O mundo da gente morre antes da gente

A vida que conhecemos começa a desaparecer lentamente, num movimento silencioso que se infiltra nos dias, junto com aqueles que fizeram da nossa época o que ela é

 

A expressão mais perfeita que conheço para explicar a brutalidade do acaso em nossas vidas é ainda a de Joan Didion. Ela disse, em simplicidade exata: “A vida muda num instante. Você se senta para jantar e a vida que você conhecia acaba de repente”. Joan, jornalista e escritora americana, escreveu essa frase em seu livro O ano do pensamento mágico, no qual narra a morte repentina do marido e a sua busca para compreender o incompreensível. Nos últimos dias, Renata, a mulher de Eduardo Campos, repetiria aos amigos: “Não estava no script”.

Não poderia estar no script. Poucos homens planejaram a sua carreira política de forma tão meticulosa quanto Eduardo Campos. E então, ele toma café com a família, embarca num avião para dar sequência à sua primeira campanha presidencial, aquela que poderia levá-lo à presidência do Brasil não agora, mas em 2018, e morre. O gesto largo de uma vida interrompido num instante. Antes do final da manhã ele já não está. E os brasileiros de qualquer ideologia, ou sem nenhuma, são atravessados pela tragédia. A do homem perdido, em seu momento de máxima potência, mas também a de ser atingido pela força do incontrolável. Penso que cada um de nós, ou pelo menos a maioria, sentiu a lufada de vento entre as costelas, aquela que está sempre ali, mas fingimos que não existe.

De fato, a morte – repentina ou penosa, como nas doenças prolongadas, precoce ou tardia – é, como sabemos, a única certeza do nosso script. Um dia, simplesmente, já não se está. Como na cena do documentário de João Moreira Salles em que Santiago, o mordomo que dá título ao filme, cita o cineasta Ingmar Bergman: “Somos mortos insepultos, apodrecendo debaixo de um céu cruento e vazio”.

Se fizéssemos um retrato agora, de todos os vivos, teríamos também um obituário: daqui a 100 anos estaremos todos mortos. Olhamos pela janela e todos os que vimos em seu esforço cotidiano, carregando-se para o ponto de ônibus, sintonizando a rádio preferida ao sentar-se no carro, puxando assunto na padaria ou desferindo seu ódio e seu medo em pequenas brutalidades serão finados (palavra de tanto simbolismo), em menor ou maior prazo. Assim como finado será aquele que espia a única paisagem que não muda numa vida humana, a de que, para o indivíduo, o futuro está morto.

A verdade, que talvez nem todos percebam, é que se morre aos poucos. Não apenas pela frase clássica de que começamos a morrer ao nascer. De que cada dia seguinte arrasta o cadáver do dia anterior. De que cada amanhã é um dia a mais – mas porque é um dia a menos. Ao entrevistar os que envelheceram, descubro-os surpreendidos pelo drama menos nítido, aquele se infiltra lentamente nos interstícios dos dias: o de que o mundo da gente morre antes da gente.

Esse é o susto de quem alcançou a promessa da nossa época, a de uma vida longa. A de morrer só, mesmo quando cercado por filhos e netos. Só, porque aqueles que sabiam dele, aqueles que compartilharam o mesmo tempo, morreram antes. Aqueles que conheceram o menino, o levaram embora ao partir. Os que o viram jovem carregaram a sua juventude em lembranças que desapareceram porque já não há quem delas possa lembrar. Só, porque um certo modo de estar no mundo acabou antes. A solidão de estar vivo numa vida que já morreu.

Pouco antes de lançar O ano do pensamento mágico, Joan Didion perdeu a única filha. Depois do marido, a filha. Era a dor não nomeável da inversão da lógica, a de sepultar aquela que deveria sepultá-la. Mas era algo ainda além, o de se tornar a mulher que restou. Seu livro seguinte, Noites Azuis, fala dessa condição, a de ter sobrado viva ao envelhecer. A de se descobrir só e frágil, atenta aos degraus para não cair. Para mim, é um livro melhor do que o primeiro, mas diz de algo ainda mais duro do que a perda do companheiro de uma vida. Talvez tenha feito menos sucesso por falar dessa dor insuportável, em que viver mais do que os seus afetos é ter de viver a morte que ultrapassa a morte.

Pensava que essa era uma condição restrita à velhice. A surpresa final de que o melhor cenário, o de viver mais, era também o de perder mais. Mas descobri que esse morrer começa muito antes. E de forma ainda mais insidiosa. Esses meses de 2014 têm nos mostrado isso com uma força talvez maior. É uma coincidência, claro, não uma confluência escrita nas estrelas ou em qualquer profecia. O mundo da gente, em especial das gentes com mais de 40 anos, porque é nessa altura que sentimos que já temos um passado e o futuro é uma segunda metade incerta, tem morrido muito. E rápido, às vezes um sobressalto por dia, às vezes dois.

Cada um tem seu susto. Acho que o meu foi com Nico Nicolaiewsky, que levava junto com ele momentos em que fui completamente feliz – e são tão raras as vezes em que somos completamente felizes – assistindo a Tangos &Tragédias no Theatro São Pedro, em Porto Alegre. Morreu cinco dias depois de Eduardo Coutinho e Philip Seymour Hoffman, dois gigantes. Cada um com sua tragédia, abriram um buraco na paisagem do mundo. Depois, José Wilker um dia não acordou. E não haveria Vadinho para me assombrar.

Não parou mais. De repente o mundo já não tinha mais Gabriel García Márquez, Jair Rodrigues, Alan Resnais, Paco de Lucia, Shirley Temple, Luciano do Valle, Nadine Gordimer, Paulo Goulart, Bellini, James Garner, Rose Marie Muraro, Max Nunes, Plinio de Arruda Sampaio, Lauren Bacall. No espaço de seis dias de julho, Rubem Alves, João Ubaldo Ribeiro e Ariano Suassuna desapareceram. Rubem Alves, que desfazia anos nos aniversários e dizia que “a hora para comer morangos é sempre agora”. De repente o mundo já não tinha Vange Leonel. Como é possível? Eu a tinha lido no Twitter um instante atrás. E Nicolau Sevcenko se foi horas depois de Eduardo Campos.

Nenhuma dessas pessoas convivia comigo, eu não frequentava a casa de nenhuma. A maioria delas nunca sequer vi. De fato, o que delas vive em mim independe de sua existência física. Algumas são apenas flashes de um cotidiano em que por décadas elas apareceram, seja em novelas, na narrativa de um jogo de futebol, num debate político. Outras, me constituem. Seus livros e músicas não têm idade, nos filmes ainda são jovens e belas. Concretamente, deveria fazer tão pouca diferença estarem ou não aqui, na miudeza dos dias, numa rotina que de qualquer modo não faria parte da minha, quanto Sófocles, que morreu mais de dois mil e quatrocentos anos atrás, ou Shakespeare ou Beethoven ou Picasso. Ou Machado de Assis. Ou mesmo Garrincha. Estes, que conseguiram transcender sua vida ao proporcionar transcendência pela grandeza de sua obra, para as sucessivas gerações, ao infinito, são imortais. É um fato, todo mundo sabe, mas descubro que não é bem assim.

Qual é a diferença de Gabriel García Márquez estar vivo ou morto, se a chance de eu tomar um café com ele era remota e sempre vou ter meu O amor nos tempos do cólera na estante, para que ele possa reviver em mim? O que percebo é que há uma diferença. Há algo de melancólico, desestabilizador, em testemunhar o momento exato em que um imortal morre.

Suspeito que, naquele momento-limite em que a vida se extingue, a permanência da obra faça pouca diferença. Talvez o imortal que morre trocasse toda a sua imortalidade por dividir uma última vez uma garrafa de vinho com o melhor amigo ou por mais uma noite de amor lambuzado com a mulher que ama ou apenas para ler o jornal na mesa da cozinha no café da manhã. Talvez o imortal fique mortal demais nessa hora, fique parecido demais com todos os outros. Como disse Woody Allen: “Não quero atingir a imortalidade através de minha obra. Quero atingi-la não morrendo”. E desde então temo me confrontar com seu obituário numa manchete na internet.

De certo modo, é assim que o mundo da gente começa a morrer antes da gente. Não apenas pela perda dos nossos afetos de perto, mas também pelo filme que Philip Seymour Hoffman não fará ou pelo livro que Ariano Suassuna não escreverá enquanto dividimos com ele o mesmo tempo histórico. Ou simplesmente por nenhum deles poder dizer mais nada de comezinho ou mesmo fazer alguma besteira, qualquer coisa de humano. Deles ficaremos só com o que foi grande, mesmo a bobagem terá de ser relevante para merecer permanecer na biografia. Ao mesmo tempo em que a morte os devolve de imediato à condição humana, os tira para sempre dela. E logo o boteco de João Ubaldo já não terá cheiro.

A primeira vez que senti a infiltração de algo irreversível no meu mundo foi a morte de Marlon Brando, dez anos atrás. A morte ainda não me bafejava como hoje, mas passei alguns dias prostrada por alguém que para mim já tinha nascido imortal. Percebi então que fazia diferença lembrar dele berrando “Steeeeeeeela” em Um bonde chamado desejo e, ao mesmo tempo, poder mencionar qualquer coisa boba como: “Nossa, como ele está gordo agora”. De repente, ele não podia mais engordar nem nos espantar com sua existência descuidada. Só restaria grandioso. E, portanto, fora da vida. (Da nossa vida.)

Marlon Brando, como García Márquez, como Ariano Suassuna, como tantos agora, não se sabiam meus, mas eram. Ao me deixarem, morro um pouco. Uma versão de nós morre sempre que morre alguém que amamos e que nos ama, porque essa pessoa leva com ela o seu olhar sobre nós, que é único. Uma parte de nós também morre quando não podemos mais compartilhar a mesma época com quem fez do nosso mundo o que ele é. E agora, fico esperando a cada momento uma nova notícia, porque sei que elas não mais deixarão de chegar.

Tive uma reação estranha ao saber da morte de Robin Williams. Quantos anos ele tinha?, perguntei primeiro. Sessenta e três. E me senti apunhalada com a resposta. Muito cedo, muito cedo. De que morreu? Parece que foi suicídio. E me senti de imediato aliviada. Pode parecer surpreendente, mas meu alívio se deu porque de que alguma maneira era uma escolha. Não era coração, não era câncer, não era AVC, não era avião. Por mais terrível que seja o ato de interromper a vida, ele pressupõe, em alguma medida, uma potência e um controle.

Pode-se argumentar que uma depressão ou um desespero impede a escolha, mas acho que essa não é toda a verdade. Nossas escolhas nunca são consumadas em condições ideais nem nosso arbítrio é totalmente livre. Só conseguimos fazer escolhas determinadas pelas circunstâncias do que vivemos e do que somos naquele momento. Por mais que nos surpreenda a escuridão do homem que nos deu tanta alegria, de algum modo ele elegeu a hora de morrer. O que para muitos foi razão para aumentar a dor pela sua morte, porque ela poderia ter sido evitada, para mim foi alívio por ele não ter sua vida interrompida à revelia. De algum modo, me soaria mais insuportável se Robin Williams tivesse morrido tão cedo por um infarto ou um acidente.

Acredito mais na interpretação do jornalista americano Lee Siegel, quando ele diz que “talvez tenha sido a empatia que o matou – e não seu desespero com o diagnóstico recente de Parkinson”. A capacidade de Robin Williams para vestir a pele do outro, de todos os outros, levada por ele a patamares quase insuperáveis. “Sua necessidade passional de se transformar em todos que ele encontrava, qualquer que fosse sua origem étnica ou social – como se com isso pudesse vencer sua solitária e irreversível finitude humana.” Há algum tempo o lento morrer do seu mundo o assombrava, segundo os mais próximos Robin parecia incapaz de superar o desaparecimento do amigo e do homem que o inspirou, o comediante Jonathan Winters, que se foi em abril.

Seus fãs, as pessoas cuja vida a sua vida tornou melhor, deixaram flores nos lugares em que viveram seus personagens. Um banco de praça em que gravou cenas de O Gênio Indomável, com Matt Damon. A casa em que foi Ms. Doubtfire, a babá. Era ali que ele morria para nunca morrer. Era ali que ele jamais deixaria de estar. Não há lugar para a morte. Como haveria lugar para a morte? Mas é preciso dar um lugar à morte para que a vida possa continuar. É para isso que criamos nossos cemitérios dentro ou fora de nós. Em geral, mais dentro do que fora. A vida é também carregar os mortos no último lugar em que podem viver, em nossas memórias. E aos poucos nos tornamos um cemitério cada vez mais habitado por aqueles que só vivem em nós.

A morte de Robin Williams, Gabriel García Márquez, Ariano Suassuna e de tantos levou um pouco de mim. Minha morte levará um pouco deles e de tantos, como a lembrança das lágrimas que chorei ao ver Sociedade dos poetas mortos ou a imagem de Aureliano Buendía que só eu tinha ou a minha pedra do reino. Morro um pouco com cada um deles porque vivi um pouco com cada um deles.

É essa a morte silenciosa que vai se alastrando pelos dias. Conto meus imortais ainda vivos, os de longe e os de perto. Digo seus nomes, como se os invocando. Peço que não se apressem, que não me deixem só, que não me deixem sem saber de mim. O acaso, a vida que muda num instante, me assusta tanto quanto esse meu mundo que morre devagar. É essa a brisa quase imperceptível que adivinho soprando nos meus ossos. Muitas vezes finjo que não a escuto. Mas ela continua ali, intermitente, sussurrando para eu não esquecer de viver.

(Publicado no El País em 18/08/2014)

 

Limites da linguagem

Uma história em que faltam cada vez mais palavras

 

A entrevista estava marcada na casa dele, numa das favelas mais pobres de Fortaleza. Era o dia do jogo do Brasil contra o México, e o menino com nome de poeta fazia parte de uma seleção que jogou a Copa do Mundo dos Meninos de Rua. De manhã bem cedo, eu e o fotógrafo esperávamos, na porta de uma ONG ainda fechada, o educador que nos levaria até aquele emaranhado de endereços desencontrados, um território dividido por duas quadrilhas rivais do tráfico de drogas. O menino apareceu de repente, vestido com uma camiseta do Brasil. Sem olhar para mim, ele disse: “Na minha casa, não.” Não dizia o porquê. Apenas sacudia a cabeça em sinal de negativa explícita. Ele era pequeno para os seus 15 anos, mas o seu “não” era enorme.

A porta da ONG abriu, e ele entrou. Sentou-se na cadeira da recepção e tentou ligar o computador. Me agachei ao lado dele e arrisquei algumas perguntas. Ele só me atirava monossílabos. Passou-se muito tempo, talvez quase uma hora de silêncios entre nós, interrompidos por uma ou outra palavra que servia ao menino apenas como demarcação do território. O território que ele não queria que eu alcançasse, as palavras curtas marcando que não haveria palavras longas. Eu não sabia se tinha o direito de continuar ali, talvez nunca saiba. Mas ele também não ia embora. Ficamos os dois, eu tentando entrar, ele se esforçando para que eu não entrasse, o que era uma forma de conexão, já que nos mantinha ambos ali.

Então a cozinha da ONG abriu. E, de um salto, ele já estava lá. Como se eu fosse um vira-lata esquecido, me chamou com displicência. Mas continuava sem me olhar. Sentei-me diante dele e o vi devorar um pão em menos de um minuto. No segundo pão, ele me enxergou pela primeira vez. Me ofereceu um pedaço. A certa altura, parecendo com pena de mim, disse:

– Você entende só um pouco de português, né?

O menino tinha razão. Eu não falava o português dele, como conto na reportagem que escrevi. Não alcançava a riqueza da sua língua portuguesa, que dava conta de um Brasil diverso, com palavras nascidas ali mesmo. Expressões gestadas na necessidade de dar conta de uma realidade na qual era necessário, por exemplo, nomear o momento-limite em que o gatilho da arma é acionado, mas a bala não sai.

Mas era mais do que isso. Eu demorei a lê-lo. Eu era analfabeta dele. O seu “não” da altura de um edifício, a postura do seu corpo, entre acuada e pronta para saltar no meu pescoço, o seu medo de mim, que às vezes beirava a raiva, era fome. Algumas vezes me deparei com essa fome, a fome que é um substantivo sem adjetivo possível. E em todas elas foi difícil para mim reconhecê-la, porque esse alfabeto, irredutível e irrepresentável, me é inacessível.

O menino me leu muito antes de eu a ele. Percebeu que eu era estrangeira ao seu Brasil. Estranhou a cor da minha pele, a tonalidade do meu cabelo, a forma e o som das minhas palavras. Estranhou que eu precisasse de tradução para algumas de suas frases. Estranhou porque havia que estranhar.

Contei essa história, na versão resumida de um parágrafo, em minha participação na FLIP (Festa Literária de Paraty), na semana passada. Penso que quem escreve está sempre nessa condição de estrangeiro. Não turista, jamais turista. Mas estrangeiro, aquele que estranha e que é estranhado, movimento duplo que nos torna capazes de escutar um outro ser-estar na linguagem – e também fora da linguagem. Ser capaz de estranhar para não cometer a traição de encaixotar o outro num escaninho seguro onde ele é reduzido a uma daquelas borboletas mortas presas por um alfinete.

A literatura é a experiência da alteridade, que só se completa na incompletude refletida no olhar do outro. Por isso demanda o movimento de abertura para o desconhecido, mesmo que o sentimento seja incômodo ou mesmo perturbador. Mesmo que não se possa nomear o contato com as palavras disponíveis, mesmo que seja preciso escutar no tempo do outro.

Depois que o menino com nome de poeta me dá um lugar, o de estrangeira, ele de súbito me aperta num abraço. Ele me acolhe com minhas faltas, ele completa com explicações as ausências que ainda tenho de sua língua portuguesa, na qual sou uma ouvinte aprendiz. Ele me reconhece como uma pessoa. A condição estrangeira que encontramos num e noutro nos torna, paradoxalmente, sem fronteiras. Como pessoas, transitamos entre um e outro. É por isso que nossos corpos podem se tocar para muito além da carne.

O menino então me leva à sua casa. Há nela um velho móvel-geladeira, o único lugar para guardar comida. Ele hesita em me mostrar. Ainda não sabe se pode abrir mais essa fechadura. Mas ele abre, porque eu insisto. (E não deveria ter insistido, porque não tinha esse direito.) Eu enfio a cabeça dentro da boca do móvel-geladeira e vejo. Eu faço o que costumo fazer quando enxergo mais do que deveria: baixo os olhos e garrancho anotações no meu bloquinho. Ele diz: “não”. Não conte. Eu não conto. E, porque não conto, não posso esquecer.

Às vezes acontece assim. Há pessoas que continuo lendo e lendo e lendo porque escrevi sobre elas e as palavras continuam faltando. E quanto mais escrevo, mais as palavras faltam. É uma vertigem, quase uma alucinação, em que as palavras avançam e o texto aumenta, mas o espaço em branco é maior, sempre maior. Por escrito, o menino com nome de poeta é assim.

Eu me equilibrava sobre as pedras de Paraty nos últimos dias, entre escritores e leitores, e o menino era o livro para sempre incompleto que carregava comigo. Há livros que não podem ser terminados, e isso é brutal. A vida avança no tempo, e com ela as páginas que jamais serão concluídas, as páginas que denunciam nossa impotência, vão ficando mais numerosas. De todas as páginas em branco que carrego comigo as da fome talvez sejam as piores. Porque só tenho uma palavra, fome, e ela tão pouco diz. E me faltam todas os substantivos que alimentam.

Num desses dias abri um livro de Octavio Paz. A epígrafe é um texto do poeta espanhol Antonio Machado. Evoca a resistência do “outro” diante das tentativas de torná-lo o “mesmo”.

“O outro não existe: essa é a fé racional, a crença incurável da razão humana. Identidade=realidade, como se, afinal de contas, tudo tivesse que ser, absoluta e necessariamente um e sempre o mesmo. Mas o outro não se deixa eliminar; subsiste, persiste; é o osso duro de roer no qual a razão humana perde os dentes”.

Um livro é como o móvel-geladeira do menino com nome de Poeta que me tratou como Pessoa. Se abrir, o risco é seu. E é para sempre.

(Publicado no El País em 04/08/2014)

A espetacular Copa de 2014

Nessa Copa de 2014, no Brasil, acompanhei a seleção brasileira a convite da Folha de S. Paulo. Foi minha estreia, como repórter, no futebol e na Copa. No total, foram 12 reportagens no jornal impresso, na contracapa do Caderno da Copa, e outras sete matérias menores, no site. Às vezes apenas pequenas cenas, entre a Granja Comary, em Teresópolis (RJ), e as várias cidades em que o Brasil jogou: São Paulo, Brasília (duas vezes), Fortaleza (duas vezes) e Belo Horizonte (duas vezes). Estive também na partida final, entre Argentina e Alemanha, no Maracanã, no Rio de Janeiro. Escrevi ainda dois artigos na minha coluna quinzenal de opinião no El País. Nessa trajetória vertiginosa, busquei cobrir a seleção fazendo o que acredito ser o papel de um jornalista, independentemente da área em que atua, que é produzir documento histórico sobre a sua época.

Meu desafio era contar a seleção, numa Copa no Brasil, pelas margens. Dividi meu trabalho de reportagem em duas linhas narrativas. Chamo a primeira de “brasilidades”, na qual procuro compreender o futebol e o Brasil de 2014 a partir do olhar e das tensões de brasileiros menos visíveis.

Na segunda, conto as relações da corte e da torcida no entorno da seleção. Meu foco, nesse caso, é a produção do espetáculo no futebol de mercado – e os momentos sublimes em que a vida escapa, reconvertendo o produto em homem, ou “denunciando-o” como homem. A grande perda de colocar o espetáculo no lugar da realidade, ou a publicidade no lugar do jornalismo, como aconteceu vezes demais, é que o espetáculo é imensamente inferior à realidade. A realidade foi espetacular, o espetáculo foi medíocre.

Essa foi uma Copa extraordinária. Não só pela qualidade dos jogos das seleções de vários países, mas, especialmente, pela derrota monumental da seleção brasileira. Como se sabe, a vitória tem muito pouca graça na literatura e no cinema, o mais rico é sempre a derrota. Na reportagem, acredito que vale o mesmo princípio. Há muito para escrever sobre a seleção brasileira nessa Copa fabulosa, com tantos sentidos ainda por serem decifrados, tantas histórias à espera de quem as conte. Apenas começamos.

No meu caso, esse conjunto de reportagens assume o risco de narrar enquanto o jogo está sendo jogado, o que é, ao mesmo tempo, a dificuldade e a graça do jornalismo. Acredito que agora há o desafio de aprofundar essa narrativa, a das várias realidades desse épico trágico, com o distanciamento necessário. E devolver o extraordinário à vida.

Ao futebol.

FOLHA DE S.PAULO

BRASILIDADES

Deus e outros nomes
Os helicópteros zuniam no céu, sinal de que o ônibus da seleção brasileira voltava à Granja Comary depois de um dia de folga. Há sempre alguém lá em cima zelando pelo time do Felipão com bastante barulho. Lá embaixo, no estádio do Teresópolis Futebol Clube, Pretão, Lennon e William também acreditam, no domingo e a cada dia, que alguém zela por eles lá do alto, ainda que sem alarde. Nem sempre entendem bem o que o todo-poderoso planeja. Deus, como o futebol, segundo o seu entendimento, se movimenta por acasos, por sinais enigmáticos. Exibe caprichos de bola. É especialmente caprichoso com o Teresópolis: o time não ganha um jogo desde 2011.

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O complexo de vira-lata, em prosa e latido
Olhando bem fundo nos olhos dela, castanho-escuros, quase pretos, não se adivinha nenhum complexo. Um psicanalista poderia perceber uns laivos de histeria na insistência de latir nas chegadas e nas saídas, como se marcando sua condição de titular na casa da periferia de Osasco, na Grande São Paulo. Há também a alegria triste que assinala aqueles que pressentem a queda logo ali e talvez por isso ela se equilibre com tanto afinco em pernas de Garrincha, só que quatro. De complexo de vira-lata, porém, ela não demonstra padecer. Pantera tem 83 centímetros do rabo ao focinho e a aparência inconfundível do mais puro DNA mestiço. Parece indiferente à incongruência entre nome e coisa nomeada. É a vantagem do vira-lata. Sem identidade gravada em pedra pela tradição, pode inventar-se e reinventar-se. Até mesmo como pantera.

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Fortaleza no pé: Garoto dribla a morte e joga Copa das crianças de rua
Quando pergunto a ele sobre o passado e o futuro, Vinicius Marcos Pinheiro Ferreira diz: “Não conto o tempo”. Por que não? “Não conto. Eu não conto a alegria e não conto a tristeza. Tenho o tempo que estou na vida.” É um outro conceito, o do Brasil dos meninos sem tempo. Aos 15 anos, ele arranca cada dia do impossível, e o dia é tudo o que tem. Talvez inteiro, talvez não. Onde ele vive, no Canindezinho, favela do Bom Jardim, em Fortaleza, a bala interrompe a existência num segundo. A seleção brasileira joga hoje na cidade de Vinicius para fazer gols e vencer. Vinicius também é da seleção brasileira, mas a dos garotos que jogaram em abril a Copa do Mundo das Crianças de Rua. Vinicius faz gol de placa todo dia. Seu golaço é acordar vivo.

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Endereço: Brasil
A cigana Daiane Rocha sonha tanto com os gols da seleção no jogo contra Camarões quanto com a repetição de um gesto. Daiane espera que os moradores ao redor do acampamento, na cidade-satélite de Santa Maria, no Distrito Federal, olhem para ela e torçam com ela, reconhecendo-a como brasileira. A primeira vez que isso aconteceu foi na abertura da Copa do Mundo, quando o Brasil venceu a Croácia. Os 65 ciganos comemoraram cada um dos três gols e dançaram na vitória. Do outro lado da rua, os moradores, que até então os haviam rechaçado, torceram com eles, riram com eles, levantaram os braços em sinal de vitória. Ao sentir-se reconhecida como igual, Daiane chorou. Era um milagre do futebol.

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O PM e o militante
Em dia de jogo Brasil x Chile, no Mineirão, em Belo Horizonte, Steevan Oliveira e Luiz Fernando Vasconcelos acordam com propósitos diferentes. Steevan vai vestir a farda de policial militar para agir na “prevenção de confrontos”. Ele integra a tropa de choque da Polícia Militar mineira, faz a ronda com cães. Luiz é uma das lideranças dos protestos anti-Copa. Vai vestir sua camiseta contra a Fifa e denunciar “a apropriação do espaço público por uma entidade privada”. O movimento em que Luiz atua defende o fim da PM. O tenente Steevan quer ser PM a vida inteira. Eles representam duas forças que estão nas ruas na Copa no Brasil de 2014.

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Quando o futebol é travessia: um homem, um país
No bolso do paletó, o colombiano Carlos Maurício Durán Domínguez, 52 anos, promete esconder um gorro com as cores do seu país. Ele prepara-se para recepcionar o presidente, Juan Manuel Santos, que decretou “tarde cívica” e anunciou um bate-volta para assistir ao jogo Brasil x Colômbia, no Castelão. “Se a Colômbia fizer gol, vou colocar o gorro na cabeça rapidinho”, garante. “Me deu sorte nos outros jogos.” Quem o conhece não duvida que o gorro estará lá, fazendo volume no terno chique, primeiro. E, depois, enfiado no cocuruto.

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O ESPETÁCULO, A CORTE E A TORCIDA

O espetáculo começa só depois que o homem comum deixa o palco
“Ichi! Ni! San! Shi! Go!”
É Cleto Pinto, 60 anos. Falando um a cinco em japonês.
Antes de cada entrevista coletiva na Granja Comary, em Teresópolis, ele está lá para garantir que nenhum ruído, nem mesmo um chiado cabotino, empane a sabedoria, o brilho, da palavra de cada jogador. Sem ele, nenhum deles poderia dizer para as TVs e rádios do Brasil inteiro, do mundo, coisas como “cada jogo é um jogo” ou “seleção é batucada, batucada é seleção”. Durante pelo menos 30 minutos, Cleto se posta diante do microfone, no palco, e fala, para que todos possam testar se o áudio está perfeito. Poderia repetir apenas “alô, alô, testando” ou “um, dois, três, quatro, cinco”. Mas não. Cleto se prepara. Planeja. Estuda. Investiga. Entra no palco como um homem imbuído de um papel histórico. Ainda que ninguém grave ou transmita o que ele diz, ainda que ele seja um antes.

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Se quiser entender a torcida, siga a câmera
Cada portão para impedir o acesso do povo à Granja Comary é mais difícil de passar do que o outro. Na entrada principal, são cinco barreiras. Seis, se contar a da imprensa, que fica na lateral, e só permite assistir ao treino. Apenas uma minoria muito persistente vence a primeira. Ou amigos de moradores do condomínio de classe média alta. O pedreiro Antonio dos Santos Junior, 26, pertence à minoria muito persistente. Ele levou dez dias para conseguir passar pelas duas primeiras barreiras. Conseguiu graças a uma moradora penalizada, que não suportava mais vê-lo ali, com um chapéu de pontas verde-amarelo na cabeça. Colocou-o dentro do carro. Dali em diante, Antonio estava por sua própria conta. E os porteiros mais avançados são implacáveis. Antonio e outro torcedor, este vestido de anjo, tentaram desesperadamente passar pelos seguranças que guardam a terceira barreira. Nada. Tiveram de retroceder. Voltar duas barreiras atrás é mais que tragédia, é o limbo.

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Zona controlada
A zona mista é como um brete de bois. Para quem não está familiarizado com a terminologia rural, brete é um cercado para onde os animais são conduzidos, à força, para serem castrados, vacinados, descornados, marcados ou mesmo abatidos. Há uma versão desses currais dentro de cada estádio da Copa. Assim que a partida acaba, os jornalistas que têm senha para entrar na zona mista correm para lá. As senhas são distribuídas pela Fifa, sempre limitadas e disputadas. Depois do banho e das rezas, a maioria do time entra no brete, um jogador seguido do outro. Mas, ao contrário dos bois, esses touros milionários, DNA futebolístico apurado, não vão para o sacrifício. A imagem cabe mais a nós, jornalistas. Quando as estrelas da seleção despontam lá no início, há uma espécie de estouro da boiada, só que em território confinado. Cotoveladas e pisões no pé fazem parte da rotina, para que se consiga botar o gravador ou o microfone mais perto da boca do craque. Não é incomum sair dessa refrega com hematomas.

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Deus e o diabo na terra do gol
O futebol cumpriu sua mágica de produzir acontecimento e acaso. Na Copa de 2014, a seleção brasileira criou um drama com os pés, salgou de lágrimas as chuteiras. Chega hoje ao Mineirão para disputar a semifinal contra a Alemanha em amarelo épico. Sem seu craque maior, sem seu capitão. Se vencer os alemães, será a apoteose, a realização de um destino. Se perder, em parte já está absolvida. Em qualquer roteiro onde há deus e diabo, o bicho humano está à deriva. E nessa trajetória há muito deus e o “diabo”, que andava faltoso, foi criado há pouco, na pele do colombiano Zúñiga, usando os joelhos para roubar do Brasil Neymar e a glória. De diabo o colombiano, que só fez entrar duro num jogo duro, não tem nada, mas esse sempre foi um personagem que só pode cumprir seu papel quando propositalmente mal compreendido. Com deus e diabo a narrativa fica mais mítica.

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O Brasil do eu acredito
“Eu acredito, eu acredito.” Uma pequena parte da torcida brasileira ainda repetia o bordão depois de a seleção brasileira já ter levado uma goleada dos alemães no Mineirão. Era uma pequena grande cena. A realidade se impunha como o inacreditável, as bolas iam estourando na rede brasileira como ficção, quem não tinha deixado o estádio olhava para o campo tomado pela anestesia que assinala a tragédia. A inversão da expectativa é tão avassaladora que passa a ser interpretada como irrealidade, num estado delirante, em que qualquer gesto parece destinado ao nada. A goleada era da Alemanha no Brasil, mas era ainda mais profundo do que isso: era realidade 7×1 pensamento mágico. Um? Não. Zero.

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O insustentável peso da camisa
Acabou. Mas quando? Nos 7×1, na goleada histórica da Alemanha no Mineirão? Ou no Mané Garrincha, em Brasília, o nome do estádio que é apenas mais uma ironia a revelar a distância entre o gênio que pensava com os pés e os pés que se estranhavam com a bola, como se quisessem se livrar dela o mais rapidamente possível, na disputa com os holandeses. Ou neste domingo (13), a ausência do Brasil no Maracanã como uma presença.

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CENAS E MOMENTOS

Comunidade pobre ao redor do Castelão assistiu à ‘elite’ desfilar
“Você viu o corredor?”, pergunta Michele Sancho, 28 anos, professora universitária. “Me senti muito mal.”
Michele se referia ao longo corredor por onde ela e a família, junto com outros milhares de torcedores, passaram para entrar no Castelão, em Fortaleza, para assistir ao Brasil jogar contra o México. Mais de uma centena de metros em linha reta, atravessando a comunidade pobre que se debruçava sobre a grade na tentativa de vender alguma coisa ou só “ver como as pessoas se vestem”. Michele escreve uma dissertação de mestrado sobre o “Conceito Constitucional da Dignidade Coletiva”. “Vi minha dissertação ir embora ao passar por aquele corredor.”

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A bunda do Hulk
“Hulk, deixa eu apertar a sua bunda.”
Esse era o cartaz exibido – com orgulho – pela estudante Ana Caroline Côrtes, 13 anos, na entrada da Granja Comary, neste domingo. Ela veio de Nova Iguaçu, a mais de 60 quilômetros de Teresópolis, para levantar o cartaz. Para as câmeras de TV, já que o ônibus com os jogadores, como de hábito, passou em segundos pelos torcedores que há horas esperavam na chuva. As câmeras já deixam Ana Caroline bem contente.

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Sem casa, na casa da seleção
Na arquibancada da Granja Comary havia a dor de 100 mortos e mais de 20 desaparecidos. É o que perderam as 50 crianças e 30 adultos que tiveram permissão para assistir ao treino da seleção brasileira. São vítimas da tragédia de 12 de janeiro de 2011, em que as chuvas e o descaso do poder público mataram centenas. Logo na chegada da seleção a Teresópolis, ainda antes do início da Copa, Flávio Antonio da Silva, 35 anos, da Associação das Vítimas das Chuvas de Teresópolis, fez um protesto na entrada da Granja: botou uma camisa da seleção e pintou o rosto e o corpo de lama: “Aqui não é só a casa da seleção. É também a casa das vítimas”. Nesta quarta-feira (25), as vítimas tiveram permissão para entrar na casa da seleção. Mas continuam sem casa.

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Neymar, o carneiro
Tá fácil fazer selfie com Neymar Jr na entrada do Castelão. Seu Juvenal Ribeiro dos Santos, 70 anos, preparou seu carneiro para dia de gala. Logo de manhã ele tomou banho. “Com xampu, o mesmo que o meu.” Qual? “O mais baratinho.” Depois, Neymar Jr envergou a camisa 10. Veio trotando, em boa forma, ao lado da carrocinha do seu Juvenal.

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Torcedores veem jogo pela TV, dentro do Castelão, após terem o ingresso furtado
Carlos Castro, 48 anos, comprou o ingresso para as quartas de final no Castelão, em Fortaleza, ainda no primeiro sorteio. Apostou no Brasil. Quando o ingresso chegou em casa, escondeu na estante de livros, atrás de compêndios de medicina. “Aqui nesses monstrengos ninguém vai mexer”, concluiu. E esperou. Na véspera do jogo, fez plantão na maternidade, como neonatologista. Chegou em casa às 7h da manhã desta sexta-feira (4) e não pôde dormir. “Estava muito ansioso, não tinha jeito.” Tirou o ingresso do esconderijo e partiu para o estádio. No caminho, na companhia de outros dois médicos, comentou: “É surreal o que estamos vivendo. Um jogo decisivo da Copa, com o Brasil, no Castelão!”. Quando botou a mão no bolso, já subindo as escadas do estádio, Carlos desmoronou: o ingresso não estava mais lá.

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EL PAÍS

Dilma, a vaia e o feminino
Eu estava no estádio do Itaquerão, na abertura da Copa do Mundo, e ouvi as vaias e a torcida xingando: “Ei, Dilma, vai tomar no cu”. Não posso afirmar onde as vaias começaram, essa me parece uma certeza muito difícil de garantir num estádio de futebol. Concordo, em parte, com os que alegam que estádios são lugares de palavrões, basta lembrar das mães dos juízes. Mas também discordo, em parte, porque o público da Copa é totalmente diverso do torcedor típico, aquele que vai ver o seu time jogar como uma rotina tão presente na vida quanto trabalhar e namorar. Na Copa, o público é outro, leva para dentro das “arenas” outra expectativa e outra relação com o futebol. Mandar uma pessoa tomar no cu, qualquer pessoa e não só a presidente, é não só grosseiro, como violento. O Brasil é uma sociedade violenta, para muito além da tipificada no Código Penal. Essa violência atravessa o cotidiano. Dito isso, há algo que me incomoda nas narrativas construídas nesse episódio e que valeria a pena prestar mais atenção: a manipulação dos femininos.

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Sobre Zúñiga, Neymar e “macacos”
O zagueiro Juan Camilo Zúñiga entrou bruto com o joelho nas costas de Neymar. Era um jogo duro e a seleção brasileira também já tinha protagonizado entradas fortes sobre membros adversários. De lado a lado, se acertava mais do que a bola, como não é raro acontecer em partidas decisivas. Se pode criticar a arbitragem, reivindicar que a Fifa dê uma punição ao jogador colombiano, sentir fundo a tragédia de Neymar, que passa a ser a de um país inteiro. O que não deveria poder é o que aconteceu na sequência. Pelas redes sociais, brasileiros chamaram Zúñiga de “preto safado”, pediram sua morte e xingaram sua filha pequena de “puta”. Nos últimos anos, vários jogadores brasileiros foram chamados de “macacos” por torcidas de outras nacionalidades. Na sexta-feira (4), eram brasileiros aqueles que, na internet, colaram num colombiano a expressão racista.

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A espetacular Copa de 2014

Nessa Copa de 2014, no Brasil, acompanhei a seleção brasileira a convite da Folha de S. Paulo. Foi minha estreia, como repórter, no futebol e na Copa. No total, foram 12 reportagens no jornal impresso, na contracapa do Caderno da Copa, e outras sete matérias menores, no site. Às vezes apenas pequenas cenas, entre a Granja Comary, em Teresópolis (RJ), e as várias cidades em que o Brasil jogou: São Paulo, Brasília (duas vezes), Fortaleza (duas vezes) e Belo Horizonte (duas vezes). Estive também na partida final, entre Argentina e Alemanha, no Maracanã, no Rio de Janeiro. Escrevi ainda dois artigos na minha coluna quinzenal de opinião no El País. Nessa trajetória vertiginosa, busquei cobrir a seleção fazendo o que acredito ser o papel de um jornalista, independentemente da área em que atua, que é produzir documento histórico sobre a sua época.

Meu desafio era contar a seleção, numa Copa no Brasil, pelas margens. Dividi meu trabalho de reportagem em duas linhas narrativas. Chamo a primeira de “brasilidades”, na qual procuro compreender o futebol e o Brasil de 2014 a partir do olhar e das tensões de brasileiros menos visíveis.

Na segunda, conto as relações da corte e da torcida no entorno da seleção. Meu foco, nesse caso, é a produção do espetáculo no futebol de mercado – e os momentos sublimes em que a vida escapa, reconvertendo o produto em homem, ou “denunciando-o” como homem. A grande perda de colocar o espetáculo no lugar da realidade, ou a publicidade no lugar do jornalismo, como aconteceu vezes demais, é que o espetáculo é imensamente inferior à realidade. A realidade foi espetacular, o espetáculo foi medíocre.

Essa foi uma Copa extraordinária. Não só pela qualidade dos jogos das seleções de vários países, mas, especialmente, pela derrota monumental da seleção brasileira. Como se sabe, a vitória tem muito pouca graça na literatura e no cinema, o mais rico é sempre a derrota. Na reportagem, acredito que vale o mesmo princípio. Há muito para escrever sobre a seleção brasileira nessa Copa fabulosa, com tantos sentidos ainda por serem decifrados, tantas histórias à espera de quem as conte. Apenas começamos.

No meu caso, esse conjunto de reportagens assume o risco de narrar enquanto o jogo está sendo jogado, o que é, ao mesmo tempo, a dificuldade e a graça do jornalismo. Acredito que agora há o desafio de aprofundar essa narrativa, a das várias realidades desse épico trágico, com o distanciamento necessário. E devolver o extraordinário à vida.

Ao futebol.

FOLHA DE S.PAULO

BRASILIDADES

Deus e outros nomes
http://folha.com/no1467195
9/06/2014

O complexo de vira-lata, em prosa e latido
http://folha.com/no1468969
12/6/2014

Fortaleza no pé: Garoto dribla a morte e joga Copa das crianças de rua
http://folha.com/no1471524
17/6/2014

Endereço: Brasil
http://folha.com/no1474719
23/6/2014

O PM e o militante
http://folha.com/no1477892
28/6/2014

Quando o futebol é travessia: um homem, um país
http://folha.com/no1480892
04/07/2014

O ESPETÁCULO, A CORTE E A TORCIDA

O espetáculo começa só depois que o homem comum deixa o palco
http://folha.com/no1473242
20/06/2014

Se quiser entender a torcida, siga a câmera
http://folha.com/no1475786
25/06/2014

Zona controlada
http://folha.com/no1479626
02/07/2014

Deus e o diabo na terra do gol
http://folha.com/no1482643
08/07/2014

O Brasil do eu acredito
http://folha.com/no1484266
11/07/2014

O insustentável peso da camisa
http://folha.com/no1485656
14/07/2014

CENAS E MOMENTOS

Comunidade pobre ao redor do Castelão assistiu à ‘elite’ desfilar
http://folha.com/no1472042
17/6/2014

A bunda do Hulk
http://folha.com/no1473063
19/6/2014

Sem casa, na casa da seleção
http://folha.com/no1476208
25/06/2014

Neymar, o carneiro
http://folha.com/no1481189
04/07/2014

Torcedores veem jogo pela TV, dentro do Castelão, após terem o ingresso furtado
http://folha.com/no1481522
04/07/2014

EL PAÍS

Dilma, a vaia e o feminino
23/6/2014

Sobre Zúñiga, Neymar e “macacos”
7/07/2014

 

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