Quando a periferia será o lugar certo, na hora certa?

A maior chacina de 2015, em São Paulo, mostra que as palavras começam a matar antes da morte e seguem assassinando os vivos depois

As fotos do 13 de agosto mostram mulheres lavando o sangue dos mortos com rodo, como nos filmes B de terror. Se o rio vermelho escorre pelos degraus, as palavras ecoam para além da extensa fila de cadáveres. Elas matam lentamente, como balas em câmera lenta, que perfuram os corpos, se espatifam por dentro e vão corroendo os órgãos. Dia após dia, dia após dia, dia após dia. Mata-se e morre-se também na linguagem. As palavras silenciam os mortos para além da morte. E calam os vivos, mesmo quando eles pensam gritar.

1) “Estava no lugar errado, na hora errada”

“Ele nunca teve nada a ver com crime. Era pacato, de família. Estava no lugar errado na hora errada. O nome Deivison foi porque meu pai gostava das motos Harley-Davidson.”

(Jorge Henrique Lopes Ferreira, 31, técnico de celulares, sobre o irmão, Deivison Lopes Ferreira, 26, assassinado em 13 de agosto. O pai de ambos foi assassinado há 18 anos, no mesmo bairro, da mesma maneira, num crime jamais esclarecido.)

“O Thiago estava desempregado havia um mês, mas era uma pessoa excelente e infelizmente estava na hora errada, no lugar errado.”

(Alessandra de Lima, 37, dona de casa, sobre o irmão Thiago Marcos Damas, 32, assassinado.)

“Eu vou ter de voltar à normalidade, seguir a minha vida. Perdi um companheiro e um amigo. Por mais que eu queira, infelizmente não posso mudar de casa. Foi o caso de estar no lugar errado e na hora errada.”

(Jean Fábio Lopes, 34, ajudante em lanchonete, sobre o companheiro, Eduardo Oliveira dos Santos, 41, artesão, assassinado)

“Foi muito rápido e muito trágico. Estava no lugar errado e na hora errada.”

(Alberto Martins, sobre o irmão, Fernando Luiz de Paula, 34, pintor, assassinado)

“Estava no lugar errado e na hora errada” foi o comentário mais frequente dos familiares dos 18 mortos, seis feridos, na periferia de Osasco e Barueri, na Grande São Paulo, na maior chacina de 2015. A expressão dá conta de uma máxima: “na periferia há preto ladrão, branco ladrão e aquele que está no lugar errado e na hora errada”. A frase também culpa, ainda que indiretamente, aquele que morre.

Por que, afinal, ele estava aonde não deveria de estar, do lado de fora, na rua? Não tinha nada de estar ali. Para não estar na hora errada, no lugar errado, é preciso ficar trancado dentro de casa. Se estivesse trancado dentro de casa, estaria vivo. Comentários como estes são escutados o tempo todo nas periferias, tanto que se tornaram um clichê. Cada vez mais acuados, aqueles que não querem morrer se resignam a desistir do espaço público.

É a vida dos escravos, sonhada por seus senhores: de casa pro ônibus lotado, do ônibus lotado pro trabalho, do trabalho pro ônibus lotado, do ônibus lotado pra casa. Gente pobre não precisa de lazer ou o lazer é ver TV em casa, preferencialmente programas em que apresentadores, alguns deles com ambições eleitorais, criminalizam pobres e ofertam a imagem de seus corpos no altar midiático. Quem frequenta bar, sabe que pode morrer, é este o recado. Como na noite de 13 de agosto, como em tantas outras noites.

Como pode ser lugar errado e hora errada estar num bar perto de casa antes da meia-noite? Mas assim é. Se há um lugar errado e uma hora errada, supõe-se que existiria então um lugar certo e uma hora certa. Mas a periferia nunca é o lugar certo. Na periferia nunca há hora certa. Já nos bairros nobres de São Paulo, no centro expandido, todo bar é um lugar certo, toda hora é certa. Também na noite de 13 de agosto.

Nenhum dos homens e mulheres de classe média e alta que lotaram os bares da Vila Madalena ou do Itaim Bibi, na mesma noite e hora, jamais precisou pensar sobre a possibilidade de que encapuzados pudessem entrar e executá-los. Nem que as faxineiras no dia seguinte, elas que vêm do outro lado do rio, tivessem de limpar seu sangue com rodo. Não é preciso pensar nisso, nem faz qualquer sentido. Ser encurralado por encapuzados e executado a tiros nunca é a possibilidade no lugar certo e na hora certa.

Ao se depararem com o corpo de filhos, pais, maridos, irmãos, o que os pobres dizem? Ao se confrontarem com o cadáver de quem amam estirado no asfalto, à espera de ser recolhido, ou estendido numa maca no pátio aberto do Instituto Médico Legal, porque faltou geladeira para todos, o que eles afirmam? “Estava no lugar errado, na hora errada”. É a frase com que a mãe espera convencer a sociedade, pela derradeira vez, de que seu filho era inocente e não merecia ser morto a balas. Em seguida, o absurdo se naturaliza na matéria de jornal e vira normalidade: “A maioria dos familiares disse que as vítimas trabalhavam e não viu motivo para execuções”. Isso é quase tão desesperador quanto a morte, porque também é um tipo de morte. E também mata.

2) “Foi parecido com os outros crimes, por que não considerar?”

Qual é o número de assassinados que a sociedade paulista e também a brasileira considera motivo de alarme? Qual é o número de pobres e de pretos executados que atinge nossa sensibilidade seletiva? De quantos corpos é preciso para fazer uma manchete? Sabemos que, se o morto for morador dos bairros nobres, um já causa escândalo, como deve ser diante de uma vida destruída pela violência. Na periferia, é preciso muitos. Acabamos de descobrir que 18 é um número que impressiona. Para ser considerado chacina pelo Governo é necessário pelo menos três mortos. Só nos primeiros seis meses deste ano foram 10 chacinas no estado de São Paulo e 38 mortos, conforme levantamento do Instituto Sou da Paz, baseado em números oficiais, obtidos através da lei de acesso à informação. Neste ano, o número de chacinas duplicou, se comparado ao anterior, e o de vítimas triplicou. Segundo a Ponte, agência independente de reportagem, especializada em direitos humanos e segurança pública, as estatísticas são ainda piores. Só na Grande São Paulo foram 72 mortes em 2015. Em 7 de março, por exemplo, 10 pessoas foram assassinadas no Parque Santo Antônio, na zona sul da capital. Em 18 de abril, oito foram mortas na quadra da torcida organizada Pavilhão Nove, em Osasco, quando se preparavam para um jogo entre Corinthians e Palmeiras. Mas foi preciso um número maior, 18, para causar uma comoção que já começa a ser esquecida.

É perfurante o comentário de um amigo da vítima que foi tirada da lista. Sandro Afonso, 34 anos, ajudante geral, foi morto com quatro tiros em Itapevi, cidade próxima a Osasco e Barueri, na mesma noite. Ele seria o décimo-nono, mas o Governo considerou que o caso não tinha relação com a chacina. “Foi parecido com os outros crimes, por que não considerar?”, lamentou um amigo anônimo. A esperança desta família era que “o seu” fosse incluído no crime que dá notícia, para não ser mais um morto ignorado, o que multiplica as chances de um assassinato impune. Saiu da lista visível, entrou na lista quilômetros mais longa, a dos invisíveis. Seu assassinato perdeu o interesse público e midiático. Arrancado da vida, dificilmente será arrancado do silêncio na morte. Quando a esperança de quem chora o morto é de que ele entre na lista de uma chacina, a sociedade apodreceu.

3) “Ele era trabalhador”

“Era um trabalhador. Saiu para comprar salgadinho para a irmã e não voltou.”
(Tia de uma das vítimas assassinados)

“Ele nunca deu problema com a polícia, gostava de ficar em casa com a mulher, que está grávida de três meses.”

(Viviane de Lima, 27 anos, sobre o irmão, Rodrigo Lima da Silva, 16, assassinado)

“Ele nunca se meteu com nada de errado.” (Tânia Cristina César, sobre o irmão, Eduardo Bernardino César, 26, assassinado)

“Não usava drogas, era um homem trabalhador.”

(Ângela Maria Pereira, sobre o marido, Jonas de Santos Soares, 33 anos, operador de máquinas, três filhos pequenos, assassinado)

O desespero dos familiares para afirmar que seu filho, pai, marido, irmão, amigo morto, estirado no chão, com balas no corpo e sangrando, não era “bandido”, mas “trabalhador” aparece nos vídeos e nas declarações aos jornais. A afirmação expõe, ao mesmo tempo, a deformação e o derradeiro ato de amor. Nessa afirmação está implícito que, se fosse bandido, haveria uma justificativa para a execução. Quando a imprensa valoriza o fato de que 12 dos 18 mortos não tinham antecedentes criminais, é possível justificar o destaque dado à informação porque ela tornaria, em tese, mais distante a hipótese de acertos do crime organizado, assim como de mortes com identidades previamente determinadas, e não aleatórias, como parece ter sido. Mas também reproduz a ideia amplamente disseminada em todas as camadas da população de que criminosos podem – e devem – morrer, ainda que no Brasil não exista oficialmente a pena de morte.

Se tinha ou não antecedentes criminais é, afinal, a mesma interrogação dos assassinos de 13 de agosto. Ao chegarem ao local, segundo testemunhas, os encapuzados perguntavam quem tinha antecedentes criminais. Em alguns casos, teriam matado aqueles que responderam que já haviam cometido delitos. Em seguida, são os jornalistas que perguntam. Logo depois, é a vez da população, que comenta a tragédia, e decide a partir dessa informação se cabe ou não compaixão. A lógica reproduzida por todos os atores dessa história macabra é a mesma, portanto. E o fato de ser a mesma é aterrador. E se 18 dos 18 mortos tivessem antecedentes criminais, isso significaria que a chacina seria menos terrível ou que o assassinato de alguns pode ser tolerado pela sociedade, quando não desejado? Como o comentário do filho adolescente de uma amiga, ao chegar de uma das escolas de elite mais incensadas de São Paulo, excitado com a notícia: “Mãe, a polícia matou 20 ladrões em Osasco!”.

É doloroso testemunhar o desespero dos familiares, ao explicar e explicar e explicar mais uma vez, aos repórteres, que seu morto era “trabalhador”, era “bom”, era “família”. Fazem a defesa pungente da memória dos que amavam, reproduzindo no ato todo o discurso que os aniquila há séculos. Como repórter, uma das cenas que mais me dilacera e que se repete quase toda vez que piso pela primeira vez na casa de alguém que mora na periferia é quando me estendem sua carteira de trabalho para provar que não são bandidos. Homens e mulheres sofridos, assinalados pela vida dura, que sabem que já nasceram sob suspeição porque são pobres, e mais suspeitos tornam-se se ainda por cima forem também negros. E eu, branca e jornalista, sou decodificada como uma autoridade a quem também é preciso estender a carteira de trabalho. Recuso, digo que não precisa, repito que não devem. Insistem. Eu pego, morro um pouco. Neste gesto, toda a falência do Brasil é consumada.

4) “Quando morre um policial, pode saber que em até 15 dias vai ter uma chacina. Nunca vai mudar.”

A principal linha de investigação do massacre de 13 de agosto aponta para a vingança, por parte de policiais militares, pela morte de um colega durante um assalto, ocorrido na semana anterior, na mesma região. Na maioria das demais chacinas, também há suspeita de envolvimento de policiais. O 13 de agosto prova, mais uma vez, que as periferias paulistas vivem sob estado de terror, provocado por uma guerra não declarada. Nela, tombam os mais pobres, a maioria deles negros.

Em 2014, a Polícia Militar paulista matou 926 pessoas, no trabalho ou fora dele – e 75 policiais foram mortos. É a maior letalidade policial desde 1995, quando os dados começaram a ser divulgados pelo Governo. Com informações do Centro de Inteligência e da Corregedoria da Polícia Militar de São Paulo, o repórter André Caramante mostrou que a PM mata uma pessoa a cada 10 horas em São Paulo, cinco a cada dois dias. Só no primeiro semestre deste ano, segundo a Folha de S. Paulo, 358 pessoas foram mortas no estado por policiais militares e civis no exercício da função – e 11 policiais morreram.

As mortes fora de serviço são chamadas, na gíria da polícia, de “caixa 2”, como mostra outro jornalista especializado em segurança pública, Bruno Paes Manso. Em blogs e redes sociais, policiais exibem fotos de suspeitos e estimulam a violência não como exceção, mas como regra. Como comportamento e forma de atuação, aberta e cotidianamente. É comum a morte de suspeitos, “os malas”, corruptela de “malacos”, serem divulgadas e comemoradas pelo WhatsApp: “Mala bom é assim, mala morto”. Ou, meses atrás: “Os três vermes, agora há pouco, deitaram no mármore gelado do IML. Vagabundos perigosos. Parabéns aos policiais envolvidos na ocorrência”.

O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), afirma que o mais importante é esclarecer a série de crimes e prender os assassinos da chacina de 13 de agosto. Não basta. Se for comprovado que os autores da noite mais violenta de São Paulo são policiais, é hora de enfrentar com seriedade a necessidade de refundar as polícias. Passou da hora, já que o envolvimento de policiais, especialmente militares, em grupos de extermínio, é bem conhecido. Uma polícia militar num regime democrático já é uma contradição em si. A deformação estrutural prejudica os bons policiais – sim, eles existem – e mergulha a população das periferias no horror cotidiano, vítimas de uma guerra não declarada oficialmente, colocada em curso por agentes do Estado, cuja rotina de vinganças é exibida sem pudor em manifestações nas redes sociais, por parte dos membros da corporação, e tolerada por quem deveria puni-la. É preciso enfrentar a estrutura. É preciso formar uma polícia que cumpra a lei e proteja os cidadãos, em vez de assassiná-los.

É isso ou assumir o estado de terror expressado nesta frase: “Quando morre um policial, pode saber que em até 15 dias vai ter uma chacina. Nunca vai mudar”. A afirmação foi feita por uma mulher de 50 anos, costureira, amiga de uma das vítimas. Há três anos ela perdeu o filho em outra chacina na cidade. Se ela já sabe qual é o modo de operação de uma parcela da polícia, como o Governo não sabe e não toma providências antes do fato consumado? O mais brutal dessa frase, porém, é a certeza dessa mulher de que nada vai mudar e que os seus continuarão morrendo. Essa certeza é um dado da sua vida, tão imutável quanto a Terra girar ao redor do Sol. E ainda mais brutal do que isso é que ela tem razão. Não há nenhum fato, nem agora nem no passado, que se possa apresentar a ela para provar que, sim, algo vai mudar. Há promessas. Fatos, até agora, não há.

O discurso que atravessou o sepultamento das vítimas pode ser resumido pela frase de outra mulher, esta irmã de Eduardo Bernardino César. Ela disse, ao enterrá-lo: “Se forem mesmo (PMs), não vai ter investigação, porque a polícia não vai atrás de polícia”.

Esta é a credibilidade da polícia e do governo de São Paulo entre os mais pobres. Uma convicção construída e comprovada no cotidiano. Dia após dia.

5) “Meu filho morreu. Continuarei meus corres”

O massacre dentro do massacre, a morte no interior da morte, o assassinato além da carne é a frase de uma mãe. Zilda Maria de Paula perdeu Fernando, 34 anos. Ele era pintor de paredes. Estava tomando cerveja com os amigos, pouco antes das 21 horas, num bar de Osasco, quando os encapuzados entraram e ele tombou ao lado de outros sete. Era a primeira execução da noite de 13 de agosto. Sua mãe disse à reportagem dos jornais Folha de S. Paulo e Agora:

– Só sei que meu filho morreu. Não vou usar camiseta com a foto dele, não vou pedir justiça. Continuarei meus corres porque ninguém vai me ajudar.

Neste domingo, ela foi a única familiar a participar de um ato contra o genocídio na periferia, em Osasco, que reuniu apenas 50 pessoas, num cenário de ruas esburacadas, escassas árvores raquíticas e casas de tijolos aparentes. Vários parentes das vítimas do 13 de agosto teriam se recusado a comparecer por medo de retaliação policial. Zilda planeja uma missa de sétimo dia: “Estou aceitando a morte do meu filho, mas não como foi. Ele tinha dois metros de altura. Só pôde se proteger colocando a mão na cabeça e se escondendo atrás de uma máquina. Quero reunir quem está junto na mesma dor. Fazer algo civilizado, para não dar motivo para a polícia reprimir”.

Perto dela, uma mulher que não quis se identificar afirmou: “Quando acabar o ato aqui, o que vai acontecer? O silêncio vai voltar”.

6) Epílogo: na Avenida Paulista, selfies com a polícia

Nesta mesma tarde de domingo, 16 de agosto, a alguns quilômetros dali, era outra a cena. As pessoas “de bem” que se manifestavam pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff reeditavam sua admiração e confiança em uma das polícias que mais mata no mundo. Apertavam a mão de policiais, davam parabéns pelo bom trabalho. Depois, tiravam selfies. Abraçadas aos PMs, fazendo sinal de positivo. Não foram registrados protestos contra a chacina de três dias antes.

Na larga Paulista, a avenida-símbolo da pujança de São Paulo, ocupada por cerca de 135.000 manifestantes, a maioria deles homens, autodeclarados brancos e com curso superior, segundo pesquisa do Datafolha, era como se nada tivesse acontecido do outro lado do rio, as pontes dinamitadas também por mais esse gesto. Era como se não existissem 18 corpos furados à bala e chorados por dezenas nos cemitérios das periferias da Grande São Paulo. Os cadáveres não foram lembrados nem por compaixão, nem por decência. Nem mesmo por vergonha. A suspeita de que o massacre tenha sido cometido por policiais não parece ter abalado os manifestantes. A maioria sequer parecia perceber a obscenidade do seu gesto ao pedir um selfie, esquecendo-se ou fingindo esquecer-se de que cada policial ali representa não a si mesmo, mas a instituição marcada por uma letalidade criminosa.

Executar pobres a tiros nas periferias parece não ser considerado corrupção pelos manifestantes da Paulista. Faz todo o sentido. É essa polícia que garante que só morram os do lugar errado, hora errada. As pessoas “de bem” estão no lugar certo, hora certa. Clamam contra a corrupção vestidas com a camiseta da corrupta CBF, o que de novo faz todo o sentido. E vão à Paulista também para garantir que continuem a estar sempre no lugar certo, hora certa.

(Publicado no El País em 19 de agosto de 2015)

Memória e inquietações: a reportagem e a história em movimento

Memória e inquietações movem a segunda edição de Repórter. Criada em 2011, a série do Itaú Cultural foi idealizada pela jornalista Eliane Brum para documentar a experiência dos grandes repórteres brasileiros, registrando-a e tornando-a disponível na internet, assim como refletir sobre esse momento de mudanças profundas da imprensa. A reportagem é a narrativa da história em movimento. Seu percurso e suas contradições também revelam o seu tempo. Assim, Repórter tem a ambição de registrar a memória de quem conta a história do hoje, transformando-a em documento histórico para a consulta das gerações futuras. E, ao mesmo tempo, a ousadia de também construir memória, ao pensar sobre os desafios de fazer reportagem nesta época, na qual jovens jornalistas precisam encontrar um modo de fazer seu trabalho no contexto de um modelo de negócio em crise, assim como repórteres experientes confrontam-se com o imperativo de criar alternativas para continuar narrando o presente com toda a complexidade, as nuances e o respeito à alteridade que a reportagem exige.

José Hamilton Ribeiro: 60 anos de reportagem

Nesta segunda edição, que acontecerá em 2 de setembro, no auditório do Itaú Cultural, em São Paulo, o homenageado será o repórter José Hamilton Ribeiro. Aos 80 anos e ainda na ativa, ele é um dos maiores repórteres da história da imprensa brasileira. Em 60 anos de profissão, o paulista Zé Hamilton contou vários Brasis e vários momentos desses tantos países que convivem no mesmo território. Trabalhou em diversas publicações impressas, entre elas a lendária revista Realidade, e também na rádio e na TV. Tem 15 livros publicados e é vencedor de sete prêmios Esso.

Em 1968, Zé Hamilton testemunhou a Guerra do Vietnã. Nessa cobertura, perdeu a parte inferior da perna esquerda, na explosão de uma mina vietcong. Assim ele descreveu o momento: “De repente me senti no ar. Quando me dei conta, estava sentado no chão envolto em fumaça. Procurei meu intérprete, um americano de origem mexicana, e não o vi. Pensei que o rapaz tivesse morrido. Só aí senti que minha perna esquerda puxava. Olhei e não havia mais o pé. Só alguns minutos depois começou a doer”.

Tão logo voltou a si, depois da cirurgia de amputação, comentou, bem no seu estilo: “Este meu pé esquerdo sempre me deu problemas. Quando criança, tive nele uma tuberculose óssea. Não me fará muita falta. Pensando bem, tive sorte. No mesmo local em que fui e pisei a mina, pouco antes dois soldados morreram e um terceiro perdeu ambas as pernas e um braço”. Este é Zé Hamilton – ou “Zé Parmito”, como chamam os amigos reporteros mais íntimos. Ao ligar para ele para combinar essa homenagem, fomos encontrá-lo em campo, no Pantanal, reporteando para o programa Globo Rural, onde é repórter especial há mais de 30 anos.

Na década de 50, Zé Hamilton foi impedido de se formar no curso de jornalismo da Cásper Líbero, por ter liderado uma greve. Começou a trabalhar como estagiário na Rádio Bandeirantes. Nos corredores, encontrava-se com artistas da música caipira, com quem conversava, ainda sem perceber a sua importância para a arte e também para a sua vida de repórter. Ainda em 2015, Zé Hamilton vai lançar a reedição revista e ampliada de “Música Caipira: as 270 maiores modas” (Realejo), desta vez acompanhada de um DVD.

Em José Hamilton Ribeiro: 60 anos de reportagem, quatro grandes repórteres foram convidados para entrevistar o grande repórter: Clóvis Rossi, Ricardo Kotscho, Lúcio Flávio Pinto e Carlos Moraes. A entrevista encerrará o evento, a partir das 20 horas. A mediação será da repórter e curadora da série, Eliane Brum.

Lúcio Flávio Pinto: o repórter que inventou um Jornal Pessoal

A abertura de Repórter, às 15h, é também um encontro imperdível. Em O repórter que inventou um Jornal Pessoal, o entrevistado será Lúcio Flávio Pinto, jornalista paraense que se tornou a principal referência na cobertura da Amazônia. Depois de trabalhar em grandes veículos nacionais, incluindo 18 anos no jornal O Estado de S. Paulo, Lúcio Flávio criou, na década de 80, o seu Jornal Pessoal. Em setembro de 2015, o JP completará 28 anos de existência de forma totalmente independente: sem anunciantes publicitários. Com tiragem de 2 mil exemplares, o jornal tem 16 páginas, é quinzenal e vendido a R$ 5 em bancas e livrarias de Belém do Pará e região.

Nas palavras de Lúcio Flávio Pinto: “O objetivo é combater o ‘destino manifesto’ que se impõe à região, de ser colônia. Acredito com firmeza que a história não está escrita nas estrelas, restando-nos contemplá-las, à distância, como acidentes da natureza. Creio que podemos escrever também a história e, nessa escrita, sair da trilha dos colonizadores e da camisa de força em que nos colocaram os dominadores”.

Apenas parte do acervo do Jornal Pessoal está digitalizada na internet. Para Lúcio Flávio, o compromisso maior é manter o jornal vivo e materializado, arriscando-se ao contato íntimo do toque: “A versão impressa atesta o compromisso do jornal com o desafio de se manter visível, acessível no mundo real e exposto democraticamente nas ruas”.

Pela contundência de suas reportagens e pela independência de sua atuação, Lúcio Flávio ganhou vários prêmios nacionais e internacionais. Também escreveu 21 livros, todos sobre a Amazônia. As mesmas razões que o fizeram ser reconhecido no jornalismo, tornaram-no alvo de 33 processos judiciais e até de agressões físicas. O Jornal Pessoal já foi tema de matérias no Washington Post, Le Monde, The New York Times, Corriere della Sera, The Independent, entre outros. Para entrevistá-lo, foram convidados dois jornalistas com experiência reconhecida na cobertura amazônica e socioambiental: Leonêncio Nossa, do Estadão, e Paulina Chamorro, das rádios Eldorado e Estadão. A mediação será de Claudiney Ferreira e Eliane Brum.

Narrativas de Transição

Em seguida, a partir das 17h, será a vez do segundo encontro do dia: Narrativas de Transição. Neste painel, cinco jornalistas, com diferentes trajetórias, contarão como estão se inventando e reinventando de forma independente, neste momento de profunda transformação da imprensa. Bruno Paes Manso (Ponte), Laura Capriglione (Jornalistas Livres), Bruno Torturra (Fluxo), Kátia Brasil (Amazônia Real) e Rene Silva (Voz da Comunidade).

Qual é o lugar e a importância da reportagem nesta época histórica? Como continuar sendo repórter e contar o seu tempo no momento em que as redações da “grande imprensa” encolhem e, em alguns casos, a escolha é por demitir os repórteres mais experientes e bem pagos? Como manter a reportagem viva numa realidade em que as assessorias de imprensa são maiores do que a maioria das redações da “imprensa tradicional” e, muitas vezes, os releases são publicados como se notícia fossem? Como garantir financiamento para a reportagem sem comprometer a independência que assegura a credibilidade da história contada? Quais são os limites entre ativismo e reportagem? É possível construir alternativas para o jornalismo fora das redações convencionais?

Estas e várias outras são algumas das interrogações enfrentadas nestas narrativas de transição. Mas sempre contadas a partir do ponto de vista pessoal, que revela a singularidade de cada um dos repórteres em sua busca por se manter repórter. São depoimentos com duração de 15 minutos cada um, narrados de forma transparente, sem omitir nem as dúvidas nem as inseguranças nem o espanto, muito menos as contradições.

Reprodução Itaú Cultural

Eliane Brum e Audálio Dantas (Reprodução Itaú Cultural)

Na primeira edição, em 2011, a série Repórter homenageou o jornalista Audálio Dantas e teve a participação de Ricardo Kotscho, José Hamilton Ribeiro, Leonardo Sakamoto (Repórter Brasil), Natalia Viana (Agência Pública) e Rosângela Ramos (Boca de Rua). A íntegra das entrevistas pode ser assistida aqui.

Em 2016, já estão programados dois novos encontros para seguir registrando a memória dos grandes repórteres e debatendo os caminhos da reportagem neste novo mundo aberto pela internet e pela multiplicação das narrativas. A reportagem só é viva quando em movimento. É este movimento que a série Repórter busca documentar.

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Serviço: a segunda edição da série Repórter acontecerá em 2 de setembro, das 15 às 22 horas, no auditório do Itaú Cultural (Av. Paulista, 149 – Estação Brigadeiro do metrô), em São Paulo. O evento é aberto ao público. Basta retirar a senha, com 30 minutos de antecedência, antes de cada um dos três encontros. Haverá transmissão ao vivo pela internet. E tradução em LIBRAS. 

Morrendo na primeira pessoa

Depois de se tornar interdita e silenciada no século 20, a morte ganha cada vez mais espaço em narrativas confessionais de notáveis e de anônimos. Em nossa época, a internet e as redes sociais alteram também o modo como olhamos e falamos sobre a doença, o envelhecimento, o luto e o fim da vida

Leia na minha coluna no El País:

Em 24 de julho, Oliver Sacks, escritor, neurologista e um dos pensadores mais interessantes do nosso tempo, escreveu um novo artigo sobre o seu morrer, na página de Opinião do The New York Times. Em fevereiro, ele tinha anunciado que estava com câncer no fígado, sem possibilidade de cura, em um texto belíssimo sobre a vida, que foi traduzido e publicado no mundo inteiro. Agora, aos 82 anos, Sacks começa a se sentir nauseado e enfraquecido pela doença, mas não menos encantado e curioso com a existência. Ele segue esperando com alegria a chegada das revistas científicas, ansioso pelas descobertas sobre um universo que o fascina. Semanas atrás, ele estava no campo, longe das luzes da cidade, quando se deparou com a inteireza monumental do céu “polvilhado de estrelas”. Sacks concluiu: “Esse esplendor celeste de imediato me fez perceber o quão pouco era o tempo e a vida que me restava. Minha percepção da beleza do céu, da eternidade, era inseparável da minha percepção da transitoriedade – e da morte”. Contou então seu sentimentos aos amigos que o acompanhavam, Kate e Allen, dizendo: “Eu gostaria de ver esse céu novamente quando estiver morrendo”. E os amigos garantiram que fariam com que pudesse ver as estrelas uma vez mais.

Ao nos contar sobre o seu morrer, um morrer vivo, no qual a experiência de chegar ao fim é mais uma novidade para um homem curioso com o mundo e com a existência, Oliver Sacks tornou-se um dos sinalizadores de que algo fundamental está mudando na nossa época. E de forma bastante rápida, já que nosso tempo histórico é acelerado. Embora o silêncio sobre a morte, a doença e o luto ainda persistam na vida cotidiana – e talvez seja ainda o que se impõe para a maioria das pessoas –, já não vivemos a morte “envergonhada” ou “clandestina” que se estabeleceu no século 20. O doente terminal que finge que não está morrendo, para não alarmar nem a família nem a equipe médica, pode estar começando a se tornar um espécime em extinção. A morte começa a ficar desavergonhada – e especialmente confessional, bem ao tom desse momento em que se narra tudo nas redes sociais.

Leia o texto inteiro aqui.

Outras reportagens e artigos sobre o luto e o morrer:

 

A enfermaria entre a vida e a morte
Lá, eles respeitam o tempo de morrer. Lá, cuidar é mais importante que curar. Lá, todo dia eles respondem: prolongar a vida ou aceitar o fim?

A mulher que alimentava
Os últimos 115 dias da vida de Ailce de Oliveira Souza

Minha vida com Ailce
Eliane Brum conta como foi fazer uma reportagem que só terminaria com a morte da personagem principal

O filho possível
Acompanhamos uma UTI neonatal que trabalha com cuidados paliativos. Nela, a medicina faz diferença mesmo quando não há cura

A mãe órfã
Lutos mal elaborados também matam

A mulher que restou
Como viver depois de perder o marido e a filha única em 20 meses? Joan Didion responde à tragédia num texto delicado e brutal

A vida na “Tumorlândia”
O grande polemista Christopher Hitchens conta, com a inteligência e a ironia que marcaram a sua obra, como é a vida no mundo novo e muito peculiar no qual são lançadas as pessoas a partir do diagnóstico de um câncer

As mães não deveriam morrer
Resta-nos o movimento que transforma dor em saudade

Testamento vital
CFM prepara documento para garantir dignidade na morte

O mundo da gente morre antes da gente
A vida que conhecemos começa a desaparecer lentamente, num movimento silencioso que se infiltra nos dias, junto com aqueles que fizeram da nossa época o que ela é

Programa Profissão Repórter: Caco Barcellos, Eliane Brum e Thais Itaqui contam a rotina de uma enfermaria que cuida de pessoas no fim da vida

 

O FILHO POSSÍVEL

RETRATO DE ADEUS
Josiane Pereira despede-se de sua filha Ana Luiza. A menina viveu apenas sete horas. Na sala de luto, na unidade de neonatologia, o marido, Giovani, a ampara e acaricia. É dele a mão que afaga (Foto: Marcelo Min)

Por quem rosna o Brasil

Diante da ruína da autoimagem no espelho, o país parece preferir máscaras autoritárias a enfrentar a brutalidade da sua nudez

 

O que é o Brasil, agora que não pode contar nem com os clichês? Como uma pessoa, que no território de turbulências que é uma vida vai construindo sentidos e ilusões sobre si mesma, um país também se sustenta a partir de imaginários sobre uma identidade nacional. Por aqui acreditamos por gerações que éramos o país do futebol e do samba, e que os brasileiros eram um povo cordial. Clichês, assim como imaginários, não são verdades, mas construções. Impõem-se como resultado de conflitos, hegemonias e apagamentos. E parece que estes, que por tanto tempo alimentaram essa ideia dos brasileiros sobre si mesmos e sobre o Brasil, desmancharam-se. O Brasil hoje é uma criatura que não se reconhece no espelho de sua imagem simbólica.

Essa pode ser uma das explicações possíveis para compreender o esgarçamento das relações, a expressão sem pudor dos tantos ódios e, em especial, o atalho preferido tanto dos fracos quanto dos oportunistas: o autoritarismo. Esvaziado de ilusões e de formas, aquele que precisa construir um rosto tem medo. Em vez de disputar democraticamente, o que dá trabalho e envolve perdas, prefere o caminho preguiçoso da adesão. E adere àquele que grita, saliva, vocifera, confundindo oportunismo com força, berro com verdade.

O presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB), relacionado na delação premiada da Operação Lava Jato ao recebimento de 5 milhões de dólares em propina, teria dito a aliados: “Vou explodir o governo”. Tanto ele quanto o apresentador de programa de TV que brada que tem de botar “menor” na cadeia, quando não no paredão, assim como o pastor que brada que homossexualidade é doença são partes do mesmo fenômeno. São muitos brados, mas nenhum deles retumba a não ser como flatulência.

Num momento de esfacelamento da imagem, o que vendem os falsos líderes, estes que, sem autoridade, só podem contar com o autoritarismo? Como os camelôs que aparecem com os guarda-chuvas tão logo cai o primeiro pingo de chuva, eles oferecem, aos gritos, máscaras ordinárias para encobrir o rosto perturbador. Máscaras que não servem a um projeto coletivo, mas ao projeto pessoal, de poder e de enriquecimento, de cada um dos vendilhões. Para quem tem medo, porém, qualquer máscara é melhor do que uma face nua. E hoje, no Brasil, somos todos reis bastante nus, dispostos a linchar o primeiro que nos der a notícia.

Ainda demoraremos a saber o quanto nos custou a perda tanto dos clichês quanto dos imaginários, mas não a lamento. Se os clichês nos sustentaram, também nos assombraram com suas simplificações ou mesmo falsificações. A ideia do brasileiro como um povo cordial nunca resistiu à realidade histórica de uma nação fundada na eliminação do outro, os indígenas e depois os negros, lógica que persiste até hoje. Me refiro não ao “homem cordial”, no sentido dado pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) em seu seminal Raízes do Brasil, mas no sentido que adquiriu no senso comum, o do povo afetuoso, informal e hospitaleiro que encantava os visitantes estrangeiros que por aqui aportavam. O Brasil que, diante da desigualdade brutal, supostamente respondia com uma alegria irredutível, ainda que bastasse prestar atenção na letra dos sambas para perceber que a nossa era uma alegria triste. Ou uma tristeza que ria de si mesma.

O futebol continua a falar de nós em profundezas, basta escutar a largura do silêncio das bolas dos alemães estourando na nossa rede nos 7X1 da Copa das Copas, assim como o discurso sem lastro, a não ser na corrupção, dos dirigentes da CBF (Confederação Brasileira de Futebol). Mas, se já não somos o país do futebol, de que futebol somos o país?

Tampouco lamento o fato de que “mulata” finalmente começa a ser reconhecido como um termo racista e não mais como um “produto de exportação”. E lamento menos ainda que a suposta existência de uma “democracia racial” no Brasil só seja defendida ainda por gente sem nenhum senso. Os linchamentos dos corpos nas ruas do país e o strip-tease das almas nas redes sociais desmancharam a derradeira ilusão da imagem que importávamos para nosso espelho. Quando tudo o mais faltava, ainda restavam os clichês para grudar em nosso rosto. Acabou. Com tanto silicone nos peitos, nem o país da bunda somos mais.

Quando os clichês, depois de tanto girar em falso, tornam-se obsoletos, ainda se pode contar com o consumo de todas as outras mercadorias. Mas, quando o esfacelamento dos imaginários se soma ao esfacelamento das condições materiais da vida, o discurso autoritário e a adesão a ele tornam-se um atalho sedutor. É nisso que muitos apostam neste momento de esquina do Brasil.

É também isso que explica tanto um Eduardo Cunha na Câmara quanto pastores evangélicos que pregam o ódio para milhões de fiéis e apresentadores de TV que estimulam a violência enquanto fingem denunciá-la. Estes personagens paradigmáticos do Brasil atual formam as três faces de uma mesma mediocridade barulhenta e perigosa, que se expressa por bravatas diante das câmeras. Numa crise que é também de identidade, forjam realidades que possam servir ao seu projeto de poder e de enriquecimento para abastecer a manada. Esta, por sua vez, prefere qualquer falsificação ao vazio.

Para estes personagens tão em evidência, quanto mais medo, melhor. Inventar inimigos para a população culpar tem se mostrado um grande negócio nesse momento do país. Se as pessoas sentem-se acuadas por uma violência de causas complexas, por que não dar a elas um culpado fácil de odiar, como “menores” violentos, os pretos e pobres de sempre, e, assim, abrir espaço para a construção de presídios ou unidades de internação? Se os “empreendimentos” comprovadamente não representam redução de criminalidade, certamente rendem muito dinheiro para aqueles que vão construí-los e também para aqueles que vão fazer a engrenagem se mover para lugar nenhum. Depois, o passo seguinte pode ser aumentar a pressão sobre o debate da privatização do sistema prisional, que para ser lucrativo precisa do crescimento do número já apavorante de encarcerados.

Se há tantos que se sentem humilhados e diminuídos por uma vida de gado, porque não convencê-los de que são melhores que os outros pelo menos em algum quesito? Que tal dizer a eles que são superiores porque têm a família “certa”, aquela “formada por um homem e por uma mulher”? E então dar a esses fiéis seguidores pelo menos um motivo para pagar o dízimo alegremente, distraídos por um instante da degradação do seu cotidiano? Fabricar “cidadãos de bem” numa tábua de discriminações e preconceitos tem se mostrado uma fórmula de sucesso no mercado da fé.

A invenção de inimigos dá lucro e mantém tudo como está, porque, para os profetas do ódio, o Brasil está ótimo e rendendo dinheiro como nunca. Ou que emprego teriam estes apresentadores, se não tiverem mais corpos mortos para ofertar no altar da TV? Ou que lucro teria um certo tipo de “religioso” que criou seu próprio mandamento – “odeie o próximo para enriquecer o pastor”? Ou que voto teria um deputado da estirpe de Eduardo Cunha se os eleitores exigissem um projeto de fato, para o país e não para os seus pares? Para estes, que estimulam o ódio e comercializam o medo, o Brasil nunca esteve tão bem. E é preciso que continue exatamente assim.

Se o governo Lula, na história recente do país, fundou-se sobre um pacto de conciliações, para compreendê-lo é necessário também decodificá-lo como um conciliador de imaginários. Lula, o líder carismático, foi muito eficiente ao ser ao mesmo tempo o novo – “o operário que chegou ao poder” num país historicamente governado pelas elites – e o velho –, o governante “que cuida do povo como um pai”. A centralização na imagem do líder esvazia de força e de significados o coletivo. Do mesmo modo, a relação entre pais e filhos alçada à política atrasa a formação do cidadão autônomo, que fiscaliza o governo e concede ao governante, pelo voto, um poder temporário.

Mas a ideia mais sedutora do governo Lula, em especial no segundo mandato, era a possibilidade de incluir no mundo do consumo milhões de brasileiros e reduzir a miséria de outros milhões sem tocar no privilégio dos mais ricos. Este era um encantamento poderoso, que funcionou enquanto o Brasil cresceu, mas que, qualquer que fosse o desempenho da economia, só poderia funcionar por um tempo limitado num país com acertos históricos para fazer e uma desigualdade abissal. Enquanto o encanto não se quebrou, muitos acreditaram que o eterno país do futuro finalmente tinha chegado ao futuro. O Brasil, que valoriza tanto o olhar estrangeiro (do estrangeiro dos países ricos, bem entendido), leu-se como notícia boa lá fora. A Copa do Mundo aqui foi sonhada para ser a apoteose-síntese deste Brasil: enfim, o encontro entre identidade e destino.

Não foi. E não foi muito antes dos 7X1. Essa frágil construção simbólica, que desempenhou um papel muito maior do que pode parecer na autoimagem do Brasil e nas relações cotidianas da população na história recente, exibiu vários sinais de que se quebrava aqui e ali, vazando por muitos lados. Sua ruína se tornou explícita nas manifestações de junho de 2013, protestos identificados com a rebelião e com a esquerda, apesar da multiplicidade contraditória das bandeiras. Quem acha que 2013 foi apenas um soluço, não entendeu o impacto profundo sobre o país. A partir dali todos os imaginários sobre o Brasil perderam a validade. Assim como os clichês. E a imagem no espelho se revelou demasiado nua. E bastante crua.

O Brasil do futuro não chegará ao presente sem fazer seu acerto com o passado. Entre tantas realidades simultâneas, este é o país que lincha pessoas; que maltrata imigrantes africanos, haitianos e bolivianos; que assassina parte da juventude negra sem que a maioria se importe; que massacra povos indígenas para liberar suas terras, preferindo mantê-los como gravuras num livro de história a conviver com eles; em que as pessoas rosnam umas para as outras nas ruas, nos balcões das padarias, nas repartições públicas; em que os discursos de ódio se impõem nas redes sociais sobre todos os outros; em que proclamar a própria ignorância é motivo de orgulho na internet; em que a ausência de “catástrofes naturais”, sempre vista como uma espécie de “bênção divina” para um povo eleito, já deixou de ser um fato há muito; em que as paisagens “paradisíacas” são borradas pelo inferno da contaminação ambiental e a Amazônia, “pulmão do mundo”, vai virando soja, gado e favela – quando não hidrelétricas como Belo Monte, Jirau e Santo Antônio.

Este é também o país em que aqueles que bradam contra a corrupção dos escalões mais altos cometem cotidianamente seus pequenos atos de corrupção sempre que têm oportunidade. A ideia de que o Congresso democraticamente eleito, formado por um número considerável de oportunistas e corruptos, não corresponde ao conjunto da população brasileira é talvez a maior de todas as ilusões. É duro admitir, mas Eduardo Cunha é nosso.

Neste Brasil, a presidente Dilma Rousseff (PT), acuada por ameaças de impeachment mesmo quando (ainda) não há elementos para isso, é um personagem trágico. Vendida por Lula e pelos marqueteiros na primeira eleição, a de 2010, como “mãe dos pobres”, ela nunca foi capaz de vestir com desenvoltura esse figurino populista, até por sinceridade. Quando tenta invocar simbologias em seus discursos, torna-se motivo de piada. O slogan de seu segundo mandato – “Brasil, Pátria Educadora” – não encontra nenhum lastro na realidade, virando mais uma denúncia do colapso da educação pública do que o movimento para recuperá-la. Parece que os marqueteiros tampouco entendem o Brasil deste momento e seguem acreditando que basta criar imagens para que elas se tornem imaginários. O próprio Lula parece ter perdido sua famosa intuição sobre o Brasil e sobre os brasileiros. Em suas manifestações, Lula soa perdido, intérprete confuso de um Brasil que já não existe.

Agora que já não contamos com os velhos clichês e imaginários, a crueza de nossa imagem no espelho nos assusta. Diante dela e de uma presidente com a autoridade corroída, cresce a sedução dos autoritarismos. Nada mais fácil do que culpar o outro quando não gostamos do que vemos em nós. Em vez de encarar o próprio rosto, cobre-se a imagem perturbadora com alvos a serem destruídos. Aqueles que encontram nesta adesão aos discursos autoritários uma possibilidade de ascensão, esquecem-se da lição mais básica, a de que não há controle quando se aposta no pior. Só há chance se enfrentarmos conflitos e contradições com a cara que temos. É com esses Brasis que precisamos nos haver. É essa imagem múltipla que temos de encarar no espelho se quisermos construir uma outra, menos brutal.

O que o governo Lula adiou, ao escolher a conciliação em vez da ruptura com os setores conservadores, está na mesa. Há várias forças se movendo para encontrar uma nova acomodação, que evite o enfrentamento das contradições e das desigualdades. É pelas bandeiras da reacomodação que as ruas foram ocupadas em 2015 pelo que alguns têm chamado de “nova direita”. Esta, se adere à novidade da organização pelas redes sociais e aparentemente se coloca fora dos esquemas tradicionais da política e dos partidos, talvez seja menos “nova” do que possa parecer nas questões de fundo.

A próxima manifestação, marcada para 16 de agosto, é acompanhada com atenção pelos políticos e partidos tradicionais que conspiram pelo impeachment da presidente eleita. Os manifestantes de 2015 gritam contra a corrupção, mas basta escutá-los com atenção para compreender que gritam para deixar tudo como está. E, se possível, voltar inclusive atrás, já que uma parte significativa parece ter se sentido lesada por políticas como a das cotas raciais e outros tímidos avanços na direção da reparação e da equidade. A redução da maioridade penal, assim como outros projetos conservadores em curso, são também exemplos de uma resposta autoritária – e inócua – para o esgarçamento crescente das relações sociais e para a violência.

Há muito barulho sendo produzido hoje, como o próprio discurso de Eduardo Cunha em cadeia nacional (17/7), para desviar o foco do grande nó a ser desatado: não haverá justiça social e igualdade no Brasil sem tocar nos privilégios. Muita gente bacana ainda segue acreditando no conto de fadas de que é possível alcançar a paz sem perder nada. Não é. Quem quiser de fato reduzir a violência e a corrupção que atravessa o Brasil e os brasileiros vai ter de pensar sobre o quanto está disposto a perder para estar com o outro. É este o ponto de interrogação no espelho. É por isso que o som ameaçador dos dentes sendo afiados cresce. E cresce também onde menos se espera.

(Publicado no El País em 03/08/2015)

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