E se a classe média de Pinheiros tivesse se omitido?

O mais significativo ato de potência num país interditado foi ignorado ou tratado como algo menor pela grande imprensa, num noticiário dominado pela Lava Jato, pela condenação de Lula, pelo aumento da gasolina e pelas barganhas no Congresso. Sobre a missa na Sé, muito pouco. Mas talvez nada seja mais importante hoje do que enxergar onde está o movimento. Ou onde estão as pequenas rachaduras nos muros. É assim que as transformações profundas, as estruturais, começam ou continuam. A potência hoje e já há algum tempo está em outros lugares e em outros atores.

É importante fazer a pergunta pelo avesso: e se os moradores de Pinheiros tivessem se omitido, como faz a maior parte da população mais rica e mais branca?

Missa na Caedral da Sé Foto: LILO CLARETO (Reprodução El País)

Missa na Caedral da Sé Foto: LILO CLARETO (Reprodução El País)

 

A catedral encheu. O que, de novo, é muito e pouco ao mesmo tempo. Mas, numa cidade de milhões, era possível desejar mais. Perguntei para várias pessoas que divulgaram a missa e não compareceram por que não foram. Com variações, a resposta era: “Queria muito, divulguei muito, mas tinha um compromisso”. Há nessa resposta algo importante sobre os brasileiros, mesmo os mobilizados pelos direitos humanos. A ideia de que não podem perder nada. Só ganhar.

Quando alguém afirma que tinha um compromisso, portanto algo mais importante, está dizendo também que o outro estava lá porque não tinha o que fazer. Acredito que a maioria das pessoas que compareceram à missa tinham algo a fazer que deixaram de fazer porque entenderam que nada poderia ser mais importante do que estar ali. Ou seja. Perderam algo para ganhar outra coisa. É assim que são as escolhas, afinal. Às vezes se perde bastante: uma reunião que estava marcada há muito e é difícil de remarcar, um trabalho que se deixa de fazer e portanto de receber, o chefe que não entendeu a ausência e então é o emprego que se arrisca, retaliações de vários tipos. É assim que a gente se recorta na vida, fazendo escolhas. Escolhas que custam.

Não basta divulgar nas redes sociais. É preciso presença, é preciso botar o corpo na rua. O que mais leio no Facebook e no Twitter são declarações como essa: “Me sinto impotente diante da realidade do país”. A missa na Sé era um momento de potência, que poderia ser ainda mais significativo do que foi – e foi bastante – se os que se declaram impotentes tivessem somado seu corpo ao corpo de quem estava lá. Ouvi também: “Não pude ir, mas você me representa”. Neste ato, cada um é insubstituível, cada um é um a mais. E o que se faz ali é intransferível.

Se, como escrevi alguns parágrafos atrás, um dos desafios mais importantes do Brasil hoje é criar possibilidades de estar com o outro no espaço público, há um desafio que talvez seja ainda mais crucial: o quanto cada um está disposto a perder para estar com o outro. Porque será preciso perder: de sossego a privilégios de classe, de gênero, de raça.

Assim como um grupo de moradores de Pinheiros fez uma escolha, quando o movimento se ampliou com a missa na catedral da Sé, a escolha se ampliou para todos que vivem em São Paulo e cidades próximas. A pergunta é: o que é mais importante do que se manifestar contra a execução de um ser humano por um agente do Estado consumada em plena rua na maior cidade do país?

O que se perderia estando lá é circunstância de cada um. O que se perde não estando lá é humanidade. Cada um com a sua balança.

 

Leia na minha coluna no El País

A carroça de Ricardo Nascimento foi enfeitada e colocada no local da execução MUNDANO/PIMP MY CARROÇA

A carroça de Ricardo Nascimento foi enfeitada e colocada no local da execução MUNDANO/PIMP MY CARROÇA

 

Escuta sensível

Encontros da Revista E/Sesc São Paulo
Postado em 30/05/2017 

Nem jornalista, nem escritora ou documentarista; Eliane Brum define-se mesmo como uma “escutadora”. As histórias que conta carregam uma escolha política: têm como foco aqueles que não costumam ser protagonistas, como indígenas, moradores de rua e sem-teto. Colunista do jornal El País desde 2013, Eliane já trabalhou também no jornal Zero Hora e na revista Época. Desde 2004, acompanha histórias de pessoas atingidas pela construção da hidrelétrica de Belo Monte, na região do Xingu, na Amazônia. Entre seus livros de não ficção, estão A Vida que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, 2006), O Olho da Rua (Globo, 2008) e Meus Desacontecimentos (Leya Casa da Palavra, 2014). Além disso, codirigiu os documentários Uma História Severina (2005), Gretchen Filme Estrada (2010) e Laerte-se (2017). A seguir, trechos do depoimento da jornalista, no qual ela fala sobre jornalismo e a sensibilidade por trás de um trabalho de reportagem.

 

 

 

Escolhas

A minha escolha mais profunda, que está em toda a minha expressão, é o compromisso com aqueles que estão à margem da narrativa, porque acho que não existe nada mais brutal do que não ser contado na história. Foi isso que sempre me moveu.

Hoje, em que é possível medir a audiência, vejo que o que escrevo sobre Belo Monte tem menos audiência do que o que outras coisas que escrevo, assim como temas sobre moradores de rua, sem-teto, indígenas. Esse, para mim, é o motivo de escrever mais e não menos. Essa é uma escolha política que não se baseia na audiência.

Pacto de confiança

Antes de sair de casa, sempre me faço uma pergunta: se eu estivesse no lugar dessa outra pessoa, abriria a porta para uma repórter? Se a minha resposta for não, eu não saio de casa, e se alguém me diz que não quer falar comigo, eu não insisto, porque acho que ninguém é obrigado a falar com ninguém.

Quando alguém abre a porta da casa para te contar uma história, tem ali um pacto muito profundo. Não posso trair essa pessoa. Um entrevistado meu jamais ouviu que algo saiu de um jeito porque o editor mexeu e não pude fazer nada. A responsabilidade é minha, porque esse pacto é comigo e eu é que vou lutar pela voz dessa pessoa para levar aos leitores uma reportagem que contemple a complexidade da realidade.

Há um pacto de confiança nesse tipo de reportagem, é muito grande alguém se contar para o outro, e por isso tenho que ter esse respeito pela palavra do outro. Pela palavra exata, não pelo sinônimo, e por essa escuta, que é o grande instrumento da reportagem.
Por exemplo, acompanhei os últimos 115 dias de uma mulher que morreu de um câncer incurável, e durante esse tempo falei com ela praticamente todos os dias. Em nenhum momento ela pronunciou a palavra câncer. Se eu tivesse perguntado como ela lidava com o câncer, não saberia disso e não entenderia o que foi para ela viver a morte.

Entrevistas

Às vezes me perguntam como arranco as coisas das pessoas, mas não arranco nada. Para mim, arrancar é o contrário do que um repórter deve fazer. As pessoas me contam ou não me contam. Para o tipo de reportagens que faço, em geral bato na porta das pessoas e, sempre que possível, não faço a primeira pergunta.

Acho que a primeira pergunta fala mais de mim do que das pessoas, fala mais do que quero saber, e talvez não do que elas iriam me contar. A primeira pergunta é também uma forma de controle, e ser repórter é perder o controle em um certo momento, para poder alcançar o outro. Então, sempre que posso, eu digo apenas “me conta”, e é muito surpreendente por onde as pessoas começam a contar uma história.

Desabitar-se

Sempre descrevo a reportagem como se desabitar para ser habitado pelo outro. É um movimento de se despir de si, de seus preconceitos, da sua visão de mundo, do seu julgamento, para alcançar o mundo do outro e o mundo que é o outro, para depois empreender o caminho de volta, o que não é nada fácil. Você não volta dessa experiência impunemente, é profundo. Sempre que volto de uma reportagem, não consigo falar sobre isso, só consigo falar depois que ela vira palavra fora de mim, que é outro processo.

O que assegura que vou ser habitada pelo outro, o que é sempre uma busca e jamais por completo, é a escuta que se faz com todos os sentidos. Eu me apresento como uma escutadora, acho que é o que melhor me define como repórter. É uma escuta do dito, do não dito, do silêncio, da hesitação, dos quadros na parede, dos móveis, das texturas, das cores, dos sons, que não são palavras. É uma escuta ampla. Interfiro muito pouco nas minhas entrevistas, gravo e vou anotando tudo o que vai acontecendo no ambiente, de modo que eu consiga reconstituir aquilo que vivi e que escutei. Não conheço instrumento melhor para alcançar o outro ou para chegar o mais perto possível do que a escuta.

 

 

O Brasil desassombrado pelas palavras-fantasmas

Como o sonho e a arte podem nos ajudar a acessar a realidade e a romper a paralisia

Exposição 'Osso', em cartaz no Instituto Tomie Othake. (JOÃO CASTELLANO/ Reprodução El País)

Exposição ‘Osso’, em cartaz no Instituto Tomie Othake. (JOÃO CASTELLANO/ Reprodução El País)

O que sonhamos nós neste momento do Brasil? Neste momento em que as palavras não estão proibidas, como no sonho da alemã, mas esvaziadas de substância? Nesta condição, as palavras são como fantasmas que atravessam o corpo do outro sem produzir nenhum efeito. E então voltam para nós, falantes compulsivos, gritadores contumazes, que produzem som, mas não movimento. E esta talvez seja uma versão contemporânea, uma versão dos tempos da Internet, de um outro tipo de censura. E de encarceramento pela linguagem. Palavras-fantasmas, é preciso dizer, não assombram. Desassombram.

Leia o texto completo AQUI

Sobre a crise da palavra no Brasil atual, leia também:

O golpe e os golpeados

Tupi or not to be

Por quem rosna o Brasil