Um negro em eterno exílio

A longa travessia de Carlos Moore, o ativista e intelectual que denunciou o racismo em Cuba e passou a vida perseguido pelos dois lados da Guerra Fria, até chegar ao Brasil e encontrar um país mergulhado numa crescente tensão racial

Arquivo Pessoal/Divulgação

Arquivo Pessoal/Divulgação

Aos 22 anos, Carlos Moore já tinha vivido mais do que a maioria das pessoas numa existência inteira. Já tinha conhecido a fome e a violência na pequena cidade cubana onde nasceu, já tinha desejado não ser preto e se esforçado por alisar o cabelo, clarear a pele com produtos arriscados e desachatar o nariz com prendedores, já tinha emigrado para os Estados Unidos e descoberto a luta pelos direitos civis, já tinha se apaixonado por Patrice Lumumba, o célebre líder congolês, e planejado um atentado ao consulado belga em Nova York para vingar-se de seu assassinato, já tinha se encantado com a revolução depois de um encontro com Fidel Castro, já tinha se tornado comunista e voltado a Cuba para colaborar com o processo revolucionário, já tinha descoberto que o regime cubano era tão racista quanto aquele que tinha derrubado, já tinha sido encarcerado uma vez por denunciar que o racismo persistia na revolução, já tinha sido condenado a quatro meses num campo de trabalhos forçados uma segunda vez pelo mesmo motivo, depois de abordar o próprio Fidel Castro em público, já tinha feito uma confissão, para não ser morto, de que havia se equivocado e de que não havia racismo em Cuba, já tinha se refugiado na embaixada da Guiné quando percebeu que seria executado de qualquer modo, já tinha fugido para o Egito e depois para a França, sem nenhum documento, já tinha sido rejeitado por um Jean-Paul Sartre convencido de que ele era “agente do imperialismo”, já tinha sido acolhido por um dos ideólogos da negritude, o grande poeta surrealista martinicano Aimé Césaire, já tinha virado segurança do ativista negro Malcolm X, quando este esteve em Paris, e já tinha sofrido de todas as formas pelo seu assassinato. Isso tudo aconteceu até os seus 22 anos. Depois, aconteceu muito mais.

Carlos Moore tem hoje 72 anos. E lança no Brasil a sua autobiografia: Pichón – minha vida e a revolução cubana (Nandyala), publicada aqui graças a um financiamento do público, via crowdfunding, e nos Estados Unidos em 2008, mesmo ano em que Barack Obama tornava-se o primeiro negro eleito presidente da maior potência global. O prefácio é de Maya Angelou (1928-2014), artista e ativista, ela mesma uma lenda, que desempenhou um papel crucial para que o então jovem Moore descobrisse sua identidade e a realidade brutal das mulheres negras.

Para alcançar a trajetória de Carlos Moore, é preciso compreender que, como filho de imigrantes jamaicanos, ele ocupava o degrau mais baixo da escala racial da sociedade cubana. Pior do que um negro cubano, era um negro imigrante das demais ilhas do Caribe. Em seu livro aparecem genocídios de imigrantes negros em Cuba dos quais a maioria jamais ouviu falar. Aos 13 anos, sua mãe já tinha sido estuprada e engravidada pelo padrasto. Com um filho do incesto, ela casou-se com outro imigrante jamaicano. Moore nasceria anos depois, entre vários irmãos. E jamais entendeu por que era rejeitado pela mãe, que o espancava a ponto de deixá-lo de cama por dias, coberto de talhos e hematomas, tendo chegado a desenvolver uma espécie de reação convulsiva. O pequeno Moore fazia buracos no quintal, para tentar escapar dessa mãe. Sua fotografia era a única que não estava pendurada na casa da família.

Um dia a mãe partiu, abandonando a todos. E só muito mais tarde, já adulto, ele descobriria a raiz da violência materna inscrita em surras cotidianas no corpo do filho. A vida de Carlos Moore pode também ser contada por uma longa travessia em busca de uma mãe e de uma identidade.

Anos atrás, depois de sofrer uma embolia pulmonar e flertar com a morte por três semanas, Carlos Moore conta ter resolvido seguir o conselho de seu grande amigo, o escritor americano Alex Haley (1921-1992), autor de A autobiografia de Malcolm X, e escrever suas memórias. Decidiu então mudar-se para o Brasil, onde desde 2000 vive em Salvador, com sua companheira, a guadalupense Ayeola. Do primeiro casamento, tem um filho que vive nos Estados Unidos. No Brasil, acolheu uma menina que morava numa favela e hoje já se tornou adulta e faz doutorado. Tem sete livros publicados, cinco deles traduzidos para o português e lançados no Brasil. Um deles – Fela, esta vida puta (Nandyala) – é a impressionante biografia de Fela Kuti (1938-1997), o criador do Afrobeat, com quem ele teve uma amizade profunda. Entre os seus vários exílios, Moore fez dois doutorados na Universidade de Paris VII, o primeiro em Etnologia, o segundo em Ciências Humanas.

Carlos Moore escolheu o Brasil, onde tinha amigos como Abdias do Nascimento (1914-2011), para se recolher e escrever sua autobiografia com tranquilidade, num país onde era quase desconhecido. Logo percebeu que o Brasil vivia um ponto de inflexão na luta contra o racismo, com as cotas raciais e as demais ações afirmativas. Como fez por toda a vida, engajou-se. Seu livro Racismo & Sociedade (Nandyala), lançado em 2012, tornou-se referência e polêmica. Carlos Moore está longe de ser uma unanimidade, dentro e fora do movimento negro, o que não parece preocupá-lo. Tornou-se um dos pensadores negros dedicados a esse tempo histórico muito particular do Brasil, definido por Moore como “o momento em que as máscaras começaram a cair”.

Desde a infância, Carlos Moore queria fugir, uma fuga profunda, com vários sentidos simultâneos. Acabou por passar a vida fugindo de perseguidores de todos os lados do espectro ideológico. Essa fuga interminável parece tê-lo levado a si mesmo, o único lugar de chegada que importa.

A entrevista a seguir foi feita durante seis horas, em dois dias consecutivos da semana passada, durante a estadia de Carlos Moore em São Paulo, para o lançamento de Pichón. Nela, ele fala sobre racismo, trajetória, identidade, mulher negra, exílio, assim como sobre as realidades do continente africano e de países como Cuba, Estados Unidos e Brasil. Pelo seu relato desfilam personagens que são ícones da história mundial do século 20, mas que talvez a maioria dos não negros desconheça, porque esta é uma história apagada por aqui – ou jamais contada.

À primeira vista, o que chama atenção neste negro de tantos mundos é a sua leveza, surpreendente em alguém que carrega uma trajetória tão pesada e ainda traz no corpo as cicatrizes das violências que começou a sofrer pela mão da própria mãe. Moore é acolhedor, carinhoso e sorridente, jamais se furta a uma pergunta difícil, e sua força aparece quando discorda do interlocutor e dá uma resposta demolidora. Claramente, como se verá, ele não tem tempo para conversas de salão.

1) O primeiro exílio de um negro: o do ser

Pergunta. Por que o senhor escolheu Pichón como título deste livro?

Resposta. O editor americano queria tirar esse título, dizendo que esse não era um título comercial. Eu falei que não mudaria, porque botei esse título para que as pessoas se interrogassem: o que é pichón? Pichón, na Cuba da minha infância, queria dizer “filhote de urubu”. Só mais tarde, já adulto, eu fui descobrir seu significado mais neutro, que era filhote de alguma ave. Em Cuba era o termo que usavam para nos humilhar. Aqueles negros que vinham do Caribe eram urubus, porque eram pretos e se dizia que roubavam empregos dos cubanos e que comiam carniça. E esta foi a palavra que mais me doeu. Me xingarem de “negro de merda” era normal. Todos os negros eram xingados de “negros de merda” pelos brancos. Mas somente certos negros eram xingados de pichón, somente os imigrantes e descendentes do Haiti, Jamaica, Barbados… Os negros cubanos têm nomes como Gonzalez, Díaz, Hernandez. Agora, um negro com nome Moore já se sabe que ele não é cubano, mesmo que tenha nascido lá, estado lá por 100 anos. Havia um ódio profundo, racista, dentro da sociedade cubana, para com aqueles filhos dos imigrantes, considerados mais primitivos, mais bárbaros, mais africanos. Mais negros. A negrura deles é exponencialmente maior, no sentido negativo. Então, eu falei: “Se esse é o termo que mais me feriu, durante a infância, é o que quero utilizar como título do livro”. Eu não o tiraria por nada.

P. O senhor teve uma vida de exílios. Mas, desde criança, parece que o senhor já se percebe como um exilado, num sentido mais profundo. Um exilado da pele, da língua, dos nomes, já que havia rejeição ao seu nome, por revelar que seus pais eram imigrantes jamaicanos. Como é isso?

R. Todos aqueles que nascem desse lado, que são negros, nascem num grande exílio. Um enorme exílio forçado. E, a partir daí, vêm todos os outros exílios que procedem dele e que criam outros novos lugares de exílio. Eu logo percebi que não tinha conexão com o mundo, fora uma conexão fictícia que o mundo branco me forçava a aceitar, a querer ser como eles. Aí já se criava um corte fundamental, que era o corte comigo. Eu não sabia quem eu era, porque eu queria ser outro. Porque esse outro é que era o bom, o bonito, o que todo mundo queria. Quando era pequeno, eu rejeitei minha mãe rapidamente por causa de toda essa brutalidade dela. E eu criei outra mãe na minha cabeça. Eu não falei disso no livro, mas eu criei uma outra mãe na minha cabeça, que era totalmente branca, que era loira, de olhos azuis, como eu via nas revistas cubanas.

P. Sua mãe era uma mulher brutal, mas, quando o senhor criou uma mãe imaginária, criou uma mãe branca, em vez de uma mãe negra. Isso vem de uma outra brutalidade, né?

R. Sim. Eu me retirava para o fundo do jardim para falar com essa mãe, e ela era carinhosa comigo, sempre sorridente e com uma voz suave, e nós fazíamos tudo juntos. Essa mãe de fantasia me trazia presentes, me trazia uns biscoitos de que eu gostava muito. Eu me colocava na escuridão, à noite, no fundo do pátio, entre dois coqueiros, e essa mãe vinha. Eu tinha uns 7 anos, e ela era real pra mim. Ela sempre me perguntava se eu estava contente. E eu dizia que não, que eu queria fugir, que ela me ajudasse a fugir. Toda minha infância eu passei meu tempo a querer fugir. Fugir foi a coisa mais poderosa da minha infância.

P. Fugir do quê? E para onde?

R. Eu ia andar, andar, andar, andar toda a noite, até chegar ao porto. Lá eu poderia me esconder entre aqueles enormes sacos de açúcar, num daqueles barcos. E esse barco me levaria para aquele país que era mítico pra mim, que era os Estados Unidos. Eu dizia à minha mãe branca: “Me leva, me leva pela mão”. E ela me dizia que não, que não podia. E às vezes eu esperava, e ela não vinha. Eu já estava totalmente alienado de mim. Queria ser branco, queria somente ter amigos brancos, queria mudar de pele, queria mudar de cabelo, de tudo. Esse foi o primeiro exílio, um exílio ontológico. Normalmente as pessoas sabem o que são, elas são o que são, não se colocam a questão. Mas eu não sabia, eu não queria ser o que eu era e, pelo fato de não querer ser aquilo, não sabia o que eu era.

P. Como é que é não saber o que se é?

R. Você se sente constantemente num estado de falta [a voz de Moore fica instável]. Não tenho a pele correta, não tenho o nariz correto, não tenho os lábios corretos, não tenho o corpo correto, não tenho. Tudo é falta. A única coisa que me salvou durante essa infância foi a minha inteligência [a voz se restabelece]. Porque na escola eu podia não estudar, e nas provas me dava bem, melhor que aqueles meninos brancos que estudavam o tempo todo.

P. E quando o senhor se olhava no espelho, o que enxergava?

R. Eu me via como alguém grotesco, sempre feio. E eu ainda era estrábico. Então as pessoas sempre diziam: “Pichón, pichón, pichón…”. Eu não me olhava no espelho. E, como na minha casa não havia nenhuma foto minha, isso era reforçado. Eu achava que era comigo, eu não tinha ainda essa percepção de que era com todos os negros.

P. Sua mãe negra, concreta, parece ter sido uma pessoa ambígua. Ao mesmo tempo em que ela o espancava constantemente e alisava o seu cabelo, era ela quem enfrentava os brancos e o incentivava a enfrentá-los. Como o senhor lidava com essa ambiguidade?

R. Ela foi a primeira pessoa que me falou da escravidão. A única que me ensinou a resistir, a única que me disse que eu tinha de enfrentar esse mundo. Meu pai era totalmente o contrário, ele buscava somente a aprovação dos brancos. E os brancos falavam que eu era a vergonha do meu pai. Mas da minha mãe tinham medo, os brancos temiam que ela fosse afrontá-los, porque ela fazia escândalos, fosse quem fosse. Os escândalos da minha mãe, nesta pequena cidade, eram maiúsculos. Mas eu só conseguia chegar perto dela aos domingos, quando ela escutava ópera no rádio e chorava. Ficava escutando essa música, remendando as roupas e chorando. Nestes momentos, ela me tocava.

P. Hoje, como o senhor olha para essa mãe?

R. Eu olho com a compreensão de que ela foi uma mulher estuprada pelo padrasto aos 13 anos. Meu irmão mais velho é filho de um estupro. Minha mãe chegou da Jamaica e, em alguns meses, já estava estuprada e grávida. Estou escrevendo um outro livro, chamado “As pegadas do caos”, que fala dessas realidades históricas. Neste livro, meus pais são os protagonistas. Através deles, vou falar da vida de todos os outros. Dessa pobreza imensa, dramática. Do ódio que enfrentaram em Cuba por serem negros imigrantes de ilhas caribenhas, considerados como bárbaros e primitivos. Pouco antes de ela morrer, eu conversei com minha mãe nos Estados Unidos, em New Jersey, onde ela estava morando. Foi Alex (Haley) que me disse: “Você precisa saber o que aconteceu”. Então fui falar com ela, e depois com o meu pai, que morava no Brooklyn. Foi quando soube por ela que não era filho do meu pai, mas do melhor amigo dele, a quem meu pai tinha confiado a sua família. Isso aconteceu quando meu pai precisou partir em busca de trabalho e passou muito tempo sem voltar. Ela, cheia de filhos, achou que ele tinha morrido. Quando meu pai finalmente retornou, ela estava grávida deste amigo. Era eu. Mas quando eu soube, eu tinha por volta de 40 anos. Depois, conversei com o meu pai. Ele estava sentado, tomando sol. Já estava cego. Ele me disse que minha mãe nunca deveria ter me contado, porque tinham um acordo sobre isso. Mas era uma cidade pequena, e eu passei a vida toda brigando com os outros meninos porque chamavam minha mãe de puta e eu não sabia por quê. Puta, puta, puta. E esses dois homens quase se mataram por causa dessa gravidez. Eu gravei toda a minha conversa com minha mãe e meu pai. Minha mãe me contou as coisas horríveis que passou. Toda a fome que passou. E os meninos vindo um atrás do outro, porque não sabiam como evitar os filhos. Ela sempre grávida. Me dei conta então do horror que tinha sido a vida deles. Eram vidas trágicas.

P. Mas seu pai, de fato, este que criou o senhor, ao contrário da sua mãe, aceitou o senhor por completo como filho, não foi?

R. Eu fui o favorito dele. Até hoje me lembro do odor desses charutos, e eu adoro charuto por causa disso, a única coisa que eu fumo é charuto. Me lembro do perfume que meu pai usava, era um perfume que de vez em quando traziam para ele dos Estados Unidos. Quando conversamos, eu agradeci a ele por todo o amor que ele me deu. Disse a ele o quanto o amava. E disse: “Você é meu pai”. O ciclo estava fechado.
2) A mulher negra: a mais esmagada entre os esmagados

P. Essa cisão, entre a mãe branca boa e a mãe negra ruim, impactou na escolha de suas parceiras sexuais, pelo que se pode perceber em sua autobiografia… Como foi isso?

R. Sim, porque essa transferência se faz para aquelas mulheres brancas que eu vou conhecer, que têm esse fenótipo e que correspondem a essa visão do que para mim é bonito. Tudo o que eu tinha que ser era bom na cama com elas. Não era uma relação, no sentido da intimidade de explorar profundamente o outro. Era uma performance. Eram relações sexuais ficcionalizadas. Cada encontro com uma mulher branca era como na novela. Eram mulheres que não conheciam nada sobre as questões raciais, só queriam bom sexo, um negro na cama que alimentava os fantasmas delas sobre o macho negro. E elas alimentavam os fantasmas que eu tinha. E estes fantasmas estavam ligados a essa outra visão, que poderia ser inclusive incestuosa, já que essas mulheres correspondiam àquela mulher mítica criada na minha infância. Que era boa comigo, que me trazia presentes. Então, o sexo era um grande presente. A relação profunda só começou a existir quando eu passo a conhecer mulheres negras, conscientes de quem são, que estavam se debatendo com o problema da identidade e que me forçaram a me debater com o problema da minha identidade. Aí foi onde começou o outro combate.

P. A história da sua mãe levou o senhor à história da mulher negra?

R. Sim. Eu comecei a compreender a história da mulher negra a partir de Maya Angelou e de todas as escritoras negras que se tornariam grandes, mas que na minha adolescência, em Nova York, eram as mulheres com quem eu passei a conviver, sem me dar conta da importância delas. Eu tenho uma dívida com as mulheres negras que é impagável, por terem me levado à compreensão de quem eu era. Assim, eu tenho o dever de participar dessa luta para que a mulher negra recupere a dignidade diante dessa sociedade, dignidade que lhe foi retirada brutalmente há 400 anos.

P. Qual é o papel de um homem negro diante da indignidade sofrida pela mulher negra?

R. Há uma situação de profunda solidão da mulher negra. A mulher negra é rejeitada universalmente, é pisoteada. Para ser um negro consciente, um ser humano consciente, um homem negro tem que olhar para esse aspecto. Não pode seguir como cúmplice desse esmagamento histórico da mulher negra. A mulher negra é o ser humano mais esmagado de todas as categorias de pessoas marginalizadas no mundo. E não se pode ignorar isso. É por isso que Obama fez algo extraordinário, ao levar essa mulher negra, de pele negra, à Casa Branca, como sua esposa, como mãe das suas filhas, quando, na realidade, a sociedade não programou isso. A sociedade programou para que alguém desse nível, desse sucesso, levasse automaticamente uma loira para a Casa Branca. Ele rompe um tabu e se transforma não somente no primeiro presidente negro, mas também no homem negro que devolve à mulher negra o sentido de autoestima e de respeito que essa mulher deve ter, em primeiro lugar. O sistema racista já inviabilizou a relação entre o homem negro e a mulher negra desde os tempos da escravidão. O racismo já determinou que brancas são para casar, mulatas para fornicar e pretas para trabalhar. Há quatro séculos que isso é lei. Então, quando um homem negro, como eu, compreende o que tudo isso quer dizer, ele começa a ter outro olhar para a mulher negra. Começa a buscar o diálogo com essa mulher, em lugar de pisoteá-la, em lugar de reproduzir toda a história de esmagamento. É um diálogo muito difícil, porque, durante quatro séculos, o homem negro e a mulher negra não tiveram uma situação que permitisse esse diálogo. Para derrubar o racismo é indispensável que o homem negro e a mulher negra tenham essa conversa.

3) A Cuba de Fidel: um regime que reproduziu o racismo

P. Por que o senhor decidiu escrever essa autobiografia?

R. Em 1996, eu passei por uma embolia pulmonar e fiquei três semanas entre a vida e a morte, num hospital de Trinidad e Tobago, onde trabalhava como professor universitário de Relações Internacionais. Pensei que, se eu morresse, tudo aquilo que eu precisava falar sobre a minha experiência com a revolução cubana se perderia. As pessoas têm uma visão de que foi uma revolução generosa, correta com todo mundo. E foi a pior repressão contra os homossexuais, contra os negros. Então eu pensei que, se eu sobrevivesse, sairia da universidade e iria para um lugar em que ninguém me conhecesse como militante, para escrever esse livro. Escolhi Salvador, na Bahia. A Bahia, para mim, é como se fosse um país. A culinária, a música, o candomblé… Queria um lugar onde eu pudesse viver tranquilamente e terminar essa obra.

P. Que buraco se abre na sua vida quando o senhor descobre que a revolução cubana está reproduzindo o racismo?

R. Foi um choque. Eu tinha uma necessidade ontológica de que brancos e negros pudessem juntos mudar a sociedade. Quando eu descubro que estão todos mentindo, e estão destruindo as organizações negras, destruindo o candomblé, destruindo tudo o que é negro, porque eles não querem conviver com essas diferenças, porque querem criar um negro novo, um negro submisso, um negro comunista, foi um grande choque. O que eles estavam propondo era um negro sem cor, um cubano sem cor. Mas eu queria minha identidade, eu não queria me diminuir e ser sem cor. Havia esse discurso de que éramos todos cubanos, só que a cor cubana continuava a ser a branca, já que só havia um negro em posição de comando, entre todos, que era manipulado por Fidel, como eu já tinha presenciado nos Estados Unidos. Aí eu disse “não”. Mas foi um choque grande chegar à conclusão de que esses dirigentes brancos não tinham a menor intenção de conviver com gente como eu. Nem posso descrever aquilo que Fidel Castro era para mim. Ele simbolizava a revolução, e a revolução era para mim como uma mãe substituta. Era aquela coisa que eu podia me entregar e amar e ser amado por ela. Ser aceito e amado por ela. Aceito como eu era. E que ela nunca mais ia me rejeitar. E então a encontro e ela me rejeita, como eu sou. E é por isso que eu cometo essas loucuras que eu vou cometer, porque estou convencido de que Fidel Castro não é parte disso. Que aqueles eram os mesmos brancos racistas de sempre, mas que eles não eram a revolução. Quando descobri que Fidel era aquele que estava à frente disso, aí caí em pedaços… Tudo isso aconteceu comigo quando eu não tinha nem 20 anos.

P. O senhor fez uma confissão, negando o racismo em Cuba, para escapar de mais uma prisão ou coisa pior. Como o senhor se sente com relação a isso?

R. Muitas vezes eu tenho me perguntado porque eu não aceitei ser fuzilado em lugar de confessar o que eles queriam que eu confessasse. Muitas vezes eu tenho me perguntado isso. E eu não tenho nenhuma resposta além daquela que eu tinha. Chegou um momento em que eu sabia que a morte estava ali e de que, para evitá-la, eu somente tinha que mentir. E esse foi o momento em que eu disse a mim mesmo: “Eu vou mentir”. Porque aqueles que estão me pedindo para mentir são mentirosos. Então eu estou traindo absolutamente nada. Eu nunca coloquei o nome de ninguém, nunca impliquei ninguém. Impliquei a mim, dizendo: “Fui eu”. Assumi toda a responsabilidade. O regime cubano pode exibir esse documento em qualquer momento e ele só mostrará que Carlos Moore disse que ele fez sozinho.

P. O senhor voltou a Cuba anos atrás para uma visita, reencontrou seus irmãos e conheceu sua família por parte do pai biológico. Como o senhor vê Cuba hoje?

R. A Cuba de hoje é muito mais complexa do que quando eu estava denunciando o racismo naqueles tempos. O fato de negar a existência do racismo fez com que o racismo ocupasse todos os espaços. Então o racismo se reforçou em Cuba. Ele não se expressa da mesma maneira que ele se expressava antes da revolução, na segregação racial, nos lugares públicos. Mas a segregação racial hoje é tão forte quanto aqui no Brasil. No poder político, econômico, coisas tão simples como o conteúdo da televisão. É muito forte. A única grande diferença que há na Cuba de hoje é que existe um número expressivo de negros que pertencem a uma classe média que estudou. Meus próprios irmãos, por exemplo, são todos profissionais. Para sobreviver, a revolução teve que profissionalizar os negros cubanos.

P. E essa não é uma mudança importante?

R. É uma mudança importante, porque vai entrar em colisão violenta com a Cuba que agora está surgindo com Raul Castro, que é essa Cuba capitalista, tipo chinesa. Porque essa é uma Cuba que exclui totalmente os negros profissionais e não profissionais. E aí vai haver uma colisão, porque existe agora uma massa de negros que pensam, que analisam, que compreendem a situação deles. O regime cubano vai ter que lidar com um problema enorme. Da mesma maneira que o Brasil, hoje, cada vez mais, está lidando com um problema cada vez mais forte, que é o reforço dessa classe média negra que está cada vez mais consciente sobre a sua situação.

P. E como o senhor vê Fidel Castro, esse homem que acabou tendo uma importância grande também na sua vida?

R. Fidel fez algo muito importante para Cuba, a revolução foi importante. Apesar de todas as coisas que têm acontecido, eu nunca teria preferido uma Cuba sem revolução. A revolução era necessária, em Cuba, e se converteu naquilo que se converteu. A revolução morreu, foi destruída, foi assassinada, mas o tempo em que a revolução existiu, como esperança que uniu realmente esse povo, que permitiu aos negros sonharem com uma sociedade nova e que permitiu a muitos brancos sonharem com uma sociedade em que essas diferenças raciais e esse conflito racial poderiam ser vencidos, esse foi um momento importante. Todas as reformas mais estruturais que a revolução fez, como saúde e educação, também foram importantes. O fato de que Fidel Castro foi um dirigente que teve a coragem de desafiar os Estados Unidos também foi importante. Agora, essa militarização exigida pela resistência contra os Estados Unidos converteu a sociedade cubana em uma Esparta, destruindo todos os espaços de expressão civil, que não voltaram mais.

P. O senhor faz uma diferença entre a revolução e o regime. Qual é?

R. A revolução é uma esperança coletiva. O ser humano está constantemente buscando ampliar os parâmetros de liberdade na existência dele, e a revolução é esse momento. Houve uma revolução russa? Houve. Ela morreu? Morreu. Houve uma revolução na China? Houve. Ela morreu? Morreu. Foi assassinada? Sim. Os povos colocam a revolução em movimento, e logo aqueles que manipulam os aparelhos de controle a assassinam. Então é sempre esse vai e vem. Esse conflito, essa contradição.

4) Encontros com Malcolm X e Aimé Césaire, desencontro com Sartre

P. O senhor viveu uma experiência muito particular, a de viver num mundo polarizado, que era o mundo da Guerra Fria, e ser suspeito nos dois lados, perseguido nos dois lados, sem lugar em nenhum lado. Como é essa experiência de encarnar um não lugar, no sentido mais profundo?

R. Havia gente que me acusava de ser agente do imperialismo, de um lado, outros me acusavam de ser agente do comunismo, do outro lado. Ao mesmo tempo. Me senti completamente injustiçado. Até o ponto em que eu não podia resistir mais. Você não consegue provar nada. Quanto mais você tenta provar alguma coisa, mais eles dizem que você está camuflando a verdade. Me dei conta de que, para aqueles que se dizem de esquerda, ou para aqueles que se dizem de direita, não importa a verdade. Para eles a verdade é algo relativo. Você tem um adversário, então você o elimina da maneira mais eficaz. E essa maneira mais eficaz é com calúnias. Mas essas mentiras destroem o ser humano que é o alvo desses ataques. Houve momentos em que eu senti que não poderia aguentar mais. Me lembro de pelo menos três momentos da minha vida em que eu seriamente contemplei a possibilidade de abolir a minha vida.

P. Poderia descrever um desses momentos?

R. Na última vez, falei com a minha atual companheira, Ayeola. Eu sentei com ela num jardim, em Guadalupe, e falei: “Eu não posso continuar mais, e nem consigo explicar a você a dor que estou sentindo”. Ela olhou para mim e disse: “Tá bem. Então faça. Eu vou compreender. Se você está sentindo tanta dor a ponto de querer abolir a sua existência, você deve fazê-lo”. Essa foi a coisa mais maravilhosa que alguém poderia ter feito por mim. Eu me senti livre, liberado, realmente livre. Essa autorização, da mulher que me amava, fez com que algo se quebrasse a partir daí. Eu comecei a viver tranquilo sabendo que, a qualquer momento, eu poderia tirar a minha vida. Passaram-se os meses, os anos… E isso me ajudou a lidar com essa situação de cerco permanente.

P. No lançamento do seu livro, na Livraria da Vila, em São Paulo, o senhor disse que a pessoa que mais o marcou foi Aimé Césaire. Por quê?

R. Porque era um homem de uma tranquilidade extraordinária em meio a todos os conflitos. Ele pertenceu ao Partido Comunista e saiu, por uma questão ética, a invasão da Hungria, e passou a ser atacado violentamente. E foi atacado também pelos grupos de direita, porque estava sempre pregando uma espécie de socialismo da negritude, para Martinica e para outros países negros. Ele me impressionou muito com o discurso sobre a questão colonial, especialmente aquela parte fantástica que me abriu janelas, quando ele disse: “Vocês estão condenando Hitler por quê? Isso é mentira. Como vocês podem condenar Hitler, quando vocês fizeram tráfico de escravos, quando vocês colonizaram toda a África? Trabalhos forçados, genocídios… Vocês não podem dizer nada contra Hitler. Hitler são vocês”. E ele falou também: “A única coisa que vocês podem dizer sobre Hitler é que doeu porque ele matou brancos! Ah… isso sim vocês podem dizer! Mas vocês não dizem que o único crime para vocês é que ele aplicou a brancos, durante um tempo curto, aquilo que vocês reservam aos negros desde séculos”. Isso me impressionou muitíssimo. Foi uma explosão na minha cabeça.

P. E como foi o seu “não” encontro com Sartre?

R. Quando eu chego a Paris, procuro Aimé Césaire e finalmente eu o vejo, e ele me escuta sobre o que está acontecendo em Cuba. E, ao final, ele afirma: “Eu não quero acreditar em tudo o que você me disse, não quero acreditar. Mas acredito”. E aí ele me disse que eu precisava ver várias pessoas, entre elas Sartre. Um jovem escritor, amigo íntimo de Sartre, arranja esse encontro, em um café. Eu vi Sartre lá, com os amigos dele, enquanto esse amigo comum vai dizer a ele que estou ali para conversar. Imediatamente, Sartre começa a gesticular e a dizer com a cabeça que não. Esse escritor voltou, então, até onde eu estava: “Sartre disse que não vai te receber, porque não fala com agentes do imperialismo”. Simone de Beauvoir e Sartre são gente que eu amo, são pessoas que liberaram mentes. Sartre foi aquele que abraçou a negritude, que escreveu um texto lindíssimo que se chama “Orfeu Negro”, onde ele explica aos intelectuais brancos, de esquerda e liberais, o que é a negritude. Coisas luminosas. Esse Sartre era fundamental na minha vida. Então, para mim, foi uma traição. Como se alguém me apunhalasse. Ele teve essa reação de conquistador, de não querer me ouvir. Foi muito duro. Mas ele foi fundamental na minha vida, no meu desenvolvimento como ser humano. Assim como Simone de Beauvoir. Tenho muito amor por esses dois… muito amor.

P. Qual foi a sua experiência com Malcolm X?

R. Quando eu o conheci, como líder nos Estados Unidos, eu não tinha amizade com ele. A amizade veio nesses momentos dramáticos em que ele estava caminhando para a morte. Naquele momento, ele estava com essa obsessão de rapidamente poder ajudar a insurreição no Congo. Eu tinha pouco mais de 20 anos e pensei que a única coisa que eu podia fazer era dar todo o meu apoio a Malcolm para que ele pudesse reunir os voluntários. Passei então a ajudar no recrutamento dessas pessoas. No período em que ele passou na França eu tive que dormir com ele no hotel. Ou seja, ele dormia e eu ficava desperto. Logo que ele acordava, eu dormia algumas horas. Ele se ocupava dos assuntos dele e logo buscávamos o lugar onde ele tomava café da manhã, porque ele tinha medo de ser envenenado no hotel. Eram os últimos momentos de Malcolm, e ele sabia. Ele me disse que só tinha horas ou dias, que estava indo para a morte. E constantemente ele estava me dizendo: “Você tem que prestar atenção ao que eu estou lhe dizendo, porque é a última vez que eu vou poder falar assim”. Então ele começou a me falar sobre tudo: sobre a mulher, sobre a vida, sobre a revolução, sobre como organizar os grupos na clandestinidade… Ele era um homem muito generoso. Não era uma pessoa efusiva, não era uma pessoa de abraços, era um homem muito contido. Mas tudo passava através dos olhos dele, de como ele sorria. E era uma grande paciência. Eu podia falar durante meia hora e ele não ia me interromper nunca. Ele ficava lá, atento a tudo o que eu ou outra pessoa estava dizendo. As pessoas têm essa visão de Malcolm somente como aquele grande agitador e tudo, mas Malcolm era um homem muito tranquilo, muito generoso, muito carinhoso…

P. E como o senhor recebeu a notícia do assassinato dele?

R. Quando eu soube da morte dele fazia frio, em Paris, e eu saí andando por horas. Esse foi um dos momentos mais difíceis pra mim. Eu tinha 22 anos. No assassinato de Patrice Lumumba, eu só queria vingança. Eu amei Lumumba sem jamais tê-lo visto, o amei pelas coisas que ele dizia. Havia uma fragilidade em Lumumba. Ele era um homem magro, alto, mas quando ele falava que criaria uma nação na qual os negros podiam ser respeitados, que todos os negros, de qualquer parte do mundo, poderiam ir ao Congo, foi uma revelação pra mim, aos 18 anos. Já com Malcolm era um sentimento de impotência total, porque eu tinha convivido com ele e o amava. Me lembro de um momento em que eu estava apresentando a ele recrutas para o Congo e uma das mulheres que prestaria ajuda como enfermeira o interrompeu. Eu me zanguei: “Não interrompa o brother Malcolm”. Malcolm parou, me olhou, botou a mão no bolso, sacou uma moeda de um dólar e disse: “Brother Carlos, o que tem do outro lado dessa moeda?”. Eu disse que não sabia. E o Malcolm falou: “Ok, nunca mais interrompa uma mulher, porque as mulheres sempre veem o outro lado da moeda”. Eu nunca me esqueci disso.

5) O Brasil, a maioria negra e a crescente tensão racial

P. O senhor pesquisou o racismo em vários países, em quatro continentes. O que é o racismo, no seu ponto de vista?

R. O racismo não é uma simples tecedura de preconceitos aberrantes, nem uma confabulação ideológica descartável, tampouco uma realidade oportunista surgida há pouco, e muito menos uma “doença”. Se trata de uma estrutura de origem histórica, que desempenha funções benéficas para um grupo, que por meio dele constrói e mantém o poder hegemônico com relação ao restante da sociedade. Esse grupo instrumentaliza o racismo através das instituições e organiza, por meio do imaginário social, uma teia de práticas de exclusão. Desse modo, preserva e amplia os privilégios sociais, o poder político e a supremacia total adquiridos historicamente e transferidos de geração a geração. Em uma sociedade já multirracial e mestiçada, ele serviria para preservar o monopólio sobre os recursos, para o segmento racial dominante. Seria um sistema total que se articula desde o início mediante três instâncias operativas entrelaçadas, porém distintas: 1) as estruturas políticas, econômicas e jurídicas de comando da sociedade; 2) o imaginário social total, que controla a ordem simbólica; e 3) os códigos de comportamento que regem a vida interpessoal dos indivíduos que fazem parte dessa comunidade. Assim, não é possível atacar o racismo em apenas um lugar, porque nada vai se modificar. Hoje em dia, o racismo atingiu tal grau de sofisticação que nega a si mesmo e pretende não existir. Negar a existência do racismo, transformá-lo em um tabu social, tratá-lo como “aberração” ou reduzi-lo à “discriminação” e ao “preconceito” é a melhor forma de encobri-lo e protegê-lo enquanto estrutura sistêmica. Por isso, sempre que o ser humano o nega ou simplifica, está automaticamente em “cumplicidade sistêmica” com ele.

P. E como o senhor vê o racismo no Brasil atual?

R. Brancos e negros estão travando aqui uma luta terrível. E os brancos nem sabem que estão dentro dessa luta. Alguns sabem e pretendem que a luta não existe. Mas só uma minoria, muito pequena, está consciente dessa luta e sabe que é uma luta. A maioria nem quer saber.

P. Há alguma peculiaridade no racismo do Brasil?

R. Não estou buscando nenhum lugar idílico, isso não existe pra mim. O que estou dizendo no meu livro Racismo & Sociedade é que temos de olhar para o racismo a partir dos modelos. O racismo aqui no Brasil corresponde a um modelo específico, e esse modelo veio da Península Ibérica. É o modelo de uma escravidão já naturalizada, onde os negros crescem dentro da escravidão, os negros se sabem escravos. Onde há um sistema clientelista, de onde há uma série de gradação de cores. Esta é uma escravidão que tem mil anos de ossificação. Nela, o subalterno dentro do sistema aceita a sua atividade, vê isso como normal. Nesse modelo, o racismo é o leite que amamenta o negro todos os dias.

P. Um racismo naturalizado?

R. Sim. Então todo mundo quer essa limpeza do ventre, da barriga. As mulheres negras buscam constantemente que seus filhos saiam da escravidão. E qual é a única saída? É que eles sejam pardos, que eles sejam mulatos. Uma situação de trânsito sexual entre o homem branco e a mulher negra. Porque aqui, quando você fala de miscigenação, fala de uma maneira geral, fala sem dizer que aquele que está miscigenando é o homem branco. Não é o homem negro que está miscigenando a raça branca, mas o homem branco que está miscigenando a raça negra. Quando chegam os espanhóis e os portugueses é o que primeiro eles fazem com as nativas e com as africanas. A mulher branca vem depois, com o sistema já estabilizado. Então, esse é um modelo muito mais difícil, porque tudo está naturalizado, tudo é normatizado. As coisas fluem, o sangue está fluindo no interior do sistema de uma maneira normal.

P. Parece que algo forte está acontecendo no Brasil nesse momento, no que se refere ao racismo, mesmo que muitos brancos não enxerguem ou não queiram enxergar. O quanto isso está relacionado à primeira geração de negros que chegou à universidade pelas cotas raciais?

R. É por isso que há tanto pânico. Eu cheguei aqui num momento em que o pânico começou a desencadear-se. O movimento negro fez um trabalho colossal neste país. E que chegou a interferir dentro dos partidos. Depois, quando vi esses negros entrando na universidade, levando com eles o candomblé, as favelas, os quilombos… A universidade ficou em estado de choque. Era um corpo estranho que tinha entrado lá, e eu me dei conta disso. Eles não viam a entrada de estudantes, eles viam a entrada de soldados estrangeiros. Viam esses estudantes como uma invasão da universidade. E eu me dei conta de que esse espaço sacrossanto, branco, tinha sido dessacralizado. Diante disso, começou uma reação tão forte, contrária, que continuou ascendendo até os nossos dias. Se complexificando, se tornando todo o tipo de oposição, com máscara política. Pela primeira vez os brancos nesse país ouviram falar que os negros eram majoritários. A população branca parece viver isso como um estupro. A raça negra é um falo e a sociedade branca é uma enorme vagina. Há uma tensão constante. Essa penetração nas universidades foi vista, simbolicamente, como algo muito, muito, muito profundo. E aí, imediatamente, a repulsa foi geral, dentro da sociedade branca. Com as cotas raciais e as demais ações afirmativas foram liberadas forças que ninguém conhecia. Percebi que havia um potencial real de mudança agindo dentro da sociedade. É nesse ponto que começo a ver, a sentir, que este país tem possibilidade de mudar esse quadro. As máscaras começaram a cair. E o Brasil é um país de máscaras, tantas máscaras…

P. É importante as máscaras caírem?

R. É importantíssimo. A sociedade americana tem essa possibilidade tão grande de discutir e de avançar nessa questão tão difícil, que é a questão racial, porque as máscaras aí são arrancadas com a maior facilidade. Já são várias gerações discutindo abertamente a questão racial. Aqui, não. Lá, quando se mata oito, nove negros numa igreja, se diz claramente que foram mortos porque são negros. Ponto final. Aqui, se queimam um índio, queimaram ele por alguma outra razão. Matam o negro e é a mesma coisa. Mas as máscaras estão caindo.

P. O mito da democracia racial é uma máscara que cai?

R. Ao quebrar o mito da democracia racial, o movimento negro quebrou a ideologia sobre a qual se sustenta esse país. Esse país tem se apresentado diante do mundo inteiro como o único país onde tudo está acontecendo bem entre brancos e negros. E os negros fora desse país acreditavam. Todo mundo falava do Brasil como um milagre, até que os negros daqui, em décadas de combate, finalmente quebraram o mito da democracia racial. Para recolocá-la aqui é impossível. Terão de inventar algo novo.

6) Os brancos e a negociação do poder

P. O que vai acontecer depois que as máscaras terminarem de cair?

R. Eu não sei o que vai vir…. Porque esses são momentos em que pode acontecer o melhor ou o pior.

P. E o que seria o melhor e o que seria o pior?

R. O melhor seria uma discussão dentro desse país, em que se discuta claramente quais são os problemas. Em que cada um diga o que tem dentro. Em que cada um diga o que tem a propor. Em que cada um diga qual a relação dele com esse país. A relação racial se sobrepõe a todas as outras considerações: de sexo, de gênero, de nacionalidade, de religião… Estamos chegando a um momento em que essas coisas estão sendo ditas. Algumas pessoas já se dão conta de que este é um país de maioria negra e isso funda um pânico existencial enorme, dentro dessa parte da população branca, na qual a mística da questão racial está enraizada, como na África do Sul. Eu vi essa mesma reação na África do Sul, quando começou a se falar em transferência de poder. A minoria branca nunca ouviu falar dela como minoria, ela nem se percebia como minoria. No Brasil dos últimos 15 anos, a consciência de que os brancos são minoria, num país que é majoritariamente negro, está crescendo. Surge então um pânico existencial, que está delineado por uma consideração racial.

P. O senhor acha que há no Brasil um Apartheid, com a diferença de que não está na Lei?

R. Aqui o Apartheid apenas não é jurídico. Mas está em todas as partes, em todos os lugares de poder e de decisão. Somente não há leis porque, dentro do modelo ibérico, o Apartheid é um Apartheid de consentimento. Os negros sabem onde estão os espaços dos brancos. Os brancos sabem onde estão os espaços negros. E até onde os negros devem ir. Todo mundo sabe qual é o seu lugar, e o lugar do branco é sempre dominante. Mas, agora, pela primeira vez na história desse país, a hora do questionamento chegou.

P. O senhor disse que o melhor que poderia acontecer seria uma discussão aberta, onde as coisas são colocadas com os nomes das coisas. E o que de pior pode acontecer?

R. O pior é o que já aconteceu na Alemanha. O racismo é fascismo. O racismo é nazismo. Só que nós estamos acostumados a pensar no nazismo como campos de extermínio. Mas o nazismo não é campo de extermínio, este é apenas um momento extremo dele. O extermínio simbólico e físico, sem os campos, está acontecendo todos os dias. E esse nazismo cotidiano, nazismo de todos os dias, é aceito. Porque a sociedade branca dominante está vendo como uma resposta à agressão dos negros, que estão chegando cada vez mais perto daquilo que eles não devem ter, que é o poder. Já existe a ideia, dentro da nação, de que tarde ou cedo os brancos vão ter que negociar aqui o poder político e econômico, como negociaram na África do Sul. Tarde ou cedo isso vai acontecer. Nos próximos 15 anos, com certeza, a maioria negra vai ter que estar refletida em todas as instâncias do poder político. Nunca o branco desse país pensou em termos de negociação racial. Com quem iria negociar? E por quê? Agora, pela primeira vez, essa ideia está entrando, simbolicamente, porque existe uma contestação negra. Às vezes é só um protesto por algo que está acontecendo na televisão, em que os negros dizem: “Não queremos isso”. E que os brancos dizem: “Que direito ele têm de dizer o que querem ou não querem? É simplesmente televisão…”. Mas os negros dizem que não querem esse tipo de lazer. Aí os brancos dizem que é fascismo dos negros. Isso demonstra que há um momento de confronto óbvio. Visual. Os estrangeiros veem isso mais facilmente do que os brasileiros. Eles chegam aqui e veem que a tensão é cada vez maior. O Brasil de hoje não é mais o Brasil de 15 anos atrás.

P. O senhor fala que não gosta do conceito de tolerância. Por quê?

R. A palavra tolerância veicula rejeição. E veicula imposição de todo um modo que é determinado por aquele que diz tolerar. Vou tolerar, mas o modo bom é o meu. Para mim, o importante é o comércio com o diferente. Essa espiritualidade, que nada tem a ver com religião, que é sentir a conexão com todos os outros que eu não conheço. Eu quero conhecer e ter uma relação com o diferente, como diferente. Quero poder formar parte do mundo dele também. Na medida em que eu possa. E querer ele também no meu mundo. Na medida em que ele também possa. É muito arrogante falar isso de tolerar. Quando alguém diz aqui no Brasil que tolera os negros, que não tem nada contra os negros, você já sabe que é um racista falando. É hora de quebrar essas máscaras. Diga então, francamente que você não gosta dos negros, que você acredita que são sujos, que são fedorentos, que são perigosos, que tem que cortá-los e castrá-los, também intelectualmente. Os negros são uma ameaça para o mundo ocidental, especialmente para o Brasil. O Brasil se elege como parte do mundo ocidental. Os brancos desse país se consideram representantes tropicais do mundo ocidental. Então, as reações deles são as reações do mundo ocidental. E o mundo ocidental se considera hoje invadido por negros e por árabes. Na Alemanha nazista, os judeus foram convertidos em negros. E cada vez que você converte um grupo branco em negro, você tem que subir o espaço do grupo branco para outro nível, por isso Hitler mudou para ariano. Agora, estão convertendo os árabes em negros, então eles têm que mudar a dimensão branca para ainda outra dimensão, supra branca. Porque os árabes são brancos nos países deles. E os brancos aqui no Brasil consideram que estão sendo invadidos pelos negros.

P. Como esse processo de “mais branco” estaria ocorrendo no Brasil?

R. Agora está havendo um problema aqui no Brasil. Na medida em que os negros que têm pele clara começam a dizer que são negros, já começa a ficar perto demais. Então, os brancos têm que mudar de categoria. É como a (cantora) Fabiana Cozza (uma das amigas que hospedou Moore em São Paulo) dizendo que é negra, e que quer ser reconhecida em sua negritude. Ao dizer isso, ela está subvertendo o sistema. E isso está acontecendo cada vez mais. Só que esse sistema foi criado exatamente para o oposto. Para que cada vez que um negro tivesse a pele mais clara, ele reforçasse o sistema da brancura nesse país. Estamos vendo agora um deslocamento da categoria branca para um nível superior de barbárie. É isso que estamos vendo nesse instante: um deslocamento da branquidão nesse país. Porque o negro está chegando perto demais. O esquema raciológico brasileiro está se quebrando e criando angústias dentro dessa sociedade branca. Essas angústias estão se expressado através de muitas coisas.

P. Qual deve ser o papel de um branco no Brasil de hoje, no que se refere ao racismo?

R. O Brasil é um lugar bem particular, no sentido das relações raciais. Particular não pelas razões que os brancos dizem, falando que as coisas acontecem de uma maneira diferente do resto do mundo. Não. Aqui, as coisas acontecem como acontecem em todos os outros lugares do mundo. A opressão do negro é brutal, é severa, é terrível. O negro tem sido confinado aqui aos piores lugares, no imaginário, no espaço físico, em todos os espaços. Mas o Brasil ocupa um lugar bem particular no sentido de que este é o lugar onde os negros são maioria. E isso quer dizer que os brancos não vão mudar de país. Os brancos da África do Sul não mudaram de país. Eles tiveram que compor. E os brancos do Brasil vão ter que compor com a maioria negra daqui. Porque é uma maioria negra que é cada vez mais maioria. E esse processo não pode mais ser revertido, porque não há mais possibilidade de imigração branca para esse país. Acabou toda a possibilidade de imigração europeia vindo para cá. Então, brancos e negros estão aqui numa competição demográfica, e os brancos já perderam. Os negros chegaram de novo a ser maioria nesse país. Como eram maioria ao final da escravidão. Depois da abolição, os brancos lidaram com essa realidade importando milhões de europeus. Davam todas as vantagens e privilégios a esses europeus, para que se assentassem aqui e, ao mesmo tempo, expulsaram os negros de todos os espaços da vida civil, esperando que eles morressem. Porque o plano era esse, era eugênico. E os brancos pobres iam mestiçando as mulheres negras, chegando a uma população de pele clara e de pele branca e de maioria branca de novo. Agora, essa maioria negra, que vai ser cada vez mais maioria, está cada vez mais consciente de sua negritude, de seus direitos, e consciente do fato que eles têm que governar esse país. Tarde ou cedo, haverá que se negociar.

P. E em que bases se dará essa negociação?

R. É uma negociação em torno de que tipo de país queremos. É uma conversa profunda. Não é simplesmente aquela conversa sobre o capitalismo. É saindo de uma conversa do capitalismo, do socialismo, que era aquela polarização que tínhamos até agora, baseada no “queremos o comunismo ou queremos o capitalismo”. Agora, não. A conversa é que tipo de país nós queremos. Agora é que essa conversa começou realmente no Brasil. Que tipo de país vai nos permitir viver de uma maneira correta, aqui, com todos os recursos naturais que temos. Acho que este é um país que reúne muitas condições para se chegar a um diálogo. E só se chega a esse diálogo através de um confronto em que as máscaras caiam e os negros digam o que querem desse país.

P. E qual seria o papel ético de um branco nesse momento?

R. Essa situação já está impactando nas consciências de brancos que estão começando a se dar conta de que esse mundo no qual eles estão vivendo não é aquele mundo no qual eles pensavam que viviam. Estão vivendo, de fato, num mundo que é um horror para a maioria da população. Então, nessas circunstâncias, vai haver forçadamente uma convergência entre dois tipos de consciências: uma consciência surgida das exigências éticas, de uma parte da população branca, que se encontra em contradição com ela própria, como indivíduo, e outra parte que não tem essa exigência ética. Ter uma visão de si mesmo é parte do ser humano. Quando certos brancos se descobrem formando parte de um bando de opressores, para estes é um grande problema. Mas, para muitos, isso não vai ter muita importância, porque os privilégios são tão grandes, que não é um problema. Eu tenho visto esse problema tornar-se cada vez maior para brancos desse país que se encontram em contradição ética consigo mesmos. Então, eu acho que essa situação vai crescer. Se eu não tivesse visto esse processo acontecer em outros lugares, eu não poderia me manifestar com a confiança que estou me manifestando agora. Eu não vou dizer que os brancos vão mudar, digo que certos brancos vão mudar. E que eles vão constituir uma reserva moral importante nesse país.

7) As duas Áfricas: a mítica e a real

P. Há essa dimensão mítica da África como origem. Mas, quando se fala em África, são várias as Áfricas. Qual foi o seu encontro – ou o seu confronto – ao andar por tantas delas?

R. Quando eu saio de Cuba, eu vou para o Egito, mas aí eu não encontro a África, eu encontro o mundo árabe. Vivo um ano no Egito, dentro do mundo árabe. Eu vou para a África real quando eu vou à Nigéria, pela primeira vez. E aí me encontro com uma África terrível. Uma África de dirigentes totalmente cínicos, corruptos, mercenários, assassinos. É um choque muito grande. Porque até então minha lógica era a de confronto com o mundo branco. E ali era o confronto com o mundo branco, ainda, mas através daquela coisa do (Frantz) Fanon: “Pele negra, máscaras brancas”. Essas classes dirigentes totalmente ocidentalizadas que estão oprimindo o povo. Resolvo esse conflito me unindo à África da resistência. Se eu não tivesse abraçado imediatamente a causa popular na África, eu teria me sentido totalmente destruído. Teria me tornado um cínico total.

P. Que papel ocupou essa África mítica na resistência dos negros ao longo da história?

R. Tivemos que inventar uma África mítica para resistir durante 400 anos. Não foi fácil atravessar 400 anos sem nenhuma referência positiva sobre você, sobre a raça negra. Tivemos que inventar uma África para servir de apoio moral e espiritual. Uma África que nos dissesse, que nos informasse constantemente que éramos seres humanos, vivendo 400 anos em um sistema que diz que você não é humano. Em que o branco é o único que é referência do que é humano, do que é belo, do que é bom, do que é justo, do que é limpo, e você… é somente sujeira. Quem resiste a isso? Então tivemos que inventar uma África que mantivemos em segredo, como as religiões. As religiões também tiveram esse papel de nos dar essas referências, de que não éramos sujeira… lixo.

P. E a África real?

R. Hoje, precisamos dizer: “Necessitamos desse mundo mítico. Mas, agora, olha para o mundo real. A África de hoje é essa. Onde os povos estão sendo trucidados por esses canalhas. Milionários, mercenários e totalmente vendidos ao exterior. E as guerras civis são por causa disso”. Então, havia que fazer as duas coisas: abraçar a África mítica para desmitificar essa África cruel. Ter forças para chegar até aqui, para então ter forças para confrontar a realidade de hoje. Hoje eu me sinto muito confortável. Eu vou para a África todo tempo, mas eu sei qual é o meu lugar. Eu não vou lá confraternizar com as elites africanas. As elites africanas são elites inimigas. Eu vou lá para fazer algo bem preciso. Sei onde está a linha de demarcação.

8) Conclusões do exílio: onde o humano é real

P. Quando lemos sua autobiografia, parece que são tantas vidas numa só. Nas últimas páginas do livro, o senhor escreve: “foi uma história quase inverossímil”. E, são tantos acontecimentos e tantas pessoas envolvidas, que podemos ter, mesmo, essa impressão. Por que os leitores devem acreditar na história que o senhor conta?

R. Não, eles não devem acreditar. Em primeiro lugar, eu não tento convencer. O livro foi escrito simplesmente porque eu fui levado a escrever esse livro, por alguém que me disse: “Você tem que contar isso que aconteceu”. E eu comecei a contar o que aconteceu. Isso aconteceu comigo. E se o governo cubano tem provas de que isso não aconteceu, que eles deem. E se outras pessoas têm provas de que isso não aconteceu, que deem as provas. Agora, que eu saiba, essa foi a experiência que eu tive. Isso foi o que aconteceu, com a minha mãe, com o meu pai, eu cresci desse modo, me revoltei desse modo, fui para os Estados Unidos e um dia uma mulher veio e mudou toda a minha vida. E foi assim, eu conto… estou contando. Eu poderia ter mudado minha história muitas vezes. O regime cubano me deu muitas possibilidades de entrar. Meu irmão foi para a União Soviética, se converteu em engenheiro, voltou pra Cuba, entrou no Partido Comunista. Todos os meus irmãos e irmãs estão dentro do sistema. Eu optei por uma vida de resistência, porque era o que eu sentia. E isso deu no que deu.

P. E quando o senhor olha para essa vida tão imensa, o que vê?

R. Eu não mudaria minha vida. Quando você está sentindo a pressão e a dor, você quer que essa pressão e essa dor cessem. Mas as oportunidades que eu tinha de fazê-las cessar não eram dignas. Então, eu me negava a tomar essas vias. Mas tive mil oportunidades de ser um dedo duro, de satisfazer a Inteligência Francesa, que estava me interrogando todo o tempo. Fui expulso de vários países, mas poderia ter me acomodado. Eu poderia ter mudado minha história muitíssimas vezes. Mas você não está fazendo uma história. Está vivendo uma vida.

P. E qual é a diferença?

R. A vida é todo dia e é uma vida de opções. Agora mesmo eu tenho opções diante de mim. Eu posso me calar aqui no Brasil. O mais prudente é que eu me cale aqui no Brasil. Porque podem me botar para fora do Brasil em 24 horas. Denuncio o racismo aqui há 15 anos e posso ser acusado de estar interferindo na vida dos brasileiros. É uma opção. Eu poderia optar por não fazer isso. Por simplesmente viver tranquilo no Brasil. Em nenhum momento a polícia veio na minha casa para me dizer o que fazer ou não fazer. Em nenhum momento o governo brasileiro interferiu na vida da minha família. Então, por que eu vou denunciar, me meter em uma situação na qual eu coloco a minha própria paz em risco? Mas minha opção é a de me manter fiel a essa vida que eu tenho até agora. Porque é a única coisa que me dá paz. Se eu faço qualquer outra coisa, eu não estou em paz.

P. O senhor se sente exilado, hoje?

R. Eu me sentirei exilado sempre. O exílio já cessou de ser para mim algo burocrático. Algumas pessoas cubanas dizem: “Ele não é exilado porque ele pode voltar para Cuba”. Eu volto para Cuba condicionalmente. Eles me dizem que eu não posso viver lá, residir lá. Mas essa é uma questão burocrática. E amanhã eles podem mudá-la também. Mas não vai mudar a maneira como eu me sinto. Eu faço parte de uma tribo de humanos que não se sente bem com nenhum desses sistemas. Que não se dá bem com esse tipo de mundo no qual estamos vivendo. Não me dou bem com esse Brasil que estou vendo aí. E amanhã saio do Brasil e vou para Trinidad e Tobago, vou para o Senegal, vou para a África do Sul, e não me dou bem com a situação desses países. Não me dou bem em Uganda, não me dou bem em nenhum desses lugares. Então eu sinto que o meu lugar é um lugar de viver com o meu tempo. E o meu tempo é o de afirmar certas coisas que deveriam ser evidentes, mas que não são evidentes. Afirmar que há possibilidades de que seja de outra maneira. Meu tempo é um tempo de dizer “não”. De resistir.

P. O senhor afirmou que o mais importante é viver de acordo com o seu tempo. O que isso significa, hoje?

R. Minha esperança se funda no possível. Eu acho que é possível o homem e a mulher chegarem a uma compreensão de que a opressão que o homem tem criado é totalmente negativa. Eu não acho que o masculinismo, o machismo e o sexismo sejam algo que não possa ser extirpado da nossa experiência humana. Eu acho que é possível que negros e brancos possam se ver de outra maneira. Eu acho que é possível parar as guerras, essas guerras sem sentido. Não estou dizendo que eu tenho uma solução, isso é diferente. Mas eu acho que é possível se sobrepor a todos os conflitos, que são conflitos religiosos, em torno das coisas que nós criamos, porque os deuses foram criados por nós, totalmente criados por nós. Não é o tempo de me filiar a uma facção ou outra facção. O meu tempo é o tempo das possibilidades.

P. O senhor disse que, na sua infância, não sabia quem era. Hoje, o senhor sabe?

R. Perfeitamente.

P. E quem é o senhor?

R. Eu sou um negro, que nasceu em Cuba, mas que superou sua “cubanidade”. Cuba não é uma referência para mim. É a referência de onde eu nasci, de onde está enterrada toda a minha infância, toda aquela coisa que me formou, mas Cuba não é o lugar que forma meu ser, minha identidade. Minha identidade atravessa fronteiras, atravessa muitas culturas, é algo muito mais elástico. Eu me sinto muito bem onde quer que eu esteja. Eu me reinvento onde eu estou morando, fundo uma família de amigos. Então, eu não vivo com essa angústia que vivem os cubanos que estão fora, de voltar para Cuba. Estou no Brasil, vivo o momento do Brasil, vivo os problemas do Brasil. E, quando eu for embora do Brasil, farei exatamente a mesma coisa. Me envolvi na luta política lá na Nigéria, no Senegal também. Em qualquer lugar que eu vou, eu me envolvo nas lutas daquele momento. Eu não quero estar envolvido numa nostalgia permanente. Os cubanos vivem com uma nostalgia de Cuba, querendo só escutar música cubana, comer comida cubana… A referência da minha vida é muito maior que Cuba, muito maior que o Brasil, muito maior que qualquer país. Não há um só país que possa concentrar a referência do que é a minha vida, do que é a minha identidade.

P. E o que referencia a sua identidade?

R. Aquilo que me faz sentir bem, como eu disse anteriormente, é estar de acordo com o meu tempo. Então, tudo aquilo que perturba aquele tempo, imediatamente suscita reações profundas em mim. É por isso que não preciso de definições. As pessoas dizem: “Mas você é de esquerda? Você é de direita?”. Constantemente estão querendo que eu me defina em termos de direita e de esquerda. Essas distinções eu conhecia antes, eu me definia assim. Mas onde é que está a linha de marcação entre esquerda e direita? Nós vemos às vezes os direitistas se comportarem como os esquerdistas, na questão racial. E os esquerdistas se comportarem como os direitistas, quando se trata da questão racial. Eu encontro esquerdistas que são homofóbicos. Encontro direitistas que são homofóbicos. Esquerdistas e direitistas encontram-se em tantos pontos. O que estou dizendo é que a coisa mais importante para mim é a linha de divisão ética, certas coisas na minha vida que eu considero invioláveis.

P. Que são?
R. Essa coisa da diferença. Eu bato nessa tecla constantemente. Porque, para mim, é o mais importante. A partir do momento em que a diferença não é respeitada, eu tenho que entrar em guerra. Por isso eu entro em guerra com a mestiçagem. Porque ela está dizendo que eu não tenho o direito de ter o fenótipo que eu tenho, de ter os cabelos crespos que eu tenho e de ser respeitado como sou. Que eu tenho que ter os cabelos diferentes, alisados, que não tenho que ter a pele negra, que meus filhos têm que ser cada vez mais brancos para serem respeitados dentro da sociedade. Eu digo não. Eu digo absolutamente não. Eu não me rendo a isso. Meus filhos têm que ser respeitados conforme eles nascem, com a pele negra, com os cabelos crespos, com os lábios grossos, com os narizes que eles têm. Eles têm que ser respeitados desse jeito. Então, essa é a linha de demarcação mais fina na minha vida. É ela que define praticamente todas as escolhas que eu faço.

P. O respeito à diferença?

R. Absolutamente. O fato de ter sido proscrito de Cuba por 34 anos me fez compreender que a nacionalidade é um jogo, é uma brincadeira. Que as fronteiras são coisas totalmente artificiais, que foram erigidas e convertidas em realidades sacrossantas. E que essas fronteiras não eram nada, porque cada fronteira em que eu ia me paravam, eu era suspeito. Eu ingressei numa tribo de suspeitos. Me dei conta de que toda essa força emocional de ser brasileiro, ser americano, ser cubano era um mito que os seres humanos tinham erigido como maneira de se mobilizar contra outros seres humanos. Eu viajava com um documento das Nações Unidas, passava muito tempo em cada fronteira, esperando que pudessem reconhecer que era autêntico. Isso me dava muito tempo para refletir sobre a condição humana. Ao longo dos anos, aquelas categorias de definição de separação foram caindo, uma por uma. Religião, nacionalidade, casta, classe social… À medida em que foram caindo, eu tive que buscar qual era o substituto real. Não o substituto ideológico, mas onde se encontrava a verdade do ser humano, seja qual for. Onde um ser humano é real? Cheguei a esse ponto no qual estou, no qual eu me identifico e me sinto bem. Acho que eu me encontrei. Eu gosto de quem eu sou. E acho que me encontrei na vida, me encontrei no universo, no sentido mais amplo. Me encontrei naquele espaço no qual eu me dou bem, que é esse espaço em que eu posso olhar para todas as diferenças, todas, e não me sentir ameaçado por elas. Eu não me sinto ameaçado por nenhuma diferença.

P. E onde um ser humano é real?

R. Pertencemos a uma espécie e não há consciência dessa espécie. Temos a consciência de definições ideológicas, mas a consciência da espécie não existe. Ser humano implica uma certa solidariedade e, para mim, a solidariedade é um dever. De mirar o outro que está sendo esmagado, que está sendo excluído, que está sendo discriminado, e se colocar ao lado dele. Em nome dessa espécie. Somos todos partes dessa espécie, que está ameaçada, inclusive, por causa de tudo o que faz. Quando ouço o Obama falar que o problema principal que nós temos não é o terrorismo, mas a mudança climática, aí ele toca algo em mim que eu alcancei a duras penas, depois de 34 anos de rejeições em todos os sentidos. Temos que ser solidários entre nós, temos que chegar a um acordo. Para defender a existência aqui, sobre a Terra. Se vamos continuar existindo é finalmente a coisa mais importante. A coisa mais importante de todas é essa: sentir solidariedade por gente que você nunca vai conhecer, por pessoas que ainda vão vir e você não vai encontrar. E eles têm que encontrar uma Terra habitável.

 

(Publicado no El País em 31 de agosto de 2015)

Um negro em eterno exílio

A longa travessia de Carlos Moore, o ativista e intelectual que denunciou o racismo em Cuba e passou a vida perseguido pelos dois lados da Guerra Fria, até chegar ao Brasil e encontrar um país mergulhado numa crescente tensão racial

Foto: Bunche Center/UCLA

Foto: Bunche Center/UCLA

Aos 22 anos, Carlos Moore já tinha vivido mais do que a maioria das pessoas numa existência inteira. Já tinha conhecido a fome e a violência na pequena cidade cubana onde nasceu, já tinha desejado não ser preto e se esforçado por alisar o cabelo, clarear a pele com produtos arriscados e desachatar o nariz com prendedores, já tinha emigrado para os Estados Unidos e descoberto a luta pelos direitos civis, já tinha se apaixonado por Patrice Lumumba, o célebre líder congolês, e planejado um atentado ao consulado belga em Nova York para vingar-se de seu assassinato, já tinha se encantado com a revolução depois de um encontro com Fidel Castro, já tinha se tornado comunista e voltado a Cuba para colaborar com o processo revolucionário, já tinha descoberto que o regime cubano era tão racista quanto aquele que tinha derrubado, já tinha sido encarcerado uma vez por denunciar que o racismo persistia na revolução, já tinha sido condenado a quatro meses num campo de trabalhos forçados uma segunda vez pelo mesmo motivo, depois de abordar o próprio Fidel Castro em público, já tinha feito uma confissão, para não ser morto, de que havia se equivocado e de que não havia racismo em Cuba, já tinha se refugiado na embaixada da Guiné quando percebeu que seria executado de qualquer modo, já tinha fugido para o Egito e depois para a França, sem nenhum documento, já tinha sido rejeitado por um Jean-Paul Sartre convencido de que ele era “agente do imperialismo”, já tinha sido acolhido por um dos ideólogos da negritude, o grande poeta surrealista martinicano Aimé Césaire, já tinha virado segurança do ativista negro Malcolm X, quando este esteve em Paris, e já tinha sofrido de todas as formas pelo seu assassinato. Isso tudo aconteceu até os seus 22 anos. Depois, aconteceu muito mais.

A primeira foto (1957)

A primeira foto, em 1957

Leia mais na minha coluna no El País:

“Todos os negros nascem num grande exílio forçado”

“O racismo já determinou que brancas são para casar, mulatas para fornicar e pretas para trabalhar”

“Para os que se dizem de direita ou de esquerda, não importa a verdade. Se você tem um adversário, você o elimina da forma mais eficaz: com calúnias”

“No Brasil, o racismo é o leite que amamenta o negro todos os dias”

“A penetração dos negros nas universidades, pelas cotas raciais, foi vivida pela sociedade branca como um estupro”

“Ao quebrar o mito da democracia racial, o movimento negro quebrou a ideologia sobre a qual se sustenta esse país”

Com Fidel Castro, em 1960

Com Fidel Castro, em 1960

“A descoberta de que os negros são maioria no Brasil gerou um pânico existencial na parcela branca da sociedade”

“Nos próximos 15 anos, a maioria negra vai ter que estar refletida em todas as instâncias de poder”

“Os brancos vão ter que negociar o poder no Brasil, como aconteceu na África do Sul. Não há mais como ‘branquear’ o país”

“Para uma parcela dos brancos, descobrir-se opressor é um grande problema. Esses brancos éticos serão uma reserva moral importante”

“Inventamos uma África mítica para resistir por 400 anos num sistema que dizia que não éramos humanos”

Com o poeta surrealista martinicano Aimé Césaire e o escritor americano Alex Haley   em 1987

Com o poeta surrealista martinicano Aimé Césaire e o escritor americano Alex Haley, em 1987

“Eu não estava fazendo uma história. Estava vivendo uma vida”

“Não me defino por nacionalidades. O meu lugar é o de viver de acordo com o meu
tempo”

“Me encontrei: posso olhar todas as diferenças e não me sentir ameaçado por nenhuma delas”

Com Malcom X, em 1974

Com Malcolm X, em 1974

 

LIVRO

“Pichón – minha vida e a revolução cubana” (Editora Nandyala) 

Lançada em inglês, em 2008, a autobiografia de Moore foi editada no Brasil graças a um financiamento coletivo. O vídeo abaixo foi feito para divulgar a campanha de financiamento.

Leia aqui a entrevista completa com Moore.

 

 

Rodopiando em Min

Minha despedida de Marcelo Min, fotógrafo que amarrou as pontas da vida. Meu amigo não queria morrer, mas morreu como quis: vivo.

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Lembro-me primeiro de uma noite de inverno. Marcelo Min e eu testemunhávamos, como repórteres, os últimos dias da vida de Ailce de Oliveira Souza, a mulher que nós dois aprendêramos a amar, ao acompanhar o seu morrer por 115 dias. Naquela noite, Ailce parecia ter começado a partir. Ela só abria os olhos para olhar o mundo do qual se despedia e para pedir água. Nós molhávamos os lábios dela e ficávamos olhando o mundo com ela. Nem Min nem eu conseguimos deixá-la naquela noite. Nos enfiamos num quarto vago na enfermaria de cuidados paliativos do hospital, onde seu último inquilino acabara de se ir. Eram duas camas e não havia lençol. Deitamos sobre o plástico e Min, sempre generoso, me deu o único cobertor fino para atravessar uma madrugada gelada. Até ancorarmos no dia seguinte, ele ficou repetindo que não sentia frio, mas tiritava. Naquela noite do inverno de 2008, ficamos ali, no escuro, dois passageiros clandestinos daquela enfermaria entre a vida e a morte. Conversando para costurar a madrugada e a dor com palavras. Min me contou que queria morrer como seu Antônio, um homem que ele tinha fotografado em outro quarto, seu Antônio que o recebia com uns olhos brilhantes, molhados de vida, mais vivo que todos, e de imediato contava uma história. Min foi o primeiro a perceber que seu Antônio acreditava que, enquanto emendasse uma história na outra, estaria vivo. E um dia apenas fechou os olhos para anunciar que sua história tão cheia de “um tudo” havia chegado ao fim.

Antônio Walter Correia abriu o sorriso antes de começar a contar uma das muitas histórias de sua vida. (Foto: Marcelo Min)

Antônio Walter Correia abriu o sorriso antes de começar a contar uma das muitas histórias de sua vida. (Foto: Marcelo Min)

Três dias depois, o contador de histórias encerrou a sua suavemente (Foto: Marcelo Min)

Três dias depois, o contador de histórias encerrou a sua suavemente (Foto: Marcelo Min)

Marcelo Min morreu na última quinta-feira (27/8). E eu ainda não posso afirmar que isso de fato aconteceu. Aqueles que amamos morrem devagar dentro da gente, e a qualquer momento eu sinto que ele vai chegar com aquele jeito meio tímido, com aquele sorriso inteiro bom, e dizer: “Oi, Eliane”. E depois faríamos alguma reportagem em que invariavelmente alguém o chamaria de “japonês”. E nós dois riríamos por causa dessa sina de que no Brasil todos os descendentes de orientais viram “japonês.” Min era descendente de coreanos. Mas ele morreu. E quando me pediram para escrever um texto sobre ele, minha reação imediata foi dizer: “não consigo”. Como escrever sobre o Min quando a morte dele me rouba todas as palavras? Naquele momento, eu me sentia como uma criança que ainda não sabia onde as palavras moravam. Agora, algumas horas depois, volto a ser adulta. Sei onde as palavras moram, mas sei também algo que jamais vou superar: as palavras são faltantes, não dão conta da vida. Então, Min, me perdoa por me faltarem palavras para contar da falta que você nos faz.

Na manhã de terça-feira (25/8), Min deixou os filhos na escola que ele e Luciana Benatti, sua companheira, ajudaram a criar. Sim, juntos eles eram assim, o Min e a Luciana. Criavam um mundo melhor, inventavam o que precisava existir. A gente nem sabia que precisava, mas eles sabiam. E inventavam. Min se despediu de Arthur, 7 anos, e de Pedro, 4, e foi ao Parque Villa-Lobos para fazer algo bem Min. Nos últimos dois anos ele tinha decidido aprender a patinar. E quando Min decidia fazer alguma coisa, fosse um gesto ou uma aventura arriscada, ele fazia. Ficou assistindo a tutoriais na internet e acabou por se tornar um artista da patinação. Luciana olhava para ele: “Aos 46 anos, Marcelo?”. Luciana sabia que Min era livre. E o amava livre. Min então rodopiava. Ele rodopiava quando se sentiu mal. Não houve queda, nem nada assim. Era um aneurisma no cérebro, um inimigo silencioso dentro dele. Logo Min perdeu a consciência. Dois dias depois, os médicos anunciaram sua morte cerebral.

Marcelo Min foi meu companheiro em todas as reportagens sobre a morte. E foram várias. Entre 2008 e 2010 empreendemos juntos essa travessia. Acho que só ele seria capaz de olhar para a morte da maneira revelada por suas fotos. Com tanta delicadeza. Tem gente que escreve com a ponta dos dedos. Min fotografava com a ponta dos dedos. Foi assim quando registrou uma mãe com seu bebê morto nos braços. Era uma foto tão difícil. Estávamos contando a rotina de uma UTI neonatal com cuidados paliativos, narrativas de mães que pariam filhos já condenados à morte próxima. A foto era um ritual que dava memória a um momento da vida daquelas mães e pais, uma certeza de que tinham cuidado da melhor forma que puderam, haviam feito todo o possível. Tinham sido mães e pais, ainda que por um curto espaço de tempo. A foto era o registro de uma história, ainda que essa história fosse um sopro. Mas só Min poderia fazer esse retrato para publicar numa revista de circulação nacional.

Josiane Pereira despede-se de sua filha Ana Luiza. A menina viveu apenas sete horas. Na sala de luto, na unidade de neonatologia, o marido, Giovani, a ampara e acaricia (Foto: Marcelo Min)

Josiane Pereira despede-se de sua filha Ana Luiza. A menina viveu apenas sete horas. Na sala de luto, na unidade de neonatologia, o marido, Giovani, a ampara e acaricia (Foto: Marcelo Min)

Nessa travessia reportera por contar o morrer, Min era mais sábio do que eu. Ele compreendia melhor a matéria da vida. No mesmo período em que peregrinávamos por camas onde a existência se encerrava, ele se dedicava com Luciana a um outro projeto, o de contar o nascimento. Ativistas, ele e Luciana, do parto natural e humanizado, Min ora era chamado para registrar estreias de bebês no palco do mundo, ora era chamado para documentar a despedida de quem deixava a cena. Vivia sob o imperativo de dois gritos, às vezes quase simultâneos: “Vai nascer!” ou “Está morrendo!”. Partia para ambos os destinos com a mesma serenidade e a mesma entrega desbragada. Nascer e morrer era muito semelhante, no ponto de vista dele, eram partes de um mesmo processo. O olhar amendoado de Min amarrava as duas pontas da vida. Nunca consegui confirmar o autor dessa frase que estou sempre repetindo, por perfeita que é, mas o legado fotográfico de Min deu uma imagem definitiva a esse aforismo: “A morte não é o contrário da vida. A morte é o contrário do nascimento. A vida não tem contrários”.

Denise, Lauro e a pequena Alice (Foto: Marcelo Min)

Denise, Lauro e a pequena Alice (Foto: Marcelo Min)

Arthur, o primeiro filho de Luciana e Min, fez sua estreia no mundo numa banheira de hospital e foi devidamente fotografado pelo pai. Pedro nasceu numa piscininha inflável, decorada com alegre fauna marinha e abastecida por uma mangueira e um velho chuveiro Lorenzetti, na sala do apartamento. Quando sentiu a primeira contração, Luciana achou que era a lasanha de berinjela do jantar se manifestando. Não era, e logo o porteiro do prédio foi ficando alarmado com as mulheres que chegavam de malinha no meio da noite para ajudar no parto em casa. Piorou a situação do porteiro quando Luciana começou a dar aqueles berros primais e libertadores na madrugada. Antes de começar a gritar nas contrações mais fortes, avisou ao pequeno Arthur: “Filho, para o irmãozinho sair da barriga, a mamãe vai ter que dar uns gritos de leão”. Arthur adorou. E a partir daí, sempre que sua mamãe leoa berrava, ele ria e batia palmas na maior empolgação. Foi assim, no estilo Luciana e Min de ser, que Pedro nadou para a vida. Marcelo e Arthur, pai e filho, cortaram o cordão umbilical. Quando Luciana acordou no dia seguinte, Marcelo serviu pão com requeijão. Eles eram assim. Eles serão sempre assim, juntos na memória da gente.

Luciana Benatti no parto de Arthur (Foto: Marcelo Min)

Luciana Benatti no parto de Arthur (Foto: Marcelo Min)

Luciana Benatti e Arthur (Foto: Marcelo Min)

Luciana Benatti e Arthur (Foto: Marcelo Min)

Na véspera do dia em que perdeu a consciência, Min levou os dois filhos para o estúdio e passou a tarde fotografando-os. À noite, uma amiguinha foi dormir na casa deles. Min botou as crianças na cama e, de novo, fotografou-as. Depois, ele e Luciana abriram uma cerveja e ficaram conversando sobre a vida. Eles sentiam-se num grande momento, “plenos” foi a palavra escolhida por Luciana. Viviam segundo suas próprias escolhas. Min disse a Luciana sobre como se sentia feliz por ter escolhido trabalhar menos para poder colocar os filhos na cama, como acabara de fazer. Min tinha escolhido uma vida viva. E sabia disso.

Nascer e morrer não foram os dois únicos temas da fotografia de Marcelo Min. Ele documentou muitos Brasis, vários mundos. Alguns deles comigo, muitos com outros repórteres. Várias vezes sozinho. Min não era um fotógrafo que esperava. Era ele mesmo um desbravador de histórias. Se o principal instrumento do repórter é a escuta, Min escutava com os olhos. Dentro daquele semblante sereno, habitava uma vontade indomável. Min era apaixonado e obcecado por suas paixões. E uma delas era a justiça. Foi assim na desocupação do Jardim Edite, em 2009, quando a especulação imobiliária expulsou 800 famílias depois que o metro quadrado daquela região de São Paulo se valorizou, entre a Avenida Berrini e a Ponte Estaiada. Alguns jornalistas acreditaram na versão oficial e deram a notícia de que todos os moradores haviam deixado o lugar. Mas Min estava lá, onde um repórter deve estar, por sua própria conta, sem que nenhum chefe tivesse mandado ou pedido. Ele acompanhava há meses o cotidiano da favela para contar o mundo invisibilizado, ainda que gigantesco, escancarado para todos que passavam pela avenida, mas preferiam não vê-lo. Min provou que havia restado uma casa, uma resistência. Registrou os últimos gauleses, Marcão da Pipoca e sua família, diante de uma casa pintada com “a cor do céu” entre os escombros do inferno de uma cidade que mastiga os mais pobres. Depois, me chamou para contar a história.

O casal José Marcos, conhecido como Marcão da Pipoca, e Maria Aparecida, sua filha Késia e o neto Miguel Isaías, diante de sua casa, numa favela que não existe mais, na Zona Sul de São Paulo (Foto: Marcelo Min)

O casal José Marcos, conhecido como Marcão da Pipoca, e Maria Aparecida, sua filha Késia e o neto Miguel Isaías, diante de sua casa, numa favela que não existe mais, na Zona Sul de São Paulo (Foto: Marcelo Min)

Na noite em que ele partiu, Luciana reuniu os amigos e os familiares que haviam ido ao hospital esperar com ela a confirmação da morte cerebral. Ela já era querida naqueles corredores, a mulher que chegara lá com o homem que amava, dizendo: “Se ele tiver que ir, deixa ele ir. Nós falamos muito sobre isso, não queremos nada invasivo, nenhum tratamento doloroso e inútil. Vamos respeitar o tempo dele”. Numa roda de amor, foi lido um texto escolhido por ela. E Luciana depois contou um pouco do Min. Ela disse muito. Disse também: “O Marcelo queria mudar o mundo. E acho que ele mudou”. Sim, ele mudou. O mundo e cada um de nós que o carregaremos no lado de dentro. Sei que sou um pouco o que Min fez de mim em nossas andanças. Pedaços de Min em mim. Em nós.

Ailce, a mulher que acompanhamos no seu morrer, nos ensinou que pensar sobre a morte é pensar sobre a vida. E pensar sobre a vida é pensar sobre o tempo. Ailce havia adiado demais e um dia descobrira que seu tempo tinha acabado. Ensinou, a mim e a Min, que o tempo é a delicadeza inegociável. Acho que Min aprendeu esse ensinamento essencial, talvez o mais profundo, melhor do que eu, que agora me resto a lamentar todas as vezes em que adiei para o dia seguinte o encontro que me levaria até ele. Não há dia seguinte. Não há nem mesmo hoje. Há esse instante, agora, em que tecemos nosso tempo. E sobre isso não podemos negociar, não há o que vender ou comprar. O tempo nem mesmo se aluga. O tempo tem de ser nosso. Já. Tomado de quem nos tomou, para ser tecido em nossos próprios termos.

Min morreu. E Min sempre me soou um nome – sobrenome – tão enigmático. Lembro-me agora da poesia de Drummond. E a adapto para o Min que nela é: “Por muito tempo achei que a ausência é falta. E lastimava, ignorante, a falta. Hoje não a lastimo. Não há falta na ausência. A ausência é um estar em Min. E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços, que rio e danço e invento exclamações alegres, porque a ausência, essa ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim”.

Min partiu. Obedecendo ao seu desejo, claramente pronunciado em tantos dias, seus órgãos foram doados para fazer outros seguirem vivos. Min partiu-se para continuar íntegro. Antes, ele escreveu com Luciana um livro chamado Parto com amor. Min agora parte com amor.

Em um vídeo sobre a reportagem da morte, Min contou que Antônio, o contador de histórias, o ensinou a morrer: “Eu quero morrer que nem o seu Antônio. Até o último momento bem-humorado, até o último momento cheio de vida”.

Marcelo Min não queria morrer, mas morreu como quis. Rodopiando em seus patins, voando.

Min morreu vivo.

Morte Sem Tabu – Entrevista com Eliane Brum

Por CAMILA APPEL/Folha de S.Paulo – Uma pensadora dos nossos tempos, uma artista das palavras, mestre da capacidade de emocionar contando histórias reais. Uma escutadeira que escreve, como gosta de dizer. Alguém que se apodera da sua voz e da sua presença no mundo.

É a jornalista Eliane Brum. O m originalmente era n. Foi amputado num registro errado do tetravô italiano ao desembarcar no Brasil. Essa perna a mais assinala para si tanto uma presença, quanto uma ausência, como ela conta no livro “meus desacontecimentos” (ed. Leya, 2014). A palavra é fundamental para Eliane. “A palavra é outro corpo que habito. Não sei se existe vida após a morte. Desconfio que não, sei que para mim não existe vida fora da palavra escrita. Só sei ser – por escrito. No meu nome carrego o que sou e o que não sou, sustento o que busco e não alcanço, assim como o vazio entre as letras, o incapturável em mim. O indizível também me constitui”.

Ela tem uma voz suave com leve sotaque de Ijuí (Rio Grande do Sul), sua cidade natal. Seu celular está sempre desligado ou no mudo, por não se considerar imprescindível para ser encontrada de imediato, e sentir que nosso tempo perdeu a noção de urgência – “Estamos vivendo como se tudo fosse urgente. Urgente o suficiente para acessar alguém. E para exigir desse alguém uma resposta imediata” (aspas da coluna “É urgente recuperarmos os sentido de urgência) .

Após vinte anos respirando no tempo da rotina de uma redação jornalística, ela decidiu dar um mergulho no seu próprio tempo. Foi descobrir, por exemplo, qual era seu tempo de acordar. Por um período, passou a dormir das 19h às 2h30 da manhã. A mudança no seu modo de viver tem inspiração numa frase de Ailce, protagonista da reportagem “A mulher que alimentava” (“O Olho da Rua, ed. Globo, 2008 – esgotado no impresso mas disponível no Kindle. Será reeditado no final de outubro pela ed. Arquipélago) – na qual acompanhou os últimos 115 dias de vida de Ailce, tocada por um câncer sem chances de cura. Ailce diz: “quando eu tive tempo, descobri que meu tempo tinha acabado”. Esse tecido da vida, como Eliane chama o tempo, é a grande questão da atualidade.

Eliane começou a escrever e a estudar a morte em 2008. Na entrevista abaixo, ela fala sobre “a morte silenciada”. E, principalmente, sobre a oportunidade única que vivemos, de testemunhar a quebra desse silêncio, impulsionada pelos tempos confessionais das redes sociais. Ver o que será dito a respeito da morte agora que se fala sobre ela, é o que fascina Eliane Brum.

Conversamos sobre morte (a última experiência da vida, como diz), o tempo e a medicalização da vida, num restaurante com jeito de sala de estar e LPs à venda na entrada. Um casal na mesa ao lado se agarrava numa paixão admirável, enquanto partíamos da morte para falar sobre a vida, sobre o momento histórico em que vivemos e sentindo talvez certa emoção em poder testemunhar o que está acontecendo, além de uma curiosidade pelo o que está por vir.

Sobre seu futuro, Eliane diz que qualquer coisa pode acontecer, inclusive voltar para uma redação, por que não? Afinal, “a vida cimentada é uma vida morta”.

O que você quer dizer com o que chama de silenciamento da morte nos nossos tempos?

Eu acho que a imprensa, em geral, fala muito de uma morte especificamente – que precisa ser falada também – que é a morte violenta, a morte por assassinato, a morte por acidente de trânsito, a morte por catástrofe… Essa é uma morte frequente no noticiário. E acho até que algumas dessas mortes são menos faladas do que deveriam, como a questão do assassinato de parte da juventude negra. Os números de jovens negros assassinados são um escândalo. E deveria ser um escândalo na imprensa também. Então, apesar de a imprensa, em geral, falar da morte violenta com frequência, fala pouco das mortes que têm cor, têm classe social, para além das estatísticas. Eu fiz algumas matérias sobre isso, como as mães que enterram seus filhos assassinados, mulheres que são submetidas a essa dor inominável – e não nomeável. Porque é uma dor sem nome. O marido que perde sua companheira é viúvo, os que perdem os pais são órfãos, mas quem perde os filhos não tem nome.

Eu acho que a gente viveu, especialmente no século 20, o silenciamento da morte por velhice e por doença, que é a morte da maioria. A maioria não vai morrer de bala perdida, de acidentes de trânsito ou por assassinato. A maioria vai morrer por velhice e doença. Essa morte, que costuma ser vivida dentro dos hospitais, passou a ser vista no século passado quase como um fracasso. No momento em que passamos a valorizar o prolongamento da vida a qualquer preço e a juventude se tornou um valor em si, o morrer passou a ser algo clandestino.

Também se passou a falar pouco sobre o luto. Uma prova disso é a quantidade de dias que a legislação garante de licença para alguém que perde um familiar (segundo a CLT, são dois dias consecutivos com algumas variações dependendo do grau de parentesco e da profissão. Para servidores públicos são oito dias). Como essa morte é ignorada, nem se precisa dar tempo para que ela seja superada, já que é como se não tivesse acontecido.

Mas eu acho que isso está começando a mudar. Por uma série de questões históricas e também com as redes sociais. Acho que estamos num tempo muito confessional. As pessoas estão falando sobre tudo. O antropólogo britânico Geoffrey Gorer escreveu no ensaio “Pornografia da Morte”, de 1955, que a morte do século 20 passou a ter o mesmo caráter que tinha o sexo no século 19, na era vitoriana. Ela teria se tornado obscena e feia e por isso deveria ser escondida. E o luto passou a ser tão secreto quanto a masturbação.

Neste século 21, com as redes sociais da internet, as pessoas passaram a falar sobre seus desejos sexuais, e formas de experimentá-los. Muita gente que não tinha espaço para falar daquilo que não era convencional, encontrou seus pares na internet. Encontrou seu grupo. Claro que eu estou falando de adultos e de sexo consentido – é sempre bom sublinhar isso.

A morte começa a aparecer aí também, com grupos como o “Mães sem Nome” (e “Mães para Sempre”), e plataformas do tipo “Vamos Falar Sobre o Luto”. As pessoas também começaram a falar sobre como elas se sentem ao envelhecer. Não da forma como a propaganda vende, entre aspas, a terceira idade, mas sim da forma como elas se sentem realmente. Parece que a internet abriu espaço para relatos confessionais que começam a dar conta também da morte, do luto e do envelhecimento e que, com frequência, saem do lugar comum e do campo da publicidade e do marketing.

Especialmente neste século 21, e com cada vez mais frequência, têm surgido muitos livros e relatos sobre o assunto, de pessoas passando pela experiência da morte ou do luto ou do envelhecimento, também aqui no Brasil. Uma das frases que me parece mais exata sobre isso é que “a morte não é o contrário da vida, a morte é o contrário do nascimento. A vida não tem contrários”. A morte está dentro da vida, o morrer é a última novidade que todos nós teremos sobre a vida. A nossa última experiência viva em uma vida é o morrer.

Oliver Sacks (neurologista e escritor anglo-americano) tem escrito belíssimos textos sobre o morrer vivo. E outros vêm contando de outras maneiras. É múltiplo, não tem um jeito certo ou errado de dizer as coisas. Tem o jeito de cada um. Mas acho que estamos testemunhando, nesse início de século especialmente, a quebra desse silêncio. E eu estou muito curiosa para saber quais são as narrativas que virão. Tanto de pessoas conhecidas, como o Oliver Sacks, quanto de anônimas.

Acho que é um momento interessante esse que a gente vive. Agora que esse silenciamento está sendo quebrado, minha grande curiosidade é: agora que podemos falar, o que falaremos? Essa é uma grande questão que para mim é fascinante. Mas sem esquecer que é importante respeitar também quem quer silenciar. Não o silenciamento que é opressor, que é uma imposição. Mas sim a escolha pelo silêncio, a escolha pelo recolhimento. Nem todo mundo precisa contar, nem todo mundo precisa confessar. Nem todo mundo precisa se expor. É importante que cada um possa viver da maneira que lhe for possível e da maneira que desejar esse momento tão crucial da vida.

Você acha que a mudança na estrutura etária da sociedade está interferindo na nossa visão da morte?

Acho que sim. Quando eu fiz a matéria sobre os últimos 115 dias de vida da Ailce, algumas pessoas achavam que era mórbido fazer essa escolha de contar o processo da morte dela. Acho que hoje, talvez, menos pessoas achassem isso, e se passou menos de dez anos. Nossa época é acelerada, em vários sentidos. Mórbido é o não poder contar. É aquilo que paralisa, que não pode ser dito. Contar uma vida é o contrário de ser mórbido.

Você comenta que essa reportagem impactou muito seu modo de viver. Olhando para trás, hoje, você ainda vê impactos daquele momento?

Sim. Fiz várias reportagens sobre o morrer e sobre os diferentes sentidos do morrer. Mas essa em que acompanhei os últimos 115 dias da vida da Ailce me impactou muito porque acho que foi o ato de maior confiança que alguém já me deu como repórter. Porque eu ia escrever uma história que ela jamais leria. E eu queria muito contar essa morte silenciada. Eu escolhi fazer essa matéria, mas no momento em que me vi diante da Ailce, na casa dela – ela morava na periferia de Guarulhos – me dei conta da situação impossível em que eu tinha me colocado.

Por um lado, eu queria que essa reportagem acabasse o mais rápido possível, porque era muito duro lidar com isso, e por outro, eu queria que ela nunca acabasse. Porque o fim dessa reportagem era o fim da vida dela. Então eu tinha me colocado numa situação impossível.

Percebi que a única maneira de fazer essa reportagem era – como é em qualquer reportagem – pela escuta. Logo no início dessa escuta, Ailce me disse algo que vai me marcar para sempre: “Quando eu tive tempo, descobri que meu tempo tinha acabado”.

Ela estava num momento muito particular. Tinha sido merendeira de escola a vida toda. Aí se viu aposentada, com uma casa própria, começando a fazer as coisas sempre adiadas, como tanta gente faz, com os filhos já grandes, com tempo para ela – ela estava começando a viajar, a ir dançar, a ir em bailes, a experimentar outras coisas… Nesse momento, ela descobre um câncer sem chances de cura.

Ela nunca pronunciou a palavra câncer. Eu falava todos os dias com ela e ela nunca pronunciou essa palavra. Eu também nunca a pronunciei, senão jamais saberia que ela não a pronunciava. Uma parte da minha escuta era saber como ela nomeava aquilo que a mataria.

Mas quando ela disse essa frase, eu percebi que falar sobre a morte era falar sobre o tempo. E o que a gente perdia quando calava sobre a morte era justamente uma oportunidade única de pensar sobre a vida. Falar sobre a morte é pensar sobre a vida, é qualificar a vida. E especialmente, falar sobre o tempo.

Tem uma outra frase que eu adoro, do professor Antônio Cândido, em que ele diz que tempo não é dinheiro. Essa seria uma brutalidade que o capitalismo faz em se considerar o senhor do tempo. Tempo é o tecido das nossas vidas.

Pensar sobre a morte pela reportagem me fez questionar o tecido da minha vida, o tempo da minha vida. Várias das minhas escolhas que vieram a seguir, até hoje, surgiram dessa compreensão profunda. Eu queria me apropriar do meu tempo. Viver nos meus próprios termos. Isso me fez tomar decisões maiores como sair do dia a dia da redação impressa.

Eu já estava há mais de vinte anos dentro de redações e queria saber como era viver no meu tempo. A vida dentro da redação era muito significativa, eu sempre procurei fazer da minha vida algo com significado para mim e para as pessoas, algo com sentido. Sou muito grata pelo tempo que eu vivi nas redações, foi uma vida muito viva. Mas eu estava com 44 anos e queria experimentar um outro tipo de vida. Não quer dizer que eu não vá voltar um dia, porque a vida é movimento, e eu busco não cimentar nada. Uma vida cimentada é uma vida morta.

Fui buscar outro jeito de viver mesmo nas coisas mais banais. Eu queria saber, por exemplo, qual era o meu tempo de acordar. Nunca tinha pensado sobre isso. Uma coisa simples assim. Desde criança, sempre tive hora para acordar. Primeiro era o colégio, depois era o tempo do jornal, que era diário, depois o tempo da revista, que era semanal, o tempo do fechamento, e o tempo do mundo. Porque a gente vive num mundo que lida de determinada forma com o tempo, e essa forma de lidar não é um dado da natureza, é também um dado do campo da política. Então, eu queria saber quando eu gostava de acordar e quando eu gostava de escrever. Comecei a acordar às 2h30 da manhã, naturalmente. E passei a dormir muito cedo, por volta das sete da noite. Sempre gostei desse momento da madrugada, quando está todo mundo dormindo. Hoje eu durmo cedo, mas não tão cedo, então posso ter algo próximo a uma vida social, como ir ao teatro, jantar com os amigos, e acordo às 5h da manhã, sem despertador. Deletei o despertador da minha vida, exceto em casos obrigatórios.

Escolhi também, por exemplo, não usar celular. Eu tenho um para emergências. Ele fica no mudo ou, em geral, desligado.

As pessoas perderam o sentido da urgência. Tudo virou urgente. E quando tudo vira urgente, nada é urgente. Essa também é uma questão do tempo. Saber o que é importante e o que é urgente. E, portanto, o que é prioritário. Quando se perde esse sentido do prioritário na vida de cada um, se perde muito. Eu tenho a consciência de que não sou imprescindível. As pessoas podem viver perfeitamente sem me acharem de imediato. Eu não tenho a arrogância de pensar que todo mundo precisa me encontrar.

Se você ligar para meu celular, vai encontrar uma gravação assim: “não uso o celular, por favor me mande um e-mail”. Para mim, a melhor maneira de me comunicar é o e-mail. Para muita gente é antiga, eu gosto porque escolho a hora de ler e sei que não estou invadindo o espaço do outro, porque ele também pode escolher quando quer abrir e quando quer me responder. Às vezes, a gente precisa pensar para responder. Não precisa ser de imediato. Não existem repostas imediatas para as pessoas. Acho que o tempo é a grande questão. Ser acessível a qualquer momento é, para mim, insuportável. Então, eu não uso telefone fixo e não uso celular.

Você escreveu várias colunas sobre a medicalização da vida. Porque é um tema que te mobiliza?

Acho que a medicalização da vida é uma marca, um traço do nosso tempo histórico. É claro que há casos de depressão severa e situações em que a medicação pode ser muito importante – não se pode esquecer disso. Mas acredito que estamos vivendo uma espécie de doping generalizado. É um doping, legalizado (com drogas lícitas), e que acontece cada vez mais cedo. Esse doping já começa na infância, com as crianças, com a massificação de diagnósticos como os de síndrome de hiperatividade e déficit de atenção – que eu acho no mínimo questionáveis. O que tem acontecido com frequência é que as crianças fora da caixa, que não se enquadram no modelo, têm sido diagnosticadas e medicalizadas cada vez mais cedo, e com remédios cujos efeitos a longo prazo não conhecemos. E as crianças dependem da responsabilidade dos adultos, são indefesas diante desse processo. Acho que deveríamos ter um debate maior sobre o doping das crianças por medicamentos. Basta andar por aí, especialmente em grupos na internet, para perceber que essa geração, ao chegar à adolescência, muitas vezes se une e se define pelo diagnóstico, como se isso fosse tudo o que são. É um mundo bem complexo e acredito que precisamos pensar mais sobre isso.

Se um adulto usa drogas, seja quais forem, me parece que é uma escolha dele. Mesmo no caso das drogas lícitas, ele pode aceitar ou não o diagnóstico do médico, ele pode buscar outras formas de encarar seus sentimentos e o que se chama de sintomas, ele deve ter garantido o acesso às várias formas de lidar com o que é do humano. Mas se uma criança é obrigada a usar drogas porque a escola antecipou um diagnóstico e o médico avalizou esse diagnóstico, seja com a justificativa que for, é mais complicado, porque ela não tem escolha e essa imposição terá consequências. Muitas vezes, e há várias pesquisas bem conceituadas sobre isso, o diagnóstico e drogas como a ritalina podem servir para tentar calar algo que deveria estar sendo discutido dentro da família, dentro da escola, com aquela criança. O tratamento, nestes casos, pode estar a serviço de um silenciamento. É preciso discutir mais esse fenômeno e todos os atores desse processo – pais, professores, médicos, psicólogos, etc – tem de ser mais responsáveis e mais responsabilizados por suas escolhas. Não há verdades únicas em nenhum campo da vida.

Estamos vivemos numa sociedade dopada por medicamentos, na qual a grande autoridade é o médico. Temos agido como se tudo o que é da vida fosse uma patologia, transformando, por fim, a própria vida numa patologia. Como se a tristeza fosse uma patologia, como se a angústia fosse uma patologia, como se a ansiedade fosse uma patologia. E no lado oposto, há o imperativo de felicidade de consumo. De certa maneira, eu sou uma defensora do mal-estar. Nesse momento histórico que estamos vivendo, ser feliz e saltitante como um carneiro de desenho animado é o que deveria ser preocupante, é o que deveria fazer tocar a sirene. Eu defendo o mal-estar como um movimento, como algo ativo, algo transformador. Porque o grande risco de silenciar com medicamentos aquilo que é da vida é não elaborar, não pensar, não reagir, não transformar, não fazer marca do vivido. E com isso a gente perde muito. Acho que, em parte, as séries, os filmes, a literatura de zumbis, fazem tanto sucesso porque o mundo está cheio de mortos vivos, paralisados e anestesiados, não só, mas também por medicamentos. Acho que o mais triste é essa vida morta.

Há tanta histeria com as drogas que são proibidas, mas as que me preocupam são essas legalizadas, vendidas massivamente como remédio, exatamente porque são muito pouco questionadas, como se não tivessem efeitos colaterais variados. Principalmente com as crianças, que não têm formas de se defender desse processo, nem escolha. E começam a ser silenciadas desde cedo por não caberem num determinado modelo de comportamento. Não sou contra as drogas, nem sou contra os medicamentos. Só acho que esse olhar disseminado, que patologiza a vida e tudo o que é da vida, e que se tornou uma característica tão presente nessa sociedade, não é uma verdade única e serve a muitos interesses, como aos da indústria farmacêutica. Acho que precisamos discutir mais e não naturalizar uma vida em que é preciso tomar um remédio para ficar acordado e ser produtivo, outro para dormir, outro para não ficar ansioso, outro para não ficar triste, outro para ter desejo sexual e assim por diante. Acho que a gente precisa voltar a exercitar o espanto e a dúvida também sobre a patologização da vida e a medicalização massiva, o espanto e a dúvida como algo que nos impulsiona a ter uma vida mais interessante. E por mais interessante eu entendo não uma vida necessariamente feliz, mas uma vida viva. E uma vida viva tem de tudo. Tem, especialmente, movimento.

Em alguns artigos, eu usei o termo “boa morte”. Na sua coluna “Morrendo na primeira pessoa”, você faz a consideração de que não seria um conceito correto, por considerar que não existe morte boa ou ruim. Mas o que seria, para você, uma morte que gostaria de viver?

O que eu critico é trocar um tabu por outro. Ou trocar um imperativo por outro. Passamos boa parte do século 20 silenciando sobre a morte, e agora, quando ela começa a ser falada, seria muito triste que se criasse outros dogmas para isso.

Eu não acho que tem um jeito certo ou errado de morrer. Tem o jeito de cada um. Algumas pessoas acham melhor morrer em casa, cercadas pelas pessoas que amam, pelos objetos que fazem parte do seu mundo, contando histórias e ouvindo histórias. Outros vão achar melhor morrer no hospital. Tem quem vai tentar tratamentos invasivos, mesmo sabendo que têm pouca ou nenhuma chance de ter resultado, outros vão preferir não. O importante é que os desejos sejam respeitados, que esse último ato da vida de alguém seja vivido nos termos dessa pessoa. Que a pessoa possa escolher e não que escolham por ela. Hoje em dia, muita gente é submetida a tratamentos invasivos, dolorosos e inúteis, condenadas a morrer sozinhas numa UTI. Acho que se é uma escolha daquela pessoa, tudo bem. Mas, em geral, não é uma escolha. Por isso, considero muito importante o testamento vital. Nesse documento é possível decidir e informar os familiares das suas decisões, como, por exemplo, se deseja ser ressuscitado ou não…

Se eu adoecer, ou tiver um acidente, e ficar impossibilitada de manifestar as minhas escolhas, as minhas opiniões, eu gostaria de morrer em casa, com as pessoas que eu gosto, cercada com as coisas que fazem parte da minha vida. Com as músicas que eu gosto, se eu for capaz de ouvir. Com os meus livros mais queridos. Sem dor física ou com o melhor que possam fazer para minimizar minhas dores e desconfortos físicos. Se não houver chance de cura, eu não quero tratamentos invasivos, não quero ir para uma UTI, não quero ser entubada sem necessidade, ou ressuscitada… Já deixei esses desejos claros para a minha família. Mas pode ser que na hora de morrer, eu descubra que quero outras coisas. Isso não será mais certo ou mais errado, mais digno ou menos digno. Eu acho que a dignidade está em respeitar a escolha daquele que está morrendo.

Eu já comprei meu túmulo porque quero escolher o lugar onde vou ficar. Gostaria de ser enterrada e não cremada porque eu gosto da ideia de me misturar à terra depois de morta. Ao contrário da maioria das pessoas, a ideia de que virarei comida de vermes me parece interessante, porque me manterá viva de alguma maneira, nessa eterna transformação da matéria que faz nosso universo tão fascinante.

Eu tenho uma amiga, Debora Noal, que trabalha no Médico Sem Fronteiras, que diz que ela tem raízes aéreas. Eu me identifico com isso. Gosto muito de estar em trânsito, o meu lugar é um lugar de estrangeira – não de turista. Mas eu queria ser enterrada num local onde a minha família tem uma história, por isso escolhi um cemitério no Barreiro (RS) – povoado rural onde meu pai nasceu, no interior de Ijuí, e onde está enterrada a primeira professora do meu pai, Luzia, a mulher que, com esse nome profético, nos arrancou simbolicamente da escuridão e da cegueira das letras, já que meu pai foi o primeiro a estudar depois de uma longa série de gerações à margem das letras. Para morrer, quero replantar as minhas raízes, que, na minha vida, tratei de deixar voando pelo mundo.

Mas eu queria mesmo era não morrer. Tem uma frase do Woody Allen na qual ele diz que a única imortalidade que o interessa é não morrer. Adoro essa frase. Mas como morrer é inescapável, o que eu quero é me apropriar do meu tempo, para que quando a morte chegar, eu morra sabendo que o tempo foi meu, que eu teci esse tempo. Uma vida boa é uma vida cheia de marcas. Marcas do vivido. Eu quero morrer cheia de marcas. No sentido da poesia de Adélia Prado, como um vitral – fazer das minhas marcas um vitral bem colorido. Eu quero morrer sabendo que eu tive uma vida viva, então essa morte também vai ser viva. Se existe uma “boa morte”, talvez seja a de morrer sabendo que eu fui viva.

“Alguns acham que sou mórbida. Estão enganados. Encarar a morte com naturalidade é o mais longe da morbidez que se pode estar. Só espero ter sabedoria para viver minha vida com intensidade até o último suspiro. E sabedoria para morrer, sem tentar espichar a vida nem abreviá-la. Não gostaria de morrer de repente, como tantos desejam. A curiosidade sempre moveu meus passos. Quando a morte chegar, não quero perder a única chance de olhar no seu olho. Quero saber o que é morrer. Quero me lambuzar de morte como me lambuzei de vida. Quero viver. Até o fim” – Eliane Brum na coluna “Comprei meu túmulo”.

Lilo Clareto/Divulgação

Lilo Clareto/Divulgação

Quando a periferia será o lugar certo, na hora certa?

A maior chacina de 2015, em São Paulo, mostra que as palavras começam a matar antes da morte e seguem assassinando os vivos depois

Foto: UJS Osasco

Foto: UJS Osasco

Leia na minha coluna no El País:

As fotos do 13 de agosto mostram mulheres lavando o sangue dos mortos com rodo, como nos filmes B de terror. Se o rio vermelho escorre pelos degraus, as palavras ecoam para além da extensa fila de cadáveres. Elas matam lentamente, como balas em câmera lenta, que perfuram os corpos, se espatifam por dentro e vão corroendo os órgãos. Dia após dia, dia após dia, dia após dia. Mata-se e morre-se também na linguagem. As palavras silenciam os mortos para além da morte. E calam os vivos, mesmo quando eles pensam gritar.

(…)

“Estava no lugar errado e na hora errada” foi o comentário mais frequente dos familiares dos 18 mortos, seis feridos, na periferia de Osasco e Barueri, na Grande São Paulo, na maior chacina de 2015. A expressão dá conta de uma máxima: “na periferia há preto ladrão, branco ladrão e aquele que está no lugar errado e na hora errada”. A frase também culpa, ainda que indiretamente, aquele que morre.

Por que, afinal, ele estava aonde não deveria de estar, do lado de fora, na rua? Não tinha nada de estar ali. Para não estar na hora errada, no lugar errado, é preciso ficar trancado dentro de casa. Se estivesse trancado dentro de casa, estaria vivo. Comentários como estes são escutados o tempo todo nas periferias, tanto que se tornaram um clichê. Cada vez mais acuados, aqueles que não querem morrer se resignam a desistir do espaço público.

É a vida dos escravos, sonhada por seus senhores: de casa pro ônibus lotado, do ônibus lotado pro trabalho, do trabalho pro ônibus lotado, do ônibus lotado pra casa. Gente pobre não precisa de lazer ou o lazer é ver TV em casa, preferencialmente programas em que apresentadores, alguns deles com ambições eleitorais, criminalizam pobres e ofertam a imagem de seus corpos no altar midiático. Quem frequenta bar, sabe que pode morrer, é este o recado. Como na noite de 13 de agosto, como em tantas outras noites.

Leia o texto inteiro aqui.

Foto: reprodução Facebook "Mâes de Maio"

Fotos: reprodução Facebook “Mâes de Maio”

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