa, justificando a autorização para o comercial. Quando Fred Astaire dançou com os equipamentos de limpeza “Dirt Devil”, sua viúva autorizou, mas a filha não perdoou. Ela declarou na época, final dos anos 90, fazendo um trocadilho com o nome da marca (devil é diabo em inglês): “É muito triste que, depois de sua maravilhosa carreira, ele tenha sido vendido para o diabo”.

Será que Audrey pensaria em fazer um comercial de chocolate? Desejaria? Pode ser que sim, pode ser que não, o ponto é que nunca saberemos. E, se não podemos saber, temos o direito de escolher por ela? E o que mais Audrey e todas as grandes celebridades, de todas as áreas, vão ainda vender, mesmo depois de enterradas ou cremadas? Junk food, agrotóxicos, armas? Será que vão virar cabos eleitorais de candidatos em eleições? Ou defender causas que jamais defenderiam, ou fazer lobby para uma indústria que desprezavam? A possibilidade de uma vida de zumbi, fora de qualquer controle, à mercê das necessidades financeiras dos parentes, pode ser assustadora. Na morte se tornou possível trair toda uma vida.

É “só” um comercial, alguns podem dizer. Uma brincadeira, uma homenagem, um encantamento. Não é Audrey, mas a sua imagem. Mas não foi uma imagem de Audrey – e não a própria Audrey, se é que existe essa essência, que amamos? Não é a sua imagem que se eternizou como memória? Tudo o que tivemos não foi sempre uma imagem? Ela se foi. Mas nunca a tivemos de fato. De certo modo, o que tivemos é o que temos agora no comercial. Tivemos o que Audrey, viva, quis e pôde nos dar. Agora, porém, ela come chocolate “Galaxy” à sua revelia.

Não deixa de ser muito significativo que, assim que inventamos uma versão da vida eterna, ela seja colocada a serviço do mercado. Não mais o dilema de contrariar uma suposta prerrogativa divina, mas a suprema vulgaridade de ressuscitar mortos para vender chocolate ou vassoura. Não mais o medo do castigo por ousar criar vida, seja pelo amor à própria vida, seja pelo ideal de superar o limite máximo do humano, seja pela dor insuportável da perda de quem amamos. Não, os herdeiros do hoje querem apenas garantir que o morto continue sendo uma excelente e ilimitada fonte de renda para os vivos. Não mais uma transgressão, mas apenas um exemplo de livre iniciativa e visão de oportunidade.

Há ainda uma ironia possível. No dilema moderno, a aspiração dos vivos era punida porque o morto ressuscitado vinha acompanhado de uma alma, em geral monstruosa, que não era a da pessoa amada e perdida. Ou tinha, como na criatura de Frankenstein, uma alma que não podia ser controlada pelo criador. Hoje, a alma dos mortos renascidos não está em questão. Sua vontade, assim como seus corpos, aos vivos pertence. Eles, que tinham uma alma, a perdem para melhor servir. Para o mercado, o simulacro é mais do que suficiente. E um grande negócio: segundo a revista Forbes, o uso da imagem de celebridades mortas, numa lista liderada por Elizabeth Taylor, rendeu quase R$ 1 bilhão no último ano.

O tema é fascinante. E como tudo que é novo, as dúvidas são bem mais numerosas que as certezas. Ainda assim, persiste em mim não mais um encantamento, nem um mal-estar, ou uma repulsa. Não sou mais a cúmplice de Frankenstein, seu tempo acabou. Em mim resta uma melancolia diante da Audrey tentando me vender uma barra de chocolate “Galaxy”. A eternidade pós-moderna chegou. E que pobre de desejos ela é. Talvez um dia sejamos julgados, não por um deus vingativo, mas pelas gerações futuras, pela vulgaridade de nossas aspirações.

(Publicado na Revista Época em 11/03/2013)

Açúcar, Sal e Gordura: as engrenagens da ‘junk food’

O que colocamos em movimento ao abrir um saquinho de batatas fritas ou um refrigerante? Um livro e um documentário nos ajudam a compreender os métodos da indústria de alimentação e suas consequências nada inocentes

Tenho um amigo que tenta me ensinar como é o modo “perfeito” de comer uma determinada batata frita industrializada. “Você coloca sobre a língua, mas virada para cima, e deixa que as papilas gustativas entrem em contato com a batata. Aí pressiona delicadamente, com os dentes, num crac. Ela vai se desmanchar em puro prazer.” É assim mesmo que ele fala e, ao falar, sua voz ganha solenidade. Ele fecha os olhos para demonstrar a intensidade da sua fruição. Em seguida, me pergunta: “Você sentiu o crac, seguido pela explosão de sabores”?

Meu amigo trata a batata como se fosse uma hóstia, e sempre achei graça da sua devoção por algo que vem dentro de um tubo, nos sabores mais bizarros, mas que, sim, desmancha na boca e dá prazer. A junk food (comida e bebida tranqueira, porcaria e que faz muito mais mal do que bem) não é a minha igreja. Embora já tenha lido artigos e livros e assistido a alguns documentários sobre os métodos da indústria da alimentação, que muito se parece com a do tabaco, eu não tinha uma ideia tão precisa de que, ao expressar seu deleite, meu amigo transformava-se não apenas num consumidor, mas num produto. E num produto muito bem acabado de milhares de cientistas, psicólogos e marqueteiros a serviço das corporações de alimentos. Meu amigo, tão inteligente, tornava-se o consumidor perfeito – ou o idiota perfeito.

Os métodos da indústria de junk food foram dissecados pelo jornalista americano Michael Moss num livro-reportagem que acabou de ser lançado: Salt Sugar Fat: How the Food Giants Hooked Us. Em tradução livre: “Sal, Açúcar, Gordura: Como os Gigantes da Comida nos Escravizam”. Moss é um repórter investigativo que ganhou o Pulitzer de 2010, o prêmio mais prestigioso dos Estados Unidos, pelo seu trabalho sobre a indústria da carne. Em 20 de fevereiro, ele escreveu uma reportagem no The New York Times, abordando alguns dos principais tópicos do livro, que pode ser lida aqui. Para escrever sobre a indústria de junk food, o jornalista afirma ter entrevistado mais de 300 pessoas, entre cientistas, marqueteiros e CEOs das grandes corporações. Segundo ele, alguns estavam ansiosos para extravasar o que estava preso na garganta. Outros só falaram, com muita relutância, depois de serem confrontados com algumas das milhares de páginas de relatórios secretos obtidos de dentro da indústria. Entre os relatos escabrosos, aparece inclusive o Brasil: um alto executivo de uma companhia de refrigerantes (demitido quando quis mudar os métodos) conta como peregrinou pelas favelas brasileiras, para expandir o mercado a partir da estratégia de convencer pobres a consumir o que não precisam.

Ao final da investigação, o jornalista compôs um retrato sombrio sobre os métodos da indústria para manter os consumidores cativos, apesar da epidemia de obesidade que atinge não só os Estados Unidos, mas parte do mundo. Michael Moss chega a uma conclusão que, não fosse a qualidade da apuração jornalística, soaria como teoria conspiratória: a intensidade, tanto da fórmula química quanto das campanhas de venda, torna as pessoas extremamente vulneráveis, sendo quase impossível resistir. Para Michael Moss, a junk food parece ser uma espécie de droga sintetizada a partir de três ingredientes: sal, açúcar e gordura. Em seu trabalho, ele prova que CEOs, marqueteiros e cientistas sabem que estão produzindo não apenas salgadinhos, doces e refrigerantes, mas adultos e crianças com problemas cardíacos, hipertensos, diabéticos e com uma série de doenças relacionadas, que terão a vida encurtada no final e limitada no meio. Mas o que vale são os lucros – e eles são cada vez mais superlativos.

Entre as muitas declarações colhidas pelo jornalista, há algumas que se destacam pelo cinismo. “Eu otimizo sopas. Eu otimizo pizzas. Eu otimizo molhos para saladas. Nesta área, eu sou aquele que vira o jogo”, diz Howard Moskowitz, uma lenda da indústria, que há décadas vem “otimizando” produtos em baixa e transformando-os em armadilhas letais para homens, mulheres e crianças, usando para isso muito dinheiro, equipes de primeira linha e pesquisa de ponta. O cientista assim afirma sua total falta de conflito por produzir morte: “Não existe questão moral para mim. Eu fiz a melhor ciência que pude. Precisava sobreviver e não podia me dar ao luxo de ser uma criatura moral. Como pesquisador, sempre estive à frente do meu tempo”. Moskowitz estudou matemática e tem Ph.D em psicologia experimental em Harvard.

A reportagem mostra como vários produtos, de diferentes corporações, foram “otimizados” para dar ao público algo do qual ele não conseguiria escapar: o “bliss point” – que pode ser traduzido como o “ponto da felicidade”. Para atingi-lo, é necessário não apenas encontrar o sabor, a textura e a quantidade precisa dos ingredientes, a maioria deles nocivo à saúde, mas também investigar em profundidade os pontos de fragilidade de homens, mulheres e crianças. Identificar as barreiras – e quebrá-las uma a uma. As mães prefeririam dar comida saudável para seus filhos? Ok, mas sua principal queixa é a de que não têm tempo. Logo, é o tempo o flanco descoberto a ser atacado. Como alcançar as crianças diante da TV? Ora, com truques psicológicos como um slogan como este, de um produto que embala desejos de autonomia frente aos pais: “Todo dia você faz o que eles dizem. Mas na hora do lanche é você quem manda”.

Até hoje a indústria trabalha com a lista de “sete medos e resistências” à batata frita de saquinho, identificada ainda em 1957 pelo psicólogo Ernest Dichter: 1) você não consegue parar de comê-las; 2) elas engordam; 3) elas não fazem bem para você; 4) elas são gordurosas e fazem sujeira; 5) elas são muito caras; 6) suas sobras são difíceis de guardar; 7) fazem mal para as crianças. A partir desta descoberta, o psicólogo sugeriu à indústria mudanças como: em vez de usar a palavra “frito”, usariam “assado” ou “tostado”; para não dar a ideia de excesso, os salgadinhos passariam a ser vendidos em embalagens menores. Em outras palavras: o caminho era – e continua sendo – ajudar o consumidor a não ter culpa de comer o que faz mal para ele.

Como quando nos deparamos nos supermercados e lanchonetes com aquelas embalagens dizendo, em letras grandes: “Não tem gordura trans”. Em alguns casos, o produto nunca teve gordura trans, mas, ao dizer o óbvio, ajuda-nos a eliminar a culpa, ao alimentar de fato a nossa auto-ilusão de que podemos comer uma porcaria sem causar danos à saúde. É claro que o restante dos excessos, como a quantidade alarmante de sódio e/ou de açúcar etc, figura em letras bem menores. Como disse um dos entrevistados na reportagem: “O que precisamos fazer é remover as barreiras, dando aos consumidores permissão para beliscar”. Dito de outra maneira: “ótimo sabor, máximo prazer e mínima culpa com relação à saúde”.

Um dos casos esmiuçados na reportagem mostra como uma empresa diminuiu a quantidade de sódio de um determinado produto, marcando três gols ao mesmo tempo: fez bonito para o público, ao aparecer como uma companhia preocupada com a saúde; economizou milhões de dólares em sal, um insumo importante; e vendeu muito mais, porque os consumidores se autorizaram a comprar o produto por conta da redução de sódio e da mudança de imagem da empresa. Na prática, em grande escala era uma economia considerável para o fabricante, mas a redução, para o consumidor individual, era tão pequena que em nada diminuía o impacto nefasto sobre a saúde. É este o truque para nos fazer engolir, contentes e confortavelmente iludidos, aquelas embalagens que anunciam: “Agora com menos sódio”. A máxima das indústria de junk food é conhecida: sal, açúcar e gordura – tira um, aumenta os outros dois e estampa no rótulo aquele que diminuiu. Baseado em depoimentos e documentos internos, Michael Moss pôde afirmar: “A intenção das companhias é usar a ciência não para responder às questões de saúde, mas sim para evitá-las”.

Descobri que meu amigo tem poucas chances de resistir ao “crac” da batatinha lendo a seguinte descrição sobre o fabuloso complexo de pesquisa de um dos fabricantes: “Perto de 500 químicos, psicólogos e técnicos realizaram pesquisas que chegaram a custar até 30 milhões de dólares ao ano. A equipe de cientistas concentrou a maior parte dos recursos em questões como a crocância, a sensação tátil na boca e o sabor de cada um dos itens. Suas ferramentas incluíam um equipamento de 40 mil dólares que simulava uma boca mastigando, apenas para testar e aperfeiçoar o produto”. Com todo esse arsenal humano, científico e tecnológico, alcançaram a Lua: o ponto perfeito de quebra do salgadinho diante da pressão média de uma mordida humana.

Enquanto tudo isso acontece, lá na ponta há alguém – na realidade centenas de milhões de alguéns – como o meu amigo, extasiado com a hóstia de uma indústria que, diante do relato de Michael Moss, poderia encarnar uma versão contemporânea do Mefistófeles. De fato, o poder desse personagem em nosso tempo seria bem vulgar, prosaico como tem sido nossos desejos. Steven Whiterly, um cientista da área de alimentos que escreveu um guia citado por Moss e intitulado Why Humans Like Junk Food (“Por que Humanos Gostam de Junk Food”), assim explica a epifania da batatinha frita de saquinho: “É a chamada ‘densidade calórica evanescente’. Se algo dissolve rapidamente (na boca), nosso cérebro entende que não há calorias ali… E que podemos continuar comendo aquilo para sempre”.

No Brasil, o relato mais impressionante sobre a indústria de junk food e a epidemia de obesidade em crianças está no documentário “Muito além do peso”, de Estela Renner. O filme foi lançado em novembro e está disponível na internet. Se você ainda não assistiu, reúna a família ou os amigos e clique aqui. É quase obrigatório. Ao peregrinar pelo Brasil, a diretora busca responder à pergunta: por que 33,5% das crianças brasileiras estão acima do peso. Ou algo ainda mais alarmante: por que, pela primeira vez na história, há um número crescente de crianças com problemas de adultos – de coração, de respiração e diabetes do tipo 2 –, relacionados à obesidade. “Eu abro a felicidade”, diz uma criança, ao falar sobre o que sentia ao abrir um de seus produtos preferidos, demonstrando a relação íntima entre consumo e propaganda.

Em “Muito Além do Peso”, testemunhamos meninos e meninas que adoram batatas em saquinhos, mas não reconhecem uma batata ao natural – ou que confundem um abacate com um pimentão. Em um dos depoimentos, uma médica conta como uma das crianças que frequentam seu consultório precisa se esconder no banheiro da escola para comer uma fruta no recreio, com medo de ser hostilizada pelos colegas. Não é engraçado, é só triste. Entre os muitos achados de um filme feito para informar, provocar reflexão e promover mudança está a possibilidade de visualizar a quantidade de açúcar contida em alimentos presentes no cotidiano de quase todos. É um susto quando enxergamos o açúcar correspondente a uma lata de refrigerante, por exemplo, ou a gordura que há num saco de salgadinhos. Crianças com dor nas pernas para caminhar e que já não podem jogar futebol ou brincar, meninos e meninas ofegantes, com problemas cardíacos, contam e se contam na tela como vítimas de uma epidemia que já lhes rouba a vida. Como a garota que já teve trombose, ou o guri pequeno e já obeso que esperneia diante de pais impotentes até ganhar salgadinho.

Não é fácil ser pai e mãe diante de um assédio tão poderoso e tão insidioso como o da indústria de junk food. Mas é preciso ser pai e mãe. Segundo pesquisas apresentadas em “Muito Além do Peso”, crianças com sobrepeso aumentam o consumo de alimentos com alto teor de gordura, sal e açúcar em 134% quando expostas à publicidade. A média diária de permanência diante da televisão é de cinco horas. Como disse um dos entrevistados no documentário, referindo-se à publicidade na TV: “Você deixaria um vendedor formado em Harvard sozinho com o seu filho, dentro da sua casa, por tanto tempo”?

Documentários como o de Estela Renner e livros como o de Michael Moss são oportunidades para pensar e entender o que está acontecendo, enquanto somos tonteados por apelos de consumo dentro e fora de casa. São também estímulos para romper a passividade e tomar posição. No Brasil, as lutas vêm sendo travadas em vários palcos: dentro de casa e das escolas, na Justiça e no Legislativo. E as derrotas se acumulam. No final de janeiro, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), vetou a lei que restringia a publicidade de produtos alimentícios para crianças. Pelo texto, aprovado pela Assembleia Legislativa em dezembro, se tornaria proibido veicular anúncios de alimentos e bebidas pobres em nutrientes e com alto teor de açúcar, gorduras saturadas ou sódio, entre as 6h e as 21h, no rádio e na TV. Também seria vetado o uso de celebridades ou personagens infantis na venda de alimentos, assim como o uso de brindes promocionais, como os vendidos com sanduíches em redes de fast food (leia aqui). Em 22 de fevereiro, outra derrota. Desembargadores do Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª. Região confirmaram a suspensão da Resolução 24 (RDC 24), da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Na resolução, a Anvisa (leia aqui) obrigava os fabricantes a colocar nos produtos o alerta de que o consumo em excesso poderia causar problemas de saúde como diabetes, hipertensão e obesidade. Desde que a resolução foi aprovada, em 2010, a Associação Brasileira das Indústrias de Alimentação (ABIA) luta para derrubá-la – e tem conseguido, alegando que a propaganda é “uma forma de liberdade de expressão”, que só pode ser alterada por lei do Congresso Nacional. No Congresso, o projeto de lei que trata da regulação da publicidade dirigida a crianças se arrasta há 11 anos (leia aqui). Em 2013, como tem alertado o Instituto Alana (veja aqui), um dos mais combativos nesta luta, ao completar 12 anos terminará a infância do projeto – uma infância passada engatinhando de comissão em comissão. E mais uma geração de brasileiros terá deixado de ser protegida.

As sucessivas derrotas e procrastinações dão uma ideia do tamanho do lobby da indústria de junk food, assim como do marketing e da publicidade. Mas não acho que somos apenas vítimas do poder das grandes corporações. Esta posição, a de vítima – e agora falo de adultos, não de crianças – tem uma boa quantidade de verdade, mas não é toda a verdade. Se isso tudo dá tão certo é também porque até mesmo o lugar de vítima pode ser confortável, afinal ele nos coloca na posição de quem sofre a ação, mas não pode fazer nada para impedi-la. Mas neste caso podemos, sim, como mostra muita gente que tem lutado no espaço público para isso – e muitos que têm mudado sua relação com o consumo, com a publicidade e com a comida, botando limites dentro de casa e indo para as escolas debater. Em um texto sobre o documentário (leia aqui), chamado “Muito além do peso (na consciência)”, Viviane Zandonadi, jornalista especializada em gastronomia, diz: “Afinal, se somos o que comemos e não sabemos o que comemos, o que é que somos”?

O que nos falta, talvez, seja nos reapropriarmos do nosso próprio poder – inclusive o do voto. E compreender que escolher é um ato humano profundo, que determina não só o que pegamos na prateleira, mas quem somos na vida. Vale a pena perceber que, se tivéssemos qualquer limite para o nosso prazer imediato, a junk food jamais se tornaria o problema que é. Se tanto valorizamos o indivíduo e a individualidade, é preciso não empurrar para o outro quando nossas más escolhas se revelam um desastre. As responsabilidades são múltiplas e com diferentes proporções – e a indústria tem que responder pelo que fez e faz, especialmente no que se refere à manipulação ou à omissão da informação. Mas, neste embate, também desempenhamos um papel ativo – e ele é mais profundo do que engolir mais ou menos porcaria. Se a junk food pode ser considerada uma droga de comida, o que nos leva até ela é muito mais complexo – e por isso, mais difícil de mudar.

Em sua análise, Michael Moss afirma: “Se os americanos beliscassem (junk food) apenas ocasionalmente e em poucas quantidades, não teríamos hoje o enorme problemas que temos. Mas por causa do tanto de dinheiro e de esforços investidos por décadas aperfeiçoando esses produtos, e então os vendendo incansavelmente, os efeitos já são praticamente impossíveis de reverter”. Concordo que lá ou aqui a mudança é difícil, bem difícil até, mas ainda assim temos escolha. Se é importante desnudar a racionalidade perversa da indústria de junk food e seus métodos inescrupulosos, também é importante desvelar nossos próprios mecanismos, do contrário nos livramos de uma armadilha para cair em outra. No fundo dessa história sórdida, desse emaranhado de lobbies e de bilhões de dólares, o que também é um participante ativo desse jogo é a nossa relação com a vida. É de uma relação de consumo e do imperativo do gozo – tão imediato quanto fugaz – que se trata.

Para mim, a melhor cena de “Muito Além do Peso”, a mais reveladora e profunda, é a de uma menina de olhos muito tristes contando que sua família sempre reza para agradecer pela comida, pedindo que não falte nada em sua mesa. Perguntam a ela, então: “Falta alguma coisa na sua vida”? E a menina de olhos muito tristes responde, alcançando muito além do peso, dos métodos e das estatísticas:

– Falta sentido.

(Publicado na Revista Época em 04/03/2013)

O Doping das Crianças

O que o aumento do consumo da “droga da obediência”, usada para o tratamento do chamado Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, revela sobre a medicalização da educação?

Um estudo divulgado na semana passada pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) deveria ter disparado um alarme dentro das casas e das escolas – e aberto um grande debate no país. A pesquisa mostra que, entre 2009 e 2011, o consumo do metilfenidato, medicamento comercializado no Brasil com os nomes Ritalina e Concerta, aumentou 75% entre crianças e adolescentes na faixa dos 6 aos 16 anos. A droga é usada para combater uma patologia controversa chamada de TDAH – Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. A pesquisa detectou ainda uma variação perturbadora no consumo do remédio: aumenta no segundo semestre do ano e diminui no período das férias escolares. Isso significa que há uma relação direta entre a escola e o uso de uma droga tarja preta, com atuação sobre o sistema nervoso central e criação de dependência física e psíquica. Uma observação: o metilfenidato é conhecido como “a droga da obediência”.

O boletim da Anvisa é uma indicação de que o uso abusivo do metilfenidato pode se tornar um problema de saúde pública no Brasil. A pesquisa é o ponto de partida para vários caminhos de investigação, inclusive jornalística. Por que Porto Alegre é a capital brasileira com maior consumo da droga? Por que o Distrito Federal é, entre as unidades da federação, a que registrou maior uso de metilfenidato? Por que Rondônia, entre os estados do norte, tem um consumo 13 vezes maior que o estado com menor consumo registrado? O que diferencia os médicos brasileiros, concentrados nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul, que mais prescrevem o medicamento no Brasil? E por que os três maiores prescritores, dois deles profissionais do Distrito Federal, são os mesmos nos três anos pesquisados? Em 2011, as famílias brasileiras gastaram R$ 28,5 milhões na compra da droga da obediência – R$ 778,75 por cada mil crianças e adolescentes com idade entre 6 e 16 anos. É preciso seguir as pistas e compreender o que está acontecendo.

A TDAH seria um transtorno neurológico do comportamento que atingiria de 8 a 12% das crianças no mundo. No Brasil, os índices são bastante discordantes, alcançando até 26,8% . Os sintomas considerados para o diagnóstico em crianças são: apresentar dificuldade para prestar atenção e passar muito tempo sonhando acordada; parecer não ouvir quando se fala diretamente com ela; distrair-se facilmente ao fazer tarefas ou ao brincar; esquecer as coisas; mover-se constantemente ou ser incapaz de permanecer sentada; falar excessivamente; demonstrar incapacidade de brincar calada; atuar e falar sem pensar; ter dificuldade para esperar sua vez; interromper a conversa de terceiros; demonstrar inquietação.

Um parêntese. A droga tem sido usada por jovens e adultos de todas as idades, na crença de que ela potencializaria a atenção e o rendimento. É difícil quem não conheça alguém que já usou o medicamento para fazer provas na escola ou na universidade, assim como em vestibulares e concursos. O uso é disseminado no ambiente profissional, utilizado por quem quer melhorar seu desempenho ou precisa terminar um trabalho em prazo curto. Também é popular entre aqueles que querem ficar “bombados” para uma balada. Alguns recorrem ao mercado ilegal, outros simulam os sintomas de TDAH nos consultórios médicos para conseguir a receita. Sobre esse tipo de consumo há unanimidade: é totalmente contraindicado.

Entre as considerações finais, os autores da pesquisa da Anvisa, Márcia Gonçalves de Oliveira e Daniel Marques Mota, afirmam:

– Os dados demonstram uma tendência de uso crescente no Brasil. No entanto, a pergunta que precisa ser respondida é se esse uso está sendo feito de forma segura, isto é, somente para as indicações aprovadas no registro do medicamento e para os pacientes corretos, na dosagem e períodos adequados. O uso do medicamento metilfenidato tem sido muito difundido nos últimos anos de forma, inclusive, equivocada, sendo utilizado como “droga da obediência” e como instrumento de melhoria do desempenho seja de crianças, adolescentes ou adultos. Em muitos países, como os Estados Unidos, o metilfenidato tem sido largamente utilizado entre adolescentes para melhorar o desempenho escolar e para moldar as crianças, afinal, é mais fácil modificá-las que ao ambiente. Na verdade, o medicamento deve funcionar como um adjuvante no estabelecimento do equilíbrio comportamental do indivíduo, aliado a outras medidas, como educacionais, sociais e psicológicas. Nesse sentido, recomenda-se proporcionar educação pública para diferentes segmentos da sociedade, sem discursos morais e sem atitudes punitivas, cuja principal finalidade seja a de contribuir com o desenvolvimento e a demonstração de alternativas práticas ao uso de medicamentos.

O documento pode ser lido na íntegra aqui.

Além do questionamento proposto pelos autores, outras perguntas podem e devem ser colocadas: existe um doping legalizado das crianças? A escola, em vez de olhar cada aluno a partir da sua história e de sua singularidade, está sendo agente de um processo de homogeneização e silenciamento de crianças e adolescentes considerados “diferentes”? Estaria a droga da obediência sendo usada como uma espécie de “método pedagógico” perverso? O que isso significa? E por que não há uma discussão mais ampla em toda a sociedade brasileira?

A controvérsia sobre a droga da obediência e o chamado Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) é grande. Por uma série de razões, porém, pouco chega à população. É comum ouvir nas ruas, nas escolas e nas festas infantis que alguma criança é “hiperativa”, já que o diagnóstico e a crença de que a suposta doença possa ser resolvida com uma droga se difundiu na sociedade. Para uma parcela significativa das pessoas, soa como uma daquelas verdades “científicas” inquestionáveis.

Na realidade, os questionamentos são muitos. Há quem denuncie que os diagnósticos são mal feitos, levando à prescrição equivocada do medicamento. Há quem defenda que a doença sequer existe – seria uma invenção promovida pelo marketing da indústria farmacêutica. Para colaborar com o acesso ao que poderia ser chamado de “o outro lado do TDAH”, elenquei algumas das principais críticas e ponderações sobre a patologia e o uso da droga, feitas por pesquisadores das áreas da medicina, psicologia, psicanálise e educação. Todos os artigos citados – exceto um, ainda inédito – têm livre acesso e podem ser lidos na íntegra na internet. O foco principal é a relação entre a droga/diagnóstico e a escola, explicitada de forma inequívoca pelo boletim da Anvisa.

1) A medicina e a definição da “normalidade”

A história da medicina é uma história também de como ela deixa de ser o estudo das doenças para passar a definir o que é a normalidade. “A medicina se atribui todo o universo de relações do homem com a natureza e com outro homem, isto é, a vida. Legislando sobre hábitos de alimentação, vestuário, habitação, higiene, aplica a esses campos a mesma abordagem empregada frente às doenças. Adotando (assim) um discurso genérico, aplicável a todas as pessoas, porque neutro”, afirma Maria Aparecida Affonso Moysés, professora titular de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, em um artigo muito interessante, intitulado “A Medicalização na Educação Infantil e no Ensino Fundamental e as Políticas de Formação Docente” (leia aqui). “Com o consentimento da sociedade, que delega à medicina a tarefa de normatizar, legislar e vigiar a vida, estão colocadas as condições históricas para a medicalização da sociedade, aí incluídos comportamento e aprendizagem. (…) É preciso abolir as particularidades, o subjetivo, a imprecisão, para que o pensamento racional e objetivo se imponha. Não se esqueça que o discurso médico, nesse momento – aliás, o discurso científico, em qualquer momento – está afinado com as demandas dos grupos hegemônicos.”

A medicalização, segundo a pediatra, é resultado do processo de conversão de questões sociais e humanas em biológicas – transformando os problemas da vida em doenças ou distúrbios. É neste contexto que teria surgido uma doença que impediria a criança de aprender, com outros nomes antes de ser registrada como TDAH. É assim que se medicaliza a educação, transformando problemas pedagógicos e políticos em questões biológicas e médicas. “O discurso médico irá apregoar a existência de crianças incapazes de aprender, a menos que submetidas a uma intervenção especial – uma intervenção médica”, afirma. E conclui: “A atuação medicalizante da medicina consolida-se ao ser capaz de se infiltrar no pensamento cotidiano, ou, mais precisamente, no conjunto de juízos provisórios e preconceitos que regem a vida cotidiana. E a extensão (e a intensidade) em que esse processo ocorre pode ser apreendida pela incorporação do discurso médico, não importa se científico ou preconceituoso, pela população. A medicina constrói, assim, artificialmente, as ‘doenças do não-aprender-na-escola’ e a consequente demanda por serviços de saúde especializados, ao se afirmar como instituição competente e responsável por sua resolução. A partir deste momento, a medicina se apropriará cada vez mais do objeto aprendizagem. Sem mudanças significativas, apenas estendendo seu campo normativo”.

Em “Os Equívocos da Infância Medicalizada” (leia aqui), Margareth Diniz, professora da Universidade Federal de Ouro Preto, com doutorado em educação, explicita a diferença entre “medicar” e “medicalizar”: “Medicar pode ser necessário, desde que caso a caso. Já a medicalização é o processo pelo qual o modo de vida dos homens é apropriado pela medicina e que interfere na construção de conceitos, regras de higiene, normas de moral e costumes prescritos – sexuais, alimentares, de habitação – e de comportamentos sociais. Este processo está intimamente articulado à idéia de que não se pode separar o saber – produzido cientificamente em uma estrututa social – de suas propostas de intervenção na sociedade, de suas proposições políticas implícitas. A medicalização tem, como objetivo, a intervenção política no corpo social”.

2) A escola e o ciclo da medicalização da infância

O caminho que leva ao diagnóstico de TDAH e à prescrição da droga da obediência, entre os mais pobres e usuários da rede pública de ensino, inicia na escola, a partir das dificuldades de aprendizagem e/ou insubordinação de determinada criança ou adolescente. Como a família em geral não conseguiria dar uma resposta ao problema, a escola ou encaminha ao médico, ou aciona o conselho tutelar. Entre as crianças mais ricas, clientes do sistema privado de ensino, o ciclo é semelhante, com exceção de que estas não estão vulneráveis à tutela e à vigilância do Estado. Neste caso, a escola encaminha ao psicólogo e este ao neuropediatra – ou diretamente ao neuropediatra, que prescreve o medicamento.

Esta é a análise da psicanalista Michele Kamers, professora do curso de psicologia do Ibes-Sociesc, coordenadora dos cursos de especialização em psicologia hospitalar e da saúde e psicopatologia da infância e da adolescência do Hospital Santa Catarina, de Blumenau, e mestre em educação pela Universidade de São Paulo. No artigo intitulado “A Fabricação da Loucura na Infância: Psiquiatrização do Discurso e Medicalização da Infância”, ainda inédito, ela afirma que a escola se converteu em um mecanismo de inclusão da criança no campo do saber médico-psiquiátrico. “As escolas, as unidades de saúde e as clínicas privadas agenciam e legitimam a intervenção médica e farmacológica sobre a criança, fazendo com que a medicalização venha se convertendo na principal forma de tratamento utilizada para responder às demandas sociais realizadas pelas instituições de assistência à infância”, diz. “A medicina, juntamente com a assistência psicológica, social e pedagógica, forma uma rede de tutela e encaminhamentos múltiplos. A partir do momento em que a criança e sua família são capturadas, não conseguem mais sair.”

É corriqueiro, segundo Margareth Diniz, receber pais em busca de tratamento para seus filhos por exigência da escola. “Todos nós que nos ocupamos da clínica também estamos habituados com solicitações de tratamento de crianças a partir de uma exigência da escola em relação à sua inadaptação, ou inadequação às regras mais elementares de seu aprendizado e de sua socialização. Normalmente são os pais, mais especificamente as mães, que nos formulam esse pedido. O que torna esses pedidos curiosos é que, invariavelmente, trazem consigo um enunciado pedagógico nos seguintes termos: ‘A escola chegou à conclusão que esta criança necessita de um acompanhamento’”.

A psicóloga Renata Guarido, que defendeu uma tese de mestrado na Universidade de São Paulo intitulada “O Que Não Tem Remédio, Remediado Está: a Medicalização da Vida e Algumas Implicações do Saber Médico na Educação”, mostra como a criança passou de objeto da pedagogia a objeto da medicina. Renata afirma que a medicina passou a determinar quem era “educável ou ineducável” (leia aqui): “Vemos as crianças e suas famílias submetidas ao poder exercido pela constituição de um domínio do saber médico-psicológico, sem que o contexto de seus sofrimentos, bem como sua possibilidade de tratamento, sejam orientados para outras formas de consideração da subjetividade, que não a normalizante e de ‘treinamento’”.

Em sua análise, Renata reforça como são corriqueiras hoje nas escolas as cenas em que professores e coordenadores dão o diagnóstico de TDAH diante de determinados comportamentos das crianças e adolescentes, encaminhando-os para avaliação psiquiátrica, neurológica e psicológica. Também já faz parte da rotina professores e outros agentes escolares perguntarem aos pais de um aluno em tratamento se ele foi corretamente medicado naquele dia. “Tais procedimentos nos permitem entrever que estão crentes de que a variação no uso do remédio é responsável pela variação dos comportamentos e estados psíquicos das crianças, e que esta não teria nenhuma relação com variações, mudanças ou experiências no interior do cotidiano escolar. (…) Ao assumir e validar o discurso médico-psicológico, a pedagogia não deixa de fazer a manutenção dessa mesma prática, desresponsabilizando a escola e culpabilizando as crianças e suas famílias por seus fracassos”.

3) A criança como objeto, não mais como sujeito

Entre as principais críticas feitas por aqueles que alertam para o processo de medicalização da infância – e especificamente sobre o TDAH e a droga da obediência – está a constatação de que as crianças deixam de ser escutadas na sua singularidade, como um protagonista que tem uma história e está inserido num contexto familiar e social, para se tornar um objeto com uma falha no corpo, sujeito à intervenção e à correção por medicamentos. Assim, as crianças e adolescentes têm sido calados naquilo que estão tentando dizer a pais e professores, em nome de um ideal de “normalidade” determinado pelo olhar médico e legitimado e reproduzido pela escola – e também pelos dispositivos de vigilância do Estado. O que se cala são os conflitos – que deveriam ser os propulsores do ato de educar.

Em O Livro Negro da Psicopatologia Contemporânea (Via Lettera, 2011), o psicanalista Alfredo Jerusalinsky escreve um capítulo intitulado “Gotinhas e comprimidos para crianças sem história – uma psicopatologia pós-moderna para a infância”. Ele afirma: “Não se questiona o que quer dizer este ponto, esta palavra ou este gesto fora do lugar. (…) Na trajetória que estamos descrevendo, foi se apagando esse esforço por ver e escutar um sujeito, com todas as dificuldades que ele tivesse, no que tivesse para dizer, e foi-se substituindo o dado ordenado segundo uma nosografia (descrição das doenças) que apaga o sujeito. (…) É assim que os problemas deixam de ser problemas para serem transtorno. É uma transformação epistemológica importante, e não uma mera transformação terminológica. Um problema é algo para ser decifrado, interpretado, resolvido; um transtorno é algo a ser eliminado, suprimido porque molesta. Os nomes das categorias não são inocentes”. Escrevi sobre este livro na coluna “Os Robôs Não Nos Invejam Mais”, que pode ser lida aqui.

Em artigo já citado, Renata Guarido mostra que não é calada apenas a voz dessas crianças e adolescentes classificados como fora do padrão de uma pretensa normalidade. Mas até mesmo o seu nome é apagado. “Não é incomum observar, nas unidades de saúde ou mesmo nas escolas, que o nome do paciente ou do aluno seja substituído por sua classificação diagnóstica – estranha nomeação dos indivíduos que põe em relevo o lugar que ocupam na escala normal”, diz Renata. “A medicalização em larga escala das crianças nos tempos atuais pode ser lida também como apelo ao silêncio dos conflitos, negando-os como inerentes à subjetividade e ao encontro humano. Que o discurso pedagógico contribua para a manutenção desse tipo de recurso deve ser objeto constante de crítica em direção à possibilidade de que o lugar do ato educativo seja redefinido.”

Em “Hiperatividade: o ‘Não Decidido’ da Estrutura ou o ‘Infantil’ ainda no Tempo da Infância”, as psicanalistas Viviane Neves Legnani, professora da Universidade de Brasília (UnB), e Sandra Francesca Conte de Almeida, professora da Universidade Católica de Brasília, refletem sobre a TDAH a partir da descrição de um caso concreto (leia aqui). Elas afirmam: “Nossa experiência com escolas permitiu observar que muitos professores se servem dos indicadores descritivos que acompanham o diagnóstico de TDAH para sustentar uma prática pedagógica ‘didaticamente planejada’ para lidar ‘com os difíceis alunos portadores de hiperatividade’. O preço deste planejamento, no entanto, nem sempre é considerado: a impossibilidade de a criança encontrar o seu lugar na escola, a partir de sua singularidade. Como consequência da padronização pedagógica, ‘cientificamente’ estruturada, tem-se que o educador não escuta e não legitima a palavra dita pela criança, já que esta é vista como ‘doente’ e, portanto, incapaz”.

4) Ninguém se responsabiliza – ou por que a medicalização prospera

Não é apenas a escola que se desresponsabiliza, quando aquilo que pertence ao humano é tratado como patologia, mas também a criança e o adolescente, na tarefa de criar uma vida. Ao serem classificados como doentes ou portadores de um transtorno, e ao introjetarem este ser/estar no mundo como doentes ou portadores de um transtorno, é o diagnóstico que lhes determina o destino. Na hipótese de realizar qualquer conquista, ela é computada na conta da droga. Em “O Sujeito Refém do Orgânico” (leia aqui), Renata Guarido afirma: “Crianças e adultos, sendo desresponsabilizados de sua implicação com aquilo que lhes acontece, tornam-se também impotentes para atuarem sobre seus sofrimentos e aprendizados. E a impotência é então mais um efeito deste discurso biológico. Só é visto como potente o especialista que saberia o que fazer diante do diagnóstico que profere. Sendo o aprendizado descrito como efeito do funcionamento cerebral, da estimulação correta deste órgão que nos governa, temos sua descrição reduzida a uma dimensão privada, que ocorre no interior do indivíduo e não a partir do laço entre dois ou mais sujeitos. Ou seja, o aprendizado perde o caráter de ser fruto da ação humana, dimensão do encontro na pluralidade própria do mundo público, onde produzimos história”.

Margareth Diniz analisa por que a aceitação desse discurso ecoa na sociedade e é por ela reproduzido: “A criança e o adolescente esperam do outro que lhe responda algo acerca do enigma de sua existência, e os outros esperam das crianças que se conduzam na vida de modo a responder aos seus ideais. A fim de salvar os pais de tamanha angústia diante do não saber, surgem as tentativas de tornar científicas as respostas a estas questões, na busca de aplacar o mal-estar. A ciência começa a forjar um saber que não pertence nem ao pai, nem a mãe. Estes são levados a interferirem cada vez menos na educação dos filhos. Entra em cena a figura dos especialistas, autorizados principalmente pelo discurso da mãe, que demonstra um verdadeiro fascínio pela promessa de um saber total, sem furos”.

Não são apenas os professores, mas também os pais que passaram a exigir diagnóstico e medicamento para calar os conflitos na escola e dentro de casa. Afinal, é muito mais fácil lidar com uma “doença”, quase uma fatalidade, que diz respeito apenas ao funcionamento de um corpo e para a qual existiria uma pílula milagrosa, do que escutar o que uma criança ou um adolescente está dizendo com seu comportamento. “Os pais acusam as escolas de rotular suas crianças de hiperativas indiscriminadamente, antes mesmo de obter um diagnóstico médico, mas há relatos de que também alguns pais impacientes andam utilizando o diagnóstico de hiperatividade como desculpa para entupir seus filhos de remédio e mantê-los ‘sossegados’, daí que o medicamento tenha sido batizado por ‘droga da obediência’”, afirma Margareth. “Isso os desculpabiliza por não estarem dando conta de impor limites aos filhos, por exemplo, em relação à hora de dormir ou de desligar seus computadores e jogos eletrônicos.”

5) O marketing da indústria farmacêutica

O transtorno de hiperatividade pode ser um daqueles casos em que a droga ajuda a moldar o diagnóstico. Críticos da medicalização afirmam que não é comprovada a existência de uma doença que só altere o comportamento e a aprendizagem. Neste sentido, a disseminação do diagnóstico de TDAH inverteria a lógica da medicina, na qual seria preciso primeiro comprovar a doença e depois tratá-la. O fenômeno obedeceria mais à lógica do mercado do que a da saúde – com a relação próxima e, em alguns casos, promíscua, entre laboratórios e médicos. “A ligeireza (e imprecisão) com que as pessoas são transformadas em anormais é diretamente proporcional à velocidade com que a psicofarmacologia e a psiquiatria contemporânea expandiram seu mercado. Não deixa de ser surpreendente que o que foi apresentado como avanço na capacidade de curar tenha levado a ampliar em uma progressão geométrica a quantidade de doentes mentais”, alertam Alfredo Jerusalinski e Silvia Fendrik em O Livro Negro da Psicopatologia Moderna.

“A produção de saber sobre o sofrimento psíquico encontra-se associada à produção da indústria farmacêutica de remédios que prometem aliviar os sofrimentos existenciais. O consumo em larga escala dos medicamentos e o crescimento exponencial da indústria farmacêutica tornam-se elementos indissociáveis do exercício do poder médico apoiado em um saber consolidado ao longo do século XX”, analisa Renata Guarido. “Se a psiquiatria clássica, de forma geral, esteve às voltas com fenômenos psíquicos não codificáveis em termos do funcionamento orgânico, guardando espaço à dimensão enigmática da subjetividade, a psiquiatria contemporânea promove uma naturalização do fenômeno humano e uma subordinação do sujeito à bioquímica cerebral, somente regulável por uso de remédios. Há aí uma inversão não pouco assustadora, pois na lógica atual de construção diagnóstica, o remédio participa da nomeação do transtorno. Visto que não há mais uma etiologia (estudo das causas da doença) e uma historicidade a serem consideradas, pois a verdade do sintoma/transtorno está no funcionamento bioquímico, e os efeitos da medicação dão validade a um ou outro diagnóstico.”

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Estes cinco pontos são apenas algumas pistas para compreender o crescimento do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade entre as crianças e adolescentes e a disseminação da droga da obediência. Dito de outro jeito, questionar o aumento dos “anormais” nas escolas brasileiras. Ou dos “desobedientes”. A falta de espanto de pais e professores diante do fenômeno mostra como a medicalização está naturalizada na sociedade brasileira. Afinal, parte destes pais e professores também fazem, no seu próprio cotidiano, o uso de drogas legais para silenciar suas dores humanas. Por que acreditariam que com seus filhos e alunos seria diferente? Drogar-se, legalmente, é uma marca da nossa época.

Ninguém sabe quais serão os efeitos a longo prazo do uso contínuo do metilfenidato sobre o cérebro em formação das crianças. O que acontecerá no futuro com essa geração legalmente drogada ainda é uma incógnita. Pelo menos, valeria a pena pensarmos no presente: por que estamos dopando crianças e adolescentes em vez de tentar escutá-los e entendê-los em sua singularidade? E o que isso diz sobre nós, os adultos?

(Publicado na Revista Época em 25/02/2013)

 

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